Parcimónia e outros exageros

[dropcap]S[/dropcap]uaves e discretos movimentos corporais, baixos tons de voz, risos e sorrisos contidos, raros contactos visuais e ainda mais raros contactos físicos, vestuário de cores sóbrias que contrasta com a generalizada exuberância da vizinhança asiática: há uma parcimónia sistemática e omnipresente nos quotidianos, profundamente enraizada na cultura japonesa. Não é apenas a provável barreira linguística que dificulta a comunicação com quem vem de fora: há também uma permanente protecção em relação ao exterior que também – ou sobretudo – se aplica em qualquer outra relação social, independentemente da origem dos intervenientes e também entre a própria população nipónica. Como me dizia uma amiga (japonesa), o Japão é uma ilha e cada pessoa é uma ilha em si mesma.

Em boa verdade, é preciso também dizer que a parcimónia se dissolve no álcool com relativas facilidade e eficácia: quer seja o tradicional sake, a universal cerveja ou o mais exótico vinho a animar os repastos, não é difícil observar a metamorfose que gradualmente vai transformando a generalizada parcimónia quotidiana em ruidosas celebrações de gestos amplos, olhares descontraídos, vozes ruidosas e sonoras gargalhadas, eventualmente excessivas e inevitavelmente surpreendentes para quem tem pouca familiaridade com estas drásticas transformações. De resto, as tradicionais tascas japonesas – isakaya – são o palco mais peculiar pare se observarem estas graduais transições entre o comedimento e o excesso.

A comida é, de resto, território de excelência para a manifestação extrema da parcimónia nipónica. Pratos pequenos, poucos condimentos, receitas simples com poucos ingredientes e alta precisão, pequenas doses já preparadas e cortadas em comedidas porções que podem ser levadas integralmente à boca, dispensando facas e outros utensílios metálicos, e uma regra essencial: comer até o estômago estar 80% cheio, o essencial para manter uma nutrição adequada ao funcionamento do corpo e para evitar excessos pouco saudáveis. A obesidade é relativamente rara, em comparação com qualquer outro país que tenha visitado, e a longevidade está nos mais altos níveis do planeta. E há também o respeito sistemático pela limitação dos recursos: raramente há sobras, os pratos estão vazios no final da refeição e não há desperdícios. Esta frugalidade também se reflete na surpresa com que agora enfrento as primeiras doses em restaurantes em Portugal, com quantidades de carne ou peixe que seriam suficientes para meia dúzia de refeições japonesas. E com os inerentes desperdícios, para os quais olhamos como sinal de generosidade, abundância e fartura.

Ainda assim, é também na alimentação que se releva um dos aspectos menos parcimoniosos do quotidiano japonês: a utilização desenfreada de plásticos, num país onde se cozinha relativamente pouco em casa e onde em cada quarteirão há uma loja, da especialidade ou de conveniência generalizada, onde se pode comprar comida feita e rápida, quente ou fria, adequada à curta pausa laboral da hora do almoço ou a uma rápida recuperação calórica no regresso a casa depois da habitual longa jornada de trabalho. Levando a higiene a extremos insuspeitos, são diferentes embalagens de plástico, enfiadas em pequenos sacos de plástico, por sua vez acomodados em sacos de plástico maiores, aos quais se juntam outros adereços, como os guardanapos húmidos embrulhados em plástico, a garrafa de plástico com água ou chá, as eventuais palhinhas, enfim, uma parafernália plástica proporcional à obsessão com a higiene e a limpeza.

Verdade seja dita, ganhar-se-á nos cuidados de saúde individuais algo que se perde nos cuidados colectivos com o meio ambiente, que o plástico não desaparece por grande que seja o esforço de reciclagem. Não é só a questão alimentar: em todo o comércio se revela esta aparentemente desproporcionada preocupação com a embalagem, a protecção contra a possível contaminação, o isolamento higiénico sistemático. E para tudo há plásticos, de vários tipos. Não pode ser uma surpresa que o Japão, país de frugalidade e parcimónia, seja o segundo país do mundo onde o consumo de plástico por habitante é mais alto (ainda há os Estados Unidos). E se a limpeza e a higiene da urbanidade contemporâneas ficam exemplarmente asseguradas, já os ecossistemas parecem severamente atacados e os mares da costa japonesa são os que apresentam maiores níveis de contaminação por micro-plásticos no mundo. Talvez alguma parcimónia neste campo – não só no Japão, certamente – ajudasse a proteger um bocadinho este planeta tão mal tratado pelas sociedades industriais e pós-industriais.

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