Custo mínimo, lucro máximo

[dropcap]A[/dropcap] imprensa da especialidade divulgou recentemente quanto ganharam em 2018 os presidentes – ou CEO, como se diz agora, eventualmente com mais rigor técnico mas certamente com menor zelo linguístico, pelo menos no que diz respeito à língua portuguesa – das grandes empresas mundiais do sector turístico. E que magníficos rendimentos auferiram estes soberbos gestores, alguns mesmo capazes de ultrapassar largamente os valores conseguidos em empresas de alto gabarito internacional, como a EDP, que ainda antes de tornar chinesa já se permitia pagar mais de 3 milhões de euros anuais ao seu máximo administrador.

O primeiro lugar é também expressão sintomática de uma tendência inequívoca das economias globais contemporâneas: a da vitória da distribuição sobre a produção, do conhecimento da dinâmica dos mercados sobre a dinâmica dos processos produtivos, da prioridade aos hábitos de consumo e canais comerciais em relação ao conhecimento das matérias primas e do seu processamento. Mais do que produzir conteúdos relevantes e de qualidade, interessa a eficácia com que possam transitar entre quem produz a quem consome. Não pode surpreender, por isso, que o mais bem pago gestor do sector turístico tenha sido o presidente de uma empresa cujos serviços assentam em plataformas digitais globais de reservas e distribuição de viagens e alojamento. Arrecadou mais de 5 milhões e meio de euros durante o ano passado.

As outras duas actividades a dominar esta tabela de fabulosos gestores são, naturalmente, os transportes (sobretudo aéreos) e o alojamento (hoteleiro) – ou mesmo empresas que diversificam e praticam as duas actividades, como é o exemplo da empresa alemã cujo gestor ocupa o segundo lugar da tabela, ultrapassando também os 5 milhões de euros de rendimento anual. Igualmente ilustrativo das dinâmicas contemporânea do capitalismo global, no caso dos transportes aéreos, é o aparecimento neste restrito grupo de dois dirigentes máximos de empresas de aviação de baixo custo – de resto bem conhecidas no mercado português. É sabido que os serviços tendem a ser mínimos, que a pontualidade é duvidosa e que os problemas são frequentes, ainda que na maior parte dos casos estas empresas operem com subsídios generosamente atribuídos por entidades públicas e privados dos destinos para onde dirigem os seus voos. Mais uma vez, conta a eficácia da distribuição: ligações directas e baratas entre origem e destino de grupos específicos de turistas com motivações identificadas, com serviços mínimos e lucros máximos. Cerca de 2 milhões de euros cada um, receberam em 2018 os fabulosos líderes máximos de duas destas empresas.

Particularmente curioso é o caso da hotelaria – e em particular o de uma empresa que por acaso utilizei este ano em dois continentes – cujo fantástico presidente auferiu mais de 4 milhões e meio de euros. A simpatia extrema com que fui tratado num desses hotéis, no sudoeste asiático, acabou por fazer com que tivesse uma interação muito maior que o habitual com quem lá trabalha. Fiquei a saber, por exemplo, que há pessoas (não sei se todas) que não têm sequer direito a um dia completo de descanso semanal – e nem valerá a pena comentar muito os níveis salariais. Certamente isso não acontecerá no segundo hotel do grupo que frequentei, em França, país onde os direitos laborais ainda beneficiam de muito razoável protecção. Ainda assim, era visível a falta de pessoal para os serviços necessários e a desproporção entre as 4 estrelas que classificam o estabelecimento e a qualidade do atendimento. Só um exemplo, que haveria muitos outros: várias vezes me dirigi ao bar para tomar um café antes de sair do hotel e quase nunca tinha alguém que me atendesse, ainda que o dito bar estivesse aberto; dirigia-me então à recepção, de onde telefonavam à pessoa que me deveria atender, entretanto ocupada noutra tarefa qualquer. Uma polivalência forçada numa equipa intencionalmente insuficiente, que contribui – tal como a ausência de descanso para quem trabalha no sudoeste da Ásia – para as poupanças necessárias ao magnânimo pagamento dos magníficos serviços do mais alto gestor da companhia.

É muito disto que se faz a dinâmica turística global contemporânea: custos mínimos, exploração máxima, lucros altos e remunerações aberrantes e injustas para os administradores de topo.

Também é assim que se constroem sociedades cada vez mais desiguais, exclusivas e injustas, como as que vamos observando na fase actual do capitalismo. Não é só no turismo, certamente – em muitos outros sectores se assiste a práticas semelhantes e a uma crescente desproporção entre os salários dos trabalhadores e dos gestores de topo. Mas não deixa de ser sintomático que a uma economia menos orientada para a incorporação de conhecimento e tecnologia e mais dependente de experiências turísticas de baixo custo e baixa incorporação de valor acrescentado corresponda também uma sociedade mais desigual e injusta.

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