A identidade colectiva das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente

[dropcap]A[/dropcap] hibridação cultural dos portugueses euro-asiáticos do Oriente foi reforçada pela cristianização dos povos com os quais os portugueses estabeleceram relações duradouras, nas regiões litorais do Indico e do Pacífico. Mesmo hoje em dia, os termos “cristão” e “português” são sinónimos, em certas partes do Oriente. E entre os povos orientais, o estereótipo do português não corresponde ao tipo somático do português originário da Península Ibérica, mas ao dos euro-asiáticos descendentes dos portugueses que vivem em comunidades que habitam as regiões litorais do Índico e do Pacífico.

Por alguns séculos, estas comunidades que eu designo por Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, foram a única referência de Portugal e dos portugueses, entre os povos vizinhos delas.

Tenho verificado a sinonímia entre “cristão” e “português” e a substituição do estereótipo ibérico do português pelo estereótipo do português euro-asiático:

Em 1965, na minha primeira visita a Macau, ao hospedar-me num hotel em Hong Kong, o recepcionista, chinês local, perguntou qual era a minha nacionalidade. Respondi-lhe que era português e ele, imediatamente, declarou: – eu também sou cristão.

Em 1985, num hotel em Malaca, em conversa com uma jovem malasiana, ao ouvir a mesma resposta, ela exclamou: – Você está a brincar! Você é alto e tem cabelos, pele e olhos claros. Os portugueses são mais baixos e muito mais escuros.

É claro que ela estava a referir-se aos portugueses de Malaca.

Em geral, identidade significa mesmice, uniformidade, semelhança.

Do ponto de vista social, ”identidade” é o carácter colectivo que resulta das características comuns dos membros de um grupo. Designa-se “identidade colectiva” e tem uma personalidade básica subjacente.

A transferência de domínios coloniais entre países europeus – de Portugal católico para a Holanda protestante, principalmente – constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.

Com a substituição da dominação portuguesa pela holandesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade colectiva que perdurou até aos nossos dias, assente em três pilares principais: a religião católica, a língua crioula e a gastronomia portuguesa, recriada localmente.

A religião católica fora trazida para o Oriente, pelos portugueses, directamente de Portugal ou através de Goa – a Roma do Oriente. Convertidos ou nascidos nela, com ela haveriam de morrer, geração após geração.

A sua língua – o crioulo – era a língua portuguesa na formulação que lhe conferira o estatuto de língua franca nos litorais da Ásia e da Oceania, desde o Século XVI, até à sua substituição pelo inglês, no Século XIX. Após um século em que os portugueses eram o único povo europeu conhecido no Oriente, holandeses, ingleses e dinamarqueses não podiam prescindir de um “língoa” ou “jurubaça” [intérprete], a bordo dos seus navios, para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que era – nada mais, nada menos – aquela que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas delas, ainda falam. Tratados, entre esses países europeus e alguns poderes locais, foram firmados em português, por ser a única língua a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente, ainda que contra os interesses dos portugueses.

A forte identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente cimentou-se em grande parte na adversidade. O conflito religioso nascido na Europa, entre católicos e protestantes, ramificou-se por todas as paragens do Oriente onde o poderio holandês derrubou o de Portugal e se firmou. A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de qualquer acto de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade, à resistência e à emigração:

Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina foram os seus destinos principais.

Os que teimavam em ficar, escondidos em suas casas ou refugiados nas florestas, celebravam como podiam os actos de culto da religião católica. Sem padres e sem igrejas, organizaram-se em irmandades clandestinas que, ao fim de décadas, produziram fenómenos de cristalização cultural, de natureza religiosa e linguística que impediriam, por séculos, a sua plena integração nas paróquias criadas posteriormente. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos, o que é visível em algumas celebrações onde os sacerdotes se limitam à Eucaristia e à Confissão dos fiéis porque, em tudo o mais, quem manda é a Irmandade.

Quando a dominação holandesa foi substituída pela inglesa, as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente foram ficando menos oprimidas e, em alguns casos, foram as próprias autoridades coloniais britânicas a tomar a iniciativa de lhes facultar padres portugueses, novamente.

Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o Século XV em Sua Magestade Fidelíssima o Rei de Portugal, na sequência do corte de relações diplomáticas, por iniciativa do Governo liberal, em 1833, e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal, na Índia, no Ceilão, hoje Sri-Lanka, no Sudeste Asiático, na China e na Oceania. Permanecendo, os que podiam, nas suas missões, os missionários do Padroado não seriam substituídos pelos seus confrades. O clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorria em socorro das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente que iam ficando sem religiosos. Quase sempre em vão. Os missionários da Propaganda Fidae e das Missions Étrangères de Paris já as ocupavam e os respectivos vigários apostólicos impediam-lhes o exercício do seu múnus. A expansão missionária francesa no Oriente começara ainda no século XVII.

As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, gente simples e temente a Deus, mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé, lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas com quem conflituavam abertamente e às quais consideravam estrangeiras. Durante décadas pagaram o elevado preço de lhes serem recusados os sacramentos a que só esporadicamente tinham acesso quando aportava um navio com um sacerdote, ainda que espanhol. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão.

A firme identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, ainda hoje, evita o casamento dos seus membros com indivíduos exteriores a elas e prefere que os futuros cônjuges provenham do seu seio ou de outras cristandades, ainda que distantes. Quando assim não acontece e o casamento une um membro da Comunidade a alguém que a ela não pertence, a regra é a conversão deste à religião católica e a aprendizagem da língua crioula.

Algumas dessas comunidades fruem um status social digno nos países onde vivem. Outras, porém, são socialmente desqualificadas e os seus membros são depreciativamente designados por “negros”, apesar da sua côr mais clara, da pele, do cabelo e dos olhos, relativamente aos naturais com outras origens étnicas. É o que acontece na Birmânia/Myanmar.

A nível individual, nos países onde vivem, podem encontrar-se indivíduos originários destas comunidades nos mais elevados estratos da sociedade: do mundo da política à actividade empresarial, nas mais elevadas funções da hierarquia eclesiástica ou como simples párocos de aldeia. Onde se verifique a existência de uma significativa percentagem de membros destas comunidades no clero católico, isso parece resultar da intensa discriminação de que são objecto no acesso ao ensino público e ao mercado de trabalho, público e privado. Em geral, dedicam-se a actividades modestas. São pequenos proprietários, simples trabalhadores agrícolas ou pescadores.

A língua crioula falou-se também nas Cristandades Crioulas Lusófonas da Tailândia – Ayutia e, posteriormente, Bangkok – até aos anos 50 do Século XX, onde permanecem vocábulos de uso corrente no relacionamento familiar e nas práticas da religião católica. Na Indonésia, além de Java, na ilha das Flores (Larantuka e Sikka), nas ilhas de Ternate e Tidore e em Bali. Em Timor (Lifau e Bidau). No Bangladesh (Chittagong e Dhaka), até aos anos 20 do século XX, era muito viva a presença da língua crioula nas Cristandades locais. Na segunda metade da década de noventa, numa breve passagem de poucas horas em Dacca, pude certificar-me da existência de léxico crioulo entre os católicos de Dhaka.

A pequena Cristandade Crioula Lusófona de Korlai (junto a Chaúl), na Índia, somente em 1982 seria revelada ao Mundo por Laurentiu Theban. O seu crioulo é designado por Kristi.

A Cristandade Crioula Lusófona da Birmânia – Myanmar actualmente – já não usa a língua crioula e, ao contrário das demais, perdeu com o tempo os próprios nomes e apelidos cristãos/portugueses, apesar de permanecer fiel à religião católica.

Com a descolonização das antigas colónias portuguesas de África foi restituído aos seus povos o direito de decidirem sobre as suas línguas nacionais. Em todas elas o português foi adoptado como língua oficial, ao mesmo tempo que se reconheceu expontânea dignidade às línguas maternas dos seus povos.

As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, substituído o domínio português, permaneceram sob domínio colonial europeu que as hostilizava ou, pelo menos, não dignificava. Assim permaneceram até à independência dos países em que se encontram, onde constituem minorias com reputação variável em cada um deles. Por naturais razões de unidade do Estado, esses países mantiveram como língua oficial o inglês, a língua do último colonizador, e privilegiam uma ou mais das suas línguas maternas como língua nacional.

O poder colonial inglês não descolonizou as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, no sentido de restituir dignidade à sua identidade colectiva, de que a língua crioula faz parte integrante, o que, aliás, não era de esperar. Nem é de esperar que os poderes pós-coloniais de motu proprio venham a dedicar-lhes a atenção a que têm direito.

A incapacidade de Portugal nesta matéria tem sido uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito.

(continua)

11 Abr 2019

Como se fazem os bebés

[dropcap]U[/dropcap]ma amiga comentou que fazer sexo e fazer bebés poderão ser encarados como actividades diferentes. Uma coisa é o sexo, outra coisa é fazer um filho. Uma coisa é ter prazer, outra coisa é criar uma família. Há momentos de intercepção também. Mas quem faz sexo porque quer um bom orgasmo, pode ser um depravado. Quem tem filhos é decente. Mas o sexo nunca desaparece dos nossos mundos de significado.

Os pais que procriam em decência, terão que encarar a dura realidade de uma criança que se tornará adolescente e adulto. É preciso falar de sexo em algum momento e de como se quer incluir o sexo na parentalidade. Falar da intimidade é um dever cívico que não se resume a uma conversa do que são pipis ou pilinhas. Nas nuances do sexo e do comportamento sexual existem conceitos confusos. Há necessidade de clarificar emoções e direitos para que certas situações deixem de ser assustadoras ou estranhas. Estes são conteúdos que vão muito além dos métodos contraceptivos que existem e de ‘como se fazem os bebés’. Os conteúdos programáticos das escolas são inflexíveis, simples e de contrastes distintos e limitados. Estes carregam também uma fraca noção do direito à auto-determinação pessoal das crianças e jovens. Como se eles não tivessem nada a dizer, como se eles não pudessem participar na conversa.

Devemos falar de intimidade, consentimento, contracepção e prazer. Mas não há fórmulas perfeitas. Só abrindo espaços seguros e sem julgamento é que é possível explorar a curiosidade natural do sexo. Julgar que se pode controlar os conteúdos sexualizados a que as crianças e jovens têm acesso é pateta. Mais vale oferecer-lhes ferramentas onde eles próprios possam dar sentido às imagens e aos conceitos. Falar sobre sexo pode ajudar, mas impõem-se certos desafios.

Primeiro porque pensar na sexualização infantil/juvenil é difícil. Há um medo premente que conversas sobre sexo motivem a iniciação sexual. Segundo, há demasiada imaturidade sexual por este mundo fora para pensar que a solução passa por simples conversas. Poucos relacionam a obrigatoriedade do sexo – para a propagação genética e perpetuação da vida familiar com o bem último da vida humana – ao prazer dos corpos nus. A parte dos bebés é pragmática, a parte do prazer é polémica. A tensão cai obrigatoriamente na premissa que o sexo fora da procriação é crime – um exemplo bem contemporâneo é o caso do Brunei onde agora o sexo homossexual e o adultério são punidos com pena de morte. Portanto – estamos preparados para falar sobre sexo?

Não. Podemos não falar sobre sexo com os mais jovens? Também não. Falamos como podemos disto de ‘como fazer bebés’ e de como não tê-los. Esticamos os conteúdos para uma conversa sobre sexo cada vez mais informativa para depois percebermos que falar sobre sexo (e género também) é agora visto pelos mais melindrados como uma escolha ideológica. Sexo não é ideologia, sexo é um facto. Este facto de consequências reais precisa de ser apresentado da forma que melhor inclui a diversidade. Porque o sexo não é só sobre fazer bebés, é sobre percebermo-nos a nós próprios e à nossa sexualidade.

10 Abr 2019

Da identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente

“O presidente do Instituto Camões, Luís Faro Ramos, destacou o entusiasmo “notável” dos macaenses que querem aprender português como parte da sua afirmação de identidade”.
(Hoje Macau : 27.3.2019 : p. 7)

 

[dropcap]1.[/dropcap] Nem todo o natural de Macau é Macaense

Entre outras coisas estranhas que acontecem em Portugal, impressionam-me os “fenómenos do Entroncamento” e as jeiras (para usar o léxico corrente do crioulo de Korlai) a perder de vista, onde germinam os sábios que governam o País, que dirigem a Administração Pública e que dão brilho aos Institutos Públicos, do género do Instituto Camões.

Macau, à parte, graças a Deus, apesar das incontáveis horas de trabalho e concentração da cintilante inteligência do seu Chefe do Executivo e dos seus leais ajudantes, na procura vã de talentos que, simplesmente, não existem.

O presidente da autarquia entroncamentense defende que os fenómenos não são um mito, mas sim algo que “nos deve agradar porque nos diferencia das outras regiões e das outras cidades”.

Admite tratar-se de “uma marca distintiva que não tem sido trabalhada”, à qual o executivo camarário pretende “dar mais consistência” com uma nova candidatura a fundos comunitários que permita desenvolver “alguma iniciativa de natureza cultural”.

Durante a II Grande Guerra era o volfrâmio. Agora dão pelo nome de “fundos comunitários”. Essa arte portuguesa…

A História parece registar uma incompatibilidade irreconciliável dos Macaenses com estes “sábios” de uma antropologia que não existe. Na primeira metade da década de oitenta do século passado, um “sábio” de semelhante estirpe chamou eunucos culturais aos Macaenses. Ficou impune. Talvez porque era “apenas” director dos Serviços de Educação de Macau.

Agora, é o próprio presidente do Instituto Camões da Cooperação e da Língua, dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que vem ofender a memória de muitos Macaenses, Ilustres e Patriotas, e seus descendentes, em Macau, em Portugal e noutras partes onde vive e labuta a Diáspora Macaense…

Não se trata de um “lapsus linguae”!

Referir-se aos Macaenses com a “ternura” que habitualmente se usa para descrever cãezinhos dóceis, de olhar meigo e rabinho a abanar, é ofensa grave e inadmissível. Revela inaptidão insanável para dirigir o organismo charneira da articulação de Portugal (da sua Língua, da sua Cultura e da sua Economia) com o Mundo.

Bradamos em defesa da Memória secular de Macau e em homenagem a todas as Famílias Macaenses: Airosa, Amante, Anok, António, Assis, Assumpção, Azedo, Badaraco, Basto, Batalha, Borralho, Boyol, Braga, Carion, Colaço, Conceição, Cordeiro, Cruz, Demée, Dias, Eça, Estorninho, Fonseca, Gaan, Gracias, Grandpré, Guterres, Hagatong, Hyndman, Jesus, Jorge, Leitão, Líger, Lobo, Lubeck, Maas, Madeira de Carvalho, Magalhães, Manhão, Monteiro, Moor, Nolasco, Noronha, Pedruco, Peres, Pessanha, Pinto Marques, Placé, Prado, Rangel, Rego, Remédios, Ritchie, Robarts, Rosa, Rozário, Sá, Sales, Senna Fernandes, Sequeira, Xavier e outras mais, involuntariamente omitidas.

Historicamente, a população de Macau tem duas componentes étnicas principais: Han-chineses (principalmente das províncias de Guangdong e Fujian) e Portugueses, da Europa (reinóis/metropolitanos) e Euro-asiáticos (macaenses).

O primeiro recenseamento da população em Portugal (1527-1532) registou a existência de uma população cujo total se situava entre 1 e 1,5 milhão de pessoas.

A miscigenação dos portugueses com os povos orientais levou a um aumento da população portuguesa no Mundo e ao aparecimento das primeiras gerações de portugueses euro-asiáticos, no século XVI.

Miscigenação (latim miscere “misturar” + género “tipo”) é a mistura de diferentes etnias através do casamento, da coabitação ou, simplesmente, de relações sexuais.

Um grupo étnico é uma população humana cujos membros se identificam entre si, geralmente com base numa genealogia ou ancestralidade comum (Smith, 1986). Grupos étnicos também são geralmente unidos por práticas culturais, comportamentais, linguísticas ou religiosas comuns.

Neste sentido, um grupo étnico é também uma comunidade cultural.

Já tarda a reacção do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Doutor Augusto Santos Silva. Serão parentes, também?

(continua)

9 Abr 2019

Crimes, escapadelas e computadores (III)

[dropcap]H[/dropcap]á algumas semanas atrás, falámos sobre um caso ocorrido numa escola primária. Quatro professores divulgaram as perguntas dos exames e foram acusados de “aceder a computadores com intuitos desonestos”, ao abrigo da secção 161(1)(c) da Lei Criminal, de Hong Kong. Esta secção aplica-se a crimes informáticos. Este caso ficou famoso em Hong Kong e foi inicialmente julgado no Tribunal de Magistrados, posteriormente no Tribunal de Primeira Instância e finalmente no Tribunal de Recurso. A sentença desta última instância foi publicada no dia 4 deste mês. O julgamento durou, na totalidade, cinco anos.

Da sentença publicada, destacam-se cinco pontos dignos de análise:

Em primeiro lugar, fica bem claro que uma pessoa que cometa um crime abrangido pela secção 161 (1) (c) terá de usar o computador de outrém para satisfazer o pedido “irregular”. Se aplicarmos este princípio legal, a secção 161 (1) (c) não cobrirá situações em que o faltoso usa o seu próprio computador para actos fraudulentos a pedido de terceiros; ou no caso de usar o seu próprio computador para defraudar outras pessoas. Nestes casos, é problemático para o Governo da RAEHK acusar os responsáveis das infracções. Possivelmente, o Governo terá de analisar caso a caso antes de tomar uma decisão. Podemos apenas afirmar que não existe uma norma que regule todas estas situações.

Em segundo lugar, na sentença nunca é dito que o smartphone é considerado um computador. Como o Tribunal de Recurso não se pronuncia sobre esta matéria, prevalece o parecer do Tribunal de Primeira Instância; ou seja, os smartphones são vistos como computadores.
Relacionando o primeiro e o segundo pontos, não é difícil de concluir que o Governo da RAEHK será levado a legislar de forma a cobrir delitos que ainda não estão abrangidos por leis específicas. Um outro exemplo é o caso das fotos que são tiradas de forma a revelar o que as saias cobrem (muitas vezes sem o consentimento da mulher em questão). Ao abrigo da lei actual, se estas fotos forem tiradas em locais privados, não existe crime. Se não houver uma nova legislação, o fotógrafo pode continuar a cometer este delito sem qualquer punição.

No caso de o Governo da RAEHK promulgar uma nova legislação, esta deverá conter, pelo menos, dois elementos:

1. Fotografar partes intímas deverá ser considerado crime, mesmo que ocorra num espaço privado.

2. A nova lei deve estipular que o smartphone é um computador, ou em que circunstância o smartphone pode ser considerado uma ferramenta criminosa, que permita ao fotógrafo registar, à socapa, imagens de zonas intímas. Este elemento é fundamental, porque estas fotos são sempre tiradas com telemóveis e nunca com computadores.

Em terceiro lugar, a secretária da Justiça propôs que a secção 161 (1) (c) se aplique a estas situações a bem das boas práticas públicas. Como já foi mencionado, se estas fotos forem tiradas em locais privados, não é possível formular acusação. O Tribunal de Recurso não leva estes argumentos em consideração e afirma que a função do Tribunal é interpretar a lei e tomar decisões baseadas nessa interpretação. As boas práticas públicas são um factor com que o Tribunal não tem de lidar.

A maior diferença entre o sistema da common law e o sistema da civil law reside no facto de, no primeiro caso, o Tribunal ter como função a interpretação da lei, ao passo que no segundo não terá. Após o Tribunal ter interpretado a lei, deve tomar a decisão de acordo com o seu próprio entendimento. A interpretação da lei só pode ser feita de acordo com métodos legais e segundo os princípios do estado de direito. Estes métodos não contemplam as boas práticas públicas. A secretária da Justiça apelou às boas práticas públicas por razões de ordem pessoal. Para além de ser representante do Governo da RAEHK, a secretária da Justiça é conselheira jurídica do Executivo. Uma das suas principais funções é a manutenção das boas práticas públicas através da aplicação da lei. No entanto, se o Tribunal de Recurso aceitar que este argumento é válido para recorrer de uma sentença, futuramente poderá usá-lo como critério para tomar decisões. Como as boas práticas públicas não são necessariamente princípios jurídicos, este método de interpretação legal não é, obviamente, compatível com uma interpretação apenas baseada na lei.

Em quarto lugar, alguns casos têm estado pendentes à espera da clarificação do Tribunal de Recurso sobre o alcance da aplicação da secção COFA 161 (1) (c). No momento que que o Tribunal de Recurso publicar o seu Normativo estes casos serão retomados. Em função disso, o Governo da RAEHK pode manter ou rever as acusações. Depois das emendas, parece muito improvável que o Tribunal de Recurso venha a receber o mesmo tipo de apelos.

Em quinto lugar, o caso dos professores que divulgaram os resultados dos exames foi julgado pelo Tribunal de Magistrados em 2014, depois passou ao Tribunal de Primeira Instência e, após recurso dos réus, ao Tribunal de Recurso, tendo ficado concluído só em 2019. Durou cinco anos. Independentemente de se ser, ou não, considerado culpado, é bastante difícil para alguém aceitar que um julgamento se arraste durante cinco anos. A pressão a que os réus ficam sujeitos é um trauma que dura uma vida. Este foi o preço que os professores tiveram de pagar por divulgarem as perguntas dos exames.

Com a democratização da educação, um número cada vez maior de jovens ingressa nas escolas. Estas fugas de informação deveriam acabar, mas acontecem cada vez mais. Talvez o Governo da RAEHK tenha de considerar a possibilidade de legislar sobre esta matéria. Como Hong Kong realiza vários exames públicos, para simplificar, vamos dividi-los em dois tipos: públicos e privados. Antes das provas, as perguntas dos exames das escolas públicas, são consideradas documentos confidenciais do Governo. Mas os exames das escolas privadas são outro caso. Não podem ser considerados da mesma forma. Assim, se alguém divulgar as perguntas dos exames de uma escola privada, não incorre em nenhum crime. No entanto parece impossível que alguém que divulgue perguntas de um exame não venha a ser julgado.

Macau tem a “Lei de Combate ao Crime Informático”. Se o caso da Escola Primária Heep Woh aqui tivesse acontecido, haveria forma de lidar com o assunto. Em breve irão realizar-se exames nas escolas primárias e secundárias e também provas de admissão às Universidades. Haverá necessidade de promulgar legislação especial para punir quem divulgue as perguntas dos exames?

 

Conselheiro Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

9 Abr 2019

Desiguais na lei

[dropcap]N[/dropcap]ão é preciso frequentar anfiteatros de faculdades para compreender que todos devemos ser iguais perante a lei. A imagem da justiça com olhos vendados representa esse ideal basilar de uma sociedade de direito. O século das luzes trouxe-nos o fim do privilégio hereditário, mas foi incapaz de aniquilar a vassalagem ao dinheiro e ao poder. De certa forma, estes são resquícios da tutelagem de que falava Kant, auto-imposta e permitida, que envenena justiça, equidade e igualdade aos olhos da lei.

Uma enorme revolta cresce dentro de mim sempre que testemunho a força dos códigos penais a dilacerar um cidadão normal, que não se passeia pelas alamedas da fortuna e do poder, enquanto os senhores passam entre as gotas da chuva legal. Não me interpretem mal, não defendo a prática de crimes, apenas gostava de ver as regras serem aplicadas a todos de forma igual. Raramente um sistema judicial consegue condenar um poderoso, um ultra-rico, e a injustiça fica ali, a pavonear-se imune, aos olhos de todos, protegida em minudências legais, em subterfúgios protectores. Fica um travo a tirania medieval na boca.

Quando lemos o relatório do CCAC e as suas curiosas e quase cómicas infrações, quando vemos grandes bancos a lavar dinheiro para os carteis de droga mexicanos e redes de terroristas sem que ninguém vá preso um dia sequer, quando assistimos, boquiabertos, ao desplante com que legisladores tecem leis em seu favor, é quase impossível conter a náusea cívica. Recordo que também que na discussão das leis da extradição em Hong Kong, o dinheiro falou ao ouvido do poder político eliminando os crimes de colarinho branco da lista de ofensas, por esta lei poder afectar a reputação do mundo dos negócios da região vizinha. Quão perversa é esta lógica?! Um sector decide excluir os crimes que pratica de uma lei em nome da sua boa reputação.

Numa dimensão macro, na sequência do crash de Wall Street que arrastou a economia mundial para uma das maiores crises de que há memória na história recente, expondo a incestuosa ligação entre banca privada e Estado, não só as empresas que se comportaram como sindicatos de crime foram salvas com dinheiro público, como os seus CEOs foram recompensados com chorudos bónus. Criticar este sistema, ainda hoje, é o equivalente ao mais bárbaro acto de radicalismo, aos olhos da sabedoria saloia que protege esta estrutura de poder.

Como é óbvio, esta realidade está longe de ser exclusiva de Macau. Aliás, estes exemplos ultrapassam em larga escala as derrapagens em obras públicas e a incompetência, para ser simpático, na gestão de pastas como Metro Ligeiro e Terminal da Taipa. Mas, convenhamos, a desigualdade perante a lei e o compadrio são por cá celebrados com peculiar entusiasmo.

O poder oferece à população migalhas de justiça, pequenos e simbólicos processos para mostrar serviço e dar a aparência de legalidade. Punem-se os quadros médios, os pequenos delinquentes e os chefes que não têm costas quentes e que foram demasiado evidentes nas falcatruas praticadas. Entretanto, as relações privilegiadas que nascem do acasalamento entre indústria e política, com laços familiares à mistura, prosseguem os seus desígnios acima da lei.

A crise global financeira de 2007/2008 trouxe-nos dois conceitos perversos e contrários ao Estado de Direito: “Too big to fail” e “Too big to jail”. O primeiro remete-nos para a importância sistémica de um actor que, apesar de agir em total desrespeito pela decência e legalidade, se afigura como fundamental para a estabilidade do sistema. O segundo, ainda mais nauseante, retrata a dimensão de um indivíduo ou instituição que lhe concede um lugar à margem das regras que os comuns mortais estão obrigados a respeitar.

Por aqui, temos o conceito de famílias tradicionais, as elites que herdam os tronos económicos e políticos à nascença e que pairam acima da cidade, acima do comum cidadão. Tomam decisões que favorecem os seus próprios interesses com toda a tranquilidade, sem grande alarido.

Escrevem e aprovam diplomas legais em seu benefício ou que, pelo menos, não os prejudicam.

Adjudicam obras uns aos outros, como se fosse uma função biológica.

Um pouco por todo o mundo, com diferentes graus de promiscuidade, as leis regem a vida daqueles que não lhes podem escapar. O princípio da igualdade perante a lei encerra em si o que demais mais elevado temos na organização social contemporânea. Já a sua aplicação, subjectiva e sujeita às falhas humanas, nega esse mesmo desígnio.

8 Abr 2019

Tempo, clima, aquecimento global e …menopausa

[dropcap]É[/dropcap] frequente a confusão entre “tempo” e “clima”, no entanto são conceitos totalmente diferentes. “Tempo” refere-se às condições meteorológicas que ocorrem num dado momento ou num período relativamente curto. Quando falamos de clima já nos estamos a referir aos valores médios das variáveis meteorológicas (temperatura do ar, pressão atmosférica, humidade, nebulosidade, visibilidade, vento, etc.) referentes a um período longo. Assim, por exemplo, ao afirmar que neste momento está muito calor e a chover em Macau ou que em

Pequim está muito frio, estamos a referir-nos ao tempo. Por outro lado, se dissermos que Macau é uma cidade sujeita ao regime de monções e que é caracterizada pelo facto de o ar ser geralmente muito quente e húmido nos meses de maio a setembro, já nos estamos a referir ao seu clima.

São de tal maneira diferentes estes dois conceitos que para caracterizar o tempo basta conhecer os valores das variáveis meteorológicas num determinado momento, enquanto que para caracterizar o clima são necessários valores médios desses parâmetros referentes pelo menos a… trinta anos!

Trinta anos é o período mínimo preconizado pela Organização Meteorológica Mundial, agência especializada das Nações Unidas, para caracterizar as condições meteorológicas médias de uma determinada região ou local.

Não é raro ver-se escrito ou ouvir-se em alguns meios de comunicação social que, por exemplo, não se realizou um determinado evento ao ar livre devido às “condições climatéricas”. Esta expressão está de tal maneira arreigada na linguagem corrente que é também frequentemente usada por altos dirigentes do Estado. Nem sequer se recorre ao termo “climáticas” em vez de “climatéricas”, o que seria mais elegante, apesar de continuar a ser errado o seu uso naquelas circunstâncias. Não há nenhum profissional das áreas da meteorologia e da climatologia que utilizem o termo “climatérico” em vez de “climático”, embora alguns dicionários classifiquem estas palavras como sinónimas. Além de que o termo “climatérico” se pode prestar a confusão, pois designa-se por “climatério” o conjunto de sintomas que surgem antes e depois da menopausa.

Corre-se o risco de se querer referir ao tempo e acabar-se por falar em… menopausa!

Ainda a propósito de tempo e clima, foi muito comentada a nível mundial a seguinte mensagem através do “Twitter” do Presidente dos EUA, Donald Trump:

Donald J. Trump‏Verified account @realDonaldTrump
In the beautiful Midwest, windchill temperatures are reaching minus 60 degrees, the coldest ever recorded. In coming days, expected to get even colder. People can’t last outside even for minutes. What the hell is going on with Global Waming? Please come back fast, we need you!
6:28 PM – 28 Jan 2019

Trump faz referência a um acontecimento meteorológico que consiste no deslocamento para latitudes mais baixas de uma massa de ar ártico muito frio, que circula numa vasta região depressionária, designada por vórtice polar, que permanece quase estacionária na região polar, no hemisfério norte. No inverno passado ocorreu uma destas migrações de ar ártico, o que afetou os Estados Unidos da América durante alguns dias, período em que as condições meteorológicas foram caracterizadas por valores da temperatura do ar extremamente baixas. O que Trump não sabe é que esses valores da temperatura aparecerão completamente diluídos nos tais pelo menos trinta anos que são necessários para caracterizar o clima! No entanto, cético como é sobre o aquecimento global, não perde a oportunidade para criticar o que milhares de cientistas em todo o mundo já aceitaram como verdadeiro.

Mas… terá Trump razão para duvidar do aquecimento global e, consequentemente, das alterações climáticas causadas pelas atividades humanas? Na realidade não é só ele a duvidar, pois há mesmo alguns cientistas que partilham esta atitude crítica. Um dos argumentos que os detratores do aquecimento global apresentam em sua defesa consiste no facto de que, em muitos casos, o ambiente envolvente das estações meteorológicas se ter degradado devido à expansão das zonas urbanas. É um facto que as cidades ao crescerem, envolvendo as estações meteorológicas que anteriormente se encontravam em áreas não urbanizadas, poderão influenciar os valores da temperatura do ar. É sabido que as grandes cidades constituem verdadeiras ilhas de calor, falseando os valores que a temperatura do ar deveria ter se as estações meteorológicas não sofressem essa influência. No entanto, este argumento não é muito válido na medida em que também é detetado aumento de temperatura nas estações que permaneceram em ambientes rústicos. Vem até mesmo reforçar o que tem vindo a ser afirmado por milhares de investigadores, que o aquecimento a nível global se deve a atividades humanas. Na realidade, a causa principal do aquecimento global é o aumento da concentração dos gases de efeito de estufa provenientes das atividades humanas desde o início da era industrial, ou seja, desde há mais de cento e cinquenta anos.

O conceito de clima é muito mais vasto do que aquele que mencionamos quando comparamos os significados de “tempo” e “clima”. Como afirmam os Professores José Pinto Peixoto e Abraham H. Oort, na obra “Physics of Climate” (publicado em 1992 pelo American Institute of Physics), “the climate is always evolving and it must be regarded as a living entity”.

O autor escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico

4 Abr 2019

Sarampo

[dropcap]A[/dropcap] ignorância mata! Quando ouvir alguém dizer “a verdade para mim é ‘x’”, corra o mais depressa que conseguir, fuja a sete pés. Gente que tem “verdades pessoais” representa, com alarmante consistência, um perigo para a comunidade. Não estou a falar de pioneiros do conhecimento, que antes da publicação das suas descobertas, guardaram razões na sua esfera. Não! Falo daqueles que, indiferentes ao que se conhece da realidade, por motivos de fé religiosa ou crença nas suas incríveis capacidades de discernimento, optam por relegar a realidade para segundo plano, para uma dimensão conspirativa, apoderando-se de uma verdade que passa a ser sua.

Uma das manifestações perigosas destas ego-verdades é a crença anti-vacinas. Vou passar por cima de todos os fundamentalismos religiosos e políticos que criam super-vilões e assassinos em massa. Não são tema desta humilde coluna. O meu propósito é endereçar as ilusões anticientíficas dos que julgam possuir, sem qualquer formação ou ideia, sabedoria que ultrapassa milénios de conhecimento adquirido. Pessoas que acreditam que a Terra é plana são apenas um sintoma de total desapego à factualidade. São divertidos numa medida, mas preocupantes no absoluto desprezo que devotam à realidade.

Na Terra plana a ilusão está na área das ideias parvas e descabidas, mas com poucas ramificações materiais. O povo anti-vacina é portador de uma ignorância viral, literalmente. Ambas são profudamente egocêntricas porque supõem que a pessoa é especial, proclamadora de uma verdade que a todos escapou e que se encontra escondida num blog, fórum de internet, meme, dogma religioso, etc.

A crença anti-vacina acha que a mesma comunidade científica que permitiu passar da esperança de vida de 33 anos, no início do século XIX, para 80 no ano 2000, nos quer matar a todos. A indústria farmacêutica, com todas as suas falhas, quer dizimar a população da Terra. Sim, leram bem, uma indústria que quer matar os seus próprios clientes.

O problema dos dogmas é que são imunes à razão, estão vacinados contra factos. Apontar que desde que tivemos capacidade para campanhas de imunização paramos de morrer em massa é fútil. Cheguei a ler que a peste negra desapareceu sem vacinas… a pessoa que teve a coragem de dizer esta alarvidade não consegue computar que se estimam que tenham morrido entre 70 a 200 milhões de pessoas na Europa e Ásia. No seu pico, no século XIV, a peste negra dizimou entre 30 a 60% da população europeia e não saiu de cena de seguida.

Cólera, varíola, gripe espanhola também resultaram em números de mortos de proporções bíblicas. A imunização erradicou muitas das doenças altamente contagiosas que mataram às centenas de milhar, aos milhões. Podemos mostrar aos que colocam a factualidade na categoria da crença pessoal a história de irradicação de doenças, e o seu ressurgimento em populações não vacinadas, sem qualquer efeito. Multiplicam-se os “sim, mas ouvi dizer”. A parte do ouvi dizer não me aflige tanto. A ignorância também é contagiosa, principalmente se vier condimentada com “eles mentem e só tu sabes a verdade”. Mas aquele “sim”, que passa pela factualidade como se ela não fosse nada, reduz a zero a informação fundamental para compreender situações complexas, o seu contexto. Esta é a parte doentia da coisa. A forma como o ego se blinda a uma verdade considerada inoportuna é um reflexo desta era de extremismo identitário, quando opiniões nascidas de memes de internet se transformam em características de personalidade. Uma pessoa não duvida que as vacinas sejam eficazes, ou suspeita que sejam uma conspiração numa seringa.

Não. A pessoa é anti-vaxxer da mesma forma que não se limita a crer que a Terra é plana, (passando a ser terraplanista). A ignorância, alicerçada na crença, ultrapassa em muito o patamar da convicção. Torna-se naquilo que a pessoa é, ou que aspira a ser, faz parte da sua identidade. É preciso querer para crer (frase que marca o meu momento Gustavo Santos da semana).

Entretanto, doenças que deviam pertencer à história da infectologia regressam impelidas por uma ignorância tão cega e assassina como os próprios vírus.

1 Abr 2019

A economia e psicologia da reciclagem

“What a piece of work is a man! how noble in reason! how infinite in faculty! in form and moving how express and admirable! in action how like an angel! in apprehension how like a god! The beauty of the world, the paragon of animals”.
Act II, scene 2, of Hamlet

 

[dropcap]T[/dropcap]odos nós sabemos que devemos reciclar, mas mesmo os recicladores comprometidos podem ser erráticos, limpar e separar garrafas em um dia e colocar no lixo no dia seguinte.  Porquê?  Acontece que uma série de factores influencia as nossas decisões sobre o que colocar ou não na lixeira verde. É de considerar que dois desses factores surgiram em pesquisas recentemente realizadas sobre os hábitos de descarte.  Foi descoberto primeiro, que as pessoas têm mais probabilidade de reciclar itens que não foram distorcidos, como latas de refrigerante e papel que não foi rasgado em pedaços e que se denomina por ” factor de distorção”.

Os resultados de vários estudos demonstram que a decisão do consumidor de reciclar um produto ou colocá-lo no lixo pode ser determinada pela medida em que o produto foi distorcido durante o processo de consumo. Especificamente, se o processo de consumo distorce um produto suficientemente da sua forma original ou seja, mudanças no tamanho ou na forma, os consumidores percebem como menos útil e, por sua vez, são mais propensos a colocá-los no lixo, ao invés de os reciclar.

Tais descobertas apontam para resultados importantes do processo de consumo que foram amplamente ignorados, e fornecem percepções iniciais sobre os processos psicológicos que influenciam o comportamento da reciclagem. A segunda descoberta refere-se ao facto de que são mais propensos a reciclar itens ligados a um elemento da sua identidade, como por exemplo, um copo da McDonald’s ou da Starbucks, que contém o nome da marca e que é denominado por “factor de identidade”. É sabido que as identidades dos consumidores influenciam as decisões de compra e as pessoas criam fortes conexões de identidade, ou ligações com produtos e marcas.

Os estudos sobre a matéria, ainda necessitam de determinar se os produtos ligados à identidade são tratados de forma diferencial à disposição em comparação com os produtos que não estão ligados à identidade. Os actuais estudos realizados, mostram que quando um produto consumido diariamente como por exemplo, papel, copos e latas de alumínio estão ligados à identidade do consumidor, é menos provável que seja descartado e tenha maior probabilidade de ser reciclado.

Além disso, a tendência de reciclar um produto vinculado à identidade aumenta com a força e a positividade da conexão entre o consumidor e o produto ou marca. O comportamento de descarte pode ser explicado pela motivação dos consumidores para evitar a destruição de um produto que esteja ligado a si, porque é visto como uma ameaça à identidade

Os consumidores estarão mais propensos a reciclar, em vez de colocar no lixo um produto se estiver vinculado à identidade de um consumidor, e ocorre porque colocar um produto vinculado à sua identidade no lixo é simbolicamente semelhante a destruir uma parte do “eu”, uma situação que os consumidores estão motivados a evitar. O terceiro factor afecta não o que reciclamos, mas o quanto fazemos. As pessoas que sabem que vão reciclar depois de concluir uma tarefa que gera resíduos usam mais muito mais recursos do que teriam de outra forma.

Alguns ambientalistas propõem um modelo utilitarista em que a reciclagem pode reduzir as emoções negativas dos consumidores de desperdiçar recursos ou seja, retirar mais recursos do que está a ser consumido e aumentar as emoções positivas dos consumidores, a partir da disposição dos recursos consumidos, fornecendo evidências para cada componente da função utilidade, usando uma série de problemas de escolha e formulando hipóteses baseadas em um modelo utilitário parcimonioso. As experiências com comportamento real de descarte apoiam as hipóteses do modelo.

Os estudos sugerem que as emoções positivas associadas à reciclagem podem dominar as emoções negativas associadas ao desperdício e como resultado, os consumidores poderiam usar uma quantidade maior de recursos quando a reciclagem é uma opção e, de modo mais impressionante, esse montante poderia ir além do ponto em que a sua utilidade de consumo marginal se torna zero. Os proponentes ampliam o modelo teórico e introduzem a utilidade de aquisição e o efeito moderador do custo de reciclagem (financeiro, físico e mental) e de uma perspectiva política, esta proposta defende uma melhor compreensão do comportamento de disposição dos consumidores para aumentar a eficácia das políticas e campanhas ambientais.

É de notar que o “factor de distorção” é importante quando se examina por exemplo, o conteúdo da colecta selectiva no ecoponto nos contentores de metal e de papel e do espaço dedicado ao lixo para não reciclagem. Os pedaços de papel intactos, em geral, foram reciclados e os fragmentos de papel foram destruídos e quanto às latas de alumínio, as intactas foram recicladas e as amassadas ou esmagadas foram descartadas. O que explica este factor?  Quando um item é suficientemente distorcido ou alterado em tamanho ou forma, as pessoas percepcionam como inútil e como algo sem futuro e colocam no lixo.

Tal facto explica parcialmente porque tanto material reciclável termina no aterro. Ainda que, as pessoas estejam sensibilizadas para reciclar muitos itens comuns, apenas 65 por cento do papel e 55 por cento do alumínio são reciclados.  Ao conscientizar as pessoas desse factor poder-se-ia potencialmente mudar o comportamento do descarte.  As empresas direccionadas para a sustentabilidade poderiam melhorar as taxas de reciclagem por meio de inovações em embalagens que, por exemplo, aumentam a facilidade de abertura e diminuem a distorção, o que poderia melhorar a probabilidade de as embalagens serem recicladas e até mesmo reutilizadas. A exploração ao factor de identidade, foi revelado em um recente estudo da Universidade de Yale, em que foi efectuada uma visita a um café onde o empregado escreveu incorrectamente o nome do cliente na chávena descartável, e escrever os nomes dos clientes nas chávenas tornou-se um padrão em muitos cafés, ligando o produto a alguma parte da identidade do cliente. Foi pedido a um grupo de voluntários para provar e avaliar o café. Os participantes foram questionados sobre os seus nomes, e os que foram soletrados correctamente ou intencionalmente grafados erroneamente nas suas chávenas.

Aqueles cujos nomes foram escritos correctamente eram significativamente mais propensos a reciclar a sua chávena do que aqueles cujos nomes foram escritos incorrectamente.  Foram realizados diversos outros estudos com diferentes produtos e formas de vincular o produto às identidades dos consumidores, como usar bandeiras americanas ou logótipos de universidades, que ligam as pessoas a importantes identidades de grupo.  Foi descoberto consistentemente que as pessoas são mais propensas a reciclar do que a descartar produtos ligados à identidade, e que a destruição desses produtos pode reduzir a auto-estima e como seria de esperar, é uma pena jogar um pedaço de si no lixo, para que as pessoas o evitem fazer.

Ao criar uma ligação de identidade ou tornar uma conexão existente mais forte, pode-se transformar os consumidores menos propensos a colocar itens no lixo reciclável.  Muitas empresas já vinculam produtos às nossas identidades, mas podem não estar cientes das consequências do descarte.  A Coca-Cola, por exemplo na sua campanha “Compartilhe uma Coca-Cola” teve um estrondoso sucesso, pois os consumidores encontram os seus nomes nas garrafas, tendo aumentado as taxas de reciclagem para aqueles que bebem uma garrafa com o seu nome.

A campanha da Coca-Cola retornou aos Estados Unidos em Maio de 2014 e os fãs americanos sedentos têm clamado por encontrar os seus nomes em garrafas de Coca-Cola, Diet Coke ou Coca-Cola Zero. A Coca-Cola passou a personalizar as garrafas com o primeiro e último nome e mais de mil nomes e sobrenomes estão disponíveis, com quase duzentos sobrenomes incluídos.

Às vezes, a opção de reciclar pode influenciar a quantidade de um item que é usado.  Por exemplo, no estudo foram examinados o quanto as pessoas consomem quando têm a opção de reciclar versus colocar no lixo.

Os sujeitos da pesquisa foram instruídos a usar a quantidade do produto que queriam.  Em um estudo, umas pessoas embrulharam presentes; em outro, usavam papel para resolver problemas matemáticos. Em cada experiência, metade dos participantes poderia reciclar o que usavam; a outra metade só podia descartá-lo. Foi constatado que as pessoas usavam muito mais recursos como papel de embrulho, papel, copos e embalagens plásticos quando sabiam que iriam reciclar.

Como é possível explicar tais situações? As descobertas sugerem que as emoções positivas associadas à reciclagem podem dominar as emoções negativas, como a culpa, associada ao desperdício e como resultado, os consumidores sentem-se à vontade para usar uma quantidade maior de recursos quando a reciclagem é uma opção.

A conservação de recursos em um domínio pode levar a desperdiçar recursos em outro, que tem a ver com o bom comportamento anterior e cujo fenómeno é conhecido nas ciências sociais como licenciamento moral. A grande questão é reciclar ou colocar no lixo?  O sucesso da reciclagem depende da resposta que milhares de milhões de pessoas dão a essa pergunta diariamente.  É de realçar que aprendemos com os economistas comportamentais nos últimos anos, que muitas das nossas decisões são, nas palavras de Dan Ariely no seu livro “Predictably Irrational: The Hidden Forces That Shape Our Decisions“ previsivelmente irracionais. Assim, é com essa decisão.  Mas ao trazer os nossos factores à disposição, podemos alterar o comportamento individual, estimular a criação de embalagens que incentivem a reciclagem e aumentar a eficácia das políticas e campanhas ambientais.

A previsível irracionalidade de que fala Dan Ariely é de que a nossa irracionalidade acontece da mesma forma e sempre. Na economia convencional, a suposição que todos somos racionais implica que, na vida quotidiana, computemos o valor de todas as opções que enfrentamos e depois seguimos o melhor caminho possível de acção, e se cometermos um erro e fizermos algo irracional? Aqui também a economia moderna tem uma resposta pois as forças do mercado vão cair sobre nós e rapidamente colocar-nos de volta ao caminho da justiça e racionalidade.

É com base nessas suposições, de facto, que gerações de economistas desde Adam Smith foram capazes de pensar conclusões sobre tudo, desde a tributação e políticas de saúde até aos preços de bens e serviços. Mas, somos muito menos racionais do que a teoria económica padrão assume.

Os nossos comportamentos irracionais não são aleatórios nem sem sentido, são sistemáticos, e desde que os repetimos sempre, de forma previsível, então não faria sentido modificar a economia padrão, para afastá-la da “ingénua” psicologia que muitas vezes falha os testes da razão e da introspecção, e que talvez seja mais importante o escrutínio empírico.

29 Mar 2019

Sobre as eleições

[dropcap]H[/dropcap]an Kuo-yu, Presidente da Câmara da cidade de Kaohsiung, esteve de visita a Hong Kong e Macau, com o propósito de discutir trocas comerciais. Encontrou-se com os Chefes dos Executivos das duas RAEs e com os directores dos Gabinetes de Ligação do Governo Central, em Hong Kong e em Macau. A visita de Han provocou algum tumulto em Taiwan, em parte devido à eleição para os cargos de Presidente e Vice-Presidente do terrritório, agendada para 2020. Sempre que há eleições existe controvérsia, a questão é saber se a controvérsia se desenrola entre cavalheiros ou entre vilões.

Desde que passou a haver eleições directas em Macau para a Assembleia Legislativa, tem havido muitos distúrbios, inclusivamente, no período anterior à transferência da soberania, com a descoberta de armas nos porta-bagagens de carros privados, estacionados perto dos locais de voto. Alguns candidatos já foram agredidos ao tentarem entrar num restaurante onde decorria uma tentativa de compra ilegal de votos. Também foram detectados e levados a tribunal muitos casos de suborno. Nas últimas eleições para a Assembleia Legislativa, as autoridades assinalaram e tomaram medidas contra muitas irregularidades.

Para que uma eleição possa ser justa, transparente e sem corrupção, as autoridades têm de supervisionar o processo de forma imparcial. Se assim não for, as pessoas irão interrogar-se porque é que alguns são incriminados e outros não. Macau necessita de melhorar o seu sistema eleitoral em larga escala, um processo que deverá implicar o esforço da sociedade enquanto um todo. A comunicação social tem um importante papel de supervisão, mas esse papel deveria ser levado mais além. A comunicação social deveria ser o “cão de guarda” do processo eleitoral.

Para as eleições de 2021, penso que também se deveriam candidatar nas directas, além dos actuais deputados, algumas pessoas que comentam habitualmente na televisão, e noutras plataformas online, assuntos de ordem política e social. As campanhas bem planeadas e bem organizadas através dos média, que utilizam recursos facultados pelos seus apoiantes, não violam a lei vigente e proporcionam uma competição justa.

Mas quando esta competição se transforma em ataque, o processo perde dignidade. Quando estive envolvido na eleição de 2017 para a Assembleia Legislativa, fui estigmatizado e atacado pelos meus oponentes em plataformas online. Mas, como felizmente não cometi nenhum dos actos de que me acusavam, quando os encontrei cara a cara, não conseguiram olhar-me nos olhos e eu ainda posso entrar e sair livremente de Macau. O seu procedimento não elevou o nível do processo eleitoral. Pelo contrário, inferiorizou-o, e a fraca qualidade de um acto eleitoral prejudica toda a sociedade, e isso é uma das coisas que mais abomino.

Quando uma eleição envolve violência, os agentes das autoridades devem tomar medidas imediatas para punir os responsáveis. No caso da troca de acusações entre candidatos durante um debate eleitoral, os machados de guerra devem ser enterrados quando os protagonistas saem de cena. Mas ultimamente, tenho visto artigos publicados em semanários, escritos por um potencial candidato, apenas com o propósito de atacar um adversário e causar confusão no espírito dos leitores. Este procedimento é obviamente muito pouco ético.

Pessoalmente, não me manifesto em relação a Ho Iat Seng nem a Leong Vai Tac, os dois potenciais candidatos ao cargo de Chefe do Executivo de Macau. Mas acuso os média que deliberadamente revelam as vidas privadas destes candidatos, já que os utilizam em seu próprio proveito. As campanhas não se podem focar na difamação e na vilipendização”. Edmund Ho, Ex-Chefe do Executivo de Macau, lembrou a frente patriótica que pretende candidatar-se à eleição para Chefe do Executivo, mas fê-lo de forma a não perturbar a unidade nem a estabilidade. As suas declarações revelam sensibilidade e merecem uma séria reflexão.

29 Mar 2019

Tu não és frígida

[dropcap]F[/dropcap]rígida é a mulher que não assume a naturalidade do sexo. Se uma mulher não tem vontade de tocar o outro é porque é uma pedra de gelo. A possibilidade de ser frígida suscita-me qualquer coisa. Irritação, talvez. Um conceito datado tal qual a histeria, que se aguentou até aos dias de hoje.

Mas a frigidez nunca fez sentido – quando a dificuldade sexual não está condicionada a uma condição fisiológica bem identificada, muito menos. A frigidez também não é nada sem contexto ou relação. Um homem bêbado num bar chama de frígida a quem não reage aos seus avanços sexuais ou um recém-casado queixa-se da frigidez da sua esposa. Parece que é uma forma cruel de explicar aquilo que é complexo. Simone de Beauvoir bem dizia que a frigidez era uma forma de resistência também – a mulher não precisa de responder sempre que é sexualmente estimulada.

As frígidas têm livre arbítrio e não são as pessoas doentes que se julgavam na época vitoriana. O primeiro passo foi perceber que as mulheres nem sempre querem sexo.

Só que há imagens que persistem. Restos que se entranham naquilo que dizemos e fazemos.

Perceber que as mulheres podem não estar interessadas não é suficiente. Manteve-se a linguagem para perpetuar a responsabilidade individual de uma actividade que acontece entre duas pessoas – se não mais. O sexo faz-se de linguagens e comunicação e depois faz-se na cama com o outro.

Esta combinação gera um mundo de significados que só responsabilizar uma das partes pelo problema seria imoral. A frigidez é relacional como a ejaculação precoce ou a impotência o são.

Relacional porque há um contexto social em que frigidez existe. Mas por alguma razão ainda ficamos presos na fantasia de que o problema está em mim, em ti e no outro.

Uma rápida pesquisa nas bases de dados científicas leva-me a crer que as frígidas ainda são chamadas como tal. Nos motores de pesquisa populares ainda mais. As causas que aparecem são várias. Há frígidas que nunca tiveram tempo e disponibilidade de explorar a sua sexualidade. Há frígidas que vivem no terror do pecado do sexo. Há frígidas que têm problemas fisiológicos. Há frígidas que não conseguem manter uma relação de comunicação e partilha emocional com o/a parceiro/a. Nenhuma das sugestões me parece descabida. Só que é a palavra, com uma história tão pesada que me chateia. Irrita-me. Mesmo que não sintas tesão, tu não és frígida. Talvez o tesão precise de ser melhor entendido, melhor escutado. A solução pode ser uma sessão de masturbação para melhor entender de onde vem o prazer. Mas as dinâmicas de poder continuam lá e para isso serão necessários mais do que um orgasmo para as desconstruir. O problema da responsabilidade individual é que desresponsabiliza o trabalho colectivo que ainda tem de ser feito. Já para não falar da relação de casal que poderá precisar de uns ajustes. A frígida existe porque há expectativas unidirecionais do sexo e não há nada mais datado do que isso.

Este texto vai para aqueles que ainda recorrem à frigidez para descrever um estado de desinteresse sexual por parte das mulheres. Se é uma tentativa de se aproximarem do vernáculo português, esqueçam. Certamente encontrarão outras formas mais adequadas de nomeação. Já sabemos o suficiente para não cair neste erro – ou nesta forma de preconceito.

27 Mar 2019

Tratado de Extradição III

[dropcap]Q[/dropcap]uem tem vindo a acompanhar os artigos sobre esta matéria, sabe que o pedido de extradição apresentado por Taiwan a Hong Kong esteve relacionado com um crime cometido naquele território por um cidadão de Hong Kong. Após cometer o crime o suspeito fugiu e o Governo de Taiwan apresentou um pedido de extradição ao Governo de Hong Kong.

Este incidente esteve na origem da proposta de emenda à Lei dos Criminosos em Fuga (FOO sigla em inglês), feita após consulta pública. No espaço de dois meses, a sociedade de Hong Kong pronunciou-se através da sua comunidade empresarial e da Ordem dos Advogados, mas também se fizeram ouvir opiniões da American Chamber of Commerce e da União Europeia, que manifestaram diferentes pontos de vista sobre as emendas a introduzir na FOO. As emendas a um conjunto de leis de Hong Kong foram analisadas e comentadas pelos Estados Unidos da América e pela União Europeia, o que é algo com que a maior parte das pessoas não teria ousado sonhar.

A comunidade de Hong Kong manifestou diferentes opiniões a este respeito. Dezanove associações profissionais, como a “Faithful Relief” e a “Xinglin Awakened” emitiram um comunicado conjunto expressando a sua preocupação sobre a possibilidade das emendas deixarem os habitantes de Hong Kong desprotegidos, sem direito a um julgamento justo.

Sublinharam ainda que a comunidade internacional pode vir a encarar o sistema jurídico independente de Hong Kong como parte do sistema jurídico da China continental. Na perspectiva destas associações profissionais o Governo de Hong Kong deverá limitar o alcance das emendas.

Para já, pretende que o Tratado de Extradição se limite a Taiwan, ficando de fora a China continental e Macau.

Além disto, de forma a evitar mais polémica sobre os casos de extradição, que podem inquietar os suspeitos e aumentar as possibilidades de fuga, o Governo de Hong Kong propõe que o Conselho Legislativo suspenda a discussão do assunto. As associações profissionais acreditam que este problema pode ser resolvido pela prisão preventiva do suspeito, antes que o Conselho Legislativo leve a matéria a debate.

Lin Jianyue, membro do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, pensa que a emenda não deve abarcar crimes económicos. Lin Jianfeng, membro do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, defende que os crimes económicos deve ser tratados separadamente dos crimes violentos.

No passado dia 7, a American Chamber of Commerce declarou junto do Governo de Hong Kong, que nutre “sérias reservas” em relação a estas emendas. A American Chamber of Commerce sublinha que as alterações à lei podem permitir que o Governo da China continental peça a extradição de empresários internacionais, que vivam ou estejam de passagem em Hong Kong, e que tenham sido acusados de crimes económicos no continente. Esta possibilidade iria desvalorizar a imagem de Hong Kong como cidade cosmopolita. A American Chamber of Commerce salientou ainda que, implementar ou não esta emenda, poderá ser um factor decisivo no estabelecimento e manutenção de grandes empresas internacionais em Hong Kong. A competitividade de Hong Kong poderá vir a ser afectada.

No passado dia 23, Kano, Director do Gabinete da União Europeia em Hong Kong, declarou numa entrevista à RTHK, que tinha expressado ao Governo de Hong Kong a sua preocupação sobre o impacto destas alterações à lei nos cidadãos europeus, e que tinha solicitado que o Governo consultasse os estatutos da UE sobre Tratados de Extradição em Hong Kong. Kano propôs também que se dilatasse o período de revisão da legislação.

Shi Shuming, membro executivo da Ordem dos Advogados de Hong Kong, salientou que se o Governo excluir um certo número de crimes em respostas às necessidades de alguns sectores, tornando impossível a extradição de certas pessoas, muita gente ficará demasiado “à vontade”. E nesse caso, porque não ter também em consideração as preocupações de outros sectores? Porque motivo há-de existir um tratamento diferenciado? É óbvio que existirão sempre stuações injustas.

Tang Yingnian, membro do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, acredita que o Conselho Legislativo irá discutir em detalhe a questão da repatriação nos casos de crimes não violentos como é o caso dos crimes fiscais e dos crimes económicos. No entanto defende as emendas a esta lei. Hong Kong não pode ser refúgio para quem quer fugir ao braço da lei.

Tan Huizhu afirmou que qualquer assistência jurìdica mútua deve implicar quatro condições:

1. O crime na base do pedido de extradição, deve ser reconhecido nos dois locais;
2. O crime não pode ter, aos olhos da lei, diferenças óbvias entre os dois locais;
3. A existência de prova suficiente;
4. O crime deve ser encarado aos olhos da lei da mesma forma, antes e depois da transferência de soberania,

Tan Huizhu salienta que as pessoas do mundo dos negócios não têm motivo para receios.

Independentemente das várias opiniões, e quer estejamos ou não de acordo com elas, este assunto vai levar algum tempo a discutir até se conseguir um consenso, de forma a que a revisão da lei possa ser bem sucedida. A avaliar pelo estado das coisas, a entrada em vigor da emenda à lei não parece estar para breve.

A função básica de qualquer lei é proporcionar equidade e justiça social. Nesta perspectiva, como lidar com o pedido de extradição de Taiwan para o suspeito da morte da jovem Poon Hiu-wing? A bem da justiça, não deveria a sociedade de Hong Kong pôr de lado as diferenças, concordar com esta extradição a título excepcional e, em seguida, colocar o assunto à discussão?

Mas também podemos depreender pelas discussões que têm ocorrido no seio da comunidade de Hong Kong, que não existe nenhuma preocupação com o sistema jurídico. Será possível conseguir que Hong Kong e Macau assinem um Tratado de Extradição?

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

26 Mar 2019

Comunicação Terminal

[dropcap]N[/dropcap]o princípio era o Verbo e no fim a salada de palavras sem tempero ou qualquer significado. Quando abrimos a boca para falar, quando anotamos palavras num suporte físico, até quando nos expressamos artisticamente, materializamos um pensamento com o intuito de passar mensagens. É assim que trocamos informação, excepto quando contactamos com alguns serviços públicos locais com o intuito de informar os leitores.

No passado dia 14 de Março, enviei um par de questões à Direcção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água sobre o estado do Terminal Marítimo de Passageiros da Taipa. A ferrugem e o aspecto de cenário de filme de terror motivaram o meu contacto, depois de ver nas redes sociais imagens de degradação numa das infra-estruturas mais dispendiosas e atribuladas da RAEM. Para minha surpresa, recebi uma resposta pronta, que dispensou o habitual e subsequente telefonema a sublinhar que tinha enviado um e-mail, já por si sintomático de uma comunicação débil.

Procurei saber o que seria feito para resolver a situação, quem era responsável por aquele estado decante e quais as consequências do desleixo, falta de manutenção ou defeito de construção, que deixou parte do terminal chegar àquele ponto.

A resposta chegou quatro dias depois, assinada pelo Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-Estruturas na forma de um quebra-cabeças para o qual peço ajuda para descodificar: “Acusamos recepção da consulta enviada da D.S.A.M.A., sobre a situação em questão, após recebido a informação reflectida, solicitámos no último sábado (dia 16 de Março) a presença da entidade adjudicatária, no local de obra, para atender o acompanhamento, indo este Gabinete programar de imediato o procedimento de entrega e recepção da empreitada de construção após conclusão da limpeza a ser realizada no respectivo local.” Depois de ler a frase cinco vezes acho que sangrei um bocado dos ouvidos. Algo rebentou no meu cérebro durante a tentativa de formar significado a partir deste enigmático arranjo de palavras. Ok, receberam as perguntas que coloquei à DSAMA.

Boa! Portanto, este email é uma resposta ao meu email inicial, informação útil se estivesse a sofrer de amnésia. Foi solicitado à adjudicatária a presença no local da obra para atender o acompanhamento. Aqui começam os problemas. O que é que isto significa?! Tenho de contratar um espírita, ler nos astros o que isto quer dizer? Será programado o procedimento de entrega e recepção da empreitada de construção?! Que construção?! O que é isto? Estarei a sonhar? Estão a ver aqueles sonhos em que damos por nós na rua sem calças, ou sapatos e não sabemos o que fazer?

Como é óbvio, tentei esclarecer o que ali estava, vislumbrar um pouco de significado, algo a que me agarrar noticiosamente. Perguntei ao GDI de que construção estavam a falar, e voltei a questionar qual a entidade adjudicatária e se haveria consequências para o estado lastimável comprovado pelas fotos que enviei. A resposta que recebi foi esta: “Relativamente à pergunta apresentada por V. Exa. e a qual temos respondido ultimamente, informa-se que este Gabinete não dispõe da informação relevante que pode ser complementada. Obrigado.”

Apraz-me responder a esta não resposta na mesma moeda: “Após consulta gastrointestinal dos factos de três peças descritos nos anexos A e X e acusando a recepção de coisas imateriais na esfera do etéreo, será prestada a máxima atenção à adjudicação do projecto de vida em estado terminal, sendo que a ferrugem e a decadência visam aprofundar a harmonia entre inox e humanidade”.

Um dos meus prazeres maiores é mergulhar em belas conjugações de palavras, especialmente em prosa poética, esse animal indomável que leva tudo à frente. Não sei se este tipo de resposta dos serviços tem aspirações a tornar-se corpo literário ao estilo de ofício kafkiano, mas pelo meio podiam ao menos procurar arranjos de palavras sublimes.

No fundo, todos ficamos a perder. Eu fico sem resposta a um par de questões simples sobre uma infra-estrutura que demorou quase 12 anos a ser construída e onde aportaram sucessivas derrapagens orçamentais. Perde-se em clareza e vence a opacidade e ninguém é responsável por absolutamente nada. Também os serviços perdem tempo, com o significado a ficar entalado algures nos dentes da roda burocrática. Mas, acima de tudo, perde o cidadão que além dos agravos justificados em relação ao gigantesco e precocemente decrépito terminal, tem aqui mais um exemplo de que por cá a culpa morre quase sempre solteira. É preciso acontecer algo excessivamente bárbaro e descarado, ou mexer com interesses superiores, para alguém ser chamado à pedra.

Por outro lado, as não respostas defendem a falta de escrutínio de um Governo e entidades públicas que se auto-fiscalizam. Como pode a corrupção não florescer neste canteiro? A resposta será um arrazoado ininteligível de palavras.

25 Mar 2019

A priorização da segurança humana

[dropcap]”[/dropcap]At the end of the day, the goals are simple: safety and security.”

Jodi Rell

A 10 de Março de 2019, um avião da Ethiopian Airlines despenhou-se logo após a descolagem, matando cento e cinquenta e sete pessoas que se encontravam a bordo e nas horas após o acidente, mesmo antes de as autoridades recuperarem as caixas negras do avião, o mundo começou a questionar a segurança da aeronave. O Boeing 737 Max 8, foi anunciado como o futuro da aviação, graças à sua impressionante economia de combustível e toques futuristas, como música na cabine e nova iluminação LED. É um avião que começa uma nova fase na era da economia de combustível de dois dígitos em relação à geração anterior.

Os dois acidentes com aviões Boeing 737 Max 8 em apenas cinco meses, deixou o mundo consternado pelas consequências de perdas de tantas vidas humanas, e torna-se difícil não pensar a razão pela qual a Boeing resistiu aos esforços de manter os aviões no solo. A Southwest Airlines e a American Airlines, duas companhias aéreas americanas continuaram a voar, até o presidente Trump anunciar que os aviões se manteriam no solo, revertendo uma decisão anterior da Administração Federal de Aviação (FAA na sigla inglesa). A União Europeia (UE), a 12 de Março de 2019, proibiu o uso de aviões Boeing 737 Max 8 e 9, e que voassem no seu espaço aéreo. Os Estados Unidos ainda não tinham tomado qualquer decisão nessa data.

Todavia, em questão de meses, dois acidentes de avião Boeing 737 Max 8, pertencentes à Lion Air e a Ethiopian Airlines deixaram aos especialistas o benefício de descobrir se o avião é parte da equação ou se é apenas uma coincidência horrível. As companhias aéreas de muitos países, no entanto, não esperaram pela resposta e poucas horas após o acidente, a Ethiopian Airlines anunciou que iria manter no solo todos os seus aviões Boeing 737 Max 8. A China seguiu o exemplo, bem como Singapura, Austrália, Malásia e Reino Unido. Mas nesse momento, enquanto muitos países decidiam manter os seus aviões Boeing 737 Max 8 no solo, os mesmos continuavam em serviço nos Estados Unidos.

A American Airlines, enquanto apresentava as suas condolências às famílias e amigos dos passageiros que estavam a bordo do voo 302 da Ethiopian Airlines, afirmava que continuaria a voar com tais aeronaves pois não existiam factos concretos sobre a causa do acidente, além das notícias propagadas e que as suas equipas de voo, operações técnicas e de segurança, monitorizariam a investigação na Etiópia, dado ser o seu protocolo padrão para qualquer acidente de aeronaves. A American Airlines continuaria a colaborar com a FAA e outras autoridades reguladoras, dado que a segurança dos membros das suas equipas e clientes eram a sua prioridade número um, e que tinham total confiança na aeronave e nos membros da sua tripulação, que eram os melhores e os mais experientes do sector.

A FAA, entretanto, compartilhou a sua declaração de apoio à Boeing e aos aviões modelo 737 Max 8, afirmando que relatórios externos estavam a ser elaborados, delineando semelhanças entre o acidente da Ethiopian Airlines e o da Lion Air, ocorrido a 29 de Outubro de 2018, bem como as instruções de aeronavegabilidade continuada para a comunidade internacional, pelo que a investigação apenas tinha começado e não tinham recebido dados suficientes para retirar conclusões ou tomar quaisquer medidas. A FAA observou que exigiu mudanças de projecto na aeronave para serem realizadas até Abril de 2019. As alterações eram o resultado do acidente da Lion Air e não do recente acidente na Etiópia.

A Boeing defendeu os seus planos e declarou que especular sobre a causa do acidente ou discuti-lo sem deter todos os factos necessários não era apropriado e poderia comprometer a integridade da investigação. A outra companhia aérea americana, a Southwest Airlines, que actualmente opera com aviões Boeing 737 Max 8, disse que planeava continuar a usar os aviões, mas monitorizaria a investigação em curso. A Southwest Airlines possui trinta e quatro aeronaves modelo MAX 8, sendo a sua frota de setecentos e cinquenta Boeings 737, pelo que continuavam confiantes na sua segurança e aeronavegabilidade, e as aeronaves do modelo MAX 8 tinham produzido milhares de dados positivos durante cada voo, que são constantemente monitorizados, tendo realizado mais de quarenta e um mil voos e detinham informação suficiente que indicava a eficácia dos seus padrões operacionais, procedimentos e treino.

Todavia a Southwest Airlines, estava a ajudar a retirar o medo dos seus clientes, permitindo que as pessoas mudassem de avião se desejassem. Após dois dias do acidente da Ethiopian Airlines e de pressão crescente, os Estados Unidos mantiveram no solo os aviões Boeing 737 Max 8, revertendo uma decisão anterior em que os reguladores americanos afirmaram que os aviões poderiam continuar a voar. A decisão, anunciada pelo presidente Trump, seguiu determinações de reguladores de segurança de quarenta e dois países de proibir os voos desses aviões, que se encontram imobilizados no solo em todo o mundo. Os pilotos, comissários de bordo, consumidores e políticos dos principais partidos políticos americanos reivindicavam que os aviões permanecessem no solo nos Estados Unidos.

Apesar do clamor, a FAA estava decidida, e afirmava que não havia problemas sistémicos de desempenho que levassem as duas companhias aéreas a suspender os voos dos aviões. A 13 de Março de 2019, tudo muda quando, em uma sucessão relativamente rápida, autoridades de aviação americanas e canadenses disseram que estavam a manter no solo os aviões depois de dados de rastreamento por satélite, sugerirem similaridades entre o acidente na Etiópia e o da Indonésia. A segurança do povo americano e de todas as pessoas era a sua preocupação primordial, afirmaria o presidente Trump a repórteres na Casa Branca ao fazer o anúncio. É de entender que à medida que os aviões se tornam mais automatizados, alguns pilotos perdem habilidades de voo. O acidente do voo 302 da Ethiopian Airlines tem muitas semelhanças com o acidente da Lion Air. Os dados sobre a trajectória vertical do avião etíope na descolagem e os dados comparáveis ​​do acidente da Lion Air mostraram flutuações verticais e oscilações, e poucas horas depois, a FAA confirma que a sua decisão surgia depois da investigação que desenvolveu e de novas informações reveladas a partir dos destroços a respeito da configuração da aeronave logo após a descolagem.

Tomados em conjunto com dados recentemente refinados do rastreamento por satélite da trajectória de voo da aeronave, as informações indicaram semelhanças entre as quedas etíopes e indonésias que justificam investigações adicionais sobre a possibilidade de uma causa compartilhada para os dois incidentes e que necessitam de ser melhor compreendidos e abordados. A Ethiopian Airlines desde logo, informou que um dos dois pilotos da aeronave relatou ter problemas de controlo de voo aos controladores de tráfego aéreo, minutos antes de o avião cair e disse que queria voltar ao Aeroporto Internacional de Bole em Addis Abeba.

O piloto foi autorizado, três minutos antes do contacto se ter perdido com a cabine. Essa divulgação sugere que um problema com o controlo da aeronave, ou com o sistema computadorizado de controlo de voo poderia ter sido um factor. São descartadas qualquer hipótese de terrorismo ou outra interferência externa no funcionamento da aeronave, que tinha apenas alguns meses. As autoridades ao examinar o acidente da Lion Air levantaram a possibilidade de que um novo sistema de controlo de voo possa ter contribuído para esse acidente. A FAA, alertou que a investigação sobre o acidente da Ethiopian Airlines estava incompleta, e nenhuma determinação quanto à sua causa foi feita, nem qualquer conclusão final foi elaborada para o acidente indonésio.

Os dados de voo e os gravadores de voz, conhecidos como caixas negras no desastre da Etiópia foram recuperados e serão analisados ​​na França, pelo que ainda se tem muito para aprender antes de se poder afirmar que tiveram a mesma causa e efeito. Os acidentes colocaram a Boeing na defensiva. A companhia aérea de baixo custo, Norwegian Air, que tem uma das maiores frotas de Boeing 737 Max 8 fora dos Estados Unidos, disse que pedirá uma indemnização por manter os aviões no solo. O Boeing 737 Max 8 é o avião mais vendido da Boeing de todos os tempos e deve ser um grande estimulador de lucro, com mais de quatro mil e quinhentos aviões encomendados. As acções da empresa caíram cerca de 11 por cento na semana do acidente. A Boeing por seu lado está a apoiar esta fase proactiva com extrema cautela, e a cooperar para entender a causa dos acidentes em parceria com os investigadores, implantar melhorias de segurança e ajudar a garantir que tal facto não aconteça novamente.

Após o acidente indonésio, os sindicatos de pilotos reclamaram que não tinham conhecimento de uma mudança no sistema de controlo de voo do Boeing 737 Max 8 que poderia empurrar o nariz do avião automaticamente para baixo em certas situações. Acredita-se que a mudança no “software” tenha desempenhado um papel no acidente da Lion Air e também tenha sido um factor no acidente na Etiópia. A Boeing está a planear lançar uma actualização de “software” que está em desenvolvimento desde o acidente na Indonésia. A introdução de um novo recurso de controlo de voo consequente, sem qualquer requisito para o treino de pilotos, está a atrair mais atenção. As autoridades americanas planeiam conduzir uma investigação sobre a certificação do Boeing 737 Max 8 pela FAA, com o objectivo de saber o motivo pelo qual o órgão regulador não exigiu o treino dos pilotos a aprenderem a voar a nova versão. A FAA, transportadoras e fabricante irão trabalhar arduamente para tornar a imobilização dos aviões no solo no mais curto tempo possível, pois situações como estas são um alto teste para os líderes.

Ainda não está claro porque razão o avião da Ethiopian Airlines caiu. Os reguladores estiveram divididos, enquanto os da Ásia e Europa avançaram relativamente rápido com as proibições de voo, e nos Estados Unidos a FAA manteve a decisão de que a análise não mostra problemas sistemáticos de desempenho e não fornece uma base para ordenar a manutenção das aeronaves no solo. Os políticos e líderes da Boeing telefonaram ao presidente Trump garantindo a segurança dos aviões da empresa após um “tweet” presidencial que queixava de que os aviões estavam a tornar-se um caso muito complexo, afirmando desvairadamente “Eu não quero que Albert Einstein seja meu piloto”. A 13 de Março de 2019 mais de quarenta países imobilizavam os seus aviões. Toda esta confusão não traz benefícios nem aos investidores das empresas envolvidas, nem aos trabalhadores e passageiros. Ter-se-ia evitado grande parte da turbulência se os líderes da empresa tivessem feito um trabalho melhor em enquadrar a situação.  Os líderes têm uma tarefa crucial no início de um desastre em formação, devendo usar a arte de enquadrar para descrever a natureza do problema que a organização está a enfrentar.

Os modelos adequam a forma como pensamos os problemas e também as oportunidades e dizem qual a categoria de dificuldade que estamos a lidar, porque ao identificar um tipo de problema, também contém as sementes de acção e resposta. É de lembrar que durante a crise de envenenamento por Tylenol em 1982, a J&J, empresa multinacional americana de produção de dispositivos médicos, produtos farmacêuticos e bens de consumo embalados fundada em 1886, notoriamente declarou que se tratava de um problema de saúde pública.  Tal enquadramento deu início a todas as actividades que associamos à reacção padrão da J&J e a uma crise em que vidas humanas estão em jogo. Assim, todas as embalagens de cápsulas de Tylenol, contra o conselho do Food and Drug Administration (FDA), foram pela J&J substituídas por novas embalagens resistentes a adulterações e entregou as cápsulas recém-embaladas em um período de seis semanas.

Quando um segundo surto de envenenamento ocorreu quatro anos após o primeiro, a J&J declarou que só oferecia Tylenol em cápsulas, que não podiam ser separadas e lacradas sem que os consumidores soubessem. A J&J poderia ter descrito a natureza do envenenamento por Tylenol de muitas maneiras diferentes, como um ataque à empresa, um problema em algum lugar no processo de distribuição do Tylenol das fábricas para lojas de venda a retalho, bem como as acções de um assassino solitário e cada um desses enquadramentos teria levado a um conjunto diferente de acções. Se a J&J tivesse chamado de ataque ao envenenamento, teria desencadeado uma guerra dispendiosa e difícil de vencer contra estranhos e desconhecidos tentando destruir a empresa.

Se fosse um problema de processo, haveria uma revisão minuciosa da cadeia de fornecimento de Tylenol e possíveis falhas no sistema, e se acaso pudesse ser trabalho de um homicida? Sabemos como tais generalidades podem levar à inacção no sector e a culpar sistemas muito distantes da empresa e das suas responsabilidades. É de acreditar que o presidente da Boeing insistiu com o presidente Trump e outros de que a aeronave era segura. O treino é projectado para ajudar os pilotos a identificar e substituir os controlos automáticos do avião se os mesmos erroneamente dirigirem o seu nariz para baixo.  Assim, o quadro do presidente da Boeing foi pintado no sentido de que se é um problema técnico podia ser corrigido com o treino dos pilotos. Tarde demais. É um quadro bastante comum para o mau funcionamento de um produto, mas ainda não sabemos se a semelhança nos dois acidentes é uma coincidência ou o sinal de um problema sistemático que precisa de ser corrigido.

Além disso, o quadro parece perder o momento, pois centenas de vidas humanas foram perdidas, e mais podem estar em risco, e os reguladores em muitos países imobilizaram os aviões.  As acções dos reguladores reflectem um quadro de priorização da segurança humana, que parece reflectir melhor os altos níveis de incerteza e risco que a Boeing está a pedir que aceitemos. O que poderia a Boeing ter dito de forma mais sensata? Talvez fosse melhor dizer que é um problema técnico que não dominam por completo e à luz dessa incerteza, recomendar a aterragem dos Boeings 737 Max 8 e 9 até terem a certeza de descobrir o que está a provocar as falhas e poder contentar a empresa, reguladores globais, transportadoras e passageiros e que possam ter todos a certeza do que está a causar essas falhas e de que os aviões são seguros para voar de novo.

Tal enquadramento leva a um caminho de acção muito mais claro e reconhece uma parceria com reguladores encarregados de proteger vidas humanas e teria sido melhor para todos os interessados ​​se a Boeing tivesse chegado a essa conclusão antes que o presidente americano aparentemente o fizesse. A questão principal para os líderes é o facto de ser necessário tornar a situação e o pensamento difícil. É necessário decidir que tipo de problema se está a enfrentar, e descrevê-lo em linguagem clara que ajudará as pessoas que o têm de resolver na empresa, bem como os que estão a julgar de fora, a entender como a empresa está a pensar e que tipo de problema enfrenta. O enquadramento é uma ferramenta para ser usada conscientemente. Se for bem utilizada, pode fazer uma enorme diferença em inspirar a acção responsável e confiar no julgamento e nos valores da empresa, mesmo que, como no caso da J&J, o problema não esteja totalmente resolvido e precise de ser abordado de novo.

22 Mar 2019

O espelho dos outros

Acontece com frequência: a nossa imagem aos olhos dos outros pode influenciar mais o nosso comportamento do que a imagem que temos de nós próprios. Ou a imagem que temos da imagem que os outros têm de nós, para ser mais preciso. Vem isto a propósito do que se vende – ou não – nas chamadas lojas de conveniência japonesas, agora que se avizinham os grandiosos Jogos Olímpicos do Verão de 2020 e massivas quantidades de visitantes estrangeiros são esperadas no sempre distante país do sol nascente.

 As lojas de conveniência têm uma popularidade no Japão incomparável com o que passa em qualquer país europeu, ou mesmo asiático, onde geralmente também se encontra com facilidade este tipo de estabelecimento. O caso japonês não deixa de ser extremo, em todo o caso: na generalidade das zonas urbanas é possível encontrar uma destas lojas quase em cada quarteirão. Há excepções de vários tipos: havendo quarteirões onde não há lojas, também há outros onde coexistem várias, em geral pertencentes a diferentes cadeias, nacionais ou internacionais.

Independentemente da cadeia, as lojas tendem a ser bastante semelhantes: estão convenientemente abertas 24 horas por dia, 7 dias por semana, e vendem, como o nome sugere, o que pode fazer falta em qualquer momento, com uma variedade surpreendente: refeições prontas, frutas e legumes frescos, lacticínios, produtos de charcutaria, vinhos, uma vasta parafernália de outras bebidas, doces, pão, bolachas, gelados, detergentes vários, utensílios de limpeza, produtos de higiene pessoal, cosméticos, papel higiénico, guarda-chuvas, tabaco, ou mesmo algum vestuário de emergência, incluindo as camisas brancas com que grande parte dos homens japoneses se veste para ir trabalhar.

Um pouco mais surpreendente, pelo menos para os nativos de países com tecnologias digitais de utilização quotidiana aparentemente mais avançadas, como é o caso de Portugal, são alguns dos serviços prestados nestas lojas e que nós já transferimos quase completamente para os cabos das redes de informação: compra de bilhetes para espectáculos, pagamentos de impostos ou outras contribuições para instituições públicas também são maioritariamente feitos nestes estabelecimentos, igualmente equipados com anacrónicas máquinas de fotocópias, que no Japão continuam a consumir despropositadas quantidades de papel.

O assunto desta crónica é outro, no entanto. É que entre os produtos de extrema conveniência comercializados nestes estabelecimentos estão os jornais, revistas e colecções de manga tão populares na cultura japonesa. E entre estas revistas (de animação ou não) estão as publicações para adultos – na esmagadora maioria dos casos orientadas para o público masculino – cujas capas normalmente ostentam magníficas representações de voluptuosos seios femininos e cujos interiores estão invariavelmente repletos de pornografia explícita.

Não sendo estes conteúdos particularmente diferentes daquilo que se pode encontrar na literatura recreativa para adultos em qualquer outra parte do mundo, o que surpreende é a exposição: estas publicações partilham espaços relativamente exíguos com outros géneros, incluindo a literatura infantil, normalmente a escassos centímetros de distância. Não consta que desta ultra-exposição pornográfica tenha vindo grande mal ao mundo – ou pelo menos ao Japão. Na realidade, poucos ou nenhuns problemas são conhecidos em relação ao assunto – nem sobre a manifesta e permanente objectificação dos corpos femininos para entretenimento masculino, nem sobre o fácil acesso que as crianças japonesas podem ter às publicações (mesmo que por lei não as possam comprar).

Em todo o caso, as coisas vão mudar num futuro próximo: até ao início dos Jogos Olímpicos, dentro de pouco mais de um ano, as lojas de conveniência são obrigadas a deixar de comercializar este tipo de literatura, que passará a ser disponibilizada em outros circuitos. A razão é simples: aos olhos dos visitantes estrangeiros que hão-de vir, esta exposição da pornografia é inaceitável. Ou pelo menos parece ser essa a imagem que as autoridades japonesas têm da imagem que os estrangeiros podem vir a ter do Japão. Seja como for, as revistazinhas com generosas mamas nas capas terão que passar a ser vendidas em circuitos especializados. Tanta exposição pública não é conveniente.

22 Mar 2019

Sexo e Casamento

[dropcap]A[/dropcap]investigação tem sido consistente de que há uma relação forte entre satisfação conjugal e satisfação sexual. A direcção desta relação é que tem sido bastante debatida. A relembrar-nos da eterna questão do ovo e da galinha há quem se interrogue: afinal o que é que vem primeiro? A satisfação com o sexo que depois influência a satisfação com a relação, ou será que a qualidade da relação faz com que o sexo fique melhor?

Ainda que provisória, a assumpção é de que vieram os dois alimentar-se um ao outro. Perceber quem veio primeiro já é de grande dificuldade conceptual e metodológica e, se me permitirem o acrescento, também de variabilidade inter-casal – ou seja, cada parelha viverá as suas satisfações na ordem que mais lhe convir. Não quer isto dizer que é uma escolha deliberada, as coisas acontecem naturalmente dependendo da forma como se vivem os desafios inerentes ao casamento. Também dependerá da forma como o sexo é concebido e entendido. Por mais que ande a pregar de que o sexo está intimamente ligado ao nosso bem-estar, em geral, continua a ser um desafio para muitos viver a sua vida sexual sem a instrumentalizar. O sexo não deixa de ser aquele bicho-papão do qual ninguém quer falar, mas que todos os casados são ‘obrigados’ a fazê-lo. Para ilustrar este facto é a quantidade impressionante de mulheres que são sexualmente activas mas que nunca se masturbaram. Nesta equação de satisfações dentro do casal é muito importante perceber o papel do sexo – que nem sempre é o mesmo. Muito menos na variabilidade social e cultural que vivemos neste planeta.

Há um estudo publicado em Maio do ano passado no Journal of Sex Research que explora a relação entre satisfação sexual e conjugal em jovens casais de Pequim. O foco em sociedades, geopoliticamente falando, não-ocidentais é o maior contributo deste estudo. A investigação tende ignorar partes do mundo onde o sexo ainda não é amplamente discutido e onde a intimidade relacional ainda não ganhou maior protagonismo. Mesmo que a ciência se esforce em encontrar relações concretas acerca das nossas vivências, a variabilidade cultural ainda é pouco reconhecida. Este estudo em concreto traz uma reflexão importante acerca dos primeiros três anos de casamento de casais chineses em contexto urbano. Parece que as diferenças de género destacaram-se: os homens percebiam a satisfação conjugal como resultado da satisfação sexual, enquanto que as mulheres percebiam o efeito contrário – o bom sexo só vem depois de uma boa relação – que depois com o tempo, esta relação desvanece-se, enquanto que se mantém para os homens.

Parece que a tentativa de esclarecer a relação universal entre o ovo da satisfação sexual e a galinha da qualidade da relação ainda está longe de ser conquistada – porque provavelmente não existe. Os autores parecem concluir que é difícil dissociar expectativas do sexo com as de género. A relação entre satisfação sexual e conjugal está intimamente ligada ao papel do homem e da mulher em casais heterossexuais. No caso das mulheres – a tendência de quebrar a ligação entre satisfação sexual e conjugal com o tempo – parece apontar, de acordo com os autores, a um descontentamento face ao papel da mulher. Visões mais tradicionais e patriarcais dirão que a mulher deve ter uma posição passiva no sexo e na relação. Refletindo, talvez, a dificuldade que será reivindicar uma procura activa do que as satisfazem na cama. Na verdade, não saberemos em concreto – outro estudo seria necessário. Mas pelo menos assim sabemos um pouco acerca da variabilidade relacional, da falta de fórmulas conjugais e de como o sexo – visto como uma construção conjunta de significados complexos – tem muito mais que se lhe diga do que originalmente pensado.

 

 

 

20 Mar 2019

Lei do investimento estrangeiro

[dropcap]A[/dropcap] agência noticiosa chinesa Xinhua publicou no passado dia 15 uma notícia sobre a aprovação da Lei do Investimento Estrangeiro (sigla em inglês FIL), que teve lugar durante a segunda cimeira do 13º Congresso Nacional do Povo. O Presidente Xi Jinping assinou o Decreto No. 26 e promulgou a FIL.

As reformas económicas na China têm vindo a decorrer ao longo dos últimos 40 anos. Nos finais de 2018, estavam registados 960.000 investidores estrangeiros na China, totalizando o capital investido 2,1 triliões de dólares americanos. Considerando a relevância destes investimentos, é adequado criar uma emenda à lei de forma a facilitar e encorajar a aplicação de capital estrangeiro na China.

A China atribui a maior importância à promulgação desta nova lei. A primeira discussão da proposta da nova lei teve lugar a 23 de Dezembro de 2018, durante o 7º encontro do 13º Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo (CPCNP). Em Janeiro de 2019, o CPCNP reviu a proposta de lei. A progressão legislativa da FIL estava obviamente a ser acelerada. A 15 de Março, o CPCNP passou finalmente a lei, demonstrando uma elevada eficácia na resolução deste assunto.

A FIL é composta por seis capítulos e 42 artigos, e vai entrar em vigor a 1 de Janeiro de 2020. O artigo 42 estipula que a implementação desta lei abolirá a “Lei do Empreendimento Conjunto Sino/Estrangeiro” , a “Lei das Empresas com Fundos Estrangeiros” e a “Lei das Empresas Sino/Estrangeiras”. Estas três leis tinham vindo, até à presente data, a regular os investimentos estrangeiros na China.

A FIL vai regular o investimento estrangeiro e abarca os seguintes casos:

  • Investidores estrangeiros que criem, sozinhos ou em parcerias, empresas sediadas na China
  • Investidores estrangeiros que adquiram acções, equidade, propriedade, ou outros direitos semelhantes em empresas chinesas
  • Investidores estrangeiros que apliquem capital, sozinhos ou em parcerias, em novos projectos a realizar na China
  • Legislação administrativa ou outros métodos de investimento prescritos pelo Conselho de Estado

A FIL não se aplica em Hong Kong, Macau ou Taiwan. Desta forma, para os empresários de Hong Kong, Macau e Taiwan o que está em causa é perceber se podem continuar a ser considerados investidores estrangeiros, se quiserem aplicar capital na China. O primeiro-ministro chinês Li Keqiang afirmou que, na medida em que o capital oriundo de Hong Kong e de Macau representa 70% do investimento estrangeiro na China continental, o assunto é considerado da maior importância:

“O investimento vindo de Hong Kong, Macau e Taiwan tem cabimento no quadro da nova lei, hoje aprovada. Alguns dos nossos acordos institucionais de longa data e das nossas práticas governativas, continuarão a ser aplicados. Queremos beneficiar e atrair os investidores de Hong Kong, Macau e Taiwan.”

Li Keqiang sublinhou que o continente vai manter as fronteiras e os free ports de Hong Kong e Macau, e criar condições preferenciais para os empresários de Taiwan que queiram investir na China continental.

Para reforçar as palavras do nosso primeiro-ministro, há que salientar que até agora os empresários de Hong Kong, Macau e Taiwan foram sempre considerados investidores estrangeiros. Esta prática não deverá ser alterada após a implementação da nova lei.

A FIL define os conceitos de “equidade de tratamento” e de “sistema de dispensa”, relativamente aos empresários estrangeiros. “Equidade de tratamento” implica que, perante o mesmo investimento, o tratamento dado aos investidores estrangeiros não poderá ser inferior ao que é dado aos nacionais. O “sistema de dispensa” divide o investimento em três categorias: sem restrição nem proibição, sem restrição, e sem proibição.

  • No primeiro caso, os empresários estrangeiros podem fazer investimentos sem necessidade de qualquer tipo de aprovação.
  • No segundo caso, os empresários estrangeiros têm de obedecer à regulamentação aplicável.
  • No terceiro caso, os empresários estrangeiros não podem investir em projectos relacionados.

Até aqui, os empresários estrangeiros precisavam de obter autorização oficial para fundar uma empresa em solo chinês, que incluia aprovação de contratos, dos estatutos, das actividades corporativas, etc. A seguir precisavam de aprovação do próprio projecto. Finalmente, precisavam de obter uma licença, antes de registarem a empresa. A FIL veio abolir completamente esta longa série de aprovações.

Além disso, a nova lei garante toda uma série de protecções institucionais para investidores estrangeiros, a saber:

  • Criação e aperfeiçoamento de um sistema de apoio ao investimento estrangeiro
  • Garantia que as empresas de capital estrangeiro podem fazer aquisições de forma justa através de OPAs lançadas pelo Governo
  • Garantia de equidade na participação de empresas de capital estrangeiro; providenciar às empresas de capital estrangeiro a oportunidade de participarem na definição dos padrões de participação equitativa
  • Criar um mecanismo de reclamações para as empresas de capital estrangeiro
  • Impedir o uso de mecanismos administrativos para forçar a transferência de tecnologia

A FIL terá efeitos benéficos para a China, Taiwan, Hong Kong e Macau e também para os investidores estrangeiros. No que diz respeito à China, a FIL vem aperfeiçoar a legislação sobre o investimento estrangeiro no país, tornando o contexto empresarial chinês mais legal, internacional e apelativo. Como a FIL prevê a implementação de novas políticas comerciais, depreende-se que esta nova lei é apenas o começo de um novo caminho neste sentido. Em breve, os investidores estrangeiros conhecerão em detalhe que tipo de benefícios poderão obter ao abrigo da FIL e das novas políticas comerciais.

Para os empresários de Taiwan, Hong Kong e Macau, e de outros países, a FIL garante mais benefícios e facilidades. A FIL é uma “lei feliz”.

19 Mar 2019

Motorista ilegal

[dropcap]A[/dropcap]mais recente versão do diabo externo é o estrangeiro que conduz nas estradas de Macau sem estar legalmente habilitado para o fazer. Não vou aqui fazer o elogio a qualquer manifestação de ilegalidade, muito menos gabar a propensão para a condução segura nas nossas estradas, mas confessemos que o que está aqui em causa não é um carimbo que confere estatuto legal. Neste caso, como em tantos outros, é reconhecível, a milhas, mais uma variante do velho medo do bicho-papão que vem de fora para fazer mal ao indefeso menino residente. Se o responsável pelo trágico acidente que ceifou a vida a uma estudante fosse um local com irregularidades no documento que habilita a conduzir nas ruas de Macau não se teria visto o alarido que se viu.

Neste aspecto, tenho de destacar o populismo da facção política dita pró-democrata, sempre tão pronta para alimentar o nativismo de uma cidade que sonha fechar-se numa redoma. Isto à beira de se concretizarem mega-projectos de integração regional e de, suposta, internacionalização.

Talvez haja aqui um aspecto da democracia que esteja a escapar aos que empunham essa bandeira em Macau. A ideia de que a maioria não implica a perseguição da minoria e que sensibilidades, credos, etnias, merecem tratamento igual perante a lei são pedras basilares das democracias, emanações das raízes iluministas. Aliás, o assédio e a repressão de minorias fazem parte do adn das autocracias, do seu modus operandi, o pão nosso das ditaduras, das garras predatórias do obscurantismo. Seria de esperar que as forças pró-democratas tivessem aqui um papel educativo e de oposição ao nativismo que, não raras vezes, cresce em locais onde se deram grandes emancipações pós-colonialistas. Uma espécie de manifestação política freudiana, um orgulho inferior que germina em dor e terror, alimentado pelos piores demónios que contaminam o espírito humano.

Importa recordar que em Macau há pleno emprego. Ainda assim, apregoa-se o medo do estrangeiro que vem roubar trabalho ao frágil residente, um ser incapaz de suportar um vislumbre de competição. Teme-se o diabo que vem de fora para cumprir funções que ninguém quer a troco de um salário que nenhum local aceitaria. O medo e o asco que Hunter Thompson tão poeticamente descreveu a vida inteira e que faz do somatório de indivíduos receosos uma turba assassina.

O mais recente acidente rodoviário trouxe ao de cima outro aspecto insidioso. A situação laboral do presumível culpado: portador de blue card (inserir música de filme de terror). De imediato, a questão que se levantou foi saber se estaria a trabalhar legalmente, porque todos sabemos a influência que a situação laboral tem na habilidade de condução.

Entretanto, fechem os olhos às corridas ilegais em que os garotos da terra gostam de competir, ignorem a jihad automobilística movida pelos taxistas, relativizem os condutores que não largam o telemóvel por um instante e as scooters que encaram todo o centímetro quadrado de solo como estrada.

Num nível mais profundo, diria que Macau é composto, muito ironicamente, por uma alarmante quantidade de potenciais eleitores de Donald Trump. Rapaziada que não ouviu muito bem a pergunta, mas que sabe que a resposta é: “a culpa é do estrangeiro”. Se alguém apresentar a ideia de construir um muro para manter o exterior lá longe, mesmo com todas as declarações de amor à pátria, aposto que a proposta seria extremamente popular.

E nós, portugueses, vamos dando eco a este nativismo, quando sabemos que é bem possível sermos os próximos alvos do festim da paranoia. Aqui importa recordar que nos ditos gloriosos anos 80, quando era bom no entender dos saudosistas, os meninos tugas das altas castas estavam praticamente à margem da lei. Roubavam carros para dar umas voltas e impressionar miúdas, gozavam com a polícia e chegavam mesmo a ameaçar com o poder do papá quando apanhados. Bons tempos de delinquência colonialista, não é meus queridos compatriotas. A maçã não cai muito longe da macieira, ora pois.

Uma coisa é certa, todos estamos sujeitos ao erro, somos todos seres falíveis. Desde que nascemos estamos condenados a viver esta condição humana. A minha proposta é um par de bolas e uma espinha dorsal. Nem tudo o que desconhecemos nos quer fazer mal, da mesma forma que nem tudo o que nos é familiar é inocente.

 

 

 

18 Mar 2019

As quatro condições de Zhang Xiaoming

[dropcap]P[/dropcap]ara lá das decisões tomadas nas cimeiras da Assembleia Popular Nacional (APN) e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), que tiveram lugar em Pequim, o que preocupa verdadeiramente os habitantes de Macau é se já terá havido por parte do Governo Central alguma indicação concreta, quanto à indigitação dos candidatos ao cargo de Chefe do Executivo do quinto Governo desta cidade. Mas, após escutar o discurso que Zhang Xiaoming, Director do Gabinete dos Assuntos Internos de Hong Kong e dos Assuntos Internos de Macau, dirigiu aos participantes da APN e da CCPPC, a especulação sobre a nomeação dos candidatos a Chefe do Executivo de Macau, está terminada.

Zhang Xiaoming afirmou que existem quatro requisitos “incontornáveis” que o Governo Central espera de qualquer candidato a Chefe do Governo de Macau: amor à Pátria e a Macau, ter a confiança do Governo Central, ter capacidade de governar e ser reconhecido pela sociedade de Macau. São estas as qualidades fundamentais que superiormente se espera destes candidatos, como sempre e sem qualquer novidade. Por outras palavras, ninguém em particular foi nomeado para o lugar, deixar-se-á que as coisas sigam o seu curso natural, e, no final, a pessoa de maior confiança do Governo Central e da sociedade de Macau será o próximo Chefe do Executivo. Na sociedade de Macau cuja confiança importa, estão naturalmente incluídas as 400 personalidades a eleger no escrutínio dos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, agendado para o próximo dia 16 de Junho.

Embora o Governo Central não tenha dado nenhuma indicação clara sobre os candidatos, um jornal local indicou imediatamente um conjunto de outras condições necessárias para o cargo, para além das que foram mencionadas por Zhang Xiaoming. Passo a elencá-las: 1) ter capacidade administrativa, 2) poder melhorar eficazmente a qualidade de vida do povo, e não se limitar-se a ser um “chefe do executico caritativo”, 3) gozar de boa saúde 4) ter uma idade apropriada. A pessoa que reúna estas condições deverá ter as suas próprias preferências e opiniões. Contudo, como Macau deverá seguir as políticas directivas da China, estas condições são indubitavelmente demasiado progressistas.

A partir do que observei, os preparativos para a eleição do quinto Chefe do Executivo de Macau começaram em força a partir de meados de 2017. Através do Gabinete de Ligação do Governo Central do Povo na RAEM, e de outros canais, o Governo Central tem vindo a “radiografar” todos os potenciais candidatos ao lugar. Ninguém quer manifestar publicamente a intenção de se candidatar sem a aprovação explícita do Governo Central. As atitudes serão tomadas no tempo devido. Os rumores que por hora circulam, apontam para os seguintes nomes: Leong Vai Tac (secretário para a Economia e Finanças) e Ho Iat Seng (Presidente da Assembleia Legislativa).

No ponto em que as coisas estão, o que pode ser preocupante é a possibilidade de se perfilarem apenas um ou dois candidatos a Chefe do Executivo, cuja eleição ocorrerá no próximo dia 18 de Agosto. Se Ho Iat Seng se candidatar, terá de ser suspenso do cargo de Presidente da Assembleia Legislativa. Mas se perder a eleição, pode voltar a assumir a presidência do plenário. Se Leong Vai Tac [Lionel Leong] se candidatar, também terá de se demitir do seu cargo actual. No entanto, neste caso, se perder a eleição, não tem o seu antigo lugar garantido, porque o novo Chefe do Executivo pode não o querer na sua equipa. Deste ponto de vista, Leong Vai Tac arrisca mais do que Ho Iat Seng, ao candidatar-se a Chefe do Executivo.

Na opinião do Governo Central, as eleições competitivas (com mais do que um candidato) são preferíveis às eleições com um candidato único. No entanto, nas eleições de 2012 para Chefe do Executivo de Hong Kong, a competição entre os dois candidates da confiança do Governo Central tiveram como resultado uma dissenção no partido do poder e a consequente instabilidade. Depois da lição aprendida com este incidente eleitoral, o Governo Central não vai quer repetir a experiência em Macau. Daí que, a possibilidade de permitir que dois candidatos igualmente influentes se perfilem, é muito improvável. Mas quem estará disposto a ser “carne para canhão” nestas eleições?

Em 2020, as licenças de jogo dos Casinos vão ser renovadas. Além de estarem implicados interesses gigantescos, também vão estar em causa as estratégias de desenvolvimento do país. Para assegurar a estabilidade e a prosperidade do país e de Macau, o Governo Central não vai permitir qualquer tipo de problema durante a eleição do quinto Chefe do Executivo de Macau. O discurso de Zhang Xiaoming demonstra que o quadro geral já está definido e que a transição de Chefe do Governo da RAEM irá ser pacífica.

 

15 Mar 2019

Novíssimas relações internacionais

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre outros resultados, as visitas de Estado decorrem dentro dos limites da amenidade que propiciou a sua calendarização por acordo entre as partes: visitados e visitantes.

Tolerâncias de ponto, bandeiras, cartazes, etc., fazem parte da parafernália festiva que os governos anfitriões colocam à disposição do seu Povo, para festejar os visitantes.

Aos serviços de protocolo que acompanham a visita, compete o cuidado protocolar de não permitir o relaxamento dos horários previamente fixados que ponham em risco o cumprimento do programa previamente concebido e acordado. E os serviços de segurança, de visitantes e visitados, não se devem preocupar somente com as ameaças de bomba, ou outro tipo de atentados, mas também com o cumprimento das regras básicas de segurança, por toda a comitiva visitante, e, principalmente, pelo seu peso simbólico, pelo seu líder.

As Viagens de Soberania aos territórios ultramarinos, iniciadas pelo Príncipe D. Luís Filipe, filho de D. Carlos e D. Amélia, e prosseguidas pelo General Carmona, revestiam-se de aparato semelhante ao das Visitas de Estado.

Em 1954, na visita de Craveiro Lopes a S. Tomé e Príncipe, devido à deterioração dos alimentos, por insuficiência de capacidade de refrigeração, o início do banquete de honra, no Palácio do Governador, sofreu enorme atraso.  Ainda estava a sopa a ser servida, quando soou o despertador de bolso do Dr. João de Mendonça, do Protocolo do MNE e proprietário da roça Boa Entrada, em S. Tomé que, hirto e de dedos entrelaçados como anzóis sobre o peito, alertava o Chefe de Estado que chegara ao fim o tempo previsto para a refeição festiva e pomposa. Recebeu o zeloso diplomata ordem de que cessava ali mesmo as funções que desempenhava na viagem presidencial. E era mandado regressar imediatamente a Lisboa.

No mesmo ano, a seguir, Craveiro Lopes visitou Angola. À chegada a Luanda, prestadas as honras militares, seguiu-se o cortejo para a entrega das chaves da cidade ao Presidente da República, nos Paços do Concelho. As autoridades locais fizeram tudo o que estava ao seu alcance para que se registasse o mais amplo e caloroso apoio popular ao Chefe de Estado.  A sessão solene na Câmara Municipal de Luanda tinha terminado a meio da manhã.  Por volta das quatro da tarde, da caixa aberta de uma camioneta de carga, estacionada no trajecto percorrido pelo cortejo presidencial  nessa manhã, ouvia-se um coro de vozes desgastadas pelo calor e pelo cansaço:  CA–MO–NA, CA-MO–NA,  CA-MO-NA…  O respectivo cabo de sipaios não sabia, desde antes da passagem do cortejo, do Chefe do Posto Administrativo de onde viera aquela deputação para a recepção ao Presidente da República…  Carmona, de seu nome completo, António Óscar de Fragoso Carmona, antecedeu Francisco Higino Craveiro Lopes na Presidência da República. Falecera em 18 de Abril de 1951… Ambos morreram no posto de Marechal.

A primeira visita de Estado ao Brasil foi equacionada para Junho de 1908. Residiam no Brasil dois milhões de portugueses. O Regicídio (1 de Fevereiro de 1908) inviabilizou-a. Com a aproximação da data do Centenário da Independência do Brasil (7 de Setembro de 1922), intensificou-se o desejo do país irmão em receber o Chefe de Estado de Portugal. O convite formal do Presidente do Brasil, Dr. Epitácio Pessoa, chegou às mãos do Presidente da República, Dr. António José de Almeida, ainda no decurso do ano de 1921. A 6 de Julho desse ano, foi escolhido o navio “Porto” para transportar o Chefe de Estado e comitiva ao Brasil, no ano seguinte. Era o antigo navio alemão Prinz Heinrich, um dos 72 navios alemães apresados em Portugal durante a guerra de 14/18, a pedido da Inglaterra, o que valeu a Portugal a declaração de guerra dos alemães. Era um navio velho, cheio de mazelas, a pedir reformas e a precisar de ser adaptado às suas próximas funções. Tinha sido construído em 1894. Da sua “folha de serviços”, consta o transporte do Soldado Desconhecido, dos campos de batalha europeus para o Mosteiro da Batalha.  A um mês e dois dias do Centenário da Independência do Brasil, o Governo despertou para a urgência de se efectuarem as reparações de que o navio “Porto” necessitava. Entrara-se já no mês de Agosto de 1922 e os Metalúrgicos estavam em greve. Contrataram-se outros operários e era preciso marcar o dia da partida, sem que houvesse a mínima ideia do que era preciso fazer e de quando estariam concluídas as reparações. Os festejos tinham início em 7 de Setembro, no Brasil. Decidiu-se o embarque para 20 de Agosto, adiou-se para 22, depois para 24 e, por fim, para 26. O “Porto”, logo após sair da barra de Lisboa, deu sinais de avaria. Foi necessário demandar as Canárias. A viagem prosseguiu com sucessivas avarias e paragens. A entrada na baía da Guanabara deu-se no dia 17 de Setembro de 1922. Dez dias após a data do Centenário da Independência. Quando as representações dos outras países retiravam ou já tinham retirado…

Estes episódios, e outros mais, tiveram origem em motivos alheios à vontade dos Chefes de Estado que neles se envolveram.

Novidade nas relações internacionais de Portugal é o actual Presidente da República Portuguesa, em visita a um País Amigo e Irmão, ser o responsável por atrasos injustificáveis, apenas porque lhe apeteceu ir fora do veículo, de porta aberta, com um pé no estribo e o outro não sei onde. Duas horas para percorrer 10 Km e que estragaram o programa…

É lícito a um Chefe de Estado, em visita de Estado a um País Amigo, fazer o que lhe apetece, ainda que transgredindo e coagindo o motorista, da viatura colocada ao seu serviço, a transgredir as normas de circulação automóvel em vigor? Pode um Chefe de Estado, em visita de Estado a um País Amigo, conhecedor do programa e respectivos horários, só porque lhe apetece, borrifar-se nos programas, nos horários, nas normas protocolares e de segurança? Travessuras em idade serôdia poderão ser indício de Alzheimer?

 

Jorge Morbey

14 Mar 2019

8 de Março  

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]assou-se mais um dia das mulheres. Este ano não quis juntar-me à multidão manifestante e optei por ficar no conforto de casa. Claro que uma manifestação tem especiais poderes de reinvindicação com a voz, o grito, a raiva e a partilha. Mas à minha necessidade de ficar em casa dou-lhe um sentido introspectivo que pode ser igualmente transformador. Fiquei em casa a sofrer dos males menstruais de quem, como eu, tem um útero. Pensei na minha sorte de não ser nepalesa e não ser atirada para a reclusão menstrual dada a minha impureza – muito menos morrer disso como morreram uma mãe e dois filhos ainda há pouco tempo. Pensei na igualdade de direitos menstruais que este mundo anda a precisar desesperadamente. Pensei na minha condição de mulher e nos privilégios e obstáculos associados. Menos mal, ainda com dores incapacitantes tenho direito a uma voz porque tive sorte de ter nascido onde nasci. Há muitas vozes que ficam ainda perdidas na complexa malha de palavras que fazem este mundo maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Não é novidade nenhuma que a desigualdade ainda está bem presente.

Só não sei se este dia 8 de Março ataca o problema da desigualdade de género. O problema é bem mais complexo do que estamos preparados para compreender e ninguém nos alerta para isso. A desigualdade não tem uma raiz clara de onde possamos cortar o mal, nem tem um arqui-inimigo a destruir. Vai parecer-vos um exagero mas problema está em todo o lado. Desde o nascimento que a nossa socialização cria expectativas de que a menina é a bonita e bem-comportada e o menino o esperto e rebelde. Depois é a escolarização, a sexualização, a empregabilidade, tudo isto tresanda a expectativas milenares de quem nós somos. Há coisas que se resolvem com uma boa legislação, há outras que precisam de uma luta diária em todas as frentes, em casa, na rua e para além do dia 8. O trabalho, a ser feito, é nos bons-dias mundanos e nas relações diárias. Podemos ir para a rua gritar e mostrar o nosso descontentamento pelo desaparecimento da Marielle, da parvoíce que foram os acórdãos do Neto de Moura ou chorar a morte das 12 mulheres que morreram às mãos da violência doméstica em Portugal só em 2019. Não chega. Precisamos de pensar e agir sobre o desconforto da desigualdade com todas as vozes que fazem as mulheres. Porque também já me irrita perpetuar-se o mito de que a mulher é uma: a tal de útero, cabelos longos e vestidos cor-de-rosa. As mulheres são muitas com diferentes narrativas e histórias. Mulheres que usam maquilhagem e que não usam. Mulheres que têm pêlos nos sovacos e que não se arranjam, e também aquelas que demoram duas horas antes de sair de casa para se porem bonitas. Mulheres com ou sem útero, mulheres daqui e de acolá, mulheres de todos os tipos e feitios. Existem tantas histórias por contar que ainda estamos por revelar de quantas gentes esta luta pertence. Pertence a muitas e a muitos também.

Na sexta-feira, se não soubesse que dia era, as flores que as mulheres trazem denunciariam a data. As flores são um lindo gesto que nem sei de onde veio, nem sei quem é que todos os anos continua a tradição. Mas as flores morrem rapidamente, não conseguem produzir mudança, nem conseguem sustentá-la. As flores são efémeras, mas o dia 8 de Março tem que ser para sempre.

13 Mar 2019

Sistema Jurídico Integrado II

[dropcap]A[/dropcap] semana passada analisámos alguns dos principais pontos das “Linhas Gerais para o Desenvolvimento de Guangdong, Hong Kong e Macau”. No documento são apontados os vectores de desenvolvimentos das quatro cidades principais, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau. Hong Kong é o centro financeiro e comercial, centro de exportação e o principal polo de tráfego aéreo da região. Precisa de desenvolver os negócios que fazem movimentar o Renminbi. Deve também aperfeiçoar o funcionamento do Centro Internacional de Gestão de Valores e do Centro de Gestão de Risco, e ainda construir um Centro Internacional de Mediação para a Resolução de Disputas Jurídicas na região Ásia-Pacífico. Desta forma, Hong Kong tornar-se-á uma metrópole competitiva a nível internacional. Macau é um centro internacional de turismo e lazer e uma plataforma para a cooperação comercial entre a China e os países e língua portuguesa. Macau será uma base para o intercâmbio e a cooperação, guiado pelos valores da cultura chinesa, mas num ambiente multi-cultural.

Uma das mais valias de Hong Kong é o Centro Internacional de Resolução de Disputas Jurídicas na região Ásia-Pacífico. Acredita-se que a realização deste ideal de cooperação, será a criação de um escritório de advogados com sócios oriundos de Guangdong, de Hong Kong e de Macau. Até agora, em Hong Kong, um advogado de outra região só pode trabalhar em casos originários da zona onde tem licença para exercer. Ao avançar para um sistema jurídico mais integrado, um advogado que tenha obtido a licença numa destas três cidades pode exercer livremente em qualquer uma das outras, sem qualquer limitação. Por outro lado, a criação de escritórios conjuntos, com sócios vindos das diversas zonas, origina uma complementaridade de competências e uma maior interacção jurídica.

Mas este intercâmbio vai ter implicações ao nível dos impostos. No passado dia 1, no 2º Encontro do Grupo para a Construção do Distrito de Guangdong, Hong Kong e Macau, a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, afirmou que os residentes de Hong Kong e de Macau, que trabalhem na Província de Guangdong, podem ser subsidiados por esta Província para o pagamento de impostos. Estes subsídios serão atríbuidos apenas a pessoal altamente especializado, cuja presença na zona seja indispensável.

Além disso, a política praticada em Qianhai e em Hengqin, para subsidiar os trabalhadores altamente especializados, passará a vigorar nas nove cidades que integram a Área da Grande Baía. Esta medida deve-se à vontade do Governo local de atrair talentos, estando por isso disposto a compensar a carga fiscal resultante do trabalho em dois sítios diferentes.

Se um destes profissionais, vindo de Hong Kong, de Macau ou de outra cidade, trabalhar na China continental mais do que 183 dias por ano, precisa de pagar impostos localmente.

As políticas fiscais anunciadas no 2º Encontro do Grupo para a Construção do Distrito de Guangdong, Hong Kong e Macau, vão no sentido de conservar os diferentes sistemas fiscais de cada uma das cidades, mas, para apoiar o desenvolvimento da Área da Grande Baía, serão implementados ajustes nos diferentes sistemas de impostos. Sob esta perspectiva, podemos verificar que a Área da Grande Baía é um plano holístico orquestrado pela China. Este mega Distrito não vai destruir os sistemas de cada província, nem das regiões administrativas especiais. Ao contrário, vai conectar os diversos sistemas e torná-los mais eficazes. É um projecto entusiasmante.

Com a inclusão de Hong Kong e de Macau na Área da Grande Baía, a integração das leis é inevitável. No entanto, é preciso salientar que na China continental vigora um sistema jurídico de cariz socialista, em Hong Kong o sistema da Common Law, e em Macau o sistema da Civil Law. Os sistemas da China continental e de Macau são relativamente semelhantes, mas o de Hong Kong apresenta grandes incompatibilidades. Como é que a integração vai ser possível?

Este mega Distrito, também conhecido como Distrito de Dawan, inclui cidades que não distam entre si mais do que uma hora de viagem. Uma pessoa que trabalhe em Hong Kong, pode viver em Shenzhen ou em Zhongshan. Da mesma forma, alguém que trabalhe em Macau pode morar em Zhongshan. Também vai ser fácil ir de carro, ou de autocarro, de Macau para Hong Kong e vice-versa. O intercâmbio de pessoas trará inevitavelmente a integração da legislação civil e comercial. A legislação civil e comercial inclui a Lei da Família, a Lei da Sucessão, a Lei Comercial, a Lei Empresarial, etc. E estas são, precisamente, as leis mais determinantes na vida do dia a dia. A integração desta legislação vai certamente facilitar a vida e o trabalho na Área da Grande Baía. A integração da legislação civil e comercial é o primeiro passo no sentido da integração jurídica da Área da Grande Baía. Mas, devido às diferenças dos vários sistemas, este passo terá de ser dado através de alguns acordos. Há algum tempo atrás, celebrou-se um CEPA (Closer Economic Partnership Arrangement) para a criação de uma relação comercial de maior proximidade entre a China continental, Hong Kong e Macau. Este tipo de acordo é uma das melhores referências. O CEPA é a melhor forma de implementar futuramente a integração na área de Grande Baía.

É previsível que o segundo passo para a integração passe pela fusão de Lei Criminal. Hong Kong está em processo de revisão da sua lei de extradição. O motivo imediato desta revisão foi o crime praticado em Taiwan por um residente de Hong Kong. As emendas a esta lei permitirão extraditar pessoas entre a China continental, Hong Kong e Macau. Se houver um ajuste na legislação da China continental e de Macau, a extradição entre estes locais vai deixar de ser um problema.

A integração da legislação na Área da Grande Baía é uma questão complexa. Envolve três jurisdições diferentes. Precisamos de apelar à nossa sabedoria jurídica para resolver os problemas.

12 Mar 2019

A olvidada paisagem sonora

[dropcap]S[/dropcap]e fechar os olhos por um momento e escutar o espaço que me rodeia dou conta que da minha cadeira, ouço a agitação rítmica do ciclo de centrifugação da máquina de lavar, abafada apenas levemente por uma porta fechada. Na sala ao lado, ouço uma melodia cadenciada de bandolim. Ainda mais longe, a sugestão de um zumbido baixo, como o de um raro jacto cruzando o céu, que me faz lembrar a presença do frigorífico no espaço contíguo à cozinha. Se eu me concentrar mais, posso ouvir o gemido distante de sopradores de folhas na rua, embora o que poderiam estar a soprar no meio do inverno esteja além de mim.

E ao lado do “click clack” da minha digitação, ao enviar estas palavras à página, está o ronronar de um disco rígido externo, um som reconfortante da era digital. Estes são os sons da minha e da nossa vida diária. Os sons possuem muitas universalizações compartilhadas pelos povos do mundo como lembretes sonoros de electricidade, canalização interna e motor de combustão. No entanto, são simultaneamente e totalmente exclusivos do local onde ocorrem e podem incluir o clamor longínquo de um raro galo ou um chamado árabe à oração. Ao ler a passagem acima, provavelmente ouviu os sons descritos na sua mente, em um processo chamado de audição.

Ainda que a minha audição possa ser diferente de outra pessoa, a imagem sonora mental vívida ilustra o poder do som como meio de comunicação. Pode transmitir significado, emoção, memória e factos por meio de linguagem, música e gravações. O som, quando entendido como um ambiente, é uma paisagem sonora; uma ferramenta poderosa que ajuda os seres humanos a se relacionarem com o ambiente. Os sons podem ser conscientemente projectados por um indivíduo ou grupo de indivíduos, ou o subproduto de circunstâncias históricas, políticas e culturais. Podem ser composições musicais, gravações de campo antropológicas etnográficas ou de uma floresta tropical tomadas por um ecologista, ou ainda imaginações de um projectista de som/historiador ruminando os sons do passado.

As paisagens sonoras definem comunidades e os seus limites, actores, complexidades geográficas e indústrias. Os sons surgem através das interacções entre forças externas e internas dentro de uma comunidade. O que torna a paisagem sonora de um lugar diferente de qualquer outro local no mundo são as marcas sonoras. A marca sonora da nossa casa pode ser uma pequena fonte borbulhando no canto da sala de estar, ou o tilintar de um carrilhão de vento no seu quintal, se o urbanismo tresloucado ainda o permitir. Por certo gosta desses sons porque o fazem sentir-se de alguma forma feliz, e coloram a impressão de todos os outros sobre o ambiente sonoro do seu espaço pessoal. A marca sonora do local onde mora pode ser a piscina local, quiçá metida no meio dos arranha-céus dos prédios que constituem as edificações da utilização de um lote urbano, pensado para engaiolar gente que não merece ter o mínimo de qualidade de vida, com o som de salpicos e gente rindo dominando a paisagem sonora, sempre que a temperatura sobe acima dos vinte e cinco graus centígrados.

Mas durante os Outonos e Invernos que se misturaram selvaticamente com as outras estações, por força das alterações climáticas que os seres humanos irresponsavelmente tiveram a ousadia de atiçar, talvez a paisagem sonora da sua cidade seja dominada pela marca sonora do fole diário dos apitos e ronronar de motores de carros e motociclos, altamente causadores das maiores poluições atmosféricas e sonoras que o mundo conhece e que a boas e más governanças nacionais não querem ou não podem resolver. Talvez tenha adicionado a fonte e o som do vento na sua casa se não viver enjaulado para combater a estética desagradável desses sons, pois criamos a nossa paisagem sonora em diálogo com a comunidade e como sua reacção. Tais escolhas iluminam aspectos da nossa sensibilidade estética e formação pessoal e cultural.

A resposta do vizinho ao som que medido virou ruído, pode ser cultivar um jardim atraente para os pássaros na marquise improvisada da minúscula varanda, de modo que a nossa paisagem sonora pessoal fosse constantemente preenchida com o canto dos pássaros. Todos os membros da comunidade podem ter reacções individuais à paisagem sonora, e o contraste entre a paisagem sonora aos níveis micro e macro, ajuda a pintar uma imagem da composição diversificada de uma comunidade. Este é o poder da paisagem sonora. Se fecharmos os olhos novamente, podemos imaginar um espaço que não seja diferente do descrito e o ronronar baixo do frigorífico lentamente desaparece e o gemido distante do soprador de folhas foi substituído pelos cascos rítmicos dos cavalos.

O ciclo de centrifugação da máquina de lavar roupa foi substituído por roupas batendo em um estendal no quintal. Escutamos passos barulhentos e o rangido de um cesto de vime pressionado contra um corpo. É mais fácil ouvir o seu batimento cardíaco, respiração, suspiros ecoando e o vento assobiando pelas rachaduras na janela. É uma paisagem sonora de um tempo passado. Esta poderia ser a paisagem sonora de uma casa do século XIX, até mesmo de uma casa singular do século XX. Em um contexto ambiental, a paisagem sonora ajuda-nos a entender a ecologia acústica de um lugar.

A floresta repleta de muitos tipos de pássaros e outras actividades animais indicaria um ecossistema saudável, diversificado e resiliente. Por outro lado, um ecossistema dominado por uma única fonte sonora, como o canto da cigarra, ilustra uma possível falta de diversidade e resiliência. Quanto mais resiliente for um ambiente, maior será a sua capacidade de resistir a um distúrbio significativo sem danos e mudanças irreparáveis. Também são importantes as maneiras pelas quais os sons interagem entre si. A hipótese do “nicho acústico” desenvolvido por Bernard Krause, músico americano e ecologista de paisagem sonora, que afirma que todos os organismos ocupam uma faixa de frequência funcionalmente específica dentro de um ecossistema. Por exemplo, se em um pasto houver grilos e pássaros, a chamada de críquete estará em uma faixa de frequência diferente ou ocorrerá em um horário distinto do canto dos pássaros, de modo que cada grupo de comunicação dos organismos sobreviva, tais como chamadas de emparelhamento, podem ser mais facilmente ouvidas.

Os ruídos conflituantes decorrentes da actividade humana forçam os organismos a alterar o seu comportamento para se adaptarem a novas frequências, como o tráfego automóvel e os nichos acústicos nítidos tornam-se confusos, à medida que os modos naturais de comunicação dos organismos se tornam ineficazes face às mudanças, comprometendo a aptidão e a sobrevivência das espécies. As comunidades humanas não são diferentes. A distinção entre as facetas sónicas das comunidades é cada vez mais difícil de discernir no nível superficial. Muito parecido com uma nota à cigarra, é o clamor da música pop ocidental em restaurantes e táxis que dominam as paisagens sonoras de todo o mundo.

É de considerar que milhares de quilómetros quadrados da floresta tropical brasileira deram lugar a herdades de gado e pastagens, trazendo consigo paisagens e marcas sonoras completamente novas. No entanto, mesmo entre essa mudança, é importante lembrar que, sob a superfície aparentemente homogénea, ainda existem ricos recantos culturais na forma de música de fundo, narrativa e industrial. Tudo isso requer uma pequena amplificação para ser ouvida. A experiência humana é altamente sonora e como uma das propriedades centrais do som é sua efemeridade, não perdura muito além da sua produção, e até mesmo uma gravação é apenas uma representação subjectiva da realidade, fácil de esquecer, embora seja um dos nossos principais sentidos.

É fundamental que não nos esqueçamos do som, por causa do seu papel decididamente cultural dentro da nossa ecologia acústica. Lembrar os sons do passado pode-nos fornecer indícios da evolução de uma comunidade, proporcionando às pessoas as ferramentas para olhar o futuro. Uma comunidade costeira pode mobilizar as memórias dos sons do martelo em madeira de um estaleiro, como uma força motriz para revitalizar uma indústria. A promoção da diversidade cultural global ajuda a incutir nas pessoas um senso de lugar e pertença.

Os sons dão-nos uma representação do mundo ao nosso redor tão vívido e evocativo das paisagens visuais que competem pela nossa atenção. A geografia preocupou-se sempre e principalmente com a compreensão do mundo através de termos inerentemente visuais. As obsessões geográficas com mapas e cartografia, actividade que tem sido intrinsecamente ligada à conquista e construção de impérios, dependiam muito do olhar visual para quantificar, entender e, finalmente, ordenar o mundo. O mundo foi estruturado a partir de uma perspectiva ocidental e foi o resultado pretendido e não uma consequência imprevista. As estreitas ligações que a geografia compartilha com os militares continuam na actualidade, e quem viu a magistral peça de teatro “Translations” do dramaturgo irlandês Brian Friel, escrita em 1980, tem a noção de que é uma peça apenas sobre linguagem, mas lida com uma ampla gama de conteúdos, que se estende da linguagem e comunicação à história irlandesa e ao imperialismo cultural. As relações uniram-se durante o período em que a peça é adaptada, e foi a primeira pesquisa completa em qualquer país do mundo.

O mapeamento, limites e o controlo definem essa actividade, e o visual foi usado para o codificar e validar. O papel desempenhado pelos sons na paisagem, pelo contrário, só recentemente começou a receber a atenção que merece. Assim como as pistas visuais, os sons combinam-se para formar sistemas de significado que podem servir para transmitir, reificar, desafiar ou reinventar simultaneamente normas e valores socioculturais. O termo paisagem sonora está a começar a desafiar o domínio da paisagem na escrita geográfica e no pensamento. As paisagens sonoras são o som entendido como um ambiente. Se alguém fechar os olhos, se estiver de pé na beira de uma rua movimentada ou sentado em uma mesa de um escritório, o fluxo de barulhos concorrentes orienta o ouvinte ao seu ambiente imediato da mesma forma que as dicas visuais o fazem.

Se o fizer por tempo suficiente, os sons começarão a assumir ressonâncias espaciais maiores à medida que o ouvinte distingue as distâncias dos ruídos individuais, o nível de ameaça que o objecto que os produz, ou os tipos de respostas emocionais que provocam e tudo se combina, para nos dar uma representação do mundo ao nosso redor, tão vívida e evocativa das paisagens visuais que competem pela nossa atenção. O poder dos sons afecta-nos de várias maneiras. Só se tem que assistir a uma cena de um filme de terror, com o volume baixo para se aperceber de uma diferença na nossa percepção do que pode ser uma ameaça. Uma figura sombria que se aproxima da tela, geralmente, não parece tão ameaçadora sem as pistas de áudio que sinalizam o perigo.

As paisagens sonoras e as marcas sonoras que os compõem contribuem e informam os conhecimentos que experimentamos ao longo da vida. Por exemplo, os povos aborígenes australianos usavam mapas mentais audiovisuais, esboçados em sons através de canções que ajudavam os iniciados a navegar pelo vasto continente australiano. Cantando versos na sequência correcta, foram capazes de usar marcadores visuais identificáveis ​​na paisagem, como rios ou cordilheiras, para observar quais as áreas seguras para viajar.

Ainda que sejam mais frequentemente ignorados até desaparecerem, as marcas de som em uma paisagem sonora são tão importantes quantos os pontos de referência visuais para identificar ou lembrar um lugar. Os cantos icónicos das cigarras evocam imagens de um verão japonês para os ouvintes que lá passaram. O cinema japonês abunda com esses cantos, especialmente quando retrata uma cena de verão. O codornizão, na Irlanda, foi a omnipresente ave campestre de verão que se encontrava em todo o país. O seu canto, agora ausente e em perigo de extinção na Irlanda, excepto em algumas concavidades vulneráveis ​​ao longo dos rios, costumava ocupar um espaço semelhante no folclore irlandês como a cigarra no Japão.

As ligações muito próximas que os sons têm em contextos específicos de tempo e lugar, tornaram-se um crescente campo de interesse em todas as disciplinas desde a década de 1940. Os estudiosos de música, antropologia, cinema e ecologia reconheceram a importância cultural e ecológica do som em ambientes humanos e naturais. É de recordar que Bernard Krause tem vindo a coleccionar gravações do mundo natural desde 1968. Nesse período, demonstrou como os ambientes naturais são profundamente afectados pelos seres humanos, mesmo quando realizam actividades relativamente ecológicas em uma determinada área, e no seu livro “Great Animal Orchestra”, descreve algumas das paisagens sonoras bioacústicas mais atraentes do planeta, e como podem ter ajudado a contribuir para o desenvolvimento da música e da fala humana.

O músico e ecologista americano divide os sons em três categorias, que são a biofania (sons feitos por animais e plantas); geofania (sons naturais como os produzidos pelo vento e chuva) e antropania (ruídos induzidos pelo homem que impactam desproporcionalmente os ecossistemas que os sofrem) e formula a hipótese de que, quanto mais saudável e estável for o habitat, maior a complexidade e o alcance da musicalidade expressa pelas criaturas que o ocupam. Essencialmente, reduções na biodiversidade levam à desertificação do sinal de acústica de um habitat.

O livro de Bernard Krause fornece um exemplo de uma floresta antiga no oeste dos Estados Unidos, onde registou a biofania da área antes e depois da extracção selectiva de madeira. O entendimento convencional, sugeriu que as práticas de exploração selectiva teriam um impacto mínimo sobre a biodiversidade da floresta, especialmente quando comparadas ao desmatamento que geralmente ocorre. Quanto mais saudável e estável for o habitat, maior será a complexidade e variedade de musicalidade expressas pelas criaturas que o ocupam. Mas através das suas gravações, Bernard Krause foi capaz de demonstrar que a paisagem sonora bioacústica tinha mudado dramaticamente, embora a floresta parecesse ser intocada em termos visuais.

O impacto real da exploração madeireira, mesmo práticas ambientalmente sensíveis, como neste caso, só pode realmente ser entendido medindo-se a paisagem sonora. Com efeito, a sinalética bioacústica foi devastada após a extracção tendo sido registada a ausência da maioria das espécies de pássaros e insectos capturados durante a primeira gravação. É de considerar que vivemos uma era de extinção em massa de espécies animais e compreender a importância da paisagem sonora de um habitat como um indicador de um bioma saudável é profundamente importante, especialmente se fizermos uma tentativa realista de verificar o colapso da biodiversidade.

11 Mar 2019

Infantilidade

[dropcap]M[/dropcap]acau tem todas as idades. É velha, cheia de fantasmas, com um passado sofrido. Debaixo das suas ruas acumulam-se séculos em camadas geológicas de vidas perdidas e pirataria. É maior e vacinada, aglomera todos os vícios oferecidos pelo mafarrico e vende todos os pecados capitais que o capital consegue comprar. É uma cidade calejada pela violência, palco de sucessivas gerações de piratas, ladrões, corruptos e poetas, porto de abrigo para desesperados, berço confortável de tríades várias, local onde a lei é apenas um slogan que vende uma realidade pintada a rosa por cima de um mar de cinzas. Ao mesmo tempo, Macau é uma criança renovada a cada passo, em crescimento disforme e com dentes de leite a despontar de uma velha e seca gengiva. É uma cidade que vive em perpétua idade da inocência.

A primeira manifestação de infantilidade que salta à vista para quem acaba de cá chegar é a publicidade institucional. O poder fala com o povo como a Ana Malhoa se dirigia ao público do Buéréré, com um aberto e sorridente “olá, amiguinhos”.

Seja qual for o departamento do Governo, usa-se um tom adequado para comunicar com uma criança de seis anos, sempre com cores vivas, desenhos animados, banda sonora a evocar memórias de Teletubbies e um sentimento grotesco de Terra do Nunca com um design que, ironicamente, faz lembrar os sanguinários “cartoons” de Joan Cornellà. Em Macau, o complexo de Peter Pan é uma política basilar.

Por exemplo, se a mensagem for a divulgação de uma linha telefónica para receber informações sobre a perigosidade de um destino de férias, as imagens são um desenho animado, como é óbvio. A publicidade institucional que tenho em mente retrata aquilo que só pode ser interpretado como um menino a fazer turismo, de máquina fotográfica em riste, num cenário de guerra ao estilo da Síria. Entre duas fotos, aparece um tanque de guerra que dispara contra o menino. O resultado não é morte, vísceras de fora e o horror consequência da guerra, algo que também seria completamente despropositado mostrar num anúncio de alerta. Em vez disso, o incauto turista fica com a cara tisnada de fuligem, cabelo de pé a fumegar e um ar confuso de quem esperava morrer depois de levar com munição de tanque.

As forças de segurança ganham o óscar para melhor filme de animação, com vários exemplos de assuntos sérios e aterradores retratados como um episódio da Rua Sésamo. Do pequeno furto de carteiristas em autocarros até à ameaça de terrorismo, os prevaricadores têm sempre o aspecto de um Playmobil sorridente. Apetece pegar no Playmobil que se assemelha ao Bin Laden e pô-lo a jogar à bola com o Rato Mickey, ou numa festa de chá com a Barbie. Será que ainda assim, o terrorista animado iria detonar os palitos de dinamite atados a laço com um relógio em cima?

Por um imperativo de falta de pachorra e espaço de página abstenho-me de elencar mais exemplos de como o poder fala com os residentes com cutchicutchis e apertões nas bochechas. Quem é o residente mais lindo, em conformidade com a harmoniazinha fofa do papá?! Quem é, quem é? É tu!

Uma fórmula semelhante é usada na ligação entre Governo e comunicação social. Nos discursos oficiais, somos sempre representados como os melhores amigos, camaradas do peito que andaram na escola e que já choraram no ombro um do outro. Depois, no quotidiano, quando buscamos informação que descodifiquem a realidade, somos empatados ou, simplesmente, atiram-nos com uma resposta que pouca relação tem com a pergunta. Mas o pior mesmo é repetirem, até à náusea, que a função do jornalismo é transmitir as mensagens do Governo, ser o seu megafone, com a missão lateral de fazer sugestões de governação. É possível que o livro oficial do Executivo e a sua filosofia central seja “O Segredo”. Parece que ao poder basta pensamento positivo e desejar muito que a realidade se adeque aos seus desígnios em vez do contrário.

11 Mar 2019

Sem racionalidade não há segurança rodoviária

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 1 de Março, na Av. Marginal Flor de Lótus, ocorreu mais um acidente rodoviário que custou a vida a uma jovem de apenas 22 anos. Aparentemente, a motorizada em que aquela circulava foi embatida por uma carrinha que não respeitou o sinal de paragem obrigatória (stop) e a regra da prioridade que militava a favor da malograda motociclista.

 

Entretanto, tomei conhecimento de que por causa disso foi convocada uma manifestação para o dia 9 de Março, por parte de um conjunto de deputados, visando protestar contra o reconhecimento mútuo de cartas de condução entre a RAEM e a RPC. São coisas diferentes.

 

Não estando em causa o legítimo de exercício do direito de manifestação e indignação relativamente a essa decisão, nem o aproveitamento político que lhe possa estar subjacente, considero que seria importante voltar a reflectir sobre as razões para que num espaço tão pequeno como é Macau ocorram tantos acidentes e tão graves.

 

Começando por aqui, seria bom que se tivesse presente o quadro abaixo, elaborado a partir dos dados disponibilizados pelos Serviços de Estatística e Censos (DSEC), relativamente aos últimos anos:

 

 

* – Fonte: dados obtidos online na página da DSEC

 

Creio que o número total de vítimas da DSEC se refere a pessoas envolvidas quer em acidentes de viação quer em transgressões às leis de trânsito, visto que se não sendo o resultado a soma de feridos e mortos não se vê de onde vem tal número. Mas independentemente das dúvidas que possam resultar desse indicador, os números dos acidentes de viação, transgressões às leis do trânsito, de mortos e feridos seria mais do que suficiente para fazer soar todos os alarmes.

 

Há pouco mais de dois anos, neste mesmo jornal, deixei umas “Notas Rodoviárias” em que foram abordadas algumas questões atinentes a este assunto. Volto hoje ao tema.

 

O reconhecimento mútuo de cartas de condução entre a RAEM e a RPC, que de novo está na ordem do dia, é apenas uma ínfima parte de um problema maior. Esse reconhecimento poderá contribuir para um maior congestionamento do trânsito e um agravamento da actual situação, mas em nada ajuda a combater a atitude irresponsável de muitos condutores, sejam eles de automóveis ligeiros, motociclos ou pesados, públicos, de concessionários ou privados, e de peões.

 

Repare-se que condutores com carta de condução da RPC ou de qualquer outro país, e alguns até sem habilitação para a condução, já circulam pelas estradas de Macau sem dificuldades de maior, como se viu pelo acidente de 01/03/2019 e também já acontecera com um condutor do interior da RPC, com licença coreana, que em 31/01/2019 provocou um acidente por circular em contramão.

 

Portanto, o problema não está no reconhecimento mútuo. Com ele ou sem ele temos milhares de acidentes num território mais pequeno que uma herdade alentejana de produção de bovinos que há dias esteve na razão da assinatura de um acordo entre a CESL-ASIA e o Banco da China, numa cerimónia com o Secretário para a Economia e Finanças.

 

Quem circula pelas estradas da RAEM já se apercebeu da forma imponderada e à margem dos regulamentos como por aqui se conduz. A qualquer hora.

 

Não obstante o esforço feito pelas autoridades, continua a ser vulgar ver circular nas pontes veículos pesados na via de circulação mais à direita. Não só veículos pesados. Muitos automóveis ligeiros, motociclos e ciclomotores também circulam encostados à direita da faixa de rodagem, ainda quando o lado esquerdo se encontra desimpedido. O mesmo acontece fora das pontes em qualquer faixa de rodagem que tenha mais do que uma via no mesmo sentido (Istmo de Coloane, novas avenidas do Cotai). Por vezes vão pela via central. E isso acontece quer com condutores profissionais, quer com amadores, residentes ou não-residentes, e até com veículos ao serviço de entidades oficiais.

 

Resumindo o que diariamente vejo na estrada, diria que se faz o possível para não se parar nas passadeiras, sendo que os piores são os condutores de veículos com dupla matrícula. Por outro lado, fazem-se tangentes aos peões nas passadeiras, havendo peões que se atiram literalmente para as zebras, outros atravessam o Cotai passando por cima dos canteiros centrais, saltam vedações, colocam em risco a sua segurança e a de quem circula. Vêem-se inversões de marcha nos locais mais inacreditáveis, por vezes com circulação em contramão, como na Estrada de Seac Pai Van, junto à gasolineira, e nas imediações da Urbanização One Oasis. Muda-se de direcção e pára-se de repente sem se sinalizar a manobra, apenas para se conversar com outro condutor (caso dos táxis) ou falar ao telemóvel, ignorando-se a existência dos sinais luminosos e dos outros que circulam. Há ainda quem faça inversão de marcha e aborde cruzamentos esquecendo que as regras da prioridade aqui não são iguais às da RPC, e os que conduzindo autocarros param a meio das rotundas e em vias com prioridade para deixarem entrar os colegas, perturbando a circulação e obrigando a parar quem não tem que parar.

 

Há, por isso, necessidade do Governo da RAEM, designadamente através das Secretarias para os Transportes e Obras Públicas e da Segurança, apostar numa melhor formação de condutores e de peões, desencadeando acções de natureza pedagógica. Numa primeira fase recorrendo a campanhas de sensibilização, com especial incidência sobre os condutores que vêm do interior da China, que pensam que em Macau as regras são as mesmas, razão pela qual circulam sistematicamente pela direita e violam prioridades, bem como sobre os motoristas de táxi, condutores de autocarros e instrutores de condução. Será seguramente mais económico e fácil distribuir panfletos em chinês nas fronteiras a quem se dirige à RAEM, ou levar a efeito campanhas na rádio e na televisão, do que pagar indemnizações e acudir a quem perde os seus entes queridos ou os vê ficarem incapacitados para a vida. Essas acções pedagógicas devem abranger polícias com responsabilidade no trânsito, que deviam ser os primeiros a dar o exemplo na circulação pela esquerda e no uso de sinais luminosos. Depois, num segundo momento, será necessário autuar forte e feio, mobilizando mais agentes para a estrada do que para a verificação de parquímetros, onde até hoje ninguém morreu ou ficou marcado para o resto da vida.

 

Estas acções devem ser acompanhadas de uma melhoria das condições de circulação estradal, designadamente junto às bermas, nivelando-se as tampas, tapando buracos que dão cabo de jantes, pneus e suspensões, melhorando o alcatrão, em suma, introduzindo-se racionalidade e programação adequada nas intervenções nas vias públicas. Não é por se impedir as inversões de marcha no Cotai ou não se reconhecer as cartas da RPC que o problema se resolve e os números melhorarão.

 

Não havendo uma cultura rodoviária e pedonal de respeito pelos outros e de cumprimento da lei, com mais ou menos manifestações por causa das cartas de condução, apesar dos limites de velocidade baixíssimos, continuará tudo na mesma. A segurança na estrada não pode ser uma arma política. A insegurança rodoviária já está cá dentro há muito tempo, não vai ser agora importada. Exijam-se as medidas adequadas ao Chefe do Executivo e ao Governo da RAEM.

8 Mar 2019