Da coragem

[dropcap]O[/dropcap] que é ter coragem? O medo de ter medo? Uma reacção determinada biologicamente (fugir ou lutar)? E para que servirá agora?

A coragem aplica-se apenas a momentos grandiosos ou pode servir para o dia a dia? Não significa necessariamente desobedecer ou ir contra as circunstâncias – apenas uma fidelidade a algo a que não podemos fugir e que de repente se torna irreversível e urgente. Não existe um determinismo biológico em quem se lança para o meio das chamas para salvar um desconhecido, por exemplo. Do combatente heroico ao salvador voluntário que se lança para o perigo sem motivo nem conhecimento, passando pelo indivíduo que levanta a voz contra o que não deveria dizer a razão, a causa, parece-me, é igual: uma lealdade ao que se é, sem fugas e levada ao extremo. As viagens a regiões inóspitas, as lutas contra o que se acha injusto, alguém que confronta os seus para afirmar o que é.

Sim, vou dizer outra vez a palavra que me parece que tudo reúne: honra. Ao que parece a palavra assusta por si só. Julgam-na anacrónica, medieva, gasta. A sua etimologia remete para o latim honos, que entre outras coisas significa dignidade. Não me surpreende, infelizmente, que haja poucos a praticá-la ou até a louvá-la.

Pela minha parte lamento. É um atributo que vejo desaparecer em tudo o que é relação humana, com maior gravidade quando diz respeito a quem é mandatado para tomar decisões públicas. A honra é a verdadeira coragem. O que nos faz superar o que achamos que somos pelo bem do outro. A coragem nunca será solitária porque sempre reportará a alguém. Se ficar no espelho é vaidade e fanfarronice.

A coragem não é ter: tantas vezes é desistir, o que a pode expor ao que se julga que a opõe: a cobardia. Deixar ir o que se amou ou acreditou sem luta ou resistência está em muitas ocasiões na vontade de um bem maior que no limite terá de prescindir de nós para acontecer, por mais sofrimento que isso nos possa causar.
Estes dias, mais do que outros, lembram-nos que a grande coragem começa pela simples existência. O que torna a urgência de nos honrarmos – a nós e aos outros – ainda maior. Que não nos faltem as forças.

3 Nov 2020

A Fábula do Humano e do Tigre

[dropcap]E[/dropcap]m Um Tigre À Porta Da Sé, Mónia Camacho começa a sua narrativa contrariando o ponto de vista usual em que nos encontramos. Maria Al-Malik, princesa de Marrocos, chega à Estação de Campanhã e quer fazer daquele espaço a sua residência. Logo de imediato, o Chefe da Estação diz: «Minha senhora, isto é uma estação de comboios… […] Isto é um sítio onde se chega e de onde se parte. Não é para ficar. Percebe?» (p. 11) É também este o argumento que Heidegger dá para que o tédio de primeira forma se instale em nós. O exemplo de Heidegger, contudo, refere uma situação do nosso quotidiano e não uma situação inusitada como aquela com que Camacho começa a sua narrativa: chegar 5 minutos atrasado ao comboio e o próximo terá lugar várias horas depois. O tédio instala-se precisamente porque estamos num lugar que não era para estarmos, isto é, para ser mais preciso, o lugar onde estamos não é um lugar para se estar, mas um lugar para chegar e partir. Por conseguinte, as horas seguintes, de espera do próximo comboio vai fazer com que o tédio se instale.

O que Mónia Camacho nos mostra com este exemplo da estação de comboios é que uma narrativa começa precisamente por um dar-se conta da ruptura com o nosso ponto de vista usual. Sem esta ruptura não haveria escrita, pois ela pretende iluminar os espaços, ou de incompreensão ou inusitados, daquilo que se apresenta, que tanto pode ser a nossa vida quanto uma situação que acontece no mundo, como é o caso de uma princesa de Marrocos ir instalar-se na Estação de Campanhã: «Esta será a minha casa até ser recebida pelo senhor Ministro.» (10) Perante esta perplexidade, de alguém a querer instalar-se na estação de comboios, o Chefe da Estação não sabe o que fazer e chama a polícia e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A situação, apesar de inusitada, só tem capacidade narrativa porque a pessoa em questão é uma princesa de Marrocos e muito conhecida em Portugal. De tal modo que, quando o agente da polícia chega «Ficou sem saber se pedia um autógrafo ou a identificação. Na verdade, sabia bem quem ela era: uma espécie de “Madona” moura.» (12) Assim, logo desde o início da narrativa somos convocados para aceitar uma situação inusitada.

Evidentemente, dar-se conta de uma ruptura com o nosso ponto de vista usual não é o mesmo que apresentar logo de início uma situação inusitada. Aqui tornam-se uma e a mesma coisa, porque aquilo que leva à situação inusitada do início do livro conecta-se com o que produz a ruptura com o nosso ponto de vista usual: tornar-se outro. A heroína de Um Tigre Às Portas Da Sé pretende deixar de ser quem é para passar a ser outra pessoa. Leia-se, aquilo que ela responde ao polícia quando lhe pergunta se vem dar um concerto: «Venho ser daqui.» (12) Ou, mais adiante: «Esta é aquela vida em que vou ser portuguesa – disse em voz alta.» (20) Por conseguinte, estamos diante de uma espécie de conversão. Alguém que está prestes a deixar de ser quem é para passar a ser outra pessoa. E, como é comum em todas as conversões, aquele que se converte – que passa a ser outro – começa a ver o seu passado como um peso morto, como algo que o afastou de ter sido quem é, mais cedo. A meio do livro, perante a pergunta – «Mas, afinal, o que precisa de ser perdoado?» (26) – do seu interlocutor, que pretende ser seu biógrafo, a princesa responde: «A minha vida inteira. É por isso que quero ser outra.» (26) Ou, adiante: «Às vezes, sinto que o tempo passou por mim sem me dar importância. Sem me conquistar.» (30)

Estamos, por conseguinte, perante uma narrativa de conversão, de alguém que se dá conta de que não quer mais ser quem é, que se desperdiçou, que desperdiçou a sua vida e quer recuperá-la, quer reconquistar-se. Assim, Um Tigre À Porta Da Sé é também um livro acerca de deixar de se ser, isto é, um livro que nos faz ver como podemos passar uma vida sendo outro que não nós, à nossa revelia, como se nunca chegássemos a ser quem somos ou como se pudéssemos deixar de ser quem somos através de uma espécie de desistência de nós mesmos. Que devemos entender por conversão? Leiam-se duas passagens da escritora às páginas 27 e 28-29: «Há sempre um momento “clic”; um momento revelação em que todas as peças se movem para o seu lugar.» (27) «Não precisava de mais nada: mudar o mundo. Todo, de preferência. Ou, pelo menos, a parte que importava, se conseguisse saber qual era. Era para isso que ali estava. Embora só agora se apercebesse.» Ou seja, a conversão, o tornar-se uma outra diferente da que tinha vindo a ser, dá-se naquele momento, como um «clic», como São Paulo na estrada de Damasco. A princesa dá-se conta de que a parte que importa mudar no mundo é ela.

Quem é esta mulher que quer ser quem até aqui não foi, que sente que em algum momento da sua vida desistiu dela? Somos nós. Mas se por um lado se trata de um livro ontológico, existencial, de alguém que procura por si mesmo e para isso precisa de deixar de ser quem sempre foi, essa ilusão de si, também se trata de um livro que aborda o problema da ética em geral e da ética da escrita em particular através da personagem Biógrafo. À página 15 opera-se uma alteração na narrativa ou, melhor seria dizer, a narrativa é acrescentada com a introdução de mais um elemento: o Biógrafo. Leia-se: «O Biógrafo ensaiava a melhor forma de dizer ao editor que não podia escrever o livro. Não queria ser infiel ao morto. Demasiados segredos. Cada fio que puxava ameaçava meia cidade. E a outra meia escapava por mero acaso. Um terramoto. E lisboa não poderia ter mais nenhum. Seria possível escrever a biografia de alguém que odiamos sem fugir à verdade? Alguém que, se não estivesse morto, mataríamos? […] Este trabalho estava a acabar com o bom senso que lhe restava. Não o devia ter aceitado. A burrice paga-se quando só se quer dinheiro. O problema era já ter gastado mais de metade do adiantamento que recebera.» (continua)

3 Nov 2020

Abandono

[dropcap]R[/dropcap]espiras e pões-te a caminhar. Embalam-te ventos e novas auroras, mas na realeza da vida há um mar que galga a costa das seguranças impostas e com passos hesitantes a tua rota treme e a Terra toda arqueja… Neste Hemisfério não supomos como o abismo nos olha, e como nós, os caminhantes, andamos no vento sem sustentação, e o medo de findar é um tormento, mas só finda quem não faz de si conforme o espírito da flor levado pela leveza dos seus polens.

Rodopiamos no asfalto como se fosse a nossa dança, e se nada lá estiver a tarde cala, e a noite sossega o corpo que cansado está em súplica pela porta do desaparecimento total. Absoluto, que amiúde desejamos sem retorno. Mas quando acorda, o corpo galga de uma estrela ainda andante, ferem-se-nos os flancos e a busca dos caminhos continua, sempre mais estreita- passada a Hora de ser erguido- começa-se a girar na roda mais fechada de um medo antigo.

A vida, essa, já não nos quer viver, os muros acontecem, tornam-se esguias catedrais, e tudo se ergue e se fecha ao redor ainda mais… Gastos os sentidos, sabe quem não vê, olhar agora o esgoto derretido é tristeza que não veleja quando se deseja o Abandono que consiste em atirar para o fundo do mar todos os remos. Não queremos ser os guias, nem guiar, nem ser guiados, apenas este instante dado, para não regressar ao tempo movido mas sempre parado.

Nascemos para nos dar, o que trajamos cobre a máscara mais audaz, e toda a inspecção se faz atrás de uma viseira vazia que as lágrimas já não podem alcançar, o vírus vira a ausência que nos habita, viemos de que coisa que não se sabe? E como chegar até nós na Hora Aflita?!

E não há nenhuma antevisão, nem o tempo se reveste de memória morta, nem os dias de antanho são agora este chão. Reneguemos os ídolos, os vencedores e os vencidos, a esteira do valor que cada um a si se dá, pois não cumprimos nenhum instante doutrinário e cada urgência nos amplia a sede de abandonar a orla desta praia sem costa alguma para onde voltar.

Saltámos da Roda e o tempo se desfez, mudados os desígnios, morre quem fôramos, e futuro inominado é tudo quanto agora somos. Há um ponto fixo, porém, à nossa espera, volvido na mudança- eixo astral- e tudo o que nos veste é claro acaso, este ser que morre em mim cruxificado é fresca nortada, um deserto conseguido…salvamo-nos ou não por estranhos caminhos, pois o “lugar do morto” será agora ao vosso lado, sempre que me sento num espaço fechado.

Agora todos dias são de abandono, para deixar os dias da vigília, quem vai embarca para o que tem guardado no seu mundo novo, que sendo enfim, feito de tudo o que a massa gera, não mais arrancará sombras onde só estamos à espera… Quem nada queira, nada saiba do que ficou, pois que o Abismo nos olha e é inútil fugir-lhe. Passá-lo, como a mais bela caminhada. Deus que está em mim não oprime esta viagem. Levar a alba lembrada que nós dormimos enquanto… E se no começo tudo tardou, a nossa marcha irromperá onde o longo embuste findou.

Unidade que só lembra outrora… que estando dentro de nós, em nós foi ficando de fora. E todos os espectros nos chamaram para núpcias e encontros, um Baile de máscaras montado nos confins galácticos deste escombro, uma antevisão do Inferno, tão cheio, que sobrou para alimento da esfera do meio.

Move e é movido quem se quer sem o eixo do recente mundo antigo. Que novo é o Amor, tão novo, que ainda não nasceu, começa sem nada e apenas se dá, morre esquecido e tenta voltar. Mas ele, para aqui não voltará. Os braços que se erguem estão sujeitos a abraçar coisas impensáveis, e nessas alturas os frágeis membros se abandonam, que braços asas são, e nesse encontro passam sempre os grandes braços que se dão.

2 Nov 2020

A encomenda de Yehudi Menuhin

[dropcap]N[/dropcap]os seus últimos anos de vida, depois de ter emigrado para os Estados Unidos e de desempenhar brevemente o cargo de professor nas universidades de Columbia e Harvard, Béla Bartók sofreu de problemas de saúde e de pobreza crescentes que as condições de exílio em tempo de guerra pouco ou nada podiam fazer para aliviar. O compositor faleceu em 1945 em circunstâncias difíceis, deixando um novo Concerto para Viola incompleto e o Terceiro Concerto para Piano quase concluído. Os anos na América, quaisquer que fossem as dificuldades que suscitaram, também deram origem a outras composições importantes, incluindo o Concerto para Orquestra, encomendado pela Fundação Koussevitzky, uma Sonata para Violino Solo para o famoso violinista Yehudi Menuhin, considerado um dos maiores violinistas do séc. XX e, no ano anterior à sua saída da Hungria, Contrastes, para o violinista húngaro Joseph Szigeti e o clarinetista de jazz norte americano Benny Goodman, conhecido como o “rei” do swing.

A Sonata para Violino Solo, em quatro andamentos, foi encomendada a Bartók por Yehudi Menuhin em Novembro de 1943, a quem foi dedicada e que fez a sua primeira apresentação em Nova Iorque no dia 26 de Novembro de 1944. Foi composta em Nova Iorque e em Ashville, na Carolina do Norte, onde Bartók se submeteu a tratamentos para a leucemia, e concluída em Março de 1944. É um trabalho tremendamente desafiador, exigindo muito do intérprete e do ouvinte.

O primeiro andamento, marcado Tempo di ciaccona, é essencialmente um andamento na forma-sonata, com algo do carácter de uma chacona – ou seja que utiliza a forma musical baseada na variação de uma pequena progressão harmónica repetida -, mas não a sua forma. O acorde de abertura pode sugerir a Sonata em Sol menor de Bach para violino solo, embora o que se segue seja muito diferente, com a sua exploração de intervalos geralmente associados à música folclórica húngara e exploração das possibilidades variadas do instrumento.

O segundo andamento, Fuga, começa com uma fuga de quatro vozes numa melodia pulsante em staccato mas não é uma fuga estrita, pois o sujeito sofre modificações e episódios introduzem novos materiais.

O terceiro andamento, Melodia, começa com uma melodia lírica, enunciada isoladamente e em todos os diferentes registos do instrumento. Prossegue em sextas, oitavas e décimas, acompanhado por trilos e tremolos.

O último andamento, Presto, alterna entre uma passagem muito silenciosa, rápida e semelhante a um abelhão, tocada em surdina, e uma melodia alegre. Três temas contrastantes aparecem ao longo deste andamento, os quais reaparecem todos na coda final.

A Sonata apresenta muitas dificuldades aos violinistas e usa toda a gama de técnicas de violino: várias notas tocadas simultaneamente (cordas duplas múltiplas), harmonias artificiais, pizzicato para a mão esquerda executado simultaneamente com uma melodia tocada com o arco e grandes saltos entre as notas.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Sonata for Violin Solo, Sz. 117
Gidon Kremer, violin – EMI Classics, 2009
2 Nov 2020

The Laowai fever

[dropcap]D[/dropcap]avid trabalhava num gabinete de arquitetura na Califórnia mas decidiu trocar a terra da liberdade por outro tipo de liberdade mais individual numa terra menos livre. Como quem troca o bom tempo californiano por um frio seco na esperança de, mesmo assim, se vir a sentir mais quente. Após um divórcio doloroso, deixou as duas filhas adolescentes com a mãe por uns tempos e veio estabelecer-se em Pequim.

Costumava aparecer nos workshops bimensais de poesia que eu organizava com o Colectivo Artístico Spittoon. O homem de 43 anos vestia-se de forma sóbria, como quem estava habituado a trabalhar num escritório de arquitectos. Trazia sempre vários poemas para a devida sessão de análise, interpretação e crítica construtiva com o resto da comunidade literária que se juntava no internacional Zarah Café, na zona hip de Gulou. Eu seguia o David nas redes sociais mas não lhe era muito próxima. Os meses foram passando e o David começou a frequentar mais eventos sociais em Pequim, começou a praticar mais desporto – cross-fit, montanhismo, passeios conjuntos de bicicletas. Decidiu, a certa altura, criar a sua própria plataforma comunitária para encontros sociais com as mais variadas atividades entre os locais e os expatriados, estando ele no centro de toda a ação (e atenção). Faço scroll pelos momentos do Wechat. Vejo uma foto em que David tem o cabelo rapado dos lados e uma poupa punk pintada de verde. Veste apenas umas calças de desporto e um colete de pele. Faz o sinal V com os dedos e uma boquinha de peixe. Num dos vídeos está a rebolar por um monte e ouvem-se diversas vozes femininas com um inglês muito chinês a lembrarem-no do quão maluco e engraçado ele é. Riem-se, essencialmente. Filmam-no enquanto parece cair deliberadamente.

Noutro vídeo, David está a atravessar uma passadeira na zona de Gulou, movendo-se com as mãos enquanto eleva as pernas. David não é verdadeiramente o nome da pessoa que efetivamente conheci mas é definitivamente alguém real. David sofre de um dos fenómenos menos estudados na história da sociologia, tão pouco estudados que me permitem patentear o conceito altamente inovador na área. David sofre de “Laowai fever”.

Tal como o David, milhares de brancos ocidentais apanham esta patologia ao fim de alguns meses de China. Podem ser pessoas que se costumavam vestir na Zara mas que agora só compram roupa em lojas de moda coreana. Mulheres que subitamente só querem vestidos com folhos e canetas que cor-de-rosa iguais às que usavam na escola primária. Homens que não podem dispensar o fato de treino da Supreme e os óculos de massa grossa. Podem mesmo ser pessoas que, tal como muitos jovens chineses, decidem que preferiam ser coreanos, de uma maneira geral. Há muitas possibilidades. É uma passagem entre o normal para o excêntrico e este fenómeno psicológico, quase sociológico – porque de grupo – fascina-me. Há um processo mental que antecede a mudança drástica da forma de vestir, dos dedos em V e das selfies carinhas-de-peixe, mas esse processo é para mim, ainda, um enigma.

Para sistematizar a análise da mudança súbita de comportamento do “estranja” (laowai) teremos de partir de alguns pressupostos. O Laowai em questão quando chega à China parece ainda manter-se no estado em se encontrava e que antecede o rótulo de laowai. As transformações ocorrem gradualmente. Há várias hipóteses teóricas levantadas por curiosos observadores ao longo destes anos de abertura da China ao estrangeiro.

Depois de falar com alguns sujeitos do sexo masculino que se enquadram no perfil, cheguei à conclusão que estes se sentem “mais confiantes” desde que chegaram à China. “O nível de atenção que passamos a ter por parte do género feminino é uma grande influencia para melhorar os níveis de auto-estima.” diz um anónimo Laowai que entrevistei para este artigo. Mas será apenas o aumento de capital erótico proveniente do exotismo étnico justificação para tanta excentricidade? “Numa cidade com mais 20 milhões de habitantes, ninguém olha para ninguém. Há todo o tipo de pessoas. A mega metrópole faz-me sentir mais livre para ser quem realmente sou” – continuou. Uma espécime do género feminino afirmava, por sua vez “Gosto de me vestir como uma princesa. No ocidente, a mulher é muito sexualizada com roupas justas e decotadas”, “Não achas que a infantilização de uma mulher adulta é, também, uma forma se sexualização fetichista?” A esta questão ela não me respondeu. Lembrei-me de como os asiáticos eram, estatisticamente, os maiores fãs de Ariana Grande.

Será o choque cultural tão grande que deixa os estrangeiros confusos em relação à sua identidade? Será a solidão e o isolamento que os levam a criar dezenas de atividades? Será esta vida de expatriado um prolongamento da experiência Erasmus? Muitas perguntas, poucas respostas. Eu só vos aviso: o fenómeno está para ficar. Já o observo desde 2008. Quando eu voltar da China vestida de Sweet Gothic Lolita, não se surpreendam. É só uma pequena febre de alguém que vem de fora.

29 Out 2020

The Laowai fever

[dropcap]D[/dropcap]avid trabalhava num gabinete de arquitetura na Califórnia mas decidiu trocar a terra da liberdade por outro tipo de liberdade mais individual numa terra menos livre. Como quem troca o bom tempo californiano por um frio seco na esperança de, mesmo assim, se vir a sentir mais quente. Após um divórcio doloroso, deixou as duas filhas adolescentes com a mãe por uns tempos e veio estabelecer-se em Pequim.

Costumava aparecer nos workshops bimensais de poesia que eu organizava com o Colectivo Artístico Spittoon. O homem de 43 anos vestia-se de forma sóbria, como quem estava habituado a trabalhar num escritório de arquitectos. Trazia sempre vários poemas para a devida sessão de análise, interpretação e crítica construtiva com o resto da comunidade literária que se juntava no internacional Zarah Café, na zona hip de Gulou. Eu seguia o David nas redes sociais mas não lhe era muito próxima. Os meses foram passando e o David começou a frequentar mais eventos sociais em Pequim, começou a praticar mais desporto – cross-fit, montanhismo, passeios conjuntos de bicicletas. Decidiu, a certa altura, criar a sua própria plataforma comunitária para encontros sociais com as mais variadas atividades entre os locais e os expatriados, estando ele no centro de toda a ação (e atenção). Faço scroll pelos momentos do Wechat. Vejo uma foto em que David tem o cabelo rapado dos lados e uma poupa punk pintada de verde. Veste apenas umas calças de desporto e um colete de pele. Faz o sinal V com os dedos e uma boquinha de peixe. Num dos vídeos está a rebolar por um monte e ouvem-se diversas vozes femininas com um inglês muito chinês a lembrarem-no do quão maluco e engraçado ele é. Riem-se, essencialmente. Filmam-no enquanto parece cair deliberadamente.

Noutro vídeo, David está a atravessar uma passadeira na zona de Gulou, movendo-se com as mãos enquanto eleva as pernas. David não é verdadeiramente o nome da pessoa que efetivamente conheci mas é definitivamente alguém real. David sofre de um dos fenómenos menos estudados na história da sociologia, tão pouco estudados que me permitem patentear o conceito altamente inovador na área. David sofre de “Laowai fever”.

Tal como o David, milhares de brancos ocidentais apanham esta patologia ao fim de alguns meses de China. Podem ser pessoas que se costumavam vestir na Zara mas que agora só compram roupa em lojas de moda coreana. Mulheres que subitamente só querem vestidos com folhos e canetas que cor-de-rosa iguais às que usavam na escola primária. Homens que não podem dispensar o fato de treino da Supreme e os óculos de massa grossa. Podem mesmo ser pessoas que, tal como muitos jovens chineses, decidem que preferiam ser coreanos, de uma maneira geral. Há muitas possibilidades. É uma passagem entre o normal para o excêntrico e este fenómeno psicológico, quase sociológico – porque de grupo – fascina-me. Há um processo mental que antecede a mudança drástica da forma de vestir, dos dedos em V e das selfies carinhas-de-peixe, mas esse processo é para mim, ainda, um enigma.

Para sistematizar a análise da mudança súbita de comportamento do “estranja” (laowai) teremos de partir de alguns pressupostos. O Laowai em questão quando chega à China parece ainda manter-se no estado em se encontrava e que antecede o rótulo de laowai. As transformações ocorrem gradualmente. Há várias hipóteses teóricas levantadas por curiosos observadores ao longo destes anos de abertura da China ao estrangeiro.

Depois de falar com alguns sujeitos do sexo masculino que se enquadram no perfil, cheguei à conclusão que estes se sentem “mais confiantes” desde que chegaram à China. “O nível de atenção que passamos a ter por parte do género feminino é uma grande influencia para melhorar os níveis de auto-estima.” diz um anónimo Laowai que entrevistei para este artigo. Mas será apenas o aumento de capital erótico proveniente do exotismo étnico justificação para tanta excentricidade? “Numa cidade com mais 20 milhões de habitantes, ninguém olha para ninguém. Há todo o tipo de pessoas. A mega metrópole faz-me sentir mais livre para ser quem realmente sou” – continuou. Uma espécime do género feminino afirmava, por sua vez “Gosto de me vestir como uma princesa. No ocidente, a mulher é muito sexualizada com roupas justas e decotadas”, “Não achas que a infantilização de uma mulher adulta é, também, uma forma se sexualização fetichista?” A esta questão ela não me respondeu. Lembrei-me de como os asiáticos eram, estatisticamente, os maiores fãs de Ariana Grande.

Será o choque cultural tão grande que deixa os estrangeiros confusos em relação à sua identidade? Será a solidão e o isolamento que os levam a criar dezenas de atividades? Será esta vida de expatriado um prolongamento da experiência Erasmus? Muitas perguntas, poucas respostas. Eu só vos aviso: o fenómeno está para ficar. Já o observo desde 2008. Quando eu voltar da China vestida de Sweet Gothic Lolita, não se surpreendam. É só uma pequena febre de alguém que vem de fora.

29 Out 2020

O motivador desejável

[dropcap]H[/dropcap]oje venho aqui falar-vos de uma pequena criatura que se tem multiplicado de forma galopante a despeito do aparente anacronismo da sua expansão. Em pleno século XXI, assistimos a esta proliferação sem fim à vista de uma das actividades humanas mais inúteis do catálogo histórico das actividades humanas: o motivador profissional.

O motivador começa por aderir entusiasmado à fé capitalista, na esperança que esta lhe faça pelo bolso o mesmo que uma vida inteira de confessionário pode fazer pela alma. Ele acredita piamente na tese segundo a qual o sucesso depende do esforço. Toda e qualquer contrariedade advém de um esforço mal dirigido ou de um esforço em falta. No mundo do motivador profissional, não há contexto, não há acaso, não há pontos de partida melhores do que outros. É uma espécie de Ratatouille do mundo dos empreendedores: “toda a gente pode enriquecer”.

Em breve, acumula fracasso atrás de fracasso. Mas não deixa de professar a fé. Aliás, o motivador está para o capitalismo como o padre católico para a igreja de Roma: um pequeno farol onde se vêem espelhadas as virtudes professadas pela casa-mãe. Decidiu desde cedo que a sua falta de conhecimento geral dos princípios económicos elementares ou do negócio específico onde empata tempo e dinheiro nunca seriam um problema. O entusiasmo é o ingrediente secreto através do qual espera transformar qualquer empreitada num glorioso sucesso à escala planetária. O Bill Gates desistiu da faculdade para ir fazer dinheiro; o Steve Jobs também. O conhecimento, aliás, está sobrevalorizado, pensa. A mola pela qual se galga a escadaria do sucesso é o entusiasmo irrestrito. O motivador pode perder a fé em tudo, menos nisso.

Mas até o mais tonto dos motivadores acaba por entretanto perceber que não tem puto jeito para aquilo em que se implica todos os dias. Isso do negócio não é para ele. Ele bem tenta, com todas as suas forças, mete lá dinheiro, mete lá tempo, mete lá contactos, arrebanha tudo a quanto chega num abraço geral para que a coisa dê certo, mas a coisa teima em cair da árvore antes do tempo e apodrecer no chão.

Este é o ponto crucial para as aspirações do motivador. Deprimido pela sucessão de falências, o motivador precisa apenas de um pequeno empurrão para descobrir o seu verdadeiro talento. Ele porventura não nasceu para o negócio propriamente dito mas para catalisar a energia daqueles cujo sucesso depende apenas de um esforço suplementar. O motivador, por muito que queira, não sabe jogar à bola; não tem talento para isso, tem dois pés esquerdos. Mas pode ser um excelente treinador. Pode ser o treinador cujo toque de Midas transforma uma equipa banal de programadores numa startup de sucesso com aspirações a ser deglutida pelo Google a troco de uma generosa compensação monetária.

O motivador, antes de se fazer à estrada, tem de dar um jeitinho ao currículo. Há que expurgá-lo das dezenas de infortúnios e empolar – até à caricatura – os pouquíssimos sucessos. Nada que não esteja habituado a fazer desde sempre (o motivador tem de ter algo do mentiroso patológico, do obsessivo, do sociopata – de preferência, um pouco dos três – ou não funciona).

Ajeitado o currículo, o fato e o cabelo, o motivador atira-se furiosamente ao word para lá plasmar a sua versão das “regras essenciais para o sucesso”, que não diferem das inúmeras versões que, ao longo do tempo, foram entupindo as prateleiras das livrarias um pouco por toda a parte. Se tiver alguma estaleca, o motivador consegue arranjar um par de palavras em inglês para passar por conceitos fundamentais. Todo o motivador que se preze tem de apregoar a descoberta de um ingrediente secreto. E os ingredientes secretos, como se sabe, falam a língua de Sua Majestade.

De livrinho debaixo do braço e empestando toda e qualquer rede social com a banalidade das suas tiradas, o motivador vai promovendo cursos, workshops e masterclasses. Sonha com o dia em que encherá um pavilhão atlântico ou em que conhecerá os seus heróis de além-mar. Por enquanto, pelo menos, já consegue pagar algumas contas. É a primeira vez que tira algum dinheiro de um negócio.
Sigam-me para mais receitas.

29 Out 2020

O motivador desejável

[dropcap]H[/dropcap]oje venho aqui falar-vos de uma pequena criatura que se tem multiplicado de forma galopante a despeito do aparente anacronismo da sua expansão. Em pleno século XXI, assistimos a esta proliferação sem fim à vista de uma das actividades humanas mais inúteis do catálogo histórico das actividades humanas: o motivador profissional.

O motivador começa por aderir entusiasmado à fé capitalista, na esperança que esta lhe faça pelo bolso o mesmo que uma vida inteira de confessionário pode fazer pela alma. Ele acredita piamente na tese segundo a qual o sucesso depende do esforço. Toda e qualquer contrariedade advém de um esforço mal dirigido ou de um esforço em falta. No mundo do motivador profissional, não há contexto, não há acaso, não há pontos de partida melhores do que outros. É uma espécie de Ratatouille do mundo dos empreendedores: “toda a gente pode enriquecer”.

Em breve, acumula fracasso atrás de fracasso. Mas não deixa de professar a fé. Aliás, o motivador está para o capitalismo como o padre católico para a igreja de Roma: um pequeno farol onde se vêem espelhadas as virtudes professadas pela casa-mãe. Decidiu desde cedo que a sua falta de conhecimento geral dos princípios económicos elementares ou do negócio específico onde empata tempo e dinheiro nunca seriam um problema. O entusiasmo é o ingrediente secreto através do qual espera transformar qualquer empreitada num glorioso sucesso à escala planetária. O Bill Gates desistiu da faculdade para ir fazer dinheiro; o Steve Jobs também. O conhecimento, aliás, está sobrevalorizado, pensa. A mola pela qual se galga a escadaria do sucesso é o entusiasmo irrestrito. O motivador pode perder a fé em tudo, menos nisso.

Mas até o mais tonto dos motivadores acaba por entretanto perceber que não tem puto jeito para aquilo em que se implica todos os dias. Isso do negócio não é para ele. Ele bem tenta, com todas as suas forças, mete lá dinheiro, mete lá tempo, mete lá contactos, arrebanha tudo a quanto chega num abraço geral para que a coisa dê certo, mas a coisa teima em cair da árvore antes do tempo e apodrecer no chão.

Este é o ponto crucial para as aspirações do motivador. Deprimido pela sucessão de falências, o motivador precisa apenas de um pequeno empurrão para descobrir o seu verdadeiro talento. Ele porventura não nasceu para o negócio propriamente dito mas para catalisar a energia daqueles cujo sucesso depende apenas de um esforço suplementar. O motivador, por muito que queira, não sabe jogar à bola; não tem talento para isso, tem dois pés esquerdos. Mas pode ser um excelente treinador. Pode ser o treinador cujo toque de Midas transforma uma equipa banal de programadores numa startup de sucesso com aspirações a ser deglutida pelo Google a troco de uma generosa compensação monetária.

O motivador, antes de se fazer à estrada, tem de dar um jeitinho ao currículo. Há que expurgá-lo das dezenas de infortúnios e empolar – até à caricatura – os pouquíssimos sucessos. Nada que não esteja habituado a fazer desde sempre (o motivador tem de ter algo do mentiroso patológico, do obsessivo, do sociopata – de preferência, um pouco dos três – ou não funciona).

Ajeitado o currículo, o fato e o cabelo, o motivador atira-se furiosamente ao word para lá plasmar a sua versão das “regras essenciais para o sucesso”, que não diferem das inúmeras versões que, ao longo do tempo, foram entupindo as prateleiras das livrarias um pouco por toda a parte. Se tiver alguma estaleca, o motivador consegue arranjar um par de palavras em inglês para passar por conceitos fundamentais. Todo o motivador que se preze tem de apregoar a descoberta de um ingrediente secreto. E os ingredientes secretos, como se sabe, falam a língua de Sua Majestade.

De livrinho debaixo do braço e empestando toda e qualquer rede social com a banalidade das suas tiradas, o motivador vai promovendo cursos, workshops e masterclasses. Sonha com o dia em que encherá um pavilhão atlântico ou em que conhecerá os seus heróis de além-mar. Por enquanto, pelo menos, já consegue pagar algumas contas. É a primeira vez que tira algum dinheiro de um negócio.
Sigam-me para mais receitas.

29 Out 2020

O girassol depois do cataclismo

[dropcap]V[/dropcap]iver sob a pandemia faz inexoravelmente pensar no pós-pandemia. Os humanos têm os pés a levitar no futuro, mas são escravos do presente – território onde sobrevivem ou sucumbem. A literatura é um filtro extraordinário para se compreender o pós-cataclismo. Nesse tipo de vórtice, que se tenta sempre antecipar com alguma ansiedade, o que fica à vista não é tanto o que somos, mas sobretudo aquilo que facilmente abandonamos ou que somos fria e activamente levados a despovoar.

Antes de se iniciar a narrativa parisiense que ocupa ‘Devoção’ (2017) de Patti Smith, logo no início do livro, a protagonista encontra por acaso o trailer de um filme sobre a deportação, em 1941, de milhares de estónios que as tropas de Estaline cercaram e transportaram em camiões para a Sibéria como se fossem gado. Depois, na segunda página do romance, é evocado o tempo que sucede a esta voragem terrível:

“Um roupão azul serve de cortina para uma janela pela qual ninguém olhará mais. Há sangue por todo o lado, mas já sem a cor do sangue, e um cão a ladrar, e estrelas a riscar os céus perdidos./ Um bezerro moribundo. Uma tala na pata – manchas, buracos. A noite cai, escondendo o membro contorcido do último ser vivo./ Um cenário no tempo. Ferramentas, pequenas mãos suspensas no meio do gelo. Pássaros já sem a curiosidade própria dos pássaros deixam de voar. A dança acabou e o rosto do amor não é mais do que uma saia larga e uns tacões lustrosos de inverno”.

Mudando a atmosfera, o ponto de partida do romance ‘O Deus das Moscas’ (1954) de William Golding centra-se num desastre aéreo causado por um conflito planetário. A acção inicia-se numa ilha deserta onde um grupo de rapazes resiste sem qualquer presença de adultos. Recomeçar após a catástrofe é, mais uma vez, o tema. No final do primeiro capítulo, o verniz possível rasga-se e a violência torna a aflorar o mundo como se fosse uma água indomável:

“- Eu ia matá-lo -, continuou Jack. Seguia à frente e eles não lhe podiam ver o rosto. – Estava à procura do sítio. Para a próxima…!/ Arrancou o facão da bainha e arremessou-o contra o tronco de uma árvore. Para a próxima vez não haveria piedade. Olhou à roda com ferocidade, ousando contradizê-los. Depois separaram-se na claridade rija do sol, e, durante algum tempo, ocuparam-se em buscar e procurar comida…”.

Saltemos, por fim, para o derradeiro volume do ‘Quarteto de Alexandria’ de Lawrence Durrell, ‘Clea’ (1960) onde a paisagem das proximidades do deserto surge retratada no pós-guerra com uma fidelidade crua, quase táctil. Também aqui a visão do retomar da “normalidade” (cito a voz do vulgo) ocupa algumas das páginas deste maravilhoso livro:

“Ao retirar-se como uma inundação (a guerra), abandonava os seus estranhos troféus coprolíticos ao longo das praias que outrora frequentávamos e que fomos encontrar brancas e desertas sob o voo das gaivotas. A guerra impedira-nos de frequentá-las durante muito tempo, e agora descobríamo-las pejadas de tanques esventrados, canhões torcidos” (…) “Sentíamos uma melancolia estranhamente serena tomando banhos ali, como se o fizéssemos no meio dos vestígios petrificados de um mundo pré-histórico” (…) “Um dia, em que ia guiando, Clea deu uma forte guinada – a estrada estava bloqueada pelo cadáver despedaçado de um camelo vítima da explosão de uma mina”.

No trecho de P. Smith os últimos vestígios de vida contracenam com uma suspensão do tempo, como se as palavras tivessem que ocupar outra estratégia que não a da narração. Narrar tornara-se impraticável e a imagem do bezerro a arrastar-se fala por si acerca deste aspecto disfórico. No romance de W. Golding, depois de o relato se focar numa espécie de oásis existencial, ou até ideal, a ferocidade reencontra caminhos e a sua natureza reaparece a sós e à solta, a par da guerra pela sobrevivência. Finalmente, na passagem assinada por L. Durrell, a “melancolia estranhamente serena” dá entrada no texto como se não se fosse possível acreditar no novo estado de coisas e a incredulidade até acaba por ser ampliada com a iminência de um acidente (curiosamente, os animais surgem nas narrativas – repetidamente – como uma alegoria da nossa própria infelicidade).

Com excepção do excerto de ‘O Deus das Moscas’, centrado na constância de fundo das coisas, e por isso mesmo, para o bem ou para o mal, acusando um realismo mais agudo, tudo aquilo que se desata e desprende do mundo é feito através do estranhamento ou da inércia do recomeço. Nessa enigmática terra de ninguém (sempre por percorrer), a necessidade de voltar a impermeabilizar o vivido e as suas imagens sobrepõe-se ao foco da retrospectiva, ou seja, à ferida exposta da memória. Primo Levi em ‘Se Isto é um Homem’ (1947) levou este tópico até aos seus limites, de tal modo que a existência da própria arte (mesmo a da escrita) se poderia – e pôde realmente – pôr em causa.

Voltemos à solaridade de Durrell e ao momento que creio ser ‘o da verdade’, isto é, o de agir “como se o fizéssemos no meio dos vestígios petrificados de um mundo pré-histórico”. Jogar é recriar uma situação irreal como se fosse a real, mas neste caso estamos perante um jogo dentro do jogo: é a realidade que se levanta e recria sobre os escombros da mais pestilenta das irrealidades. Já Fernando Pessoa o referira, curiosamente num poema de amor: “Todo eu sou qualquer força que me abandona./ Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio”.

 

Pessoa, Fernando. ‘O Pastor Amoroso’ (poema assinado a 19/07/1930) em ‘Poemas de Alberto Caeiro.’ (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

28 Out 2020

Perfumar a glande

[dropcap]E[/dropcap]spanta nos diários de 1906 de Fernando Pessoa a sua confessada decisão de ler dois livros por dia, um de filosofia e outro de literatura, de preferência poesia. E esse ritmo só foi baixando porque a partir de 1913 se imiscui a decisão de aprofundar uma voz poética, ainda por cima em arquipélago e com uma clara propensão para em suaves declinações ensaísticas refinar uma espécie de mathesis universalis.

Ou seja, Pessoa desatou a escrever ele mesmo um livro por semana. Exagero e caricaturo, mas releve-se a sua enorme capacidade de trabalho.

Mas não é único, apesar de nos ser difícil acreditar (e, em Portugal, no século anterior basta pensar em Camilo). Depois de um delicioso livro de entrevistas e de um muito parcial mas cativante Diccionario De Literatura, pego numa biografia sobre o espanhol Francisco Umbral (1932-2007), outro omnívaro que escreveu cento e tal livros e muitos milhares de artigos e crónicas (só no El Mundo manteve uma crónica diária durante 40 anos). E conta Anna Caballé, a biógrafa-não-autorizada que fez em «Francisco Umbral/ El frio de una vida» o livro definitivo sobre o escritor de Diario de un escritor burguês:

«Consideremos qualquer semana de sua vida. Qualquer semana de 1977, por exemplo, um de seus anos mais fecundos. Encontramos Umbral publicando um artigo diário (secção “Diario de un snob”) no El País e outro artigo, também de jornal, para a agência Colpisa, que o distribuia entre os jornais associados. Tem um artigo semanal na Interviú (algumas “Horteras Cartas” em que ensaia várias fórmulas coloquiais) e outro, mais exigente, na Destino, semanal. A essas colaborações regulares deve ser adicionado um artigo mensal com conteúdo erótico para a revista Siesta e uma história erótica bimestral que aparece na mesma publicação.

Juntem-se a estas outras colaborações que ele espontaneamente concede em Diario 16, em Triunfo, em Hermano Lobo. Não levo em consideração os textos aleatórios que surgiram no decorrer da sua vida profissional, mas chamo à lista os livros que publicou naquele ano: La prosa y otra cosa, Diccionario para pobres, La noche que llegué al Café Gijón, Las jais, Teoría de Lola y otros cuentos e Tratado de perversiones.

Seis livros – quatro deles de criação. Ou seja, um livro a cada dois meses. E não se pode dizer que seja fruto de acaso editorial, já que em 1976 publicou onze livros, quase um por mês. Com razão, o hispânico Jean-Pierre Castellani, baseando-se apenas na intensidade de suas colaborações jornalísticas, considera-o um fenómeno único na Espanha e “talvez na imprensa europeia contemporânea”».

O que assombra, com flutuações naturais, é a qualidade média de cada livro, invejável. Cada pico em Umbral corresponderia ao melhor do dos seus colegas escritores, só que Umbral tem uma dúzia de picos. De entre os cinco que li, talvez escolhesse Mortal e Rosa (traduzido, e bem, em português por Carlos Vaz Marques) o livro que escreveu depois da morte do filho, de sete anos, com leucemia, ou El hijo de Greta Garbo. Noutra ocasião farei uma descida à “morfologia do estilo” de Umbral que foi um defensor e um dos mais bem sucedidos cultores do “romance lírico”. Aqui fica um parágrafo, breve, de Mortal e Rosa: «Outubro.

Aperfeiçoa-se a rotundidade do mundo. As árvores são violinos cuja música é o azul do céu. O bosque brinca com o meu filho como um tigre verde com um pintassilgo. Somos o âmago de uma lentíssima maçã caindo silenciosamente no tempo».

Sirva agora esta nota só para meter alguma humildade no toutiço de alguns jovens escritores que conheço, tão vaidosos como ignorantes, tão convencidos como improdutivos.

Ontem fiz o download do livro póstumo que reuniu toda a sua poesia, um livro de 200 páginas. Não é o seu melhor mas tem coisas que me divertiram, como o ciclo de poemas em prosa erótica que dedicou à Letícia/Lutecia. Vê-se que lhe era fácil e como isso lhe menorizava os poemas, nem resistindo, por vezes, ao mau gosto; por outro lado, são divertidíssimos e a espontaneidade do seu jacto denota que aos setenta (morreu com setenta e cinco, suponho que gasto) mantinha ainda um ímpeto juvenil. Aqui traduzo um poema desse ciclo: EL PERFUME

«Há sexos de mulheres que perfumam a glande durante uma semana. Há mulheres que têm na geografia da vulva, nas gargantas da vagina, na caverna das secreções, uma infinidade de jardins subaquáticos, uma pluralidade de peixes que antes foram flores e sonham em se cristalizar, silenciosamente, no sal.
Há sexos que deixam um perfume a mancebia babilónica e a armazém portuário, e do mesmo modo que o poeta passou anos sem lavar a testa, pois ali fora beijado por outro poeta, pode-se passar dias sem lavar a glande para que não perca, no freio do prepúcio, a sua aura de mulheres e flores, o seu halo de mar e porto, que é como uma coroa olorosa, essa fragrância que hesita em adoptar uma forma única mas se vai assemelhando ao desenho balístico da glande.

A rigor, havia que descer-se à rua com o erecto membro ao léu, circuncidado como o azul no céu, ou uma proa, ou a pequena e vermelha agressão perfumada que distribui fitas aromáticas pela vizinhança, como quando passa o peixeiro. Disse que era preferível não lavar-se, nesses casos, mas a verdade é que há também a mulher indelével, a que perfuma e perfuma, e ao cabo de numerosas e meticulosas lavagens, depois de repetidas esfregas e enxaguamentos, a coisa continua a cheirar ao mesmo, com aquela fidelidade dos cheiros, que é a única fidelidade no amor. Não há maneira.”

28 Out 2020

A ver o mar e comboios

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 18 Outubro

 

[dropcap]P[/dropcap]ara onde quer que atire os olhos, para o branco no alcatrão a dizer bicicleta, seta de sentido ou jogo da macaca, para o verde farfalhudo e inusitado da colina, o fragmento recortado de castelo vindo de nenhures para desaparecer, a quadrícula espelhada e funcionária do prédio público, o candeeiro torto, a voluta do puxador no móvel sinuoso, as lombadas hieráticas, enfim, a experiência interior, o resultado acaba sendo o mesmo: vejo-me um belo condutor de paragens de autocarro. De tão quedo, chego até a pensar que vou a lugares.

Horta Seca, Lisboa, segunda, 19 Outubro

Dou por mim a fazer malabarismos com a brasa, a batata quente e o fragmento de lava em está feita a editora, isto enquanto avanço no fio da navalha. Olhar para o abysmo provoca a queda, há que seguir em frente, mesmo sem vislumbrar sítio, lá no horizonte, onde ter pé. Talvez a vida fosse sempre assim, e acreditássemos que os planos tornavam os dias mais sólidos. Nunca assim foi, jamais será. Desato, portanto, a disparar projectos em todas as direcções da frente. Alguns são ideias antigas, de puro interesse pessoal, outros procuram responder às circunstâncias. Disso falaremos adiante, desde que o chão, mesmo entretecido de nós por desatar, não me escape.

O essencial da noite acabou sendo a amizade, mas discutia-se como passar para imagens em movimento uma mudança de pele. E de lugar. A cidade encolhe, a pensar que cresce. E impiedosamente amachuca papéis, destrói monumentos, sacrifica íntimas correspondências com os múltiplos passados. Não voltaremos a ser os mesmos. Tenho brincado com os fins do mundo que vão acontecendo no entorno de cada um, mas percebo agora que se trata disso mesmo. Não estamos entre parêntesis, o caminho risca-se em linhas compostas de três pontos. No carro que me deposita em casa, as vozes da rádio levaram-me a outros tempos, quando a crença ainda fazia parte das ferramentas. Custou-me a adormecer.

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 20 Outubro

A generosa insistência do último moicano da tribo da carta manuscrita Tiago [Manuel] trouxe-me a beira-mar, tão rica de cambiantes que parece aquele ouro de cobrir peitos de Viana. Luísa Dacosta, também nesta recolha diarística de «Um Olhar Naufragado» (ed. Asa), descreve como ninguém os múltiplos mares, que aquele atlântico não é sempre o mesmo. «O mar é hoje uma ondulação quebrada de espelhos a reflectir o sol e um céu, alto e claro. Entre céu e mar há como que um balão de luz, transparente, bola de sabão, não irisada. Duas velas, ao longe, dão-me asas e tornam-me gaivota.» Em cada lugar que visita há-de descobrir um rio ou a subtileza das orlas marítimas. «Mar achãozado, sem ondas. Azul clarinho. Quieto, na tarde morrente. Um campo de água, semeado a miosótis.» A volúpia da descrição também a aplica à flora, mais riqueza deslumbrante, a contaminar o vocabulário, jardim de palavras que soube cultivar com esquecida mestria. E à casa, a grande da infância. «Manhã de névoa, perfurada pela ronca, que é para mim um som de búzio e infância. À beirada, a areia tem já um tom quente e solar, mas as águas, quietas, da maré vaza estão prisioneiras da névoa e dos penedos, onde as gaivotas, aninhadas, parecem nenúfares, brancos, de corolas fechadas. Não há linha de horizonte, nem apelos de longe. Só este chamamento, doloroso, constante e incansável.» Passo a mão pelo veludo do detalhe exposto e acuso o toque.

O mano Tiago, na ilustração que abre o volume (algures na página), desenhou rosa cercada por ondas de espinhos, espelhando os tons sensíveis destas páginas líquidas. A morte e a dor são presenças dialogantes, nunca afastadas nem pelas manifestações de afecto, ou pelas retribuições da comunidade escolar, e, sobretudo, dos seus leitores infanto-juvenis de várias idades. Na maré da atenção vem os amigos, a pintura, a actualidade política, os seus autores, Pessanha e Cecília Meireles. (Macau também aparece com a alegria do bom acolhimento, ou não fosse a casa do seu poeta.) E o feminino visto de muitos ângulos, sobretudo os mais negros, tendo o homem por qualquer coisa entre sombra e assombração. A infância desponta a cada frase, irrigando a palavra, que brilha no orvalho, na nuvem, na cor. E a dor, ainda ela.

A relação com os editores está representada tão só na versão amarga, causada pelos inevitáveis atrasos, pela desatenção, agravamentos da sensação partilhada amiúde de que era escritora ignorada. A entrada de um certo 15 de Outubro anuncia: «os livros não irão aparecer! Como me explicou o novo director do departamento, já estava esgotado o lote das saídas. De resto não tinha sido ele a contactar-me porque só há pouco tomara conta do cargo e não fazia parte da programação que tinha elaborado. Além disso era uma autora pouco vendável (não estava em causa a qualidade, claro) e não havia nada a fazer. Há quanto tempo a vida vinha a escorraçá-la e a bater-lhe?» Muito comum na sua prosa, este atravessar da primeira para a terceira pessoa, como que a afastar-se de si para se ver melhor. Luísa Dacosta pagou o preço de ser autora para as infâncias, preconceito que afasta os bem pensantes de cada época, e que, neste caso único, escondeu obra única que se mantém requintada como manhã de litoral. «O meu livro caiu no silêncio e na indiferença», escreve. «Ninguém noticiou. Ninguém disse, ainda, nada.» Ninguém ainda nada parece ser o exacto quotidiano da edição.

Horta Seca, Lisboa, quarta, 21 Outubro

Peguei sem querer no livrinho e logo senti o inverso. Diálogos cortantes a empurrar vertiginosamente uma narrativa de personagens inteiriças, sem sombra de banalidade. Surpresa em texto adulto, que, não sendo sobre nada, cresce à volta do ser mulher, mãe, voz e figura. Talvez gato a rasgar palco com as garras. «Um Tigre à Porta da Sé» (ed. Nova Mymosa), da Mónia [Camacho], obrigou-me a desligar o telefone até saber o que ainda não descobri da cantora marroquina que deseja mudar de pele, de país. Ser daqui. E faz de uma estação de comboios o seu lugar. Para mal dos nossos pecados, contém ainda chefe de estação perplexo, jornalista embeiçado e polícia filósofo. «Todas as vidas têm, num qualquer canto, um jardim. Um oásis. Mas em alguns casos é preciso semeá-lo primeiro. Era isso que ia fazer. / O mundo dobra-se ao meio quando é preciso.» Estou capaz de acreditar, um instante que seja.

28 Out 2020

A ditadura do prefixo

[dropcap]E[/dropcap]u sei, sei: muitas vezes o leitor duvida dos pequenos episódios que aqui descrevo. Uma conversa aqui, um jantar acolá … Percebo: quem é este fulano que tem uma vida social entre a misantropia e o convívio entre génios?

Bom, esse leitor – que sei ser apenas um e conheço o endereço e estou a caminho – tem razão. Muitas vezes utilizo recortes de conversas que aconteceram ou não apenas para ter a vossa atenção para o que vos quero dizer. Não são mentiras, apenas artifícios de escrita para ganhar a vossa complacência até ao final do texto.

Toda a escrita, digo eu, tem de ser sedução mesmo que – ou se calhar sobretudo…- queira divulgar a mais recente teoria de física quântica.

Só que há alturas em que a realidade e a matéria das palavras escritas coincidem. Isso é que é raro para mim, que não tenho o talento para pescar os pequenos peixes que podem cintilar. Mas enfim, este início foi mesmo verdade, juro. Disse-me um moço amigo de amigos, criatura daquelas a que não se resiste e com quem a conversa se solta facilmente: «Sou um ex-vegan».

Conseguiu explicar tranquilamente, perante as minhas mandíbulas separadas pela incredulidade, que não conseguiu resistir aos prazeres da carne (essa, mas no forno e com uma boa molhanga) e que os seus princípios éticos não foram feridos pela mudança de dieta. Melhor ainda, vivia bem com isso e, acredito, com mais paladar.

Se vos conto isto não é apenas pelo facto do meu interlocutor ter viajado de um lugar de onde eu pensava não ser possível regressar, dada a rigidez das práticas e o dogmatismo das ideias: é sobretudo porque é alguém que vive bem com o recuo – que vive bem com o prefixo, que neste caso é “ex”.

Sabem do que falo, amigos. Esse prefixo é maldoso e pode criar fanáticos. Um ex- fumador, um ex- bebedor, um ex-dependente, um ex-crente sincero de alguma coisa que terá praticado. Há uma tentação imediata de uma vez livres de algo que lhes tolhia a vida passarem ao proselitismo, à negação descabelada, ao paternalismo ou no limite a uma combinação de todos com um toque de moralismo autoritário. São escravos do prefixo.

Daí que seja bonito o que este amigo me contou. “Ex” significa muitas coisas: de fora, sem, antigo. Mas em muitas situações o estar fora é apenas uma oposição ao lugar onde antes se estava. E em outras em que o prefixo é utilizado – exagero, exaltação – é exactamente o contrário. E olhem, o advérbio de modo que acabei de utilizar não me deixa mentir.

A vida, amigos, está semeada com este prefixo: ex-amores, ex-infância, ex-ideais, ex-nós. A ideia da existência assim nos obriga, até o ex final, que se resume a estar ex-vivo. Mas pelo meio e se pudermos tenhamos a força de recuar e duvidar do que o prefixo nos ofereceu. Diria mesmo ser-lhe grato. Porque amigos, quem tem um “ex” qualquer na sua história de vida é sinal disso mesmo: viveu e não necessita de o proclamar porque isso é aquilo que ninguém irá poder tirar, instante após instante. Como esta ex-crónica que o passou a ser a partir de agora mesmo.

28 Out 2020

Uma Bungavília a asfixiar o mundo

[dropcap]N[/dropcap]o jornal Hoje Macau, de 10 de Setembro de 2020, o autor de Cálice, Luís Carmelo, escreve a respeito deste livro (e também do segundo volume do dístico, que terá o nome de Ciclone) e diz que a sua escrita implicou uma «poética da biografia». Na verdade, e é isto que está em causa no livro, toda a biografia só pode revelar um rosto através da poesia. Tudo o resto, todas as outras tentativas estarão condenadas ao fracasso. Escreve Luís Carmelo em Cálice, à página 64: «(o eclipse é a metáfora do rosto: que qualquer lado que se aviste, não é difícil entender a ocultação da cena. E o falso embuste reside no emaranhado com que o visível se enleia ao que permanece suspenso. […]». Entre um rosto e a sua biografia levanta-se uma neblina que só a poesia pode de algum modo dissipar, naquele seu modo manco de clareza. Identifico três assuntos principais que percorrem Cálice: poesia, infância e viagem. Não são assuntos que se interligam, são assuntos indissociáveis.

A viagem tem sempre um componente temporal, não apenas porque há tempo envolvido ao percorrer-se a distância, mas porque no seu horizonte está um desejo de alteração radical do presente, do aqui e agora.

Quem viaja procura de algum modo fugir do presente ou fazer uma pausa dele. Um bom exemplo de quem procura uma fuga do presente na viagem é o caso do narrador do livro do Vasco Gato quando viaja para Itália. Acima de tudo, o que o leva a Itália é uma fuga de Lisboa e da situação em que se encontrava, independentemente de querer visitar alguns lugares específicos. Ele vai para Itália como se pudesse escapar de ser ele ou lhe fizesse bem ter uma pausa de si. Assim, a viagem é uma espécie de forward, de pôr o comando em modo rápido para que passemos rapidamente para aquilo que queremos ver e deixemos este presente que não nos interessa. Mas pode ser apenas uma pausa desse presente, como quem vai de férias para descansar dos dias, não tem de ser algo tão radical como a viagem do narrador de Adius. Seja como for, não há pausas, nem fugas de nós mesmos. Embora a viagem nos possa dar essa ilusão e a ilusão, é sabido, pode ser doce.

Mas quando se regressa a um lugar aonde não se vai há muito, também é o tempo que está envolvido nessa viagem, como é o caso de Ulisses na Odisseia. Mais do que voltar a casa, Ulisses quer recuperar um tempo onde as coisas tinham uma normalidade ou um encanto que deixaram de ter. Uma espécie de viagem a antes do Covid-19. No caso do livro de Luís Carmelo, a viagem assume um carácter mais distorcido do que a de Ulisses, porque se trata de viajar para onde nunca se esteve nem se vai poder estar, a não ser por poesia, isto é, por uma narrativa ou, como neste caso particular, de uma narrativa de uma narrativa. E a viagem também se complica, porque há dois narradores, e não um. Dois narradores que não vão apenas até à sua infância, vão até antes da sua infância, até aos seus antepassados. Mas mesmo só até à infância vivida, deparam-se com o problema da alteração contínua do que narram. No fundo, aquilo que se lê, logo à página 15: «Um comboio em andamento a derivar entre o sonho e a possibilidade». Desde a Poética de Aristóteles que sabemos que a poesia é precisamente este território móvel entre o sonho e a possibilidade, isto é, não um comboio em andamento, mas escrever num comboio em andamento, onde o presente passa depressa e, à medida que a viagem se alonga, o passado se torna mais apetecível. Alguns séculos antes de Aristóteles, Heraclito disse panta rhei, tudo flui, tudo é devir. Com este tudo flui, queria dizer que estamos junto com todas as coisas num tapete de tempo. O tempo leva-nos. Tudo flui. O mundo, o universo é um comboio imparável. E quem não teve a tentação de saltar do comboio ou simplesmente fazê-lo parar? É isto a viagem.

Se a nossa vida é um comboio em andamento, haverá sempre momentos em que nos apetecerá voltar para trás ou saltar para a frente, ir mais rápido que o tempo, ou ainda saltar do comboio. Para saltar para a frente, projectar, tem de se usar a imaginação, para voltar para trás temos de usar a memória. E é sabido que a identidade humana tem os seus alicerces bem ficados na memória. O problema, e que é o dos pontos fundamentais deste Cálice, é que a memória tem tanto de real como qualquer dos textos bíblicos. A memória não é o passado, o que aconteceu, é uma espécie de visita. Algo ou alguém que nos aparece, muitas vezes sem estarmos à espera, e que tem semelhanças com algo ou alguém que conhecemos há muito tempo. Uma visita que se assemelha a um acontecimento vivido. E isto é muito claro em Cálice. Leia-se o modo como começa o livro, onde se vê claramente que estamos sempre a jeito de ser assaltados por uma memória:

«Deve ter sido o segundo dia de Setembro, lembro-me de que a trepadeira não parava de crescer, cobria já uma das janelas do rés-do-chão e as primeiras ramagens com espinhos pontiagudos apareceram a ameaçar-me a varanda do primeiro andar. Foi o que vi, no momento em que abri a janela do quarto, era ainda muito cedo e aquela imagem da buganvília a asfixiar o mundo fez-me gravar o dia na memória.» E é certo que uma buganvília a asfixiar o mundo não aconteceu em tempo algum.

A memória também pode actuar sobre acontecimentos não vividos pelo próprio, como quando lembramos a Revolução Francesa, o que lemos no passado acerca desse acontecimento. Mas no livro de Luís Carmelo o que importa é a memória pessoal, seja ela minha ou a que contaram acerca de mim e da minha família. Aqui não se trata da memória do escritor, mas da memória dos narradores. Ao escritor importa mostra-nos claramente que escrever altera tudo. Porque ninguém se lembra de um acontecimento, ou mesmo o transmite a outro desta maneira que o escritor escreve: «[….] e um céu quase em fundo para abastecer as hortas cheias de água e as ovelhas que corriam atrás das crias. // A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol. // A dobradiça da porta principal da casa era uma oração. Uma peça que valia por si própria e que bamboleava. Josué bem dizia que os mitos são portas fechadas por onde se passa a cada instante.» (p. 43).

A este tempo que não fomos, o da história universal, dos mitos clássicos, dos poetas anteriores a nós, junta-se o nosso próprio tempo, individual, que também não fomos, ou por distracção, ou por incúria ou por medo, ou porque quando estávamos a ser não nos dávamos conta de estarmos a ser. Carmelo escreve provocadoramente através dos pensamentos do senhor Fausto, caixeiro-viajante: «porque há-de um homem ter uma história?» (p. 19) E quem diz isto na verdade não estava ali. Leia-se: «Não, o senhor Fausto não estava de facto ali, mas era como se estivesse.» (p. 19) Não estar, mas é como se estivesse, é o melhor modo de dizer a história que se tem, a de cada um de nós. Nós na verdade não estamos, mas é como se estivéssemos. A vida é como se estivéssemos.

É naquele lugar estreito entre estar a ser e dar-se conta disso que desponta a poesia. O tempo da história, esse tempo que nos falta, não surge na poesia como saudosismo, como lamento de outras eras, mas como evidência de que nós somos constituídos pelo que nos falta. Esta é a nossa pátria: a falta, não só do que fomos e do que foi o mundo, mas também falta do que seremos e do que será o mundo. A falta do que somos ilumina o mundo e a história é o seu registo. O movimento da poesia não é o de tentar estar em casa em qualquer parte, mas o de reconhecer que não há casa, mesmo na Pátria, como já Ulisses ou Homero ou os mitos nos mostraram. A poesia sabe como mais nada o pode saber, aquilo que Luís Carmelo escreve à página 18: «A viagem é um tempo que desaparece.» E por isso, também metaforicamente, se costuma dizer que a vida é uma viagem. E é com este tudo que desaparece que se faz uma narrativa.

Gostava ainda de abordar brevemente a questão formal e, para isso, vou repetir uma passagem que citei anteriormente: «[….] e um céu quase em fundo para abastecer as hortas cheias de água e as ovelhas que corriam atrás das crias. // A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol. // A dobradiça da porta principal da casa era uma oração. Uma peça que valia por si própria e que bamboleava.

Josué bem dizia que os mitos são portas fechadas por onde se passa a cada instante.» (p. 43). Nesta passagem, além da questão da transformação da matéria da memória, porque a linguagem altera a percepção e o vivido, se o foi, ficamos face à formalidade do livro, que nos dá a ilusão de fragmento. As duas linhas intermédias «A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol.» aparecem isoladas e destacam-se, obrigando o leitor a deter-se neles, como se fosse um poema curto. E esta formalidade é fundamental no livro. O livro é escrito em parágrafos tipográficos, que oscilam entre as duas e as 22 duas linhas. Não é de somenos importância. É fundamental para nos fazer pensar na poesia. A ilusão do fragmento ou do poema faz-se sentir como verdadeiro. E este fazer-se sentir como verdadeiro é como na vida. Aliás, e isto é transversal a Cálice, a vida não tem a dimensão concreta da narrativa. Não apenas porque um livro nunca é a vida, porque a vida não tem palavras, ou pelo menos não tem as palavras que se põem num livro, mas porque é da natureza da narrativa a destruição do acontecimento tal como se terá dado. Uma buganvília a asfixiar o mundo.

26 Out 2020

A Sonata para Dois Pianos e Percussão

[dropcap]A[/dropcap] Sonata para Dois Pianos e Percussão, Sz. 110, de Béla Bartók, composta em 1937, ainda na Hungria, foi estreada por Bartók e pela sua segunda esposa, Ditta Pásztory-Bartók, com os percussionistas Fritz Schiesser e Philipp Rühlig, no concerto de aniversário da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (ISCM), realizado no dia 16 de Janeiro de 1938 em Basel, na Suíça, no qual recebeu críticas entusiastas. Bartók e a sua esposa também tocaram as partes de piano na estreia americana que teve lugar na Câmara Municipal de Nova Iorque em 1940, com os percussionistas Saul Goodman e Henry Deneke, já depois do compositor emigrar para os Estados Unidos. Desde então, tornou-se uma das obras mais executadas de Bartók.

A partitura requer quatro intérpretes, dois pianistas e dois percussionistas, que tocam sete instrumentos entre eles: timbales, bombo, címbalo, triângulo, tambor de parada, tam-tam e xilofone. Na partitura publicada, o compositor fornece instruções altamente detalhadas para os percussionistas, estipulando, por exemplo, qual parte de um prato suspenso deve ser batido e com que tipo de baqueta. Também fornece instruções precisas para a configuração da plataforma dos quatro jogadores e os seus instrumentos.

O primeiro andamento da Sonata, marcado Assai lento – Allegro molto, é uma versão modificada da forma-sonata tradicional. Existem secções claramente delineadas – introdução, exposição, desenvolvimento, recapitulação e coda – mas Bartók evita as relações habituais entre tonalidades, começando o andamento em Fá sustenido e terminando-o em Dó Maior, com excursões em várias tonalidades inesperadas entre elas. Essa relação estrutural de trítono não é invulgar em Bartók; pode ser encontrada em muitas de suas outras composições, incluindo no primeiro andamento da sua conhecida obra, Música para Cordas, Percussão e Celesta. O ritmo desse andamento varia dentro de um compasso geral de 9/8. O andamento também é atípico da forma-sonata clássica, pois constitui metade do tempo de execução de toda a obra.

O segundo andamento, marcado Lento, ma non troppo, apresenta a forma ternária A-B-A clássica do andamento intermédio e é um exemplo do idioma da conhecida “música nocturna” de Bartók.

O terceiro andamento, marcado Allegro non troppo, é uma dança semelhante a um rondó, começando e terminando em Dó Maior. Os pianos apresentam o andamento, seguidos do xilofone. No final da obra, as últimas notas dos pianos desvanecem-se pouco a pouco, há um dueto conclusivo para tambor de parada e címbalo, e a sonata termina extremamente tranquilamente.

Em 1940, por sugestão do seu editor e agente, Hans Heinsheimer, então responsável pela conhecida editora Boosey & Hawkes em Nova Iorque, Bartók orquestrou a Sonata para Dois Pianos e Percussão, como Concerto para Dois Pianos, Percussão e Orquestra, Sz. 110. As partes para os quatro solistas permaneceram essencialmente inalteradas. A estreia mundial do Concerto foi dada no Royal Albert Hall, em Londres, num concerto da Royal Philharmonic Society realizado no dia 14 de Novembro de 1942, com os percussionistas Ernest Gillegin e Frederick Bradshaw, o então marido e mulher da equipa de piano formada por Louis Kentner e Ilona Kabos, e pela London Philharmonic Orchestra, dirigida por Sir Adrian Boult. O compositor e Ditta Pásztory-Bartók foram solistas de piano numa apresentação da obra em Nova Iorque em Janeiro de 1943, com a Filarmónica de Nova Iorque sob a direcção de Fritz Reiner. Esta foi a última aparição pública de Bartók como executante.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Sonata for Two Pianos and Percussion, Sz. 110
Ditta Pásztory-Bartók, Béla Bartók, Harry J. Baker, Edward J. Rubsan – Naxos, 2000
26 Out 2020

O turista desejável

[dropcap]C[/dropcap]omo toda a gente sabe, fazer um turista é extremamente fácil. Está lá tudo: a insuportabilidade do quotidiano, o mesmo horizonte repetindo-se dia após dia sem qualquer piedade, o jantar que se segue ao almoço que se segue ao pequeno-almoço que se segue a uma noite de sono povoada com as mais banais fantasias de ameaça ao chefe ou ao colega, porque o único heroísmo possível veste-se com a capa do sonho, a voz da mulher ou do marido ou dos filhos ou dos pais ou dos sogros, todas as vozes confluindo no coro da modorra, da lassidão, do que não se querendo ver-lhe o fim, nunca mais acaba. A esta receita infalível, só lhe falta o dinheiro.

Quando o sujeito cronicamente farto de tudo consegue por milagre apartar uns cobres e não lhe sobra contas por pagar – ou, sobrando, estão no território mágico do futuro desabitado – a primeira coisa em que pensa é onde torrar aquele dinheiro (poupar é um luxo a que apenas um coração tranquilo ou determinado de pode dar). Perto ou longe, o que interessa é mudar de cenário.

Nem tudo são rosas, claro está. Embora o horizonte de facto mude, continua a haver prédios, restaurantes, passeios, cães, pessoas e, inevitavelmente, rotina. A novidade, mesmo nos recantos mais exóticos do planeta, nunca é absoluta, pelo que um sujeito, passados apenas uns dias, já dá por si a torcer o nariz à repetição que nos primeiros dias lhe aparecia com a roupagem da jovialidade adolescente. Um par de daiquiris generosos em rum ajudam, assim como aquele pôr-do-sol que o sujeito normalmente conhece apenas do wallpaper do ambiente de trabalho do Windows, mas até o álcool e a paisagem têm efeitos limitados. Não tarda, o sujeito dá por si a implicar com o que o rodeia; é a praia – a areia demasiado fina que não sai nem com uma oração à Nossa Senhora do Elefante Azul –, a comida – demasiado picante, demasiado insossa, demasiado diferente – e, claro está, os outros turistas canibalizando a experiência da novidade.

Passados poucos dias, o turista já veterano, especado à frente daquele monumento que no rectângulo do folheto desdobrável lhe parecia absolutamente imperdível, consegue apenas dizer – normalmente entredentes e para si mesmo – “em casa temos melhor”. Não se pode culpá-lo. O turismo de massas não é propriamente pródigo na veiculação de experiências. Os percursos, por mais incríveis que pareçam, foram desenhados para serem consumidos, e não usufruídos, e as cidades que se prestam a transformar-se em atracções turísticas são uma linha de montagem onde o turista, cansado das filas, deixa uns trocos a troco de um sorriso para a selfie.

E no fim sobram apenas as fotos, uma t-shirt de má qualidade cujo “I <3 Berlim” estampado desbotará por completo na terceira lavagem e um par de feridas nos pés. Mas valem-lhe as fotos, postadas de cinco em cinco minutos num instagram onde no resto do ano só se vêem memes de 2012 e fotos de gatinhos. Nas fotos, o turista não conhece desânimo ou cansaço, desilusão ou tédio. Os sujeitos que estão do outro lado do monitor, encafuados no escritório, suspiram na contemplação do paraíso que o sujeito regista em jeito de fotodiário. Um e outro – aquele que está e aquele que vê estar – partilham a mesma má-fé. As fotos são a evidência de um privilégio, mesmo que esse privilégio esteja constituído na banalidade. A experiência, essa, pode ser torcida até coincidir com o molde dos retratos de férias. A verdade, em última análise, é a última coisa que um sujeito quer apresentar num jantar onde calhe a falar das férias. A verdade seria o fim de um negócio bilionário e, muito mais importante, da possibilidade de escapar ao vazio da rotina com que um sujeito sonha onze meses por ano. A verdade, lol.
Sigam-me para mais receitas.

22 Out 2020

Carlos Barretto

[dropcap]P[/dropcap]ara um compositor, tudo é música? Para um instrumentista, tudo é música? Nunca mais me esqueci da primeira vez que vi o Maestro Carlos Barretto tocar o seu contrabaixo. Não era só uma dança entre ser humano e instrumento, logo um contrabaixo, de formas ancestrais, femininas e férteis. Não é possível ouvir música da mesma maneira. Não são as mãos que tocam, uma a pisar as cordas no travessão e a outra a fazer vibrar o arco ou, quando nua sacode, puxar e afaga as cordas na barriga do instrumento. É uma simbiose. O contrabaixista não existe em palco sem o contrabaixo. O contrabaixo sem contrabaixista é um vulto pesado, inerte, deitado ou encostado. Mas ali em palco dança. Era o que me parecia. Às vezes, o Carlos Barretto desaparecia, dissolvido na escuridão do palco, confundido com o fundo, e o contrabaixo dançava sozinho, com a base pontiaguda. Mexia-se para a frente e para traz, rodava, inclinava-se como se fosse um dos elementos de um par de dança deixado solitário no palco. E depois via-se o corpo todo daquele humano a encaixar a massa instrumental como num abraço não estático. Umas vezes parecia dançarem um slow e o movimento era lento, lânguido, voluptuoso. Outras vezes, parecia um combate entre dois lutadores que procuram encontrar zonas do corpo do adversário, diminutas, no porte gigantesco do seu corpo, onde encontrassem as pegas. Entre o abraço dengoso do amor malandro ou suave e os movimentos abruptos dos combatentes, não havia ser humano nem instrumento isolados um do outro. Há técnicas rudimentares para agarrar pela mão esquerda ao alto, para descer e subir, para pisar as cordas, para pegar no arco ou tocar com os dedos em cruzamento perpendicular nas cordas. O contrabaixo não pode estar afastado muito nem tão próximo que se asfixie o instrumento e não deixe margem de manobra. O contrabaixo tem de poder ir e vir e ser feito rodar sobre si próprio. Tem de se deixar esse espaço à medida de um braço esticado. Não pode ser abraçado de tal forma que os dedos encontrem as costas do instrumento, no lugar oposto onde estão as cordas. Mas a magia não é nunca surda nem muda, como se o palco estivesse dentro de uma piscina e assistíssemos ao concerto debaixo de água. É a música que dá alma ao instrumento e acorda o espírito no virtuoso. Nenhum movimento, nenhum gesto, nenhuma constelação de movimentos e gestos existe em silêncio. Mesmo o som solto de uma corda tem um tom, um volume, um ritmo, uma melodia. Em conjunto, não sei o que acontece. São muitos pontos para muitas cordas em que o braço pode ser apertado e as cordas podem ser repercutidas. Uma só orelha não dá para acompanhar cada pormenor. A audição capta a massa complexa da música e até os silêncios, as pausas, a lentidão e a velocidade. É das mãos que nasce a música? É nas cordas só como superfície intervencionada do instrumento? É no contacto e acção recíproca entre mãos e cordas? Mas a ponta de metal que serve de base ao contrabaixo tem de intervir na música, também a posição do contrabaixo – de costas para a barriga do instrumentista e virado de frente para o público – tem de intervir na produção do som. É no instrumento? Como se quando está no estojo parece um grande animal enfiado num saco de cama. Nem está mudo. Está em silêncio, quando está arrumado em casa ou no porão de um avião para ser transportado. É no instrumentista? Nos gestos técnicos que fazem voar as mãos sobre cordas e braço? Ela vem do contacto de um com o outro. Não há dúvidas. É de lá fisicamente que procede, mas ecoa no palco e na sala toda. Mas não fica aí, no espaço, parte da expansão e propagação no espaço, precisa do espaço para fazer a sua travessia até ao espectador, repercute-se na epiderme, nas orelhas e viaja fisicamente para o interior anatómico. Mas ninguém ouve só volume sonoro medido em decibéis. Tudo é transformado e há uma transfiguração plástica causada por uma sensação acústica. De onde vem a música? Acontece no interior do maestro ao mesmo tempo que toca ou aconteceu antes, em silêncio na cabeça do Maestro? E quando acontece em silêncio é uma não coisa? Não existe já sem ser escutado um único som? A música tem de acontecer na sua origem como acontece no seu destino, no espírito. O espírito não tem orelhas e se tiver são diferentes dos abanos que temos para captar som. Antes de soar no instrumento ou ao soar no instrumento, não há uma relação mecânica em entre percussão e percutido. Acontece a música como um movimento no coração ou nos pulmões. Não é só a pulsação nem a respiração que tem ritmos e batidas, sons e pausas, intermitências. A vida tem altos e baixos, é lenta até estagnar ou rápida e alucinante. Às vezes afasta-se e não conseguimos ouvir nada. Outra vez está presente nas nossas vidas, como quando amamos. Um músico tem de estar sempre numa relação com o amor, pode ser infeliz e de coração partido, mas pode ser esfusiante e transbordante. É um tradutor numa linguagem audível do que se passa sempre com cada ser humano, sem que se aperceba que na dissonância, cacofonia, desarmonia, barulheira há uma expressão da nossa vida, como num adagio ou na lentidão do pôr do sol, inexorável, mas temporal. Às vezes a vida é ao som de um drum&bass outras vez trash metal, outras ainda sinfónica, outras é silenciosa.

O maestro e o contrabaixo são o instrumento da música que pode acontecer sem vibrar, mas insta à produção e tudo transforma, mesmo visualmente, ainda que sendo acústica a sua manifestação e auditiva a sensação que a capta. Não se encontra no espaço ocupado pelo virtuoso e pelo instrumento, não existe apenas na sala, no lugar da sua reprodução mecânica. É atmosférica.

O ser humano existe numa atmosfera musical mesmo quando desespera em silêncio ou na pausa absoluta da morte.

22 Out 2020

A centésima vem-se como a primeira

[dropcap]E[/dropcap]screvo hoje a centésima crónica no ‘Hoje Macau’ e podia ser a primeira. Todos os faunos têm cem anos. Para comemorar, recorro à grande literatura, mais concretamente, a Lawrence Durrell e ao seu ‘Quarteto de Alexandria’. Espero poder dedicar a crónica nº 200 ao ‘Quinteto de Avignon’, mas só no caso – fica desde já o repto – de algum editor atacar a tarefa de, até lá, o verter em língua portuguesa.

A abrir o capítulo III do quarto volume da tetralogia (‘Clea’), uma poderosa reflexão surge a interromper a história, ou melhor, o caudal turbulento das muitas – e inevitavelmente inacabadas – histórias que unem ‘Justine’ a ‘Balthazar’ e este segundo tomo, depois, a ‘Mountolive’ e a ‘Clea’.

Trata-se de um capítulo em que se dão a ler trechos salteados de um caderno que o escritor Pursewaarden, personagem amiúde ausente mas exaustivamente citado e referido em todos os volumes do quarteto, foi redigindo à margem das suas obras. Começa assim o capítulo: “Volto – como a ponta da língua a um dente esburacado – ao velho tema da arte de escrever! Será que os escritores não sabem falar de mais nada? Não.”

À doce ironia, segue-se o cortejo com meia dúzia de figurantes que passo – com muito prazer – a apresentar nesta festa da centésima crónica.

Primeiro figurante, ou aquele que procura na profundidade (e não nas achas imediatas do quotidiano) um reflexo que permita desencantar a música de fundo dos dias e nela entrever o mistério que afinal nos anima, ainda que barricado, é claro, pela impaciência que é a primeira morada da finitude e, claro, da nossa própria morte ainda em vida:

“Keats que se embebedava com palavras, procurava nos sons vocálicos as ressonâncias do seu ser íntimo. Batia na tumba vazia da sua morte precoce com um dedo impaciente, escutando os pálidos ecos da sua imortalidade”

Segundo figurante, ou aquele que entende piamente que somos falados através da linguagem e não o contrário, apesar de nela se poder intervir sem as ilusões próprias daqueles que Ortega Y Gasset designou por “señoritos satisfechos” ou “hombres-masa”. A arte da escrita pressupõe, de facto, a existência de um mago que o próprio não vislumbra e que os “señoritos” vêem por todo o lado, como se fossem excertos de videoclipes, de podcasts, de palestras via zoom e de tudo o mais que do fluxo da moda – e da necessidade – se faz agora produto (“produto” que, na alta voragem, desaparece minutos depois de se ter enunciado):

“Byron era hábil com o inglês tratando-o de senhor para servo; mas como a linguagem não é um lacaio, as palavras cresciam como lianas tropicais entre as fendas dos seus versos, quase estrangulando o homem” (…) “sob a ficção do seu eu passional existia um mago, embora ele próprio não tivesse consciência do facto”.
Terceiro figurante, ou aquele que sabe que a verdade é o espaldar do absoluto. Já se sabe que nos nossos dias o que se procura é apenas a oscilante fibra do sentido. No entanto, a verdade, subtraída à dioptria platónica, podia confundir-se com uma espécie de invisível rasgo que, por vezes, empurra o texto para onde menos se espera. Há autores que têm empatia com estes solavancos ‘iluminados’ e até os dominam ao jeito dos praticantes de aikido que sabem converter a energia de quem ataca na energia de quem se defende. No caso de John Donne é a imagem do “coice” que assiste ao grande momento do “nervo”, ou seja, ao instante em que a linguagem e a sua sombra se vêm ao mesmo tempo por puro sortilégio:

“Donne parava quando alcançava o nervo, fazendo ranger todo o crânio. A verdade devia fazer-nos escoucinhar, pensava ele”

Quarto figurante, ou aquele que advoga que existe quem fique acocorado e tremendo diante da sua escrita (lembro-me muito de José Régio, neste caso) e acabe depois por compensar esse facto e essa inércia (da criação) ao jeito de um Bernardim Ribeiro: frases de muito fôlego, longas e aprazíveis na sua geometria de modo a que quem delas se aproprie (o leitor) possa ter a ilusão de que a patinagem artística é um modo de leitura que se confunde com um poço da morte recheado de vaselina; já o vaticinava Pope:

“Alexander Pope, numa angústia de método, como um menino com prisão de ventre, lima as suas superfícies para torná-las escorregadias aos nossos pés”

Quinto figurante, ou aquele que sabiamente reconhece que, na grande literatura e na grande poesia, o que se narra também se apaga. Mais do que os enredos, há fantasmas que ficam no ar, nuvens circulares que levitam dentro do esófago ou silhuetas imaginativas que nada devem a quem quer literal e mecanicamente entender o mundo. O mal reside nesse instinto de saber subir nas alturas com muita leveza, sorrindo para a imensidão e para a pequenez que nela (tantas vezes involuntariamente) reina. Na há, pois, grande literatura e grande poesia sem mal:

“Os grandes estilistas são os que menos têm a certeza dos seus efeitos. Ignoram que o seu mal é nada terem para dizer”

Sexto figurante, ou aquele senhor chamado James Joyce que, talvez por puro modismo, é quase sempre um caso à parte. Sabe-se que tinha que dar aulas para ganhar a vida “à razão de um xelim e seis dinheiros por hora”. Por isso, sobre a rabugice que se lhe conhecia, acrescenta ainda o nosso Pursewaarden: “devia ter-lhe sido facultada protecção contra os inefáveis da sua espécie que julgam estar a arte ao alcance de qualquer parlapatão; que a considerem um elemento do dote de prendas sociais, uma aptidão de classe, como as aguarelas para as damas vitorianas”.

Este naco de prosa sobre Joyce é particularmente sensível, pois, embora as aptidões de hoje sejam diferentes das de há sete décadas, a tentação persiste. Razão por que o escritor Pursewaarden havia de referir, mais à frente, que “Elliot aplicava um tampão de clorofórmio gelado sobre um espírito encerrado numa selva de dados”. As iliteracias próprias do tempo da rede já por aqui afocinhavam, como se vê.

Dir-se-ia que ser pioneiro, à moda de Lawrence, é conseguir antever a própria morte da literatura e sobre o seu cadáver conseguir rescrevê-la, mesmo que a cegueira domine a insciência das bancadas do grande estádio onde hoje tudo se joga a olhar redundantemente apenas para o dia de hoje, ou para o agora – ápice – instante – isso – único (e eu aqui, embalado no sermão da centésima, a piscar o olho ao grande António Maria Lisboa, Saravá!).

22 Out 2020

Encruzilhadas

[dropcap]D[/dropcap]epois dos Mestres Cantores eis os Mestres Decapitadores: é uma fanfarra enleada em bosta de cão, na farsa deste século que tropeça nos próprios pés. O pai de uma aluna e um militante islamita radical emitiram uma “fatwa” contra Samuel Paty, o professor decapitado na sexta-feira na região de Paris. É um ver se te avias de fátuas e peregrinas arrogâncias, depois dos 15 segundos de Fama do Andy Warhol temos os 15 segundos de Empolamento do Poder Divino.

Dizem os testemunhos, Samuel tratou com deferência os seus alunos islâmicos e antes de mostrar as caricaturas de Maomé nas aulas explicou-lhes porque teria de as mostrar aos outros colegas, não os desrespeitou nem o seu gesto tinha um carácter denegridor.

Em 2006, por ingenuidade minha, na universidade em Maputo, querendo mostrar como as nossas escolhas quanto à identidade sexual que assumimos têm o seu quê de construção social, passei nas aulas o filme Crying Games/Jogo de Lágrimas, de Neil Jordan, um dos mais belos filmes que conheço sobre o amor e os conflitos que este pode gerar se toma uma feição desviante em relação à intratabilidade da educação que nos condicionou.

Fui depois chamado à direcção do departamento: para um grupo de estudantes islâmicos eu havia “pecado” ao mostrar um transsexual nas aulas e ao falar desassombradamente de sexo. Chocou-me não terem sido frontais, o espírito de baixa bufaria entranhado. Foram umas semanas de tensão no relacionamento com os alunos.

Chegado de outras coordenadas não imaginava que o filme chocasse jovens universitários e supus que as virtualidades do debate que o filme suscitaria seriam vantagens sobre qualquer melindre.

Tive sorte, o então coordenador do curso meteu-se do meu lado e “decapitou” logo a avançada moralista; estou incerto sobre se o resultado seria o mesmo agora – e este retrocesso é uma realidade descoroçoadora.
Hoje, na fronteira norte, supostamente a 3000 km de uma ilusória geografia, decapitam-se pessoas por dá aquela palha.

Esta semana, a minha amiga Aliete Matias, postou no fb esta fotografia de Jessica Antola, de uma Mãe Mursi (uma etnia da Etiópia) armada, e comentou “não encontro palavras para esta foto”. Também não encontro, mas aquela arma é para defender o filho nos portais do inferno com que aquela mulher se depara regularmente.

Agora que um filho da mãe de um burguês – a ouvir no leitor de cds de um Peugeot da última gama o mais recente disco da Fatoumata Diawara, baixado do Youtube – enquanto aguarda nos semáforos, decida lançar uma fatwa sobre um professor (tudo o indica) que não quis provocar, de modos delicados, num país que não reconhece a alegação da apostasia, é demasiado cínico e macabro.

“Um dos nossos compatriotas foi morto hoje porque ensinou a liberdade para acreditar e não acreditar”, acrescentou Emmanuel Macron. Como deve proceder a democracia diante de quem enfia o garfo no coração dos seus direitos mais profundos e o revolve? Como reagir face aos que usam a liberdade para negar a dos outros e não sabem viver senão em suposto apostolado?

Há um aforismo do poeta Wallace Stevens que talvez aqui caiba: «A intolerância a respeito da religião dos demais é tolerância comparada com a intolerância a respeito da arte dos demais». Ou seja: talvez não seja só a nossa liberdade que está em jogo como também a nossa arte, vista à luz dos radicais islâmicos. Lembremo-nos das estátuas dos Budas em Gandara.

Se o apelo da preservação da liberdade não for suficiente como reacção civilizacional que ao menos o da defesa da arte seja uma razão suficiente para a urgência de pensar e articular uma resposta para estes problemas, sem esquecer que é no vazio do pensamento que se localiza o ninho da víbora.
Sem isso, só se seguirá aquilo que Houellebecq previu: a obediência.

E já que chamei o poeta à liça aproveito para apresentar uma primeira selecção dos 289 adágios ou provérbios que o Wallace Stevens deixou e a que os organizadores, num livrinho póstumo, deram o nome de Adagia.  Esta é uma primeira selecção de entre os cento e cinco primeiros. A tradução é minha:

Cada era é uma casinha no pombal.
Dos vermes, faz o poeta trajes de seda.
Os poetas de mérito são tão aborrecidos como a gente de mérito.
O pensamento é uma infecção. No caso de certos pensamentos converte-se em epidemia.
Parece o poeta outorgar a sua identidade ao leitor. É mais fácil reconhecer isto quando se ouve música. Refiro-me ao seguinte: à transferência.
A imaginação deseja que a consintam.
A coisas vistas são as coisas como são vistas.
Tem em conta: I. Que o mundo inteiro é matéria para a poesia; II. Que não existe nenhuma matéria especificamente poética.
O poeta é o intermediário entre as pessoas e o mundo em que vivem, e também entre as pessoas entre si; mas não entre a gente e algum outro mundo.
A poesia não é o mesmo que a imaginação tomada isoladamente. As coisas são em virtude de interrelações ou de interacções.
A poesia deve ser algo mais que uma concepção da mente. Deve ser uma revelação da natureza. As concepções são artificiais. As percepções são essenciais.
Ler um poema deveria ser uma experiência, como quando se experimenta um acto.
A morte de um deus é a morte de todos.
Em presença da facticidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação.
Tudo tende a tornar-se real; o todo move-se na direcção da realidade.
(à suivre)

22 Out 2020

Duelo ao sol

[dropcap]T[/dropcap]erça-feira, dia 20 tem logo pela manhã uma manifestação em frente da Assembleia da República.

A razão, mais próxima, da convocação é proposta de alteração à lei do cinema em que, a propósito da recomendação diretiva europeia sobre a forma como as plataformas de exibição VOD (vídeo on demand) vão contribuir para as cinematografias nacionais em territórios da EU.

A razão de fundo é estrutural e resulta da ineficácia do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual – enquanto líder das ações do poder político para o cinema dando cumprimento às políticas públicas para a atividade cinematográfica e audiovisual. Esta ineficácia resulta primeiramente da incapacidade do Estado nos últimos 40 anos em entender e atuar em consonância o que é o cinema e audiovisual nas sociedades da informação e comunicação ( Castels, Manuel ; A sociedade em rede; o poder da identidade; o fim do milénio) , isto para nos remetermos ao período da normalização administrativa do regime da III República.

Em território nacional raras foram as vezes em que o cinema chegou à agenda dos media por motivos positivos, salvo quando da presença do cinema português em festivais como Veneza, Cannes, Berlim, Toronto, Sundance, Roterdão, Locarno, Rio de Janeiro, S. Paulo, Shangai, Tokio, Istambul, ou outros de relevância equivalente, o que felizmente e apesar da inabilidade e incompetência dos decisores políticos, vem sendo habitual e com presença nos filmes premiados.

As políticas públicas para o cinema trabalham sobre três atividades complementares e interligadas mas distintas do sector de atividade cinematográfica; produção, distribuição, exibição.

O digital, os satélites e a internet vieram alterar significativamente as três áreas de trabalho, como é por todos constatável, mas e apesar da famosa “transição digital” nas comunicações de intenção dos sucessivos governos, no cinema e na legislação que o enquadra, de estrutural pouco tem sido mexido.

A ser claro, o cinema como produtor necessário no diálogo contemporâneo como força construtora do mundo, como instrumento do soft power necessário e urgente a um pequeno estado como Portugal com forte identidade no mundo; o lugar do cinema na diplomacia cultural; a sua potencia e dimensão da nova economia digital; na criação de novos empregos no sector para os novos profissionais que saiem das escolas de artes e cinema; o lugar do cinema na coesão identitária e territorial nas aceleradas mudanças sociais contemporâneas, está longe das preocupações dos decisores políticos e até das preocupações de muitos do “fazedores” do cinema.

No recente estudo encomendado a António Costa Silva “visão estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030”, o digital está obviamente presente e domina as percepções de futuro. É afirmado: “Hoje, no nosso planeta, temos cerca de dois mil e seiscentos milhões de máquinas, smartphones, computadores que estão interconectados e a estimativa é chegar a quarenta mil milhões em 2040. É um aumento de dezasseis vezes, e tudo isto vai exigir energia” . A sociedade ecrã, denominação com que vários autores caraterizam as sociedades atuais, transportou os filmes da sala escura para o bolso do casaco, para os transportes públicos, cafés, parques de estacionamento, salas de espera, não se trata apenas de um aumento exponencial de ecrãs mas sobretudo de alterações de hábitos de consumo, bem como de oportunidades para sectores como o da atividade cinematográfica e audiovisual, dada a apetência para o crescimento do consumo por parte dos públicos; mas a esta afirmação o documento não chega. O plano no ponto 3.1.10 – Cultura, Serviços, Turismo e Comércio – da página cem à cento e quatro, a palavra cinema surge na frase : “A importância do sector da cultura no funcionamento das sociedades modernas é incontornável, pelas mais-valias e impactos que traz em termos de inovação e criatividade. Existe um conjunto de iniciativas do governo para lidar com a situação de emergência vivida neste sector, que passa pelo apoio aos agentes culturais, e que deve ser reforçado para contemplar os produtores de bens culturais, nas áreas da música, literatura, teatro, cinema e artes plásticas”. Esta é a realidade da discussão pública sobre o cinema em Portugal.

Temos é certo discussões nas páginas do FB ou em associações e núcleos de maior ou menor dimensão. Ainda hoje em Portugal para muitos a discussão é sobre a diversidade e pluralidade das obras, ou ainda sobre critérios de gosto impostos pelo Estado, discussão que é poeira para os olhos, conversa inútil, que promove um certo espetáculo de boxe ( sem a qualidade do grande filme Belarmino) , em se posicionam de um lado os lutadores do cinema “arthouse de qualidade” e do outro “ o cinema para o público ”, como se a questão cinema em Portugal se traduzisse nesta problemática.

Sobre a manifestação desta terça feira demonstra o que todos reconhecem; a dificuldade de financiamento. Não oferece dúvida que as operadoras /plataformas de difusão e exibição na web devem pagar, tal como pagam os canais de difusão tradicionais, em função da publicidade que passam. Esta é uma das formas de financiamento do cinema e do audiovisual em Portugal e não há, além da inscrição de verbas diretas no orçamento de Estado, ou da criação de medidas articuladas entre diferentes ministérios, ou outros incentivos de natureza fiscal, outras formas significativas de financiamento. Um dia, quando atividade tiver a centralidade que exige, complementarmente às formas de financiamento a partir das politicas públicas para o cinema, será também possível em Portugal o acesso ao capital de risco para montagem financeira dos projetos cinema.

A forma como esta nova contribuição deve acontecer não tem de ser necessariamente esta ou aquela, desde que esta ou aquela, sirva de facto a criação cinematográfica – filmes e séries, em Portugal.

O ICA, o instituto público que tem a finalidade de dar cumprimento às políticas públicas para o cinema, como sempre, não é líder na discussão, e tem ele próprio dificuldade em saber e propor que políticas públicas para o cinema. Aliás a própria tutela também dado que muito recentemente foi anunciado um estudo a uma empresa Inglesa sobre como devem ser a políticas públicas para o cinema de Portugal. Parece e é estranho, mas é uma notícia que não foi desmentida.

A situação que há muito se mantém é a de um ICA que delega em alguns atores da atividade cinematográfica a decisão da efetivação da política pública para o cinema. Esta realidade, sejam produtores, realizadores, distribuidores, argumentistas, diretores de fotografia, atores, ou outros, é uma perversão e o abdicar do que lhe é próprio na sua competência e do contrato dos portugueses com os seus governos. É historicamente demonstrável, tem sido sempre isto sustentado com o paleio “democrático” de ouvir os “agentes” do sector que, convenhamos, em vários casos tem um pensamento sobre o papel do cinema nos estados contemporâneos, e em particular no caso de um pequeno estado como Portugal, se não nulo, muitas das vezes próximo da ignorância. Entretanto na alta administração do Estado Português, s a preocupação com outras matérias, facilmente lava as mãos e delega nas vozes que se conseguem fazer ouvir nas TVs e Imprensa. E o cinema lá vai andando aos empurrões 80% a baixo da sua potencia e até necessidade, na construção do tecido social, cultural, económico, do país.

Dado o “estado de coisas” que o cinema português vive, é tempo de criar a Ordem do Cinema. No ordenamento jurídico português as Ordens Profissionais são caracterizadas como: “ associações profissionais particulares constituem-se para defender os interesses de um determinado grupo de pessoas e não estão sujeitas a qualquer tutela do Estado.

As Ordens Profissionais prosseguem interesses públicos traduzidos na garantia de confiança nos exercícios profissionais, que envolvem especiais exigências de natureza científica, técnica e deontológica.

São associações públicas criadas pelo Estado por devolução de poderes (recebem do Estado poderes a ele pertencentes), e, por isso, a sua criação e organização é regulada pelo direito público e não pelo direito privado (embora certos aspectos do seu funcionamento possam ser regulados pelo direito privado). Integram a Administração do Estado (administração autónoma), participando da atividade administrativa.
 Estão sujeitas a uma tutela estadual mais ou menos intensa.

As profissões ordenadas estão, por princípio, sujeitas a registo oficial dos seus membros, o qual tem uma função externa de publicidade e de proteção da boa fé dos cidadãos quanto à habilitação profissional.

Não existe em Portugal uma lei-quadro das Ordens Profissionais (a criação de Ordens Profissionais tem resultado de diplomas legislativos avulsos). Porém, traço comum a todas elas é o seu interesse geral relevante, apertados preceitos deontológicos e estrutura disciplinar autónoma (as penas disciplinares podem ir até à interdição do exercício da atividade profissional).

Segundo Diogo Freitas do Amaral que as Ordens Profissionais são associações públicas que:

1.º – Só podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas;
 2.º– Gozam do privilégio da unicidade;
 3.º – São de inscrição obrigatória;
 4.º – Podem impor a quotização obrigatória a todos os seus membros;
 5.º – Controlam o acesso à profissão do ponto de vista legal e deontológico;
 6.º – Exercem poder disciplinar sobre os seus membros

Verificando como o cinema tem vivido nos últimos 40 anos e o que é a sua potência em 2020, a criação da Ordem do Cinema, parece ser o instrumento necessário e aglutinador do sector para o desenvolvimento do cinema em Portugal.

20 Out 2020

Andar sobre as águas

Palácio Pimenta, Lisboa, domingo, 11 Outubro

 

[dropcap]I[/dropcap]gnorando as recomendações sanitárias, visito a Feira Gráfica, versão novo normal de exposição de edições e sob o lema-manifesto, «continuar a editar!». A luz quente e precisa da tarde parece partir das salas do Pavilhão Branco, salomonicamente distribuídas pelo gosto e critério dos curadores, Emanuel Cameira, Filipa Valladares, Gonçalo Duarte e Xavier Almeida. «Os dois verbos que compõem o título – continuar e publicar –, quando juntos, supõem aliás duas tomadas de posição: a de não desistir e a de zelar por.» Perto de uma centena de projectos e presenças, ainda que não incluam tudo o que mexe nos interstícios, confirmam uma vitalidade que mastiga aos limites o objecto-livro, e nele absorve a ilustração, o desenho, a fotografia sob a batuta de design autoral forte. Como robusta se faz a afirmação (política, cultural, das muitas diferenças), apesar de aqui e ali ceder a modismos invariavelmente bacocos. Da abysmo constavam, escolhidas pelo Emanuel, as ilustrações do João [Maio Pinto] para «Os Grandes Animais», e as do Rui [Rasquinho] para «Aaron Klein». Além do rasgado retrato de Ramón pelo Rui [Garrido] – peça número 13, como não podia deixar de ser. Uns dias antes, participei em (quase) debate sobre os «constrangimentos e oportunidades» de publicar nestes tempos de pandemia. Nada de muito novo, até porque há anos fervemos em crise, neste país que, além de não ler, detesta os livros e o que eles significam. Projectos como este dizem-me que, apesar das diferenças e dos insultos, há quem teime em tocar a reunir as vozes e os instrumentos na banda da aldeia.

Horta Seca, Lisboa, terça, 13 Outubro

Na monda de qualquer texto costuma surgir flor orvalhada. No caso, na preparação dos fragmentos dedicados à investigação da natureza e outros problemas gerais, com o mano António [de Castro Caeiro], deparo-me com esta dúvida, farei parte dos do Teatro de Dionísio ou instalou-se o mau tempo nas nossas existências? «Porque são os artistas do Teatro de Dionísio, o mais das vezes, pessoas da pior espécie? Porque não tomam parte, de maneira nenhuma, daquilo que faz sentido ou da filosofia. Porque passam a maior parte das suas existências com as exigências da sua arte e porque passam tanto tempo em situações fora de controlo, por vezes até em grandes aflições. Ora tanto a perda de controlo como as aflições são elementos que constituem a precariedade.»

Casa da Cultura, Setúbal, sábado, 17 Outubro

Antes que nos voltem a fechar, fui à beira Sado, margem de tantas casas, respirar imagens. Até final de Novembro, por ali acontece mais uma edição da Festa da Ilustração, desta (quase) sem a minha intervenção. Logo cedo e na ressaca do ano passado, achei melhor excluir-me das tarefas de alinhamento e desafio, de arranjo e reclame. As contas de cinco edições fixaram uma fôrma que nem ela precisa de mim, nem eu preciso que me agrave o cansaço de fazer tudo e mais alguma coisa. Ou mais alguma coisa na vez de tudo.

Que melhor maneira de começar do que pela surpresa? Na Casa da Avenida aparcou a homenagem ao João [de Azevedo], na qual se incluem os seus derradeiros originais, telas que ilustram meia dúzia de contos (quase) eróticos de Fernando Cabral Martins. «Taxi» (ed. Estuário) esteve para ter edição da abysmo, mas estacionamos muito e conduzimos devagar, sem portanto conseguir dar resposta veloz à maior parte das chamadas. Nem sempre me lembro de avisar que preciso antes construir o veículo em que nos deslocamos.

Perdi já corridas imperdíveis, mas também ganhei paisagens ficando quieto. Certo é que me deslumbraram, mais do que no antes visto, estas passagens dos corpos nos pequenos paralelepípedos em movimento, cores fortes, perspectivas rasgadas, representações fluidas como as águas onde a vida se inscreve. Quem vai ao volante quando nos atravessamos em andamento?

Disse o mapa que o percurso deveria continuar para outra Casa, a irreconhecível da Cultura, contaminada pela doença dos tol(d)os que atacou a cidade com um decorativismo de vómito. Logo na montra se percebe que algo mexe no miolo. «Esta exposição só acontece na cabeça de cada um. E a cada dia, na Casa, o panorama do visível mudará. Estas formas estão vivas. À maneira de André da Loba (desenho algures na página), se recortasse em madeira colorida as palavras, para que explodissem em potência e clareza, depois de formas, traria de novo fluidez e somava-lhe luxúria. Mas seria difícil manter as letras quedas sem que logo começassem a recombinar-se: luxidez, luximas, formúria, formidez, fluimúria, fluxúria.» O André, nesta encantada «Chius, rangidos, frufrus», «expõe um laboratório onde apresenta, pela primeira vez com esta dimensão, os resultados da sua tentativa de compreender as estruturas da vida. A evolução destas formas conquistaram caminho sobre todos os terrenos como só a correnteza da água sabe fazer. Também no concreto da sua profissão, onde foi aplicando um vocabulário pessoalíssimo a cada solicitação, parecendo resposta libertária à sua própria intuição e curiosidade, sem os condicionamentos que a prática da disciplina impõe. Em pano de fundo, um degradê. A subtileza deve representar-se assim, em suaves mudanças de tom, a começar no deslumbramento da descoberta inicial, aquela que muda a maneira de ver. (…) Cada ser, cada cor reflecte luz e pensamento em distintos comprimentos de onda. André da Loba criou uma oficina de escuta permanente. Não sei como ouve melhor, se com a mão, se com os olhos.»

Levam-nos os passos à Lapsos, onde se recolhem «Ilustradores Ilustrados», vistos e revistos pelo João [Francisco Vilhena], e assim apresentados por este vosso criado: «Usando a sedução para fazer desaparecer a máquina, capturou retratos memoráveis dos criadores de irrequietas visões. Além do lado documental, que conserva fragmento de movediço tempo, cada ilustrador ilustrou-se. Com obsessões e fantasias, personagens e vultos referenciais, leituras e materiais do seu trabalho, simples estados de espírito. Vinte anos depois, oito desses autores, foram convidados a continuar o diálogo. E o fotógrafo voltou a estender a identidade como cenário, assombrando o tema com imagens-fortes: um pai faz-se papel de pintar, alguém acaricia um gato como se fosse a cor, um cachimbo torna-se ferramenta de investigação do olhar, há quem se veja apanhado em rede de atacadores dos sapatos-caminho, ela usa as unhas para desenhar gritos, ele afirma-se caçador de vírus, e por perto está o encantador de serpentes. Uma cartola parece conter as ideias que fogem de quem brinca com elas. Mesmo quando se esconde, o rosto apresenta-se enquanto palco maior. Os elementos são aparentes distrações, afinal atalhos para o essencial. Gente que não sabe andar sem um lápis.»

No extremo da avenida, encontram-se o fulgor de Thomaz de Mello, mais um resgatado, pelo Jorge [Silva], ao pó do esquecimento. Estas recolhas são caixas de fósforos, coisa minúscula, mas que, risco após risco, iluminam múltiplos aspectos de obras que se voaram explícitas abaixo do radar, em artes aplicadas aos quotidianos mais anónimos, mas que teimam em fixar-se nas nossas memórias de meninos, que assim se cristalizam perante estes bonecos. Perdi-me em «Os Lusíadas» compostos que nem espelho daqueles anos de sessenta e setenta em que a noite não impedia a dança.

Subimos à Gráfica, ruína ainda virgem e a tremer de potencial, memória industrial na carne da cidade, onde bem se emparceiraram a «Ilustração Portuguesa» e a «Prata da Casa», recolhas colectivas que se são faróis de enorme e diversa energia. Como se o miradouro vizinho abrisse vistas e horizontes ali, sob os ecos das máquinas de multiplicar palavras. E possibilidades.

20 Out 2020

Mudar, outra vez

Mudemos de casa: porque é preciso
Arrumar as dores de outra maneira,
Certificarmo-nos da existência do corpo
Em novos lençóis, voltar a ter ilusões,
Lugar propício para a curiosidade
De alguns que nos fazem acreditar
Que a vida é um amplo anfiteatro
Para as mãos.
Portadas Abertas, Jorge Gomes Miranda

[dropcap]«G[/dropcap]osto muito do que escreves, a sério! Mas os temas são recorrentes: a mortalidade, a tristeza, o ódio a estes tempos…».

Caramba. Este amigo-leitor atento tem toda a razão. Quando mo disse apeteceu logo replicar com a citação do Nelson Rodrigues sobre o valor da obsessão. Mas, por definição, até isso seria naturalmente recorrente.

Isto porque queria escrever sobre mudança, algo que perpassa muitos destes textos e foi explicitamente tratado há dezasseis semanas aqui mesmo. Então porquê outra vez?

A resposta imediata e sorridente que o meu interlocutor recebeu nessa altura foi “sei lá”. Mas é mentira: sei porque aquilo sobre o que escrevo já está há muito no que quero ou não quero, no que acredito ou recuso. E um tipo, a partir de certa vida (podem dizer idade) vai ganhando coragem e alguma elegante impunidade (pronto, esta parte sou eu a sonhar o que gostaria de ser).

Portanto: fazendo um exercício que sinceramente não gosto de fazer percebo que desde há muito tempo aborreço as pessoas com variações sobre os mesmos temas. Só que depois do pânico cruzo as pernas, reclino-me e fico quase confortado e incomodado com o provérbio que daí sai: é a vida. E é mas por vezes e sobre certos momentos podia oferecer um tempo para preparar certos mergulhos. Mas não: é agora, de apneia e aguenta esse fôlego. Está certo.

De forma que aqui voltou algo que tanto temo como sei irreversível: a mudança. Para quem pensa como eu, o medo da mudança não é mais do que o medo da perda – é por isso que o compromisso tem de a acompanhar, sob pena ficarmos sozinhos numa floresta nova e desconhecida. E neste olhar sobre a sociedade e a política que me rodeia percebo a urgência nesta prática. Ao que parece, não sou só eu: quando um candidato às presidenciais americanas – sim, esse, não o outro – pede explicitamente que as diferenças se unam e trabalhem para um bem comum – bom, isso nesta altura é mudança.

Então poderá ser a mudança um caminho para algo que já conhecemos e desejamos? Sim. Gosto muito destes dois versos de um novo poeta, André Osório: “Atravessar o tapete de casa /é um acto de recordação”. (Passagem, Observatório da Gravidade) E é isto, é exactamente isto: há uma melancolia desejada e inerente a quem regressa (e Osório, sendo admirador explícito de Larkin e de Heaney sabe-o bem). Mas quem regressa terá um dia partido e isso pode acontecer e acontece todos os dias. E o poeta nem sequer nos sugere direcções de entrada ou saída. Continua a bater certo.

Isto para dizer que a melhor mudança é o que nos devolve o familiar. O que estimamos, quem estimamos. A vida trata do resto e apesar de nós: as perdas, os ganhos, as certezas. Aproximo-me de um desses momentos, outra vez, como tantas vezes me aconteceu. O pânico, a preguiça e a resistência são os mesmos. O medo já não: mudarei para aquilo que já conheço e quero.

20 Out 2020

Vida bonsai

[dropcap]C[/dropcap]omo se fixando por momentos um simples ponto. E nele um universo inteiro e sem medida se estendesse. O teatro da vida ou o espelho da natureza, uma representação como forma de repetição sem fim. Pares de coisas que se refletem por similitude. Um conceito antigo que estabelece pontes entre tudo e tudo. Do microcosmo ao macrocosmo. Do mais interior ao mais longínquo. Para Foucault: quatro. Mas encerram em si todas as possibilidades conceptuais. Como se nada pudesse haver de único e solitário ou silencioso no universo.

Um ponto que é este planeta. Um ponto, um país. Uma cidade dentro. Um jardim. Uma floresta no interior de um jardim de florestas. Camadas sobre camadas em direcção ao ponto. Um olhar a perder distância e a concentrar o rigor no que está perto e delimitável. Na alma das pequenas coisas. Entro.

Naquele ponto em que é já uma floresta, a unidade de um conjunto. Uma floresta bonsai, pequeno mundo encantatório e de abstracção, encerrado num jardim. A envolver um olhar que se afunda, que se entranha nela e sai por ali fora.

Paro, como sobre as teclas do piano. A música é sempre um ponto de paragem. Como aspirar profundamente um perfume longínquo. De rosto levantado e pálpebras corridas. Mas nem sempre. Nem sempre deixa de se sentir o frio de uma lâmina na nuca.

Pensamentos imersos – deixá-los percorrer esse jardim de bonsais. Um dos muitos, arrumando serenos os que vieram de uma necessidade nómada e ancestral. Filosófica, depois. No dilema entre o encanto produzido pelas pequenas árvores perfeitas e cultivadas, e a repugnância pela tortura que delas faz o que são. Cultivadas, podadas, moldadas à força de arames e ligaduras, seladas as feridas, apertadas nas raízes em vasos sem profundidade, como os antigos pés de cabra. Enfaixados para não crescer e em minúsculos sapatos bordados. A mesma arte viva, milenar, mas a produzir monstros de dor. Penso porque me choca – também no bonsai – esta arte de tolher a natureza se nela se espelha o trabalho de uma vida humana sobre si própria e por pressão do mundo. E porque se avizinha sempre a necessidade da compaixão pela natureza – esta – torturada, se nela se encontra a nossa imagem de seres moldados por circunstâncias, em eterno balanço de galhos excessivos ou deslocados, e de expectativas e limites reais. Entre o golpe imprevisto, o acidente ou a automutilação. Entre a desmesura e a sensatez.

Intrigam-me e deslumbram-me, essas árvores pequeninas e perfeitas como gigantes num ponto de vista à distância, quando penso o que nos diria a sua alma silenciosa se não o fosse, dessa perfeição cultivada e modelada no tempo. Tenho as raízes presas em vaso pequeno. É o que me diz. Dás-me o infinito ou a náusea. Como queiras.

Porque queremos dominá-las e porque queremos limitá-las? Possuí-las no espaço definido da casa. Como somos diferentes dessa possibilidade de crescimento regulado, sem perder de vista a edificação robusta do tronco sem crescimento de maior, essa contenção das raízes. Mas elas, as árvores, não correm, não fogem.

Muda-se-lhes o caminho e elas cedem, aproveita-se uma apetência e exacerba-se, corta-se-lhes as raízes e a profundidade e cortam-se os ramos a ansiar o céu. Modelando. Decepando ramificações que divergem do tronco e enfraquecem a robustez em que se concentram séculos, selando cicatrizes que não prejudiquem o crescimento, forçando formas, quedas debruçadas para baixo. Torções dramáticas em que se formulam laivos de animalidade. Formas aladas e brancas, forças indefiníveis e retorcidas como poderosas metáforas espirituais. Sobre pinhas sucedem-se seres únicos, meticulosos. Os troncos a reproduzir estranhas ventanias, vórtices imaginários e forças irreprimíveis a desmentir qualquer serenidade. Dinamismos poderosos como a embriaguez lenta da natureza em humano desvario. Corpos, na extrema manifestação de uma inquietação que não é da natureza das árvores. As outras, pequenos monumentos de serenidade vertical. E perfeição. Manipuladas, todas, elas cedem e fortalecem, concentradas num destino forjado e planeado a longo prazo. Longevidade pela qual passam humanos que cuidam, como em caminhos que se cruzam.

O budismo viu nessa similitude com o mundo, em ponto pequeno, que não é necessário conhecê-lo inteiro para que dele se tenha a visão da totalidade. Nesta relação íntima entre a alma humana e a alma de todas as coisas, a parte espelha o todo do universo. Um curto caminho na concentração, entre micro e macrocosmo. E uma árvore em miniatura encurta ainda mais a distância. Como um fio-de-prumo rigoroso entre terra e céu, origem e finalidade. Um axis mundi a unir raiz e copa, e onde se acredita concentrar-se com veemência a sua poderosa essência, pacificadora, que interage com o ser humano face a toda a inquietação. O símbolo perfeito da sua jornada de procura. Como alguém disse: “ Bonsai não é uma corrida, nem é um destino. É uma viagem interminável”. Talvez um ponto a rolar no universo e a contemplar plenitude. Assim somos: pequenos a extrapolar em mundos. Onde estranhos elásticos nos prendem e catapultam. Ou meditar. Encontrar o nada.

Fixar um ponto. Pequeno, impossível e incolor. O lugar que é a excepção de tudo o resto. Ou um bonsai. Num olhar entre o âmago e o ápice. Como sempre, é aí que nos situamos.

19 Out 2020

A Encomenda de Paul Sacher

[dropcap]A[/dropcap] obra Música para Cordas, Percussão e Celesta, Sz. 106, composta por Béla Bartók aos 53 anos em 1936, por encomenda do maestro e patrono suíço da música nova, Paul Sacher, para celebrar o 10o aniversário da Basler Kammerorchester, é uma das mais conhecidas do compositor húngaro.

Como o título indica, a obra foi escrita para instrumentos de cordas (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e harpa), instrumentos de percussão (xilofone, caixa, címbalos, tam-tam, bombo e tímbales) e celesta, instrumento que não desempenha um papel tão importante como o título da obra deixa transparecer. O conjunto também inclui um piano, que pode ser classificado como um instrumento de percussão ou de cordas. Bartók divide as cordas em dois grupos que indica devem ser colocados antifonalmente em lados opostos do palco, e faz uso de efeitos antifonais particularmente no segundo e quarto andamentos, criando uma das obras mais espantosas e que provoca mais calafrios algumas vez escritas.

O primeiro andamento (Andante tranquillo), uma fuga apresentada pelas violas de ambos os grupos de cordas, que se desenvolve gradualmente, começa com um murmúrio velado de vozes inconstantes nas cordas em surdina, que crescem em número com uma regularidade persistente e assustadoramente imparável.

Qual é a fonte dessa música diabólica? As divagações cromáticas sugerem Wagner e o seu Tristão, que preludia Schönberg. Mas existem outros antecedentes, e estes incluem Strauss, Stravinsky, Debussy, Ravel e, crucialmente, a música folclórica da Hungria natal de Bartók e dos seus arredores. Foi este último grande corpo musical, pesquisado durante anos por Bartók, que se tornou a força omnipresente da sua criatividade, cujos elementos distintivos deram ao seu trabalho uma individualidade tão inconfundível para o ouvido quanto uma fotografia bem desenvolvida é para o olho: ritmos que batem insistentemente ou que são surpreendentemente irregulares; modos e combinações de escala exóticas; melodias severamente simples, cuja ascensão e queda resultam de padrões de fala; direcção, frequentemente energia bárbara e, em contraste, acalmias maravilhosamente provocantes; um amálgama de harmonias triádicas simples e dissonâncias ácidas. De todos estes elementos surgiu a linguagem engenhosa e inovadora de Bartók. O material do primeiro andamento pode ser visto como a base para os andamentos posteriores, e o tema da fuga reaparece em diferentes disfarces em pontos ao longo da peça.

O segundo andamento (Allegro), escrito na forma-sonata, irrompe num drama rodopiante de vozes conversando. A divisão das cordas de Bartók em dois grupos, colocados em lados opostos do palco com a percussão no meio, abre a porta de uma autêntica magia antifonal. Ouvem-se glissandi nos tímbales e uma “música de perseguição” rítmica estimulantemente tensa e que parece prenunciar West Side Story de Bernstein. Esta música é derivada de uma breve peça da colecção a solo para teclados Mikrokosmos de Bartók, intitulada “A Piada de Aldeia”.

O terceiro andamento (Adagio) leva-nos ao mundo misterioso e atmosférico da famosa “música nocturna” de Bartók. Ouvimos o zumbido estranho e nocturno da natureza, o canto distante dos sapos e o murmúrio abafado de um milhão de insectos zumbindo num campo solitário e iluminado pelas estrelas. O tema do primeiro andamento ressurge brevemente, o que só faz aumentar a nossa enorme consideração pela inventividade de Bartók.

O finale (Allegro molto) explode numa dança folclórica vibrante e descontroladamente alegre. Especificamente, ouvimos a frivolidade irregular e desigual do ritmo folclórico búlgaro. Nos minutos finais, há um retorno triunfante do tema da fuga de abertura do primeiro andamento.

A obra foi estreada em Basel, na Suíça, no dia 21 de Janeiro de 1937 pela orquestra de câmara dirigida por Sacher, e foi publicada pela Universal Edition no mesmo ano.

A sua popularidade é demonstrada pela utilização de temas em bandas sonoras de filmes como por exemplo o andamento Adagio no filme The Shine de Stanley Kubrick, de 1980, e na música popular, assim como na literatura, sobretudo norte-americana.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Music for Strings, Percussion and Celesta, Sz. 106
Berlin Philharmonic, Herbert von Karajan – Warner Classics, 1961
19 Out 2020

Erótico como termómetro do esquecimento

[dropcap]H[/dropcap]á dois elementos neste livro de João Paulo Cotrim, Navalha no Olho, recentemente publicado pela Nova Mymosa, que nos chamam a atenção antes de mais e que são enganadores: o título, que nos remete para o filme surrealista de Luís Bunuel e Salvador Dali, Um Cão Andaluz (1929); e o uso de algumas palavras obscenas, como são os casos de «caralho», «cona» e «cu».

A despeito disto, não se trata de um livro surrealista e nem um livro de poesia erótica e satírica. Trata-se na verdade de um livro de poesia carregado de lirismo. Muitos são os exemplos ao longo do livro. Leia-se apenas dois: o primeiro poema e o poema «Oração». O primeiro diz assim: «Pudera / o meu dia ser / uma peça só / de alegria / o teu corpo: / em que parte / me encontro / neste relâmpago?» E o segundo exemplo, diz: «Face ao / mar / desnuda-se ignorando a / terra / puxa as colunas dos joelhos / sem ajuda / aponta a mais abyssal das fossas / ao mais verde oceânico // quanto terá demorado / até afectar as marés?» (O abyssal é com y)

O que está em causa no uso do chamado «palavrão», que hoje em dia é usado tão gratuitamente, são duas coisas: por um lado, elas fazem tão parte das nossas vidas como as palavras «vinho», «mesa» e «livro» e, por outro lado, estão sendo cada vez mais esvaziadas do seu sentido. Por isso, escrever poemas com as palavras «caralho», «cona» e «cu» e fazer com que elas fujam à gravidade do banal não é fácil. Este é o primeiro desafio que o livro nos lança, o de confrontarmos, em nós, a linguagem consigo mesma. Melhor: confrontá-la com aquilo que recentemente fizemos dela, que é um enorme esquecimento. E este esquecimento do sentido das palavras, dizê-las como se nada se dissesse, não afecta apenas as palavras eróticas ou obscenas, afecta também as palavras com que fazemos política, aquelas com que somos gentis com os outros, e até as palavras com que lemos. Pois ninguém chega a um livro sem trazer consigo as suas próprias palavras.

Assim, a um primeiro embate, Cotrim usa o erótico como termómetro para medir a temperatura do esquecimento a que chegámos. Esquecimento das palavras e, adivinha-se, de nós mesmos. Leia-se o poema «Querida Escuridão»: «só às apalpadelas alcanço / despertar / essa palavra que fende saídas / de raso labirinto, / fósforos apodrecidos, nódoas acesas / cheiros gastos, tempos perdidos / não me castigues mais / e cala-me, Querida Escuridão, / com a humidade ainda farfalhuda». Corpo e linguagem alcançam neste poema a mesma densidade de esquecimento a que votamos tudo o que desprezamos, através de um contínuo exercício de vulgarização. Corpo e linguagem vulgariza-se dia a dia em nossos gestos. É preciso arrancar da vulgaridade as palavras «caralho», «cona» e «cu», assim como arrancar da vulgaridade o modo displicente com que chegamos aos corpos uns dos outros. Ainda que gratuitas, as palavras têm valor; ainda que por uma noite, um corpo é para se demorar. Leia-se o poema «Câmara Lenta, Mas Tão Lenta»: «Pouso a cabeça junto à nádega / e assisto no conforto da privança / ao bailado que o sopro coreografa / esteja a raiz no acre / esteja eu na raiz do tempo interrupto». Não é o corpo que interrompe o curso do tempo, mas a atenção que lhe prestamos, a privança, a intimidade privilegiada. Ama-se um corpo como se ama a terra, as plantas. Leia-se à página 20: «No jardim das carnais paisagens / limpo mondo debulho podo / afasto rego aparo toco / até encontrar as daninhas ilustrações / do momento mais íntimo […]». Amar os corpos implica atenção e é uma arte tão necessária quanto amar as palavras. Leia-se esta duplicidade e confluência de palavra e corpo no poema à página 18: «o que procuras tu / aí / com tanto / dedo e afinco / conservo-o eu / aqui / na ponta da língua […]». A ponta da língua é corpo e palavra. Quer a língua seja carne, quer seja espírito, ambas excitam, ambas amam.

Mas «caralho», «cona» e «cu» também surgem no livro como «falo», «vulva» e «ânus», fazendo com a nossa atenção com as palavras seja reforçada. Pois por mais que em português «cona» e «vulva» apontem na mesma direcção, não se trata do mesmo que nos vem à boca e invade o pensamento. Isto é claro para todos nós, mas os poemas de João Paulo Cotrim tornam-no mais claro. Lê-se no segundo poema do livro: «toco no ar as estrofes quebradas pelo alento / falo e vulva afinados no refrão». E, a meio do livro, à página 16, lê-se: «Como quem / se verga / à boca de obs / cena // assentas a cona no espelho dourado (em versalhes roubado) / como se isso bastasse / para construíres a cidade nova». De um para outro poema, tornam-se evidentes os diferentes sentidos das palavras. No primeiro, «falo» e «vulva» passam pelos pingos da leitura, completamente despercebidos. Onde lemos «falo» e «vulva» poderíamos ler «Romeu» e «Julieta». Leia-se: «toco no ar as estrofes quebradas pelo alento / Romeu e Julieta afinados no refrão». Já no segundo exemplo, e a despeito de «cona» aparecer sozinha, a nossa atenção levanta-se imediatamente do telemóvel como uma criança que ouve numa sala de aulas falar em sexo.

Há no livro a devolução do sentido às palavras que banalizamos e do modo como elas agem sobre nós, os corpos. À força de tanto banalizar, os corpos já não reagem às palavras e estas esqueceram-se de sim mesmas. Neste sentido, é um livro político, como todos os livros que se debatam com a falência do sentido das palavras e com a falta de acção que isso carrega. O corpo e a palavra estão, e seria realmente assustador se nos dessemos conta disso, a ficar esvaziados de sentido. Assim, foder, subentende-se, não é um exercício espiritual, mas um exercício de salvação. Este livro de João Paulo Cotrim alerta-nos para esta nossa situação através de um lirismo invejável, ao arrepio do que parecem ser os nossos dias.

Termino com o poema da página 23: «Encostando-se ao espelho / multiplicou mamas e mamilos / a substância dos ventos nos cabelos / sublinhou o gesto de braços levantados / e nisto como na minha ignorância / brotou uma carne / um medo / que ainda agora / procuro reconhecer / tão tarde».


ILUSTRAÇÃO: ANTØNIO FALCÃO
19 Out 2020