O gato desejável

[dropcap]H[/dropcap]á quem os deteste e a quem não possa passar sem eles. Há quem lhes seja alérgico e quem os ache a melhor companhia do mundo. Há quem assegure que são demoníacos. Há quem os acuse de serem falsos deuses; falsos, mas ainda assim, deuses. São capazes de provocar todo o tipo de reacções, excepto a indiferença. São, ao mesmo tempo, simples e imprevisíveis. São o exemplo mais cabal de que duas teses contraditórias podem ocupar o mesmo espaço e tempo. São gatos.

Quem nunca teve um gato ainda é capaz de ir ao engano e pensar que ao adoptar um gatinho está na verdade a escolher uma espécie de cão menos dependente. Nada pode estar mais longe da verdade. Um gato não é um cão com casa de banho própria; não é uma versão um pouco mais moderada do amor infinito canino. É outra coisa, tão radicalmente diferente do cão que nem deviam estar ambos incluídos na mesma categoria de «animal de estimação».

Em termos de comportamento, talvez a criatura mais parecida com o gato seja o adolescente humano. Ambos têm uma capacidade estratosférica para a indiferença. Não reagem quando se chama por eles; fazem ouvidos moucos a qualquer reprimenda e são capazes de nos ignorar tão perfeitamente que nem aparecendo em chamas na sua presença conseguiríamos que eles levantassem os olhos do chão ou do ecrã do telemóvel. O seu desinteresse por tudo quanto não lhe diga imediatamente respeito está ao nível de um funcionário das finanças.

É claro que, tal como o adolescente, são capazes de generosidade. Melhor: são capazes de nos manipular ao ponto de nos fazer sentir gratidão pelo afecto que nos dispensam a troco daquilo que querem de nós. Nada no gato – ou no adolescente – acontece sem um propósito. Ao contrário do cão, que esbanja amor como um chinês em véspera de ano novo num casino, o gato e o adolescente são extremamente parcimoniosos na distribuição do afecto. Nunca o dão; trocam-no. Uma pessoa que tenha um gato ou um adolescente sabe sempre que por detrás do ronrom ou do carinho filial se encontra a perspectiva de uma latinha de whiskas ou de uns fones Bluetooth. Durante os poucos minutos que temos o bichano aparentemente desinteressado, no colo, expondo a barriga à mão gulosa de festas, ainda conseguimos ser enganados (ou enganarmo-nos a nós próprios), mas mal passa a névoa da surpresa, damos por nós a pensar: «será que tens água? Será que tens comida? O que terás escavacado agora?»

Tal como um adolescente, um gato não serve para nada. Ainda assim, tem algumas vantagens sobre o adolescente. Come menos, suja menos, ocupa menos espaço e tem uma manutenção muito mais barata. O gato, por outra parte, tem o defeito de ser adolescente enquanto dura, i.e., de nunca ultrapassar o estado em que indiferença e manipulação convivem no mesmo bicho em todos os momentos da sua vida. Alguns adolescentes ultrapassam essa fase e tornam-se criaturas remotamente suportáveis (têm ainda a grande vantagem de, acaso terem cursado outra coisa que não humanidades, acabarem por sair de casa lá pelos vinte e nove, trinta anos). Alguns gatos, já velhinhos, ficam mais permissivos na gestão do espaço próprio e são mais facilmente convocáveis ao carinho. Não se pense, no entanto, que ficam mais generosos ou pacientes com a idade. Na verdade, falta-lhes apenas a pachorra e a força para nos porem no nosso lugar com uma garfada de unhas precisa.

Sigam-me para mais receitas.

19 Nov 2020

A poesia como refúgio

[dropcap]T[/dropcap]rump não é louco, está a experimentar até onde vai a tolerância dos americanos no jogo entre a verdade e a mentira, se ele se der como aval. Sente-se como um ratazana esperta a manipular uma enorme manada de elefantes que se porta como galinholas, enquanto ele faz manobras à esquerda e à direita.

Ou Trump é louco e está convencido de que é Moisés a separar as águas do Mar Vermelho.
As duas hipóteses são plausíveis.

A terceira hipótese é eu ser Crazy Horse e estar à beira da trombose, na véspera de Little Bighorn.
Por via das dúvidas, para me desviar da alucinação, abro A Bola, e leio o que pensa sobre Mohamed Salah, o goleador do Liverpool, a antiga estrela egípcia Mido:

«Salah cometeu o erro de marcar presença do casamento do irmão poucos dias antes do jogo da selecção do Egipto. Mostrou uma enorme negligência na prevenção contra o coronavírus e o resultado é que ficou infetado. A selecção também perdeu um jogador importante para um jogo decisivo e ainda arriscou a saúde dos companheiros de selecção. Ele não deveria ter estado no casamento e ainda por cima com 800 pessoas, das quais metade abraçaram e beijaram Salah. Outra crítica é o silêncio dos responsáveis sobre a atitude do jogador e que confirma que o jogador é maior do que a selecção…», afirmou Mido, em declarações à Imprensa local .

E apanho-me a pensar que o “mais velho” tem toda a razão e que esta cedência à vaidade deveria ser recompensada com o despedimento sumário. Salah devia a partir de agora ser retido na necrópole de Saqqara como manicurista e pedicurista de múmias.

Nas eleições do Brasil, Bolsonaro perdeu e o PT também, mas o Ciro Gomes não ganhou um palmo: uma honestidade comprovada em várias décadas de vida pública não faz vibrar um sino. Coitado, é dos poucos que estuda os dossiers e nunca fala barato, mas como ninguém lhe denuncia uma falcatrua parece um morrão de cinza num cinzeiro, i.é. um marrão pouco credível.

Esqueçamos a política do ventre. Consolemo-nos com quatro poemas de Louise Gluck, transcriados para ir fazendo a mão à sua voz.

O ESPELHO : Olho-te reflectido no espelho/ e interrogo-me como será ser-se tão bonito/ e por que ao invés de amares a ti mesmo/ te cortas, te barbeias como se fosses cego?/ E acho que me deixas observar-te/ para que te possas voltar contra ti mesmo/ com redobrada violência;/ precisas de me mostrar como arranhas/ a carne com desdém e sem hesitação,/ até te veja corretamente, como um homem ferido/ e não o mero reflexo que me engancha no desejo.

POEMA DE AMOR: A dor sempre serve para alguma coisa./ A tua mãe faz malha./ Despacha cachecóis em todos as gamas de vermelho./ Eram para o Natal, e mantinham-te quente/ enquanto ela casava, uma vez e outra, levando-te/ consigo. Como poderia ter dado certo/ se ela escondeu o seu coração de viúva todos esses anos,/ na ideia de que os mortos pudessem regressar?/ Não admira que sejas como és,/ a tua cagufa ao sangue, as tuas mulheres/ como tijolos um após o outro na parede fria.

F O R M A G G I O: O mundo/ estava inteiro porque/ se destroçou. Quando se destroçou
soubémos o que era.// Nunca se curou./ Mas nas fissuras profundas apareceram mundos mais pequenos:/ foi uma coisa boa que os seres humanos engendraram;/ pois os seres humanos sabem o que precisam/ melhor do que qualquer deus.// Na Huron Avenue multiplicaram-se/ num fartote de tendas; converteram-se/ em Fishmonger, Formaggio. Foram/ o que foram, venderam o que venderam,/ a sua função era semelhante: eram
imagens de segurança. Como/ um lugar de descanso. Os vendedores/ agiam como se fossem paizinhos; parecia/ terem sempre ali vivido. Em geral,/ mais gentis do que os próprios pais.// Afluentes/ que desembocavam num grande rio: eu tinha/ muitas vidas. Naquele mundo provisório/ abancava onde ficava a fruta,/ caixas de cerejas, clementinas,/ sob as flores de Hallie.// Vidas não me faltaram. Desembocavam/ num rio, o rio/ entroncava um grande oceano. Se o eu/ se torna invisível, é porque desapareceu?// Fui prosperando. Não vivia completamente só, sozinho/ mas não completamente – se estranhos/ me rodeavam.// Esse é o mar:/ existimos em segredo.// Tive vidas antes desta, hastes/ de um ramo de flores: convertidos/ numa única coisa, sujeita a um laço no centro,/ um laço visível sob a mão. Sobre a mão,/ o futuro ramificando-se, hastes/ que rematam em flores./ E o punho cerrado/ que seria o eu no presente.

O JARDIM: Não aguentaria fazê-lo novamente,/ dificilmente suportaria vê-lo;// no jardim, sob a chuva miudinha/ o jovem casal planta/ uma fileira de ervilhas, como se/ ninguém nunca tivesse feito aquilo antes:/ os grandes problemas todos ainda/ atirados para trás das costas.// Reveem-se até esse momento imaculados / de qualquer sujeira, como começar/ despidos de perspectivas/ se nas colinas ao fundo, verdes e pálidas,/ alastra a nuvem de pólen?// Ela deseja deter aquele instante;/ ele prefere chegar até o fim,/ permanecer nas coisas.// É ela quem ao acariciar-lhe uma face/ abre uma trégua, os dedos engelhados pela chuva primaveril;/ enquanto pela relva macia/ reponta o vermelho açafrão.// Mesmo aí, então no princípio do amor,/ a sua mão ao afastar-se da face/ dá uma impressão de despedida,// e eles julgam-se/ capazes de ignorar/ esta tristeza.

Nem tudo está perdido, mas temos um minuto para achar a chave e a escrivaninha tem oitenta gavetas.

18 Nov 2020

Cidades, Escher e o demónio

[dropcap]D[/dropcap]esde criança que desenho cidades. O meu pai construía-as em cartolina e iluminava-as com luz eléctrica num sótão de Santarém que nunca conheci. O meu irmão sempre as desenhou geométricas, bastante ensimesmadas e a três dimensões muito antes de se falar em 3D. No meio desta genealogia familiar, as minhas cidades são as mais selvagens em toda a linha: traços desordenados, proporções sem cabimento, perímetros desconsabidos. No entanto, vistas como quem observa arte informalista, reconheço que há nelas um certo jogo de volumes, linhas de força apreciáveis e uma poética que rasga os planos da lógica. No fundo, não são cidades; serão vincos fundados por uma qualquer civilização invisível.

Chego assim de modo rápido à minha definição preferida: uma cidade é um vinco. Sim, um vinco cavado e escavado num território particularmente desejado onde os humanos decidiram um dia viver. Vincar é uma forma de ênfase que remete para sublinhar, acentuar ou adensar. É isso precisamente que uma cidade faz à paisagem que a rodeia: enruga-a, marca-a, dobra-a, numa palavra – perdoe-se-me a insistência – vinca-a.

Este vinco está sempre em mutação, razão pela qual o citadino sente um inevitável desfasamento entre a cidade da sua infância, a da velhice e a que o sucederá no futuro. “Esta já não é a minha cidade” ou “não chegarei nunca a ver a minha cidade tal como a imaginei” são frases que traduzem a ocupação da urbe pelo seu habitante. Este imaginário existencial de um continuado estaleiro que, ao fim e ao cabo, se confunde com a própria essência da cidade, foi levado ao extremo por Baudelaire. Toda a sua poética reflecte a perda e a perdição da Paris que o viu nascer face aos projectos de Haussmann que, como se sabe, demoliu e redesenhou toda a cidade no terceiro quartel do século XIX. O “spleen” e figuras como o “dandy” ou o “flâneur” – todas elas fruto desta impiedosa metamorfose – fazem parte de uma cidade que Baudelaire nunca, de facto, viria a conhecer.

O habitante do campo não vê projectado no seu exterior este tipo de descaminho, pois a erosão da natureza é muito mais lenta. O “spleen” campestre é cíclico e sazonal, por isso mesmo previsível. De algum modo, o despovoamento sublima a violência da cidade mas não a cura. É-lhe indiferente.

Por outro lado, dentro da cidade, aquilo que é incurável torna-se amiúde em matéria de fascínio. Logo no início do ‘Livro do Desassossego’, Pessoa fala-nos do restaurante localizado numa sobreloja que frequentou durante um certo período da sua vida. Passei por lá há algum tempo e constatei que o edifício fica estrategicamente virado para um dos cruzamentos da baixa. Todo o encadeamento geométrico daquela parcela de Lisboa parece avistar-se das vidraças da sobreloja. E vi-me intuitivamente a concluir que todos os mais de cem heterónimos de Pessoa serão afinal esquinas da baixa de Lisboa, imaginadas como um profuso labirinto pintado ao jeito de Maurits Escher. A visão plural do poeta está de facto ali vincada, acentuada, marcada. Eis como a cidade pode ser uma redoma capaz de encerrar – e ampliar – os limites do humano e das suas visões. O ócio dos personagens de Eça também só tem sentido dentro desta mesma área da cidade. Quando o horizonte de Eça se centra em Leiria, no norte ou no Alentejo, este ‘fastio de dandy acaciano’ esvai-se de imediato. Só a cidade, na verdade, o vinca e lhe concede um milagre que não é, de modo nenhum, apenas literário.

No reverso, a cidade – na sua longa história – também se atreve a excluir. Se lermos a parte final da ‘República’ de Platão, compreendemos que as excitações dos bardos e poetas são um perigo para a cidade perfeita. A um território reduzido, compacto e tão habitado deverá, pois, corresponder tão-só elevação e racionalidade. Se lermos a biografia de Aristóteles, ficamos a saber que, logo após a morte de Alexandre o Magno, teve que fugir de Atenas para a ilha de Eubeia – onde viveria só mais um ano de vida – não fosse perseguido pela caça às bruxas aos macedónios. Se lermos a ‘Cidade de Deus’ de Santo Agostinho e, embora saibamos que se trata de uma poderosa metáfora, não deixa esta obra de ser a apologia de um mundo que desaloja e abjura um outro. Uma cidade vinca e existe para vincar em todo o sentido do verbo, sejamos claros. Todas as muralhas construídas – em pedra ou não – se viraram sempre contra um qualquer demónio.

Ser cidade é, pois, uma forma de organismo sobrevivente que se fecha e que, ao mesmo tempo, deseja a sua própria mutação e depuração. Ora é centrípeta, ora é centrífuga. Ora se refugia no umbigo e inspira, ora escapa de si através de linhas de fuga e expira. Cesário disse-o através de metáforas chãs, mas muito lúcidas: “O tecto fundo de oxigénio, d´ar/ Estende-se ao comprido, ao meio das trepadeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,/ Enleva-me a quimera azul de transmigrar”. Porventura é na arte informalista e também nas abstrações líricas de um Kandinsky ou de um Pierre Soulages – ou, ao invés, nos geometrismos patológicos como o do já citado Escher – que a poética da cidade melhor se entenderá. Onde haja uma folha de paisagem vincada com pessoas reunidas a pensar o vento, então haverá cidade. Continuarei, por isso mesmo, a reinventá-las. Até porque é o tipo de poesia que mais me fascina.

18 Nov 2020

Com a nossa letra

[dropcap]A[/dropcap] cidade ficou deserta, outra vez. Ou melhor: tornou-se uma espécie de bonita colónia penal onde os reclusos gozam de saídas precárias para logo regressarem às celas segundo o horário imposto. Pelas melhores razões, quero acreditar. Mas uma privação da liberdade, mesmo em casos de força maior e de bem comum, como este é, será sempre retirar a única coisa que me levaria a pegar em armas para a preservar. E sim, dói um bocadinho.

Existe a vantagem triste, no entanto, de já termos conhecido esta sentença ainda há poucos meses; e embora o cansaço seja maior, consegue-se lidar melhor com a solidão que é sempre estar confinado – mesmo que o estejamos numa casa cheia de gente. Arranja-se artimanhas, artifícios para melhor suportar o torpor invisível das horas de chumbo.

Não sou excepção, amigos. E sem surpresa dei por mim a fazer arrumações há muito adiadas de memorabilia pessoal. Não por uma questão de nostalgia, apenas por motivos práticos. Enfim, a intenção pelo menos foi boa: mal olhei as fotos do prefácio de mim que um dia fui, artigos amarelados de jornal e bilhetes esquecidos de concertos as memórias dispararam sem filtro. Suponho que seja sempre assim quando confrontados com dias que julgávamos arrumados e etiquetados há muito. É por isso que devemos ter cuidado com estas arqueologias afectivas.

Mas de toda a parafernália de objectos avulsos que reencontrei os que mais me tocaram foram as cartas que recebi de amigos e amores. Ali, naqueles papéis, estavam estendidas pessoas, almas, juras de romance eterno, vontades de dominar o mundo, a certeza alegre e serena de que éramos imortais. As cartas possuem esse dom, de facto, e muito da civilização ocidental deve à forma epistolar: São Paulo, Abelardo e Heloísa, Séneca (Cartas a Lucílio). Os amores de Mariana Alcoforado ou do jovem Werther, que embora trágicos tiveram correspondência, sendo este meu trocadilho fraquinho mas intencional. E muitos outros testemunhos que nos devolvem o olhar de quem os escreveu, porque das cartas não existe muita distância: Sophia e Sena, Amis e Larkin, Beckett com quem lhe apetecia.

Mas ali, nas minhas mãos, estava algo que desapareceu e que faz toda a diferença. Confere humanidade, sentido e tempo ao que se escreve: a caligrafia. Não falo de grafologias ou outras “logias” que por mim fecharia de vez. É porque acho que a nossa letra também é parte do que somos. E essa a tragédia, amigos: já não me lembro como escrevo. Algo do que me é único e transmissível está em vias de se afogar no mar destes tempos. Não me posso queixar: a culpa é minha porque sem querer me rendi à forma anónima e instantânea como comunicamos hoje uns com os outros.

Num mundo dominado pela literalidade do comentário impulsivo, a caligrafia é um dos redutos possíveis. Longe de precisar de bonecos a reiterar emoções, o modo como se desenha a letra e o próprio acto de nos dispormos a tal já diz quase tudo. “Toda a palavra é fruto vivo”, avisava D. Francisco Portugal há quatro séculos. É verdade porque dizer “amo-te” continua a não ter a mesma força de escrever “amo-te” a alguém que amamos. A caligrafia assegura de forma espantosa a presença longínqua de quem escreve para quem lê.

É um rosto que não se vê, uma voz que não se ouve – mas que percebemos e sentimos.
Um dos poemas de amor portugueses de que mais gosto foi escrito por Fernando Assis Pacheco e termina com este verso belíssimo e absoluto: “Porque tudo se escreve com a tua letra”. Continuarei a acreditar nisto, sempre. Mas entretanto, e para me reencontrar, terei de voltar a aprender a escrever, com a minha letra.

17 Nov 2020

O Mercador de Auschwitz

[dropcap]T[/dropcap]odos assistimos a um recrudescer ficcional do Campo de Extermínio mais doloroso que a mente humana pôde alguma vez conceber, que o Gólgota ao pé dele fora uma colina amena. Em grandes destaques o insólito mantém-se com narrativas e ousadas manobras de “diversão” para os embotados leitores que morrem de fausto fastio numa sociedade onde o capital das contas púbicas e públicas, acentuam a desgraça de leituras improváveis com uma gritante ausência de vergonha. Misturado com isto ainda há muito “ligth” muito Hitler, que agora a sua obra maior e única está por todos os escaparates, disparates, dispositores, editores… Na visão paradisíaca deste amontoado de «super-lixo» logo nos apercebemos das graves estruturas mentais, este anacronismo existe na lógica da usura que frouxamente interpreta riscas, meninos a brincar no dito Campo e pais mártires que tudo fazem para que não vejam onde estão: salta de lá muito improvável, como criancinhas espreitando por arames farpados e meninos bem-dispostos com tão insólitas amizades. Tudo isto à custa do terror, da mágoa calada (as grandes dores assim se manifestam) como se estivéssemos enlouquecidos, ou, pior ainda, incapazes de saber dos limites das coisas. E estamos em directo para o Mundo!

Por vezes dá que pensar onde estamos metidos. Quem é esta gente que vive a nossa contemporaneidade, os nossos concidadãos aqui tão perto, o nível de suporte mental prestativo dos ensinos, as teorias, e a grande questão disto tudo, a usura.- Que mercadores são estes que ao lado Shylock, tão poético… agiota, fino como brasas ardentes, contemplado na obra como a vítima de uma voraz sociedade que catalogando e catolizando, mais não fez que dar corpo a uma ganância grosseira, oprimente e de pacotilha?! O curso da História também se inverte produzindo a obscenidade da mais valia à custa de uma época e de um local que devia não ser mencionado em vão, quanto mais alarvemente usado para fins comerciais! O oportunismo das sociedades “felizes” que viveram ao lado de um povo que teima em desconhecer, ou se o fez, foi apenas para confiscar-lhe os bens que as teorias mais tortuosas impulsionaram para sossego das inconcebíveis barbáries.

O ouro nazi que andou de Banco em Banco por esta Europa fora produzindo tijolos em quilate, foi, por insuficiência mental de muitos nacionais dos países, tido como uma arte mágica de alguns dos seus líderes, e os pobres povos a eles oravam ainda como se fossem Midas. Era uma espécie de edição sobre Auschwitz, mas sem nada para dizer, tudo para arrecadar. Seja como for, este foi um massacre que ainda rende! O mais tenebroso é o inqualificável despudor que nos ficou de uma supremacia qualquer que ousa tratar este tema para fins comercias e não haja ninguém que repare que estamos muito perto do inenarrável.

O sombrio instante de tempo que nos é dado viver, chega-nos também por aqui, que até aqui, fôramos naturalmente silenciados por um mecanismo de respeito e dor que tal acontecimento nos trouxera. Se um povo, cinematograficamente usou e abusou de o mostrar, dar a conhecer, transfigurar, só eles o puderam ter feito com toda a legitimidade, aos outros, impõem-se-lhes reservas. Os becos sombrios de Veneza ainda têm dentro a alma de Shylock que tem guardadas as suas mágoas e rancores, que perdoar é a última coisa a ser feita perante aqueles que pior que nos quererem mal, desdenharam dos nossos poderes e da ajuda que lhes foi dada, e perante assassinos não devemos ter nenhuma vontade de o fazer. A complexidade psíquica é um atributo de Shakespeare nesta sua obra que a suporta nos tons evanescentes de uma poeticidade sem par, e seria muito mau para o usufrutuário não ter a noção da sua falta no meio de um clima de falsos espelhos.

Querem parecer maiores e melhores à custa dos excluídos e dos que foram assassinados.- Pois não o serão!- Este é também um tema de integração e de reposição da justiça, da falsa riqueza insuflada e do ardil dos canibais. É um tema de que não desejei falar, e só a sobreposição alarmante de uma realidade me permite fazê-lo. Seremos ambivalentes no tabuleiro das estratégias, mas deixaremos de o ser quando se nos depara o interdito. -Também não gostaria que se estivesse a ganhar fama e proveito com as cinza dos meus avós, dos meus filhos, dos meus amigos- Que a usura não pode ser tanta que faça de Shylock um aguadeiro ao lado destes embustes por onde passou uma religião que tudo fez para mostrar também o que não tinha.

Para Auschwitz também não irei. Mas quem quiser ser transportado poderá experimentar a “lúdica” equivalência das suas narrativas em tratados de abjecção consentida. Na vertente mais sinistra há ainda a assinalar a voz que entoa, a tendência para negação do Holocausto, o que provavelmente incita em acabá-lo de maneira mais ficcional. E com duas vertentes probabilísticas estas coisas ainda podem indicar o mote àquelas que haverão de resultar em laboriosas tentativas editoriais. Mercadores e mercadoria falhos de perspectiva, pois que em pouco tempo recuámos depressa: mas, como depressa e bem há pouco quem, acontece que as guelras deixadas há muito num mar de antanho começam a manifestar-se. Em Veneza é assim, um Dilúvio a puxa para baixo! E o ar do mundo é o que agora se vê.

Posto isto, desejo boas leituras, que afinal talvez as coisas até nem sejam tão más como as “pintaram” que pintar certas coisas é descrença, e compor outras, um amontoado de lixo para as enciclopédias do esquecimento, talvez dos livros em chamas. Estamos em contramão para o mais improvável Humano. Se dele não ficar nada, ainda assim, a esperança de que venha uma máquina insuflada de alma, e se converta num ser em novas formas. Parece que vem ainda qualquer coisa do espaço a reboque de uma queda prometida, que seja em cima das cabeças humanas e que os faça esquecer tudo, desde a subida a bípede que produziu uma continuada dor de costas. Se nada houver para vender e para transacionar, a alma também já não é passível de ser adquirida pelo Diabo, que cansado disto tudo, foi pregar para freguesias mais sedutoras da Galáxia.

Numa mensagem aos Vindouros acrescentemos que tudo não passou de ficção, e que a realidade, essa, foi como os segredos, não conseguimos contá-la.

17 Nov 2020

A derradeira obra incompleta

[dropcap]D[/dropcap]urante os últimos anos da sua vida, Béla Bartók viveu frugalmente num apartamento minúsculo no Upper West Side de Manhattan. Mas dificilmente sozinho ou negligenciado, como comentaristas com inclinações românticas querem fazer crer. Teve a companhia da sua esposa, a pianista Ditta Pásztory-Bartók, e teve trabalho, ou seja, encomendas de alguns pesos pesados da música. Se também pudesse ter tido saúde, poderia ter vivido para ver a aclamação que a sua música receberia no final dos anos 50, para não falar da quase adoração que inspira hoje, quando o seu nome está ligado aos de Stravinsky e Schoenberg, como um dos três gigantes invioláveis da música moderna.

Quando Bartók faleceu em Setembro de 1945, deixou um concerto para viola parcialmente concluído, encomendado pelo famoso violista escocês William Primrose. Embora não exista uma versão definitiva da obra, este concerto tornou-se indiscutivelmente o concerto para viola mais executado no mundo. Após a morte de Bartók, a sua família pediu ao amigo do compositor, o violista, violinista e compositor húngaro Tibor Serly, que examinasse os esboços do concerto e o preparasse para publicação. Serly levou anos para montar os esboços numa peça completa. Em 1949, Primrose finalmente revelou a obra numa apresentação de estreia com a Orquestra Sinfónica de Minneapolis. Durante quase meio século, a versão de Serly gozou de grande popularidade entre a comunidade de viola, mesmo enfrentando acusações de inautenticidade. Na década de 1990, surgiram várias revisões e, em 1995, o filho do compositor, Peter Bartók, divulgou uma revisão e um fac-símile do manuscrito original, abrindo caminho para um debate intensificado sobre a autenticidade das múltiplas versões. Este debate continua enquanto violistas e estudiosos de Bartók procuram a versão definitiva desta obra final do maior compositor da Hungria.

O Concerto para Viola e Orquestra, Sz 120, uma das últimas obras compostas por Bartók, foi encomendado por Primrose no Inverno de 1944, que sabia que o compositor produziria uma obra desafiante para ele executar. A obra viria apenas a ser estreada no dia 2 de Dezembro de 1949, pela Minneapolis Symphony Orchestra, sob a direcção do maestro Antal Doráti, aluno de Bartók, com Primrose como solista.

O concerto, que apresenta um forte cunho autobiográfico, tem três andamentos, e Bartók afirma numa carta datada de 5 de Agosto de 1945 que o conceito geral é “um Allegro sério, um Scherzo, um andamento lento (bastante curto) e um finale que começa Allegretto e desenvolve o andamento para um Allegro molto. Cada andamento, ou pelo menos 3 deles, (será) precedido por uma (curta) introdução recorrente (principalmente um solo para viola), uma espécie de ritornello.” O primeiro andamento foi composto na forma-sonata livre. O segundo andamento lento é significativamente mais curto e termina com um andamento scherzo muito curto que é um attacca directamente no terceiro andamento.

O primeiro e o terceiro andamentos do concerto contêm uma frase que lembra a melodia escocesa “Gin a Body Meet a Body, Colmin ‘Thro’ the Rye”, provavelmente em homenagem às origens escocesas de Primrose.

A obra começa com um solo de viola acompanhada por leves batidas rítmicas. A aceleração do solo, como se fosse uma cadência, revela os primeiros treze compassos como uma introdução, após a qual o tema propriamente dito se faz ouvir… O segundo sujeito é um tema fantasticamente cromático e contrapontístico, sem paralelo em qualquer outra música de Bartók. As escalas sobem, descem e entrelaçam-se. No entanto… o efeito real é de uma calma repousante.

Um breve interlúdio, Lento parlando, precede o segundo andamento… trazendo à mente a improvisação de um chantre… Um motivo do fagote solo liga-o ao segundo andamento propriamente dito. A expressiva simplicidade desta música é determinada pela forma-canção ternária ABA… Bartók conseguiu aqui explorar todos os registos da viola… No final, o motivo do primeiro andamento é ouvido novamente, acelerando para uma cadência que leva, sem pausa, a uma introdução allegreto ao terceiro andamento.

Em contraste com o que precedeu, o finale é uma dança alegre, em forma rondo… mais romena do que húngara no que diz respeito ao carácter. A viola solo move-se a um ritmo sem fôlego, tornando-se ligeiramente mais lenta com a melodia folclórica do trio… A partir daqui, as formações de escala cromática ascendente e descendente lembram um uso semelhante da cromática no segundo tema do primeiro andamento. Um fortissimo tutti de quatro compassos, seguido por uma passagem em escala ascendente para a viola … conduz o Concerto a um final de cortar a respiração.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Viola Concerto, Sz. 120
Yehudi Menuhin, viola, Philarmonia Orchestra, Antal Dorati – Warner Classics, 1967

16 Nov 2020

A fábula do humano e do tigre (II)

[dropcap]O[/dropcap] problema aqui são dois: a possibilidade ou impossibilidade de verdade numa biografia, a despeito de se amar ou odiar o biografado, e erigir uma vida à volta do dinheiro. A primeira faceta do problema torna-se agudo porque se vai tornando claro ao longo do livro que podemos trocar biógrafo por escritor, biografado por personagem e verdade por conhecimento. Assim, a pergunta pode ser reformulada no seguinte modo: o escritor pode produzir conhecimento através da criação de personagens? Qual o sentido de escrever um livro de ficção? Ecoa como um baixo continuo ao longo do livro esta resposta: aprender. O acto de escrever ganha a sua legitimidade se aquele que o escreve aprender. E aprender não é aprender factos como se aprende na preparação para escrever uma biografia, mas aprender sobre si mesmo e sobre o mundo; escrever como quem inventa, não a sobrevivência, mas a sua vida. Lê-se à página 19 que «tudo se inventa para sobreviver», e escutamos como contraponto que tudo deveríamos inventar para viver, para sermos nós mesmos a nossa vida. Leia-se ainda à página 30: «Mas não saio desta história como entrei.» Esta fala é, evidentemente, a da escritora Mónia Camacho. Ou, pelo menos, é também a dela. A de quem sabe ou suspeita que escrever é, antes de mais, um exercício de caminhar na direcção de si e do mundo. A escritora enquanto escreve é a Princesa. E aquele que aprende enquanto escreve pode legitimamente esperar que outros possam rever-se nessa aprendizagem. É esta a legitimidade da escrita e que se interliga com o sentido da conversão, porque aprender é uma espécie de conversão. Nessa mesma página 19 ficamos a saber que o Biógrafo está na posição em que a Princesa de Marrocos estava antes de entregar-se à conversão, isto é, a dar-se conta de que a sua vida lhe estava a escapar. Leia-se: «A vida estava a escapar por onde podia. E ele estava a deixar, por não saber o que fazer com ela.» O que aqui está em causa é ver como as nossas vidas estão sempre soterradas de tudo o que não somos e de «tudo o que se inventa para sobreviver» (19), como escrever uma biografia por dinheiro e deixar de fazer o que deveríamos fazer. Como escreve Aristóteles na Ética a Nicómaco, e cito de memória, a vida de um comerciante é uma violenta forma de vida. Violenta, porque acima da sua vida está o ganhar dinheiro, ele troca o tempo que é pelo dinheiro que tem de ganhar, pelas trocas comerciais que tem de fazer. Através da personagem de o Biógrafo, fica claro, em Um Tigre À Porta Da Sé, que um escritor pode ser um comerciante.

Não apenas porque sempre o foi, no sentido em que sempre escreveu livros com o intuito de vender, mas no sentido em que em algum momento da vida isso pode passar a acontecer, de repente. Ou seja, a despeito de se ser escritor, no sentido de se estar preocupado com aprender enquanto se escreve, a qualquer momento podemos inverter esse sentido. Ninguém está a salvo de deixar de ser quem é, de desistir de si, ou de nunca vir a ser quem é. A Princesa, que em algum momento desistiu de si, passando a ser quem não é, de repente dá-se conta disso, o que a leva até Portugal. O Biógrafo está no caminho inverso, a deixar de ser quem é. E quase no final do livro, o Biógrafo dá-se conta dessa diferença, deste modo: «A resistência daquela mulher enxovalhava-o. Mostrava-lhe que a coragem dele era rasteira e sem cor. Plana.» (33)

Por conseguinte, esta pergunta retórica à página 23, «Quem somos quando não somos nós?», torna-se uma espécie de centro gravítico do texto. Trata-se de uma situação semelhante à de Alice, em «As Aventuras de Alice no País das Maravilhas», de Lewis Carroll, quando ela diz para si mesmo: «“Meu Deus! Meu Deus!

Como hoje está tudo tão estranho! E ontem tudo se passou como de costume! Gostava de saber se fui eu que mudei durante a noite? Deixa-me cá pensar: quando me levantei esta manhã seria eu a mesma pessoa?

Parece que me lembro de me sentir um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma pessoa, a questão então é saber quem sou? Ah! Esse é o grande mistério!”» Pois o livro de Camacho, a fábula, é acerca desta situação humana. E esta situação humana não precisa de fazer-se sentir no seu modo mais radical, isto é, o da conversão de nos tornarmos outro. O trágico é que mesmo aquele que não se converte a si mesmo, que continua afastado da sua própria vida, do que poderia ser a sua vida, também deixa de ser esse que não é a sua vida, embora vá vivendo. Escreve Camacho: «Deverá ter havido sempre uma diferença entre a pessoa que somos em casa, quando estamos com pantufas de leopardo, e a pessoa que somos na rua.» (23) Ou seja, qualquer que seja a apresentação da situação humana, na conversão ou no esquecimento de si, temos sempre situações que nos lembram, que nos mostram que somos outro que não nós. Quem somos? Assim a pergunta também se inverte, não é apenas «quem somos quando não somos nós?», mas «quem somos quando somos nós?». Porque a falha contínua que se opera de nós para nós não apenas se faz sentir, mas tem de ser indicador de algo. Indicador do desconhecido que somos de nós mesmos e da desatenção que se opera de nós para nós. Não somos mais distraídos de nós do que somos dos outros. A distracção é o nosso ponto de vista usual. É assim que estamos na vida, distraídos, esquecidos. Um Tigre À Porta Da Sé é uma fábula sobre a nossa condição humana quando nos damos conta de tudo isto, da possibilidade de desistirmos de nós e continuarmos a viver ou de nunca chegarmos a ser nós mesmos, no sentido de darmo-nos conta da falha que nos habita. O dar-se conta, evidentemente, é o caminho da conversão, como escrever um livro que nos mostre isto. Um tigre à porta da Sé é o humano a dar-se conta de si e querer transformar-se. Ou como escreve Mónia Camacho a meio do livro acerca da Princesa: «Ela era o tigre à porta da Sé».

16 Nov 2020

Mallarmé

[dropcap]S[/dropcap]téphane era um homem extremamente bonito. Olhamo-lo com respeito e inspiração, como àquelas paisagens por onde um deus abriu caminho e nele nos mostrou locais encantados que até aí desconhecíamos. A sua função pioneira é em si a sua força, o engenho do desbravar tecendo o acaso, que os dados mesmo lançados estão sujeitos a essa estranha partitura. Se ao escutar o poema ele o adensa numa floresta alfabética é porque sabia que ela desliza até à saciedade na sua extraordinária plasticidade. Vamos no seu encalce nesse efeito de ressonância e tudo é símbolo, tudo é convite, tudo é singular (que o Simbolismo nem tudo explica das cargas fonéticas desta mestria) é a sua palavra que gera o Movimento e todos os outros que hão de vir agarrados à entrada do século vinte que para sempre será eterno Modernismo.

Mallarmé media o tempo na composição do seu verso. Há nele uma roda giratória perfeita que sabe trabalhar no ínfimo infinito do que escuta e entende, e se nele nada é fácil, também nada é óbvio: que sentir pode ser maior que escutar com palavras graus finíssimos de um som galáctico? Que sistema desenvolvem certos humanos que lhes permite captar coisas tamanhas? É este Mallarmé o que mais interessa, o poeta como agente delicado de acordes inexplicáveis. Hoje ele não seria possível! Esta espécie morreu, o barulho da perturbação do mundo e do seu enredo fez que para sempre se esgotassem certas saídas de emergência. Padecemos por isto, e não por tudo aquilo que julgamos perturbar-nos.

O verso gera aqui um redentor estado de lúcida compreensão ao atalhar para a «linguagem suprema» onde todas, sem ela, são imperfeitas, e como conduzir ao entendimento sem a consciência do mantra que se desfaz em todos os recreios onde quiséramos que existisse? Aguardar! – Temos de aguardar. Sabemos que não estão lá os signos que faltam para este magistério, e que, a poeira dos ensaios incita à obscura análise e ao estéril desejo. Não deve o ser esforçar-se demasiado por aquilo que nunca será o seu caminho, que caminhar assim, é uma espécie de feliz resolução tendo à espreita todas as dores «La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les livres… des oiseaux sont ivres» e mais tarde, até o barco de Rimbaud. Estamos todos embriagados às portas do Inferno!

No dia 7 de Setembro nasceu Camilo Pessanha e temos dele o mais melodioso emblema nacional do Simbolismo e da música que desejou reter da corrente que assim corria a um tempo como uma suave nortada. Mallarmé morreria a 9 de Setembro, quase a findar o século. Pessoa persegui-os na marcha e todas as coisas alcançam intimidade quando estão no “verso” de um mesmo Ovo. Que o Ovo não tem re(verso) é certo, e os que dele nascem são considerados na maior parte das vezes, aves. Da própria beleza dos dois, ninguém diz, mas podemos afirmá-lo que trajavam qualquer essência habitada, toda corrigida pela tinta negra da palavra, olhá-los é já contemplar um poema em corpo num raro acaso que os próprios dados já lançados não prevêem. Equilíbrios frágeis, fazem dos seres acordes lindíssimos!

Choveu nas palavras em verso de Mallarmé! Elas lançavam-se livres e desenlaçadas no alaúde da composição, tão visual, quanto melodiosa, por que a língua encontra todos os planos quando dança! E quando deixa a dança, e ao não encontrar os seus arautos, morre, asfixia. Os exegetas judeus talvez tenham razão quando se debruçam anos infindos numa frase só e encontram frases outras, que nós lemos tudo na horizontal com as páginas em crescendo até ao fim, e grande parte não vê mais que um filamento de ideias nas letras. Querer ser entendido é a maior praga que se instalou na linguagem! Deveria ter calado isto tudo, mas não sei, não sei como calar.

Mallarmé morreu amargurado. Fora um grande anfitrião e pela sua casa passaram os que a História reservou, qualquer coisa se esgotara neste belo ser que anteviu dias antes o seu fim. Talvez estivesse cansado e com pressa de regressar ao diálogo alargado das suas competências. Para onde vão as almas destes homens que voltam de quando em vez para nos interpelarem de formas tão surpreendentes «musicienne du silence»?
Um Mallarmé talvez um pouco desconhecido este que aqui ficou.

16 Nov 2020

Travessia do Estreito de Magalhães

[dropcap]A[/dropcap] navegar há um ano no Atlântico, Fernão de Magalhães partira do Sul de Espanha a 20 de Outubro de 1519 com cinco naus e quatro chegavam ao primeiro momento importante da viagem, a passagem do Oceano Atlântico para o Pacífico. O percurso, por estreitos e baías, iniciara-se a 21 de Outubro de 1520, sendo as 110 léguas, de um mar ao outro, todas feitas em território do actual Chile, cujo único ponto de contacto com o Atlântico está nas baías de Posesion e Lomas. Após 36 dias, a 26 de Novembro aparecia o Mar do Sul, assim baptizado o Pacífico em 1513 por Balboa.

Muito do texto que se segue foi construído com base na informação de José Manuel Núñez de la Fuente proveniente do seu livro, Diário de Fernão de Magalhães (Bertrand Editora, 2019).

A cinco léguas da costa, as quatro naus estavam a 52º Sul e apareceu a poente um comprido cabo de terra branca (hoje o Cabo Virgenes, a 52º22’S). Era mais uma baía a explorar, onde entraram a 21 de Outubro de 1520, dia da festa da Virgem e de Santa Úrsula e suas companheiras de martírio, e daí denominado Cabo das Onze Mil Virgens. Num porto resguardado por o cabo ficaram com o capitão-mor Fernão de Magalhães as naus Trinidad e Victoria. Já a Santo António, a maior e mais bem abastecida de mantimentos, comandada por Álvaro da Mesquita e a Concepción, por Duarte Barbosa, foram explorar para Oeste, procurando “um estreito com águas a correr de um lado para o outro”.

Prevendo ali ficar cinco dias à espera dos resultados das pesquisas, aproveitou-se ir a terra fazer aprovisionamentos. Mas ainda nessa noite o vento virou e tão forte estava que obrigou a soltar as âncoras dos barcos, deixando-os a pairar na baía à mercê do vento e correntes. A tempestade levou a temer-se um naufrágio das outras naus, por delas não haver notícias. Apareceram ao quarto dia; a San António não achara caminho, apenas pequenas bocas de mar baixo. Já Duarte Barbosa, cunhado de Magalhães, na nau Concepción, referiu “terem passado uma garganta muito apertada e dentro dela descobriram outra boca, ainda mais delgada, a mostrar ser um estreito, pois navegaram três dias sem encontrar terra que os parasse e quanto mais andavam para Oeste mais caminho tinham por diante” e lançando muitas vezes a sonda não achavam fundo, “parecendo ser maiores as correntes que as minguantes”. Magalhães logo nomeou o estreito de Virgem da Vitória.

A 28 de Outubro partiam as naus em conserva e pela primeira boca avançaram umas léguas até Magalhães enviar a terra um batel com dez homens sob comando do piloto João Lopes Carvalho para do alto do monte tentarem avistar a saída daquela estreita passagem. Depois seguiram, num rumo Nordeste-Sudoeste, pelo meio do canal a evitar os muitos baixios e desembocando do estreito chegaram à actual baía de S. Felipe. Aí navegando de Leste para Oeste, após contornar duas ilhotas de areia entraram numa nova passagem, menos apertada, mas mais torcida, a correr de Nordeste para Sudoeste. Ultrapassada, as naus singraram trinta léguas Sul-Sudeste e virando para Sul num cabo, por o flanco esquerdo avançaram para Sudeste, onde deram com uma grande baía de águas calmas e umas ilhas. Magalhães mediu a altura do Sol em 53º 33’ Sul e como o caminho se abria em dois canais, enviou a Concepción e a San Antonio verificar o de Sudeste.

Estava-se a 8 de Novembro e deu-lhes três dias para ali voltarem a se juntar. No dia seguinte, pelo outro canal partia a Victoria, com Fernão de Magalhães, que após duas léguas encontrou um cabo e junto dele um rio onde fundearam, mesmo sem abrigo para a nau. Aproveitaram para se abastecer de água doce e fresca do rio e de peixe ali abundante, colhendo nas margens lenha, de bom odor ao arder. Ansioso por saber se dali para a frente se abria a passagem ao Mar do Sul, enviou um batel afim de descobrir naquele labirinto o caminho a levar à abertura do estreito. Pelo correr das águas e suas marés eram uns excluídos e outros explorados.

Regressaram a 13 de Novembro, anunciando ter avistado de um monte o final do estreito, pois após um cabo se alcançava um mar largo ao qual não se via fim. Logo uma onda de euforia invadiu a tripulação, que animada navegou as duas léguas para o ponto de encontro com as outras naus. Ali ficara a Trinidad e com ela estava já a Concepción, mas a Santo António desde 8 de Novembro nunca mais fora vista, como relatou Juan Serrano ao noticiar ter explorado por duas vezes o canal, confirmando ser uma baía fechada (a Baía Inútil), e não mais viu a San António, apesar de a ter buscado. Perante a triste notícia, logo à sua procura o capitão Duarte Barbosa, na Victoria retornou todo o caminho até às águas do Atlântico. Estava-se em meados da Primavera e deu para rever a cinzenta paisagem desoladora, rochosa e de pelada vegetação, fustigada pelo vento e neve. Sem encontrar a nau perdida, colocou bandeiras em três montes à vista da costa e em panelas enterradas guardou as cartas do rumo por onde a frota iria seguir. Com isto passaram seis dias parados, desconhecendo estar a San Antonio já a caminho de Espanha, levando preso o seu capitão, o português Álvaro da Mesquita.

Até ao mar do sul

Fazia um mês que exploravam as passagens do presumível Estreito, e a 21 de Novembro estavam fundeados no Canal de Todos os Santos, a 53º e dois terços Sul, à espera do regresso das naus; mas no dia seguinte apenas a Victoria apareceu. Então Magalhães aproveitou questionar todos sobre a vontade de continuar a viagem, ou regressar, . [Carlos I, da dinastia dos Habsburgos, nesse ano, a 23 de Outubro de 1520, fora coroado Imperador do Sacro Império Romano Carlos V.] A maioria apoiou continuar e com víveres para três meses partiram a 23 de Novembro. Rumaram a Noroeste por um largo canal, com muitas ilhotas que não prejudicavam a navegação e a paisagem mudou para uma verdejante vegetação, aparecendo a Norte altas serras com neve nos cumes e se durante o dia não se via viva alma, à noite as grandes fogueiras assinalavam gente. Montanhas em ambos os lados pareciam cruzar-se a encerrar a passagem, aberta lentamente à medida da velocidade do navegar rumo Noroeste. Após algumas léguas, virando a Nor-Noroeste e dando muitas voltas, pela forma labiríntica do estreito, voltaram a seguir para Noroeste e muitas léguas depois, junto a três ilhas, um cabo, baptizado Desejado por Magalhães, cuja altura era de 52 graus e um terço Sul.

O correr das águas dava por fim a certeza daquela ser uma passagem entre os oceanos. Desembocando do estreito a 26 de Novembro, apareceu a bombordo mar aberto e a estibordo, a terra continuava para Norte por onde vogaram dois dias ao longo da costa abrigados dos ventos.

A 28 de Novembro de 1520, o capitão-mor perante o mar calmo e ventos temperados, aos 46º Sul mandou rumar a Noroeste, entrando as três naus pelo Mar do Sul adentro. Perante as calmas águas, Fernão de Magalhães chamou-o de Pacífico.

15 Nov 2020

Sonhar fractal

[dropcap]F[/dropcap]ractais. Às vezes são tudo o que vejo. Interiores e exteriores. Padrões da consciência e do inconsciente. O módulo a coincidir na aparência com o padrão. A parte fracionada e o todo. Padrões: a porta da rua em vidro transparente e a quadrícula envidraçada da marquise das traseiras, como um conjunto de monitores na régie, a seccionar a imagem total. A mesma de onde deitava papelinhos miudamente cortados a voar.
Pergunto-me quais.

São os sonhos que se deixam sonhar, os da infância, talvez. Aqueles que esconjurados se retiram para uma tela luminosa na memória, e, se para sempre, para sempre também estacionados e neutros. Fizeram já todo o mal que tinham a fazer nos seus tempos. E ficaram enraizados como sinal de outros medos – tempos, digo.

Quais piratas ainda intrigantes, como os que subiam pelas noites acima, a quadrícula de vidro martelado das marquises do prédio, sem tontura nem vertigem, armados de sabres nos dentes, não sei já, digo mas não sei já se invento detalhes fílmicos, acrescentados ao sonho de muitas noites sonhado e sobretudo lembrado.

Piratas vindos dos livros onde deveriam ficar quietos nas suas maldades ficcionais. E aquela luz de madrugada, sempre. Marca estilística do olhar dos meus sonhos dentro dos sonhos sonhados. Subiam amarinhando sem dificuldades na estranheza e depressa demais para o medo.

Os sonhos tinham sempre aquela luz das madrugadas. Como se as imagens custassem a ultrapassar as pálpebras fechadas, vindas de fora e se fizessem ver coadas. Ou pelos olhos entreabertos, quando neles assim dormia pela vida fora, talvez desconfiada. Ou sem força muscular para deixar entrar toda a pujança do sono e dos sonhos. Os outros, antes de dormir e de olhos fechados, esses sim, sobre a mansa e dormente quietude da casa. Os bons. E completos e repetidos e bons. Mesmo com angústia em fundo. Lágrimas no outro quarto. Ausências. Gritos anteriores. Não saber o dia a seguir. E tudo a amortecer face à escuridão da casa. Às vezes o ruído da televisão. Menos mal. O incómodo no sonho gerava o conforto de saber que pelo menos. Quando não, era pior. Mau sinal. Mais não saber. Para esses ficava o capitão. Esse Capitão Morgan, a velejar nas Caraíbas, nobre, moreno e aciganado, sem lei mas fiel à coroa. Sem o qual as equipagens selváticas e sem lei, do sonho, amarinhavam pelas quadrículas de vidro martelado das marquises do prédio.

Sem rei nem capitão. Esse, o dos sonhos de olhos fechados e ouvido no quando-o-telefone-toca, na telefonia portátil, aproveitando os intervalos entre as frases para fazer circular o sonho na senda fugaz de uma música boa ou outra. E as viagens a fuga sempre. E na mala o que levar da realidade. De olhos fechados noite após noite, o plano recorrente como contas no caderno quadriculado da pequena vida. Fetiches, lembranças, pequenos tesouros e segredos, coisas assim, escolhidas para a pequena mala.

Um dia deu-me para despejar uma almofada de penas para lavar. As penas sobem espalham-se e agitam-se delirantes e incontroláveis. A rir do saco ingénuo e impotente. Quanto mais tento varrer mais elas se esquivam trocistas. Libertas de um conforto contido de anos.

O passado dá sempre um certo enquadramento ao presente. Às vezes o real é assim, penoso. Ou, sem penas, simplesmente lento e arrastado pelo peso. Curtido de longas conversas em monólogo melancólico rua acima. Levado para casa o fardo do devir, do porvir e do que veio sem mácula, pegada ou registo sonoro.

Carinhosamente, maternalmente, como a um filho subversivo e sofrido. Para deitar na cama e afastar a melena a fazer uma cócega impertinente. Arejar suavemente num sopro de distopia como uma aragem purificadora, mesmo assim. A testa em fogo. Mas ainda assim transportando como um fado ou uma vontade, rua acima, esse corpo, a despojar na cama de ervas e cheiros terapêuticos, a aliviar. A desprender entre os olhos e o pensamento na eminência de um gesto só, ali, uma carícia na testa. Um sopro está tudo bem dorme.

15 Nov 2020

O ditador desejável

[dropcap]A[/dropcap] ideia que fazemos normalmente de um ditador é a de um tipo autoritário exercendo o seu poder de forma absoluta, ou quase. Mas isso é apenas a fase final da evolução da criatura. Um ditador não começa nunca com poder (a não ser nos pouco regimes onde ainda é o berço a determinar o trono) mas com vontade de poder. E essa é uma das características fundamentais de um ditador: querer sempre mais do domínio que exerce sobre os outros.

O ditador não é um sujeito tão incomum como pensamos. Na verdade, ele existe um pouco por toda a parte; nas repartições públicas, na hierarquia das empresas, nas salas de aulas e até nas estruturas aparentemente menos atreitas a organizar-se verticalmente por níveis de autoridade. Sucede apenas existirem muito menos lugares de poder do que criaturas com vontade de os ocupar, pelo que os menos impiedosos ou talentosos ficam pelo caminho e, frustrados na sua vocação, acabam por engrossar as fileiras dos alcoólicos, dos perpetradores de violência doméstica ou dos vizinhos que contestam todas as decisões das assembleias de condóminos.

O ditador é, na verdade, a resultante de uma peculiar disposição do humano. Além da indispensável sede de poder, o ditador precisa de ser guiado por uma ideia não raras vezes em confronto com a realidade. Há no ditador um peculiar sentido de justiça. Esta não visa corrigir os males do mundo operando no âmbito da moral vigente; a moral vigente é, para o ditador, uma consequência do decadentismo da sociedade que pretende refundar. O ditador, aquele de amplo espectro de concretizações, aquele que toma as rédeas de um país e congrega em seu redor a maioria da população, está normalmente a braços com uma batalha.

Qualquer batalha serve. Pode ser com o sistema judicial do seu país, com a oposição – onde quer que esta ainda exista – ou contra um grupo étnico ou social. Mas um ditador precisa de inimigos, pois a sua promessa de mudança carece de obstáculos para os quais ele possa surgir como providencial figura de resolução.

Quando não existem obstáculos ou inimigos, inventam-se uns e outros. Como o ditador tem o controlo praticamente absoluto das estruturas de poder que normalmente fiscalizam e admoestam o governo – porque dele são independentes – não lhe é difícil inventar espantalhos que mobilizem a fúria popular e assim consolidem o seu domínio.

Paradoxalmente, o pior que pode acontecer a um ditador é conseguir que a realidade finalmente coincida com a ideia faz da realidade desejável. Deixa de conseguir justificar as medidas excepcionais a que teria de recorrer acaso a discrepância cujo diagnóstico justifica a sua existência existisse. Imaginemos uma Alemanha nazi sem judeus, sem tratado de Versalhes, uma URRS sem kulaks, um Napoleão cuja Europa já lhe pertencesse. Se a vontade de poder é o combustível do ditador, a ideia é o seu motor. E essa ideia pode ser tudo, desde que seja o contrário absoluto de um estado de coisas diagnosticado.

É claro que nada disto funciona sem o apoio popular generalizado – pelo menos numa primeira fase. O «povo» é que de facto faz andar a máquina. O povo, na sua eterna propensão para confiar nos homens providenciais e a eles entregar o seu destino, faz de rodas. É ele que leva ditador e ditadura na direcção de uma sociedade sem ou de uma sociedade com (preencher a gosto). E, para enorme fortuna do ditador, o povo tem memória de peixe de aquário. Bastam duas gerações volvidas sobre um tremendo erro para, de repente, a mesma fórmula bafienta parecer de novo tremendamente atractiva. E do nada – aparentemente – lá surge um homem que parece estar tão fora da história como o divino para meter nos eixos um país prestes a descarrilar.

Sigam-me para mais receitas.

12 Nov 2020

Um sentimento

É a morte. A morte é o inimigo.
É contra ti que eu me lanço, invencível e inflexível, ó Morte!
Virgina Woolf, The waves.

 

[dropcap]U[/dropcap]m sentimento nasce e cresce. Mas morrerá? Há sentimentos que saem do horizonte, desaparecem da presença, mas talvez não morram. Pelo menos quando nos nascem, acontecem a seres humanos existentes. Um sentimento é uma personagem, talvez. Temos a sua percepção ao longe, é de sentir que falamos quando sentimos a sua aproximação e vinda. E toca-nos. Há sentimentos isolados daqueles enormes que temos por Deus, quando nos confrontamos com o seu mistério e o seu milagre, talvez. Há sentimentos que vemos nascer por alguém, único, singular, que muda toda a nossa vida. Há sentimentos bons. Há também sentimentos maus e há-os que são frequentes, que nos vibram a vida toda. Cada objecto tem o seu sentimento. Cada pessoa é um sentimento. De manhã à noite temos tantos sentimentos quantos os segundos que passam, os momentos que atravessamos, mesmo sem dar conta disso. Um sentimento não é nada que haja só dentro da minha cabeça nem só na cabeça dos outros. Há sentimentos colectivos e privados, daqueles que não contamos a ninguém e daqueles que não queremos calar em nenhuma circunstância.

Quando estamos tristes, não é só o nosso cérebro que está triste, nem a parte da alma onde dói, nem quem ou o quê de onde irradia tristeza. É tudo. Quando se sente a tristeza está-se triste. Pode não haver diferença entre sentir a tristeza e estar triste. Quando sinto tristeza sem estar triste, é uma outra tristeza. Quando estou tão triste que não sou de outra maneira, o sentimento é avassalador. O sentimento tem olhos e vê, não é cego e jamais existe sem olhar. Por vezes, sentimos a sua presença ao longe como um inimigo de atalaia, para nos emboscar e atacar.

Outras vezes, suspeitamos da presença de um sentimento bom. Não lhe vemos os olhos nem o rosto, pressentimos só a sua presença, excitante. Vem do futuro, do tempo da promessa. A alegria também não é percebida por nenhuma cognição, nem quando estamos tristes. Mas também pode ser assim percebida. Há alegrias que testemunhamos assim como ninguém quer a coisa. O acto cognitivo que percebe a alegria deixa-a a sangrar, não a deixa viver como ela nasceu e cresce tanto. Nem a nós nos deixa que ela nos atinja. Mas também, tristes, nos podemos lembrar da alegria, tingimo-la com a nossa tristeza. Não é uma mistura de tristeza e de alegria. É a tristeza com que vem até nós uma alegria passada ou meramente possível, no futuro, talvez. Mas a alegria do sentimento que nasce e cresce, o sentimento que faz nascer e crescer a alegria e se confunde com ela é outra coisa. Não podemos dizer verdadeiramente que estamos alegres, quase que deveríamos dizer: somos alegres ou melhor somos com a própria alegria.

Há sentimentos que vêm, como pessoas por quem esperamos, prometidas. E assomam o horizonte. Aproximam-se cheias de possibilidade. Sem estar presentes ainda, esperamos já por essas pessoas. Vivemos já a acolher a sua presença futura sem que ainda existam ou então sem se terem convertido em realidade. O sentimento de esperança resulta da lance retroactivo da possibilidade que nos olha já no presente, mas acena do futuro como promessa. Não dá nada a não ser esperança, porque no presente é tudo igual como tem sido, mas já animado agora com a simples possibilidade de que tudo venha a ser diferente, possa vir a ser melhor.

Um sentimento nasce e cresce. O sentimento da proximidade da traz consigo a angústia. É do futuro que tudo chega: promessa, esperança, e o desespero ameaçador. Mas a morte é esperada do lado de cá da vida. É todo futuro, quando, já não estarei cá, quando já nunca mais verei nada nem ninguém. E nem a mim me encontrarei. O sentimento da morte diz-me que tudo será sempre assim como tem sido, mas sem mim cá. O sentimento da morte vem já a fazer sombra sobre a vida em mim e assim sobre o mundo e os outros todos. A raiz da morte é o tempo e por isso é de lá que nasce o poder de alastrar a tudo o que existe, do mais pequeno e ínfimo até ao vasto e extenso universo. Mas o sentimento da morte aproximar-se ainda não a traz, ainda não está aí. Se ela tivesse chegado, não diria nada. A morte é sempre vista do lado de cá da vida.

Desse sentimento ameaçador não vem só impossibilidade. A sua raiz é a possibilidade. Do impossível nasce o possível, do nada que também é, nasce o possibilitante. Não é como se tudo fosse tudo possível. É sóbria a possibilidade que vem com a morte. Um sentimento de morte nasce e cresce não apenas agora a meio da vida nem mais tarde quando for próximo do fim. Vem de antes de termos nascido. Com o princípio vem já o fim. O futuro mais longínquo existe desde sempre. Desde sempre a morte vem como possibilidade: a possibilidade de nada mais ser já possível. É essa a raiz de todos os sentimentos.

É contra a morte que o cavaleiro avança a galope, com a lança em riste.

12 Nov 2020

As trovas ficcionais do ciúme

[dropcap]N[/dropcap]o primeiro número da revista ‘Orpheu’, corria o ano de 1915, Almada Negreiros fez publicar a breve narrativa “O Echo”. Deixo aqui o texto com a ortografia original:

“Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!/ Talvez que fosse à caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta./ Era p’lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras./ Foi chamar ao cimo dos/ rochedos, e uma voz de mulher tambem chamou Adão./ Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem chamou Adão./Foi-se triste para a tenda./ Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma! E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe./ – Outra que não Ella chamára tambem por Elle”*.

O tema de fundo é o ciúme. A partir de um estigma solitário, constrói-se uma história inteira com personagens, paisagens, chamamentos, tudo composto numa narrativa em vária vias, permeável a metamorfoses tal como nos sonhos, mas, ao mesmo tempo, dotada de verossimilhança a fim de que a ficção se possa inserir na ordem das coisas plausíveis. Veja-se o que aconteceu a Semira, raptada por ciúmes de Zadig, um e outro conhecidos heróis de Voltaire.

Quando Adão e Eva são protagonistas, a alegoria e a economia dão facilmente corpo a todos estes aspectos. Não sendo esse o caso, o crédito ficcional torna-se fundamental para conquistar o público, embora, no caso do ciúme, o público seja apenas e tão-só o próprio ciumento solitário que, encerrado na sua redoma, aprende a vibrar e a excitar-se com as imagens do enredo que conjectura e imagina. Trata-se de uma trama em efabulação ininterrupta como se decorresse da interacção entre criador, encenador, actores e público, reunindo o ciumento, no seu sofrimento silencioso, todos esses papéis afinal irreais e virtuais.

O único momento em que o ciumento é capaz de comunicar parte do seu conjurado ‘plot’ é na frente da/o amada/o, embora a tradução que leve a cabo se baseie em instantâneos frenéticos e eufóricos ou em elementares pontos de fuga.  E isso acontece porque o ciumento centra a atenção num único objeto e congela aí a toda a sua capacidade de inferência, sendo incapaz de selecionar o que é essencial ou possível e o que é secundário ou inconcebível, perdendo-se assim na errância delirante dos detalhes.

De qualquer maneira, é nos detalhes que o ciúme admite a tragédia que visiona, do mesmo modo que terá sido a partir de um pormenor inicial que toda a marcha ficcional começou inapelavelmente a ser produzida.

Este caminhar paralelo à realidade faz adoecer os próprios sentidos do que se crê ser a realidade. O narrador de ‘O Vestido Cor de Fogo’ de José Régio foi claro a este respeito: “Tudo isto o fui vendo fechado no meu gabinete, quando, tendo-se-me revelado a torva disposição ao ciúme” (…) “naturalmente me recurvei sobre mim mesmo, a interrogar a minha própria personalidade e a minha própria vida”.*

Nos ‘Fragmentos de um discurso amoroso’, Barthes, na sua escrita elíptica e fugidia, cita a exclusividade de Freud (“quando amo sou exclusivista”), o que significa que opor-se ao ciúme seria quase transgredir uma lei.

No mesmo passo, o autor admite que o ciúme recusa a perfeição e que a perfeição implica sobretudo saber repartir (e os românticos deram corpo pleno a esse tormento: Mélita reparte e Hiperion sofre com isso, do mesmo modo que Carlota reparte e Werther sofre com isso).

Se a paixão nasce em boa parte de uma distorção óptica (a imagem da/o amada/o é sempre a figuração de um modelo ideal e único), a narrativa do ciúme associa causas e efeitos voláteis a conclusões aleatórias que se propagam e ampliam através de uma distorção do mesmo tipo. Tal como Rousseau referiu, descartando o ciúme – com alguma inocência – de um “estado de natureza”, terá sido nos labirintos da complexidade social moderna que o “furor impetuoso” e os “sacrifícios de sangue” rasgaram a expressão do que seria um “sentimento doce e original”.

Embora a mitologia esteja repleta de altercações sanguinárias que contrariam esta ingénua bonomia, não deixa de ser interessante que, na tradição literária medieval e renascentista, o ciumento tivesse surgido amiúde associado ao risível ou ao desprezível. Na poesia trovadoresca, por exemplo, o lamento é visto como um aceno nobre (quando a correspondência amorosa parece esvair-se) que evita, no entanto, atravessar a fronteira em direcção ao ciúme, pois isso seria entendido como primário, ridículo, coisa de vilão. O amante cortês jamais se isola no seu ciúme primário, pois isso rebaixá-lo-ia.

Regressando ao ‘Echo’ de Almada, os sinais da narrativa tornam-se evidentes em três patamares distintos: “a cáça era nenhuma!” / “Elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe” e “Outra que não Ella chamára tambem por Elle”. Por outras palavras: o corte ou a fuga à normalidade aparece como ponto de partida (a ausência de caça), a desordem toma depois o seu lugar (ameaça e fuga), dando, por fim, entrada na trama o chamamento (ou o emergir das vozes que se multiplicam no delírio da narrativa que se imagina).

O ciúme é, pois, um vórtice ficcional que navega a partir de uma situação pontual e sobretudo imponderável. Não é caso único na sua morfologia, não fosse ele um devanear dos humanos ao encontro da sua própria fragilidade. O processo – que no dizer poético de Cecília Meireles acontece ao “mundo que circula no vento” – associa os três patamares já referidos (momento do corte – desconcerto – imaginação em desvario) e é reconhecível, por exemplo, no ‘Génesis’ bíblico (deus cria o homem – maçã/babel – culpa/desconcerto), na pandemia que se descontrola (contágio – alteração – propagação) ou até na patologia das recentes eleições americanas (anúncio inusitado de vitória – complicação – geração do caos). Em última análise, estaremos perante uma metáfora da nossa própria vida sempre prestes a desencadear singularidades que rompem o plano corrente dos dias e que originam – dando outra vez a palavra a Rousseau – os conhecidos “devaneios do caminhante solitário”.

Negreiros, A. ‘Frizos (prosas)’ em ‘Revista Orpheu’, Lisboa, Ano I, 1915, N.º 1.
Régio, J. ‘O Vestido Cor de Fogo e outras histórias’. Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 29.
Rousseau, ‘Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes’ em ‘Oeuvres Complètes’, Vol. 2, Paris, Seuil, 1971, pp. 225-226.

11 Nov 2020

A reparação cósmica

[dropcap]A[/dropcap] ideia de que Deus cria o mundo lendo um livro é da tradição judaica e encontramo-la no Jardim das Delícias, do Bosch, onde, a uma esquina do Terceiro Dia da Criação, se figura um velhito com um livro na mão, pondo em movimento essa gestação do mundo que lhe inspira a leitura da Torá.
Primeiro aspecto simpático: Jeronimus Bosch não ardeu na fogueira por ter representado Deus na sua senilidade, um sinal de tolerância.

E se nos reportarmos aos dias de hoje, às teorias da conspiração e à vileza desse balofo Capitão Gancho de cabelo encardidamente laranja, pode ocorrer-nos a ideia estremecedora de que o livro que Deus lê nesse cantinho de Bosch possa não ser a Torá mas o American Psicho, do Bret Easton Ellis, um retrato da insânia. O que tornaria o legado de Deus uma coisa intolerável.

Contudo, nesta semana, outra notícia me contundiu sobremaneira. Falhos de imaginação os que achavam que Marx, Nietszche e Freud tinham marcado o homem com feridas narcísicas (mesmo que Marx tenha voltado em farsa, na superstição populista de que também os socialistas comem crianças ao pequeno-almoço).

Aquilo que descobri esta semana, põe tudo isto de pantanas. Passo a citar: «O espaço sempre suscitou curiosidade e mistério (…) Os cientistas respondem agora que podem existir 300 milhões planetas potencialmente habitáveis na nossa Via Láctea. E estes mundos não estão assim tão distantes quanto se possa pensar, alguns estão a 30 anos luz.»

Trinta anos luz, é já aqui; trezentos milhões? Uau! A notícia deixa-nos em carne viva, escorchados, a escorrer sangue. Sabíamos que a modernidade começa com uma fogueira, aquela em que arde o corpo de Giordano Bruno, em 1600, mas não supunhamos que a multiplicidade dos mundos que ele defendeu no livro que o perdeu fosse de tal monta.

Esta multiplicidade é fascinante mas reabre o sulco da responsabilidade, sob risco de nos pulverizar a irrelevância. Bom, isto não é tanto um problema para mim como para as cabecinhas que temem a centrifugação simbólica, para quem os profetas têm de ser obrigatoriamente autoritários e mágicos, e para quem Deus escolhe os humanos como cobaias principais, ou é o dealer que fornece as 72 virgens.

Trezentos milhões, mesmo para um Deus não dá folga. A possibilidade de encontrar os dados do jogo esquecidos por um instante na mesa do universo – talvez no encarniçamento da discussão com Einstein, que lhe recriminava a ligeireza de brincar com o aleatório e o incerto – são ínfimas; aumentaram de tal modo as anfractuosidades do mundo que alguma coisa que ficou fora do foco da atenção um milionésimo de segundo pode estar perdido para a eternidade. Por outro lado, as hipóteses para que Deus encontre um mensageiro confiável e eficaz neste labirinto de vozes ilimitadas são reduzidíssimas, e mesmo a Deus, revejo-o agora como a esse velhito do Bosch mas vestido de polícia-sinaleiro numa encruzilhada entre galáxias e praticamente já sem trânsito.

E eis que igualmente o meu querido Shakespeare passa a ter o relevo de uma poda (que ninguém completou) numa videira, em vinha que entretanto secou.

Ah, mas Deus é ubíquo, objectarão alguns. Pois é, mas nós não, e somos nós quem têm de lhe captar a atenção, tal como uma das funções do espelho é apresentar-nos ao infinito.

Para Nietzsche, não nos libertamos de Deus se não nos libertamos da gramática. Em trezentos milhões e mundos habitados essa harmonia pré-determinada será uma mesma ou irradia em sucedâneos agramaticais que fundam diversas regras, milhões? Fica a dúvida, porém, só esta, inibe a simples ideia de usarmos uma sua gramática (qual?) ou de nos afincarmos na sua devida apropriação.

O que nos projecta para o território de uma escolha vital. Encaminhamo-nos para a radicalidade inabarcável do múltiplo, numa liberdade inerente a si e em contínua exterioridade à sua moldura, num fluxo que rompe categorias e delimites, e adquirimos a serenidade no meio dessa insegurança? O que é para raros e obriga a uma vigilância permanente. Ou desenvolvemos uma cegueira redutora, o que acontece a muitos, e queremos decalcar na laminada pele do universo a ilusão das tradições? Trata-se de escolher entre a intranquilidade do incognoscível e a tirania decapitadora.

Chega-me pela primeira vez a impressão de ceder à visão conspiradora dos agnósticos: o Mau Demiurgo faz o universo conspirar contra nós.

Não obstante, julgo que a irrelevância a que estamos submetidos não deve afundar-se ainda mais na estultícia de concedermos relevância a Trump. O político – o direito a pegar na pá e soterrar Trump – ganha aqui o sabor de uma reparação cósmica.

E quem se abstrai disso – chega-me a certeza indubitável – vai para o Inferno ou já vive nele. Como os setenta milhões que votaram em Trump.

A confirmar esta hipótese, astrónomos conseguiram finalmente decifrar um misterioso sinal de rádio repetido no espaço, rastreado há dez anos. E de acordo com a revista científica “Nature”, a suposta origem do sinal chega-nos de mais perto, estranhamente de Tebe, o quarto satélite natural, em termos de distância, de Júpiter, que se assemelha a uma orelha. Este foi descoberto pela Voyager 1 em 5 de março de 1979, e foi baptizado com o nome da ninfa Tebe que na mitologia grega era filha do deus Asop. Há, contudo, quem diga que a mensagem afinal vem do planeta Niburu, que surge sempre por detrás de Júpiter, esse planeta cujos habitantes nos visitam a cada 3.600 anos para, segundo os sumérios, fazer experiências transmitir ensinamentos e fornicar as militantes trumpistas. De qualquer dos modos, diz a estranha mensagem: “…apesar de gostarmos mais da Kamala que do velhote, damos os parabéns a Biden pela vitória nas eleições americanas. O Trump que vá para o Inferno…”

Feminismo? A mim parece-me uma mega reparação cósmica.

11 Nov 2020

A sociedade está a mudar de base. O que acontece diante dos nossos olhos não é senão uma mudança de civilização (2018) RAOUL VANEIGEM

No cruzamento de todos os lugares e de nenhum situa-se a encruzilhada do possível e do impossível

[dropcap]U[/dropcap]m caos planetário assombra hoje as ruas e as cabeças. Estamos a sofrer os efeitos de um terramoto cujo epicentro está em toda a parte e em lugar nenhum. Tanto assim é que neste reino absurdo onde continuamos a subscrever um pretenso contrato social, nenhuma base, nenhum valor seguro oferece a ajuda da sua estabilidade.

A mudança de civilização a que assistimos não se insere no círculo apocalíptico que fazia girar a peste, a fome, a sida, as guerras, as insurreições, a devastação atómica, a catástrofe ecológica. Resulta de uma evolução da história que, tendo atingido um impasse, revela a sua aberração original: o desvirtuamento de um devir humano, paralisado pelo surgimento de um sistema económico e social inadequado. O que surge em simultâneo é a superação que traça, como única saída, a fundação de uma civilização radicalmente diferente.

A consciência de uma verdadeira humanidade exige o abandono das utopias putrefactas a que a opinião dominante sempre deu crédito. O Estado de Bem-Estar, a sociedade de bem-estar consumista na qual continuamos a tropeçar não prova que aquilo a que chamam de realidade é a verdadeira utopia: um lugar que não está em lugar nenhum e um tempo onde, representados por toda a parte, estão exilados do vosso próprio corpo?

A rocha das velhas certezas despedaçou-se, não permitindo às evidências do passado senão uma rápida volta no frágil palco do espectáculo.

Atingidos de frente por um passado em colapso e um futuro ensombrado pelo vazio do pensamento, os costumes e as mentalidades dobram-se sobre si mesmos, recuam para o que não mais tem lugar, falhando em abrir-se para o que ainda não existe e que, no entanto, está para nascer.

O espectáculo da vida às avessas devora toda a esperança. Testemunhamos a renovação dos arcaísmos que fizeram a glória sangrenta do velho mundo. Embora cada retrocesso seja saudado pela fanfarra das novidades antigas, sabemos que nunca há volta atrás, que a cola estupidificante só produz efeito durante a colagem mediática, do furo, como dizem os jornalistas.

Ontem, a crise económica havia revelado que era, na realidade, uma crise da economia. Evidência que, hoje, esconde outra. O desmoronamento do sistema revela, aos olhos que se abrem, algo que não é senão uma mudança de civilização.

O desequilíbrio das sociedades resulta de um deslizamento das placas tectónicas, de uma total subversão das nossas condições de existência. Ainda não percebemos a infinidade de possibilidades que se abrem diante de nós. A exploração da vida é uma aventura que não tem comparação com a experiência labiríntica de sobrevivência, onde não temos nada mais a aprender, a não ser como escapar dela. A experiência da vida economizada foi um fracasso. Guiada pela consciência humana, a vida nada tem a demonstrar excepto a sua própria existência.

O regresso da consciência humana

A consciência proletária dotou de uma praxis – de uma prática inscrita nas condições particulares da história – essa consciência humana que o humanismo do Renascimento tinha revelado na sua forma intelectual, geradora, no entanto, de profundas convulsões psicológicas e sociais.

O projecto proletário de uma sociedade sem classes foi além da ideologia humanista, rapidamente assumida pelo capitalismo filantrópico. Baseava na realidade vivida sob exploração, na existência consternada de milhares de homens, mulheres e crianças – da qual dará conta Flora Tristan –, a luta pela emancipação liderada pelo proletário, a fim de se libertar e de libertar o mundo da proletarização.

A ascensão e o dinamismo do capitalismo produziram as condições históricas favoráveis ao nascimento de uma consciência proletária. A burocratização do movimento operário, a marginalização do sector produtivo e o tsunami consumista levaram a melhor.

Os ganhos de ter estão destinados a perder-se. O que o ser adquiriu persiste.

Embora o poder letárgico do capitalismo financeiro tenha confortado o sono do proletariado, o seu sonho permanece e é como se a consciência humana – de que a luta de classes se tinha, de certa forma, vestido historicamente – ressurgisse do fundo das trevas. Como se se preparasse para brilhar no quadro que a sociedade autogestionária lhe vai proporcionar.

A consciência de ser e de querer ser humano nunca desaparece, desperta sempre dos seus entorpecimentos. Ao perceber, por meio de turbulências e confusões, que um processo de mudança radical está em acção, a inteligência sensível redescobre a consciência humana de que a consciência proletária e o seu projecto de emancipação se haviam revestido de forma historicamente fugaz.

Tudo aquilo em que os homens acreditaram ruiu porque a sua credulidade levou-os sempre a confiar naquilo que os negou, sufocou e aniquilou. Eles têm essa qualidade extraordinária para se destruir, para odiar, para desprezar. Desconsideram aprofundar as alegrias que lhes competem em favor de um momento de amor, de felicidade, de criação.

Um movimento de autogestão que não se empenhe, desde o início, em fazer com que a vida tenha precedência sobre a economia, apenas administraria a miséria de estar sob o jugo do ter.

A robotização dos seres vivos não sobreviverá ao despertar da vontade de viver

A experimentação das condições de sobrevivência atingiu o seu auge com as consideráveis melhorias que as tecnologias avançadas, o consumismo, a democracia de mercado trouxeram para o conforto desses animais domesticados e com antolhos que são as mulheres e os homens obrigados ao trabalho.
Como não celebrar o progresso extraordinário das ciências médicas e farmacológicas? Temos os meios para prolongar a duração da existência muito para além do tempo fixado pelo passado. A desvantagem é que o beneficiário, tanto quanto esse pastor a quem Zeus concedeu o pedido de um desejo, escolhe ser imortal. Tendo-se esquecido de especificar que era permanecendo jovem que o queria, viu-se enrugado, murcho, quebrado sob o efeito da velhice eterna.

O que as novas terapias melhoram não é a vida mas a ansiedade prolongada, um desconforto que progride e seca, uma esterilização do viver que «vivifica» o mercado da saúde.

A farsa do transumanismo. Embora o homem não tenha ainda dado lugar ao ser humano, a máquina de descerebrar e de tornar a vida lucrativa oferece a sua concepção do futuro e a sua imaginação advogando um transumanismo. Desprovido dos pitorescos, muito questionáveis psicopatas que outrora nos matraquearam com o eugenismo, a teoria das raças, a inferioridade da mulher e outras verdades devidamente acreditadas pela ciência, defende-se o projecto de uma tecnologia enxertada nos vivos para eliminar doenças, para retardar o envelhecimento e a morte, em suma, para se sobreviver com a perfeição de um robô num universo regulado por uma máquina de lucro, que colocou Deus no desemprego abolindo a sua função de grande relojoeiro.

Os intelectuais que trabalham para aperfeiçoar a ordem das coisas tendem a esquecer que dentro de um tanque de guerra há um homem que, de repente, decide salvar a sua pele e os seus desejos. A pobreza do cinismo deles é terrível. Eles têm a arrogância do poder e a fraqueza do lacaio. É por estarmos de joelhos há tanto tempo que não conseguimos levantar-nos para lhes cuspir na cara?

Porque é ajoelhados que gritamos: «Basta!» É ainda ajoelhados que, elevando os nossos gestos de ameaça e de revolta para o céu vazio, estimulamos o sarcasmo dos exploradores e dos seus mercenários mediáticos.

O que podemos opor à tirania e aos seus ditames senão esta consciência humana que, baseando-se na vida e na liberdade dos seus desejos, se afirma, também ela, como um facto consumado?

A vida é algo indiscutível. Não tem de prestar contas a ninguém, e ainda menos a um sistema cujas engrenagens estripam os “cavalheiros” que se envaidecem de as fazer girar.

Às estratégias dos assentamentos desumanizantes, a autogestão generalizada opõe o surgimento das terras livres onde se concretiza, poeticamente, a nossa vontade de uma vida soberana. Esta é uma determinação que exclui qualquer debate, qualquer compromisso, qualquer diálogo com o «partido da morte».

tradução de:
VANEIGEM, Raoul, “La société change de base. Ce qui est en cours sous nos yeux n’est rien d’autre qu’une mutation de civilisation”, in Contribution à l’émergence de territoires libérés de l’emprise étatique et marchande – Réflexions sur l’autogestion de la vie quotidienne, Paris, Éditions Payot & Rivages, 2018, pp. 77-85.

11 Nov 2020

Alberto Osório de Castro

[dropcap]E[/dropcap]stá por fazer a história das figuras portuguesas que viveram e escreveram o chamado Oriente Português em tempos mais próximos de nós. Todos conhecem os descaminhos de Camões e as tropelias de Mendes Pinto pela Ásia, mas quem conhece a tímida viuvez de Wenceslau de Moraes, os amores de Pessanha pela Águia de Prata, as vistas do japão em Armando Martins Janeira? Muitas vezes ligados a cargos públicos, vários escritores e intelectuais não só fizeram a sua vida nas então colónias portuguesas da Ásia, mas sobre elas escreveram, adensando uma longa tradição literária que vem do século XVI. Por exemplo, Alberto Osório de Castro (1868-1946), juiz, poeta e erudito, primo de Camilo Pessanha, seria uma dessas figuras a ser urgentemente recuperada, por ser fundadora de uma moderna linhagem de escrita sobre o Oriente em português, não só a nível literário, mas também científico.

Embora amador, como vários intelectuais do seu tempo, foi um respeitado membro da comunidade científica nacional e internacional, o que comprovam as suas obras literárias, cheias de erudição orientalista e os estudos científicos éditos e inéditos no âmbito das ciências humanas e naturais. Dados como estes permitem entender a razão pela qual Camilo Pessanha, em resenha ao livro Flores de Coral (1910), lhe atribuía uma “pouco vulgar cultura científica”. Por exemplo, as detalhadíssimas anotações botânicas sobre flora de Timor que enxameiam esse que foi o primeiro livro publicado na colónia dão corpo a uma espécie de ciência feita ao sabor da pena. Percursores in illo tempore, os portugueses, como Diogo do Couto ou João de Barros, lançaram as bases epistemológicas para a criação de um conhecimento europeu sobre Ásia, do qual ingleses e franceses tomaram conta. Restou aos portugueses que depois deles vieram uma ciência mais descomprometida, por assim dizer, feita à margem, literal e figurativamente. No caso de Osório de Castro, é literalmente nas notas aos poemas de Flores de Coral (Dili, 1909) que ganha corpo um olhar simultaneamente literário e científico sobre Timor.

O seu nome está muito ligado a Timor, como se sabe. Diz-se que foi o primeiro funcionário público português a pedir transferência para essa metade de uma ilha para onde ninguém queria ir, mas que o apaixonava. Mas antes de Timor esteve por Goa, onde foi Procurador da Coroa nos primeiros anos do século XX. AÍ haveria de fundar a longeva revista científica O Oriente Português, que começou em 1907, e dirigir a biblioteca de Nova Goa, desempenhando trabalhos como arqueólogo. Em 1907, foi juiz de direito da comarca de Moçâmedes mas, saudoso da Ásia, é no mesmo ano transferido para Timor. Sidonista convicto, chegou à Metrópole ainda a tempo de ser Ministro da Justiça de Sidónio Pais, em 1919. Não voltando mais ao Ultramar, participa e preside a instituições relacionadas com assuntos coloniais. Foi jurado do VIIº Concurso de Literatura Colonial (1933) e júri do concurso literário do S.P.N. (1934) que premiou, em segundo lugar, Mensagem de Fernando Pessoa.

Mas o Orientalismo de Alberto Osório de Castro é ao mesmo tempo científico e estético, dimensões muito intimamente ligadas. Desde o seu primeiro livro, Exiladas (1895) se encontram poemas que glosam elementos da erudição orientalista, como o teatro clássico indiano ou motivos de japonaiserie. De outra forma, faz a poesia conviver com a erudição e a investigação em livros como A Cinza dos Mirtos (Nova Goa, 1906) e Flores de Coral que, para além dos poemas propriamente ditos, incluem coisas tão singulares como partes pautas musicais, gravuras de antigualhas indo-portuguesas, glossários, boletins, documentos, visando contaminar a poesia pelo saber enciclopédico. Em volume, publicou ainda o livro de versos O Sinal da Sombra (Lisboa, 1923) e o relato em prosa A Ilha Verde e Vermelha de Timor (Lisboa, 1943), a sua obra mais conhecida.

Num ambiente onde se cruzam diversas estéticas (Decadentismo, Simbolismo, Parnasianismo, indícios de Modernismo), é um dos mais centrais criadores de um gosto moderno pelo “oriental” na poesia portuguesa da viragem do século, bem mais que Pessanha, que em verso pouquíssimo escreveu sobre a China. E esse Oriente toca geografias diversas: Índia, Pérsia, Egito, Insulíndia (Java e Timor), Japão e China. Esta forte inscrição na produção literária do saber acerca do Oriente é de fato característica da obra de Osório de Castro, sem esquecer as ligações íntimas da sua escrita ao projeto colonial, do qual foi ativo participante. Esta parece ser a grande originalidade de um autor esquecido, quer pelos manuais de literatura, quer pela ciência.

10 Nov 2020

As Danças Folclóricas Romenas

[dropcap]A[/dropcap]pós um hiato de dois anos na composição devido à sua luta contra a depressão causada pela Primeira Guerra Mundial, bem como a algumas decepções na sua vida profissional, Béla Bartók começou a compor novamente em 1915. E não é surpresa que uma das suas primeiras composições desse período seja a suíte intitulada Danças Folclóricas Romenas (originalmente intitulada Danças Folclóricas Romenas da Hungria) composta para piano solo e posteriormente orquestrada para pequeno agrupamento pelo compositor em 1917, e que se tornou uma das composições mais populares do compositor. Entre 1909 e 1914, Bartók fez várias viagens à região da Transilvânia, na época na Hungria, mas que em 1920 passou a fazer parte da Roménia, onde registou e transcreveu a música local. Descobriu que a música folclórica dessa região era muito mais rica em variedade do que a do resto da Hungria. Os ritmos, os timbres e as diferentes combinações de instrumentos locais como violino, guitarra, flauta camponesa e gaita de foles provaram ser bastante estimulantes na sua busca de elementos novos e emocionantes para o compositor introduzir na música séria do século XX. No decurso das suas exaustivas viagens pela Europa de Leste, Bartók compilou uma enorme colecção de melodias populares que em 1918 incluía nada mais nada menos que 2700 danças e canções húngaras, 3500 romenas e 3000 eslovacas.

Bartók identificou três formas pelas quais a música folclórica pode servir de base à música séria. No primeira, o compositor usa melodias folclóricas autênticas com a adição de acompanhamento e, possivelmente, uma introdução e uma conclusão. A segunda é aquela em que o compositor inventa a sua própria melodia imitando uma canção folclórica. A terceira é quando absorve a essência da música folclórica de tal forma que ela se torna parte integrante da sua linguagem composicional sem uma conexão autoritariamente perceptível com a tradição folclórica. Das três formas, as Danças Folclóricas Romenas são claramente baseadas no primeira. Ao arranjar as melodias folclóricas que colecionou na Transilvânia, Bartók preservou o seu tom e estrutura rítmica enquanto introduziu uma linguagem harmónica rica no acompanhamento. No entanto, foi mais livre na escolha do ritmo, pois algumas das danças rápidas tornou ainda mais rápidas, e algumas das melodias mais lentas tornou ainda mais lentas, enfatizando o caráter individual de cada uma.

A melodia da primeira dança, intitulada “Dança do Pau”, em ritmo moderado, provém de dois violinistas ciganos que Bartók registou numa aldeia da região. É seguida pela relativamente rápida “Dança da Faixa”, que originalmente o compositor ouviu tocada numa flauta camponesa. A terceira dança, “No Mesmo Lugar”, embora também originalmente executada numa flauta camponesa, é muito mais lenta e de espírito sombrio, com um carácter mais meridional, balcânico ou mesmo do Médio Oriente, enfatizado pelo intervalo de segunda aumentada. A quarta dança, “Dança de Bucsum”, é em compasso ternário de ¾, ao contrário das restantes danças que são principalmente em compasso binário. Bartók deu-lhe uma qualidade suave, quase como um minueto e um andamento mais lento, em nítido contraste com a melodia folclórica original do violino, bastante viva e enérgica. Aqui novamente ouvimos a segunda aumentada, o que sugere a influência de lugares a sul da Roménia. A quinta dança, intitulada “Polaca Romena”, alterna entre os compassos de 2/4 e 3/4 e é bastante exuberante, assim como a última dança, intitulada “Maruntel” (“Dança Rápida”). Bartók enfatizou o seu carácter de dança, fornecendo um acompanhamento energético com a mão esquerda, preservando a qualidade de violino da animada melodia ornamentada.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Romanian Folk Dances, Sz. 56
Zoltán Kocsis, piano (Works for Piano, Vol. 1) – Philips, 1992

9 Nov 2020

Apocalipse

[dropcap]E[/dropcap]sperar. O dia frio, o atravessar do rio e subir a noite até onde a tarde chegar.

Recuperar. Tudo o que é frágil, cristais e longos braços, que o adeus é forte para quem já está no mar.

Silenciar. Pouco para dizer, para nascer, encrespadas as águas geram pragas, e nós não vamos nadar, vamos na viagem já sem poder andar.

Navegar. Nesse céu que é uma oblata sem a sua Via Láctea – que ela também nos banhara – assim, de um leite que predissera o mel das Abelhas, sem Terra Prometida nas nossas entranhas, humanas e velhas.

Seguir. Nos caudais pela costa rochosa, que tudo se evola, anzóis que suspensos ferem os lençóis molhados de vento.

Querer. Que as sortes se joguem e as fontes não jorrem, que se tudo em nós amanhecesse longe destes postigos, levaríamos ainda assim esses quilómetros de lamas dos locais perdidos.

Olhar. E ao redor só há muros que fazem escuro todo o respirar, reposteiros altos vendam a passagem, nada se deslinda e a vida vive ainda…

Soltar. As mãos laças, que por nós tudo passa, deixemos passar. Corre trágico o momento, das rugas da aurora cobrem-se os ventos, e de repente, um outro firmamento!

Querer. Olhar os que estão, mais os que se vão, não ter no tempo mais ida nem vinda. Mas na quimera, nessa onda prateada, quem nos segue, quem nos limita a entrada?

Caímos! O que os rins cingem e os rios seguem vai perdido e toda a natureza padece de sentido.

Partir. À tua frente marcham os tambores, parece a hora da dança, mas é na nossa esperança que na dança se dança a todo o vapor. Corrente maior! O som da chuva, o som do sol, e a subida demiurga do canto de rouxinol.
O rio é fronteira por belo que seja, e agora, são altas fogueiras que tangem, que tecem… Tejo tágico. Paredes de água são altas e esguias… guindastes vorazes. É para o alto que se vai. E saltarão os elementos de onde agora só saem sinais.

Padecer. Tamanho é o encontro, talvez encantado, que a vida no limite é sempre buscar o lenho e continuar sossegado. Se estamos altos, altos ficamos, se estamos em baixo, para o fundo nos vamos. No sopro do tempo que morre, há um Holocausto, há Fausto, (rede) morrido nesse tráfego.

Ninguém dará pela chegada, e já tarde, quando tudo tardar- o baloiço da Terra gira alto- como se fosse crescer…. a Vida, uma espuma vazia que a secura segura na trancada criatura.

No verso, na prosa, neste lençol de malvas e de tules, há ataúdes, singulares acordes de uma música esquecida plangente de olfactos, que a tempestade tem cheiro e se sente nos asfaltos.

Nós, que trabalhamos para o esquecimento e dele falamos como intento, lavaremos as mágoas.

Cobertos. Ora no rosto, ora na sombra, a Hora soma, cresce o dia mais banal que as vontades, e nesse instante guia por águas filtrado, repousa o céu de um ciclo que é findo e nunca nos foi dado. Toda a matéria escorrega na superfície do azul, e mortas sementes recorrerão ao estrume, que as novas transplantações dos órgãos desfeitos serão como peças para corpos mais perfeitos.

Enquanto a Bela dorme, gela o seu Pólo maior, coberto de silêncio como se não tivesse visto a dor.

Atravessar. Os astros que findos magos não percorrerão, nas noites azuladas, nos satélites que espreitam, que já há Luas sem descanso enquanto brilham nuas estrelas de antanho. São crepúsculos, fogos de Santelmo, a memória naufragada, que a nossa Barca ardeu, e Deus nos esqueceu.

Renascer. Da abóboda, glacial etapa como juramento aos frios. Dos Infernos, a lôbrega santidade toda de breu seguirá viagem sem saudar em nós esse irmão a quem não quis dizer adeus. Jurámos não esquecer o esquecimento votado, por isso- por causa disso- nunca seremos condenados.

Outro Céu e outra Terra, que esta se partiu, restou enfim, na escura gruta um homem só que ainda existe, sem saber quem dele fugiu. A memória vasta, as fontes intactas, caminham…! Ciber fronteira…

E apaga-se a Fogueira.

9 Nov 2020

Lulu Monde

[dropcap]H[/dropcap]á que fazer. É o que as matérias pedem. As matérias-primas omnipresentes na sua sedução plástica. O computador está tão lento. Não era preciso sentir porque um quadrinho diz a aplicação não está a responder – eu vi – o programa pode retomar novamente se aguardar. É como tantas coisas na vida em que simplesmente é preciso aguardar e saber. E ele retoma mas um outro quadrinho explica quando já me esqueci embalada nas palavras que o computador está de facto lento devido a lixo e a outras duas coisas que também serão seguramente lixo. Mas afinal era publicidade do anti vírus que cobardemente a seguir diz zero mas deixa a curiosidade para depois do compromisso económico. Um almoço nunca é de graça, como diz o outro. Mas aproveita-se para pensar com carinho na lentidão. Para esperar com paciência até que as palavras possam derramar-se as que não se esqueçam entretanto. Hoje em dia as palavras são rápidas e passam a correr numa azáfama em que logo se esquecem de ficar. Corro atrás quando há papel ou o programa responde. Senão, esqueço. E fico por momentos na apatia frustrante de ter esquecido e até me conformar ao que não tem retorno. Elas vêm noutras alturas e mascaradas de outras novas. E não sei onde deixei os óculos nesta migração pela casa mas há que esforçar a vista mesmo assim, antes que elas se escapem como é seu hábito. Mas aqui estão e de pouco servem para além da nitidez do óbvio que existe mesmo sem eles. Os óculos. Não elas, as palavras.

Mil palavras mais ou menos. Ou quatrocentas que sei que também pode ser. Mas espero as palavras amigáveis. Podem ser trezentas ou cem ou duas dependendo dos dias.

Está ali agachado quando olho, as articulações em posição desleixada talvez do esforço de v. Dizem que tenho que tomar o comprimido mas não sei. Contra o quê, que não incomoda ninguém e, se não a mim, não é sintoma nem tem terapêutica necessária. Desisti dos cortinados diáfanos a bendizer a luz mas com moderação. Na verdade deixo-me de civilidades como de culturalidades e prefiro a luz crua a esculpir momentos de expressionismo desatado. O claro-escuro abrupto na modelação do perfil ou da espádua. As olheiras inevitáveis e o descaído de uma pele que parece começar a sobrar da estrutura. São terríveis as sombras sem o make up para a câmara. Nem todas as luzes dizem o mesmo. Uma questão de ângulo, de intensidade, de direcção. 218, depois já 418 pelo milagre da multiplicação das explicações. Não está mal, não há flechas e o animal está incorrupto para ali à mercê do comprimido, meu, ou da desistência, sua. Que é como quem diz que a sua liberdade de aparecer assim ali no canto, tem alternativa. Mas não tem, como a liberdade de meio chocolate no frigorífico não foge à serotonina possível destilada só do imaginar. Nesta alquimia de químicos virtuais, registo pavloviano que demonstra que existem estímulos, reflexos, e talvez a gratificação de passar da virtualidade à realidade. Abrir a prata, deixar entrar um pensamento. Abrir a porta do frigorífico, a da varanda, a janela window. Se não fala comigo, não é problema meu, neste caso. Quanto muito dos comprimidos, a mais ou a menos. Mas estes, na sua efectiva virtualidade, também não têm problemas porque nunca chegaram a acontecer como possibilidade ou rejeição. Estão ali como o animal grande mas menos, muito menos reais e ainda menos importantes.

Coisas estranhas passam pela cabeça dos outros. Quando as coisas, afinal, são tão simplesmente aquilo que são. Não, não mesmo. Não é loucura, é fascinação. Rodo o botão do rádio Lulu Monde cor de cereja, que noutros tempos já só servia para ouvir relatos de futebol por detrás da tampa partida. E ali está ela. Ela, não: Elis. Regina. Tão real e sempre ao espreitar de uma melancolia, como o resto de que se fala aqui. E o rádio-gira-discos Lulu Monde que há anos se queda em silêncio. Ali. Que voz de sonhar para dentro, como só assim pode quem não tem aquela voz.

Placebo. Que nome tão feio para uma metáfora tão boa. Cleptomania é pior. Sempre preferi património imaterial. O imaterial. Escrever sem os óculos, não é assim tão difícil, afinal. É só esquecer a primazia da visão. As teclas estão no sítio de sempre, até ver. O alcançável e o inalcançável, também. Esse animal grande.

Às vezes, de orelha murcha, de asa desmanchada ou de pêlo na venta corrosiva em expiração mais forte. A querer deixar-se amar sem se perceber. Mas ternamente.

8 Nov 2020

Polícia com cipais e do Batalhão Príncipe Regente

[dropcap]E[/dropcap]m 1729, o Senado tinha já alugado por trinta e cinco pardaos ao ano as casas dos jesuítas no Largo de Sto. Agostinho para servirem de tronco, onde se recolhiam os presos, tanto civis como eclesiásticos. As suas paredes eram facilmente esburacadas com as unhas. A 12 de Janeiro de 1774, o Governador Diogo Salema e Saldanha sugeria ao Vice-Rei daí a remover para junto do Senado e dava a razão:

O Vice-Rei perguntou ao Senado, mas este respondeu ter a remoção despesas e daí o V-R determinar não se efectuar a mudança. Tempos depois, passava o tronco do Largo de Sto. Agostinho para a nova cadeia, casa do Estado situada a Sul do edifício do Senado. Por isso, a rua que começava no terreiro de Sto. Agostinho até à casa atrás do Senado chamou-se do Tronco Velho e na parte Leste dos edifícios da nova cadeia e do Leal Senado fez-se a Rua da Cadeia, hoje do Dr. Soares.

BATALHÃO DE CIPAIS

A Macau chegou de Goa a 28 de Julho de 1784 a primeira tropa regular constituída por um batalhão de 150 cipais, cem mosqueteiros e cinquenta artilheiros, que formaram a Guarda Municipal, segundo Armando Cação, e vieram para substituir os 80 macaenses da guarnição e da polícia de Macau. Os cipais estavam prontos para a defesa da cidade e patrulhar as ruas. Sebastião Dalgado refere: que, segundo o Conde de Arnoso, usava um pano vermelho atado à volta da cabeça. Já Joaquim Soares em 1849 dizia, . Nos finais do século XVIII, os abastados negociantes de Macau tinham-nos na sua guarda particular e nos princípios do XIX, um dos mais ricos, Januário Agostinho de Almeida (1759-1825) empregava cem sipais que, tal como os outros, emprestava quando requisitados por o Senado.

O Desembargador Lázaro da Silva Ferreira a 5 de Dezembro de 1792 expressava no seu parecer ainda a opinião de a nomeação dos capitães da gente de ordenanças ser da competência do Senado, bem como o de mandar fazer rondas.

A população chinesa da península de Macau vivia numa outra organização, a do Império Celestial e só nos assuntos com intervenientes das duas comunidades residentes na cidade cristã, a resolução cabia ao Procurador e no final, aos mandarins da Casa Branca.

BATALHÃO PRÍNCIPE REGENTE

Em Novembro de 1805, Macau tinha “uma guarnição de 275 soldados (dos quais 203 de infantaria e 72 de artilharia, a que haveria que descontar 41 na situação de embarcados, doentes ou de licença registada) e com um total de três navios de guerra, dois dos quais se encontravam a comboiar os mantimentos para a cidade”, refere Vítor Luís Gaspar Rodrigues.

“Em Janeiro de 1808, solicitava-se à corte medidas para a organização de um Batalhão de Infantaria, com exercício de Artilharia, para Macau, com um total de 376 homens, entre oficiais e soldados”, segundo Jorge de Abreu Arrimar. Serviria na defesa da Colónia contra os piratas e evitava também dar razão aos ingleses de, com a pretensão de proteger Macau contra os franceses, tentarem ocupá-la.

Sob a alçada do Senado, foi criado por alvará de 13 de Maio de 1810 o Batalhão Príncipe Regente e dele se tirava a polícia da cidade. Com 400 praças vindas de Goa, segundo A. Azenha Cação, “o Senado fez alojar duas companhias no antigo quartel e outras duas na fortaleza do Monte, na impossibilidade de as alojar no Colégio de S. Paulo” devido à oposição do Bispo D. Francisco da Luz Chacim (1805-28).

Durante as lutas liberais, em nome dos constitucionais Miranda Lima redigiu em 22 de Janeiro de 1822 uma representação do Leal Senado ao Rei D. João VI e às Cortes pedindo a dissolução do Batalhão Príncipe Regente e a sua substituição por uma guarda municipal; o que esteve para acontecer. Mas ainda em 1822, o Senado perguntava ao Vice-Rei da Índia Manuel da Câmara (1822-25) se podia convidar a mocidade de macaenses para assentar praça nesse Batalhão e, devido aos sipais de Goa se terem revelado uma fraca força e sem qualidade militar, se aprovava mandar vir de Bengala um corpo de sipais. No ano seguinte, a resposta do Vice-Rei foi aprovar a primeira e não aceitar os sipais de Bengala, por não pertencerem ao território da Índia Portuguesa. Em 1823, o Senado requereu mais 50 a 60 sipais de Goa e o V-R enviou 39 praças, uns voluntários e, por falta de naturais da capital da Índia portuguesa, alguns tirados dos diferentes Batalhões da guarnição do Estado da Índia. Estes só podiam ficar em Macau por um prazo máximo de três anos, devendo a Polícia de Macau servir-se desses soldados e dos mais do Batalhão Príncipe Regente.

José Inácio de Andrade referia ter Macau, em 1826, o número de praças da Índia de 180 soldados canarins, numa população de 22.500 indivíduos: 1620 europeus e mestiços, 2700 mulheres cristãs de várias raças e cores e 18.000 residentes chineses.

Segundo A. Cação, “Em 1829, o Batalhão, refeito, encontrava-se instalado no Convento de Sto. Agostinho, passando, em 14 de Abril de 1831, ao Colégio de S. Paulo.” Este e a Igreja da Madre de Deus foram devorados pelas chamas na tarde de 26 de Janeiro de 1835, devido à lenha amontoada na cozinha do Colégio ter pegado fogo, consumindo-o totalmente, tal como destruiu a Igreja, deixando-a reduzida à frontaria.

Após o incêndio, o Batalhão Príncipe Regente regressou ao Convento de Sto. Agostinho, onde esteve até ao fim, substituído por o Batalhão de Artilharia de Primeira Linha, criado por decreto de 13 de Novembro de 1845. Destinado a auxiliar esta força para resistir a qualquer ameaça, por Portaria Régia de 12 de Março de 1847 foi formado o Batalhão Provisório; era Governador de Macau Ferreira do Amaral.

Após o assassinato deste Governador a 22 de Agosto de 1849, o Conselho do Governo que tomou posse achou por conveniente criar um Corpo de Polícia composto de todos os cidadãos, que, ou por causa da idade, moléstia, ou qualquer outro motivo, estivessem dispensados do Batalhão Provisório. O mesmo Conselho, por edital de 1 de Setembro determinava que os referidos se apresentassem no dia seguinte ao meio-dia, os das freguesia da Sé e Santo António ao Tenente Coronel Joaquim da Costa Brito, tendo como ponto de reunião a Igreja de S. Domingos e os de S. Lourenço ao Tenente Coronel António Pereira, na igreja dessa freguesia.

O regulamento policial da cidade e porto de Macau estava aprovado por Portaria Régia de 3 de Março de 1841 e fora desse esquema, em 1857 foi organizado o Corpo da Polícia do Bazar, que em 1861 passou a Corpo de Polícia de Macao.

8 Nov 2020

Desinfectar o almoço

[dropcap]E[/dropcap]m 2020, a hora de almoço é uma oportunidade de reflectir sobre a casa. Olhar para os parentes à mesa. Indispensáveis evidências determinam quem é o mais velho, quem tem problemas pulmonares e assim sucessivamente. A fonte dos números dos mortos em Helvetica, vermelho com sombra. Tecto antigo, com fugas de água. Uma voz séria, língua de guerra, mensagens ajustadas. Olhar dramático perante as palavras monásticas. Conselhos, mas imparciais, todas as notícias são imparciais. Roland Barth e as mitologias esponjosas madrepérola entre o ovo estrelado e o arroz. Poseidon, que ninguém se meta com ele. Demasiado mar afundado atrás da pele. Trago, debaixo do braço, poesia épica e um panteão de deuses, mas não há melhor mitologia do que a da televisão à hora de almoço e, por isso, toda a mesa assiste concentrada, não se fala, como no fado ou em Fátima ou no futebol ao qual já não se pode assistir. Também os jornalistas se dedicam à compreensão da vontade dos deuses com oráculos, com os seus pivôs pitonisas.

Contam-nos fábulas que acabam, invariavelmente, em tragédia. O meu lugar na mesa não tem vista privilegiada para a verdade. Ainda assim, consigo ouvir os mitos que não estão a ser explicitamente assumidos: a formar, distorcer e reduzir a percepção do mundo. Signo, Significado, significante. Denotação, conotação – camadas e camadas de sentidos. Afinal, as histórias que nos são apresentadas são uma completa imparcial realidade, sem mediação. Aquela floresta a arder não existia antes de aparecer no pequeno quadrado. Percorro esta forma desinteressada de informar no olhar dos outros. A veemência da repetição. As cerimónias profissionais. As combinações entre bandeiras e TV. Os educadores, os hospitais, o controlo. O primeiro-ministro identificado pelos órgãos, os soberanos, claro e os da comunicação social. A pedagogia que me ocupa a morada na presença de traumas nacionais mesmo antes do trauma. Nacional, mundial. Se eu acho que a metodologia transforma a história em natureza? Antiessencialista, construtivista para os amigos. Sim, claro. Da semiótica à ideologia são dois pratos de carne. Imitações de brinquedos perigosos na banana com café. “Quando se recorre à semiótica para analisar a metodologia escondida nos media, esta mitologia é uma forma de entrar nas raízes da criação da realidade.” A estrutura da nossa cultura é o que a faz funcionar. Histórias ultra-simplificadas que contamos a nós próprios para manter a sociedade funcional. Navegamos a existência através de dicotomias mas as culturas não são opostas. O apertar de mão e a vénia cumprem exatamente a mesma função social. O cotovelinho e o bater de punho servem perfeitamente e são até mais globais. Somos uma expressão dos mitos e dos rituais da nossa cultura.

Quando a nossa cultura é o covid, não deixamos de ser a expressão de algo que aleatoriamente nasceu a 2 de Março de 2020 nas nossas coordenadas geográficas. Nascimentos espontâneos entre a dúvida e o comboio. Corridas regionais, tubos botânicos, máscaras na mobilia, desinfetar a carne cozinhada com poesia administrativa. Tudo para nos limpar, uma limpeza necessária. Estados de excepção colados aos textos.

Desculpa desiludir-te, não és tu que és uma pessoa muito consciente e responsável. Não são eles, somos nós. O Eu não dá forma ao mundo, o mundo dá forma ao Eu. Pelo sim, pelo não, usem álcool-gel para desinfectar o almoço.

5 Nov 2020

Oração da serenidade

[dropcap]“D[/dropcap]eus dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar as coisas que posso mudar e sabedoria para conhecer a diferença.” A oração da serenidade (1943) é atribuída a Reinhold Niebuhr, um dos teólogos mais conhecidos na América, invocado até pelos presidentes Clinton e Obama. Começa a ganhar notoriedade com os alcoólicos anónimos (A.A.) quase logo desde o princípio da sua formação, mas encontramo-la gravada em toda a espécie de objectos, de medalhas a artigos de olaria, nos EUA. É nela que os grupos de ajuda aos doentes de adição dos A.A. já referidos aos N.A. (Narcóticos Anónimos) e outros doentes com outras adicções têm encontrado consolo. A figura principal invocada na oração é a serenidade. Como se fosse um poder quase divino, talvez até se devesse dizer uma divindade, que se afastara da vida. Tê-la-emos conhecido no passado, na placidez dos dias já há muito idos.

A serenidade não é apenas mental. Nunca nada do que acontece na existência humana é “só” mental. Em sentido literal, em latim, é sereno o céu e a lua, talvez da palavra em sânscrito para céu “svar” e do grego para raio luminoso “selas”. No céu nocturno, vê-se a lua brilhar. O céu azul é iluminado pelo sol. Na serenidade mental, independentemente do que se passa lá fora, mesmo nos dias de tempestade, tudo é sereno. Na intranquilidade interior, nenhum dia de bom tempo deixa de ser conturbado. A invocação da serenidade faz-se quando há coisas que perturbam, se agitam, fazem perder o sossego. Ninguém aguenta muito tempo atravessar momentos confusos. O que pede a prece? Pede para aceitar o que não eu não sou capaz de mudar, o que eu não tenho o poder para mudar, o que não consigo mudar. E o que é isso? Não pode ser tudo? Não é um convite à desistência? Os doentes de compulsão terão de aceitar a sua adicção? Terão de aceitar a situação global da sua existência? Não é isso aceitar a doença? Não é a morte em vida? Pode ser aceitar o modo de ser como se é. A adicção resulta de uma obsessão compulsiva. A estrutura existencial confunde o centro com a periferia. É difícil estar consigo a sós, quando somos obsessivos e compulsivos. O comportamento adictivo faz-nos sempre querer qualquer coisa a que nos dedicarmos. Tal como São Paulo denuncia o seu estado de escravidão, para se entregar a Deus e à possibilidade que seja feita a Sua vontade, nenhum paciente de uma obsessão é insensível ao seu sentido de vida: querer sempre mais do que lhe dá prazer, substituir o que deixa de dar prazer por outra coisa qualquer que dê prazer. A vida decorre entre a ânsia da obtenção de prazer, o prazer obtido e a ressaca. É aqui que reside a possibilidade de os chocolates terem metafísica. Um chocolate existe na antecipação dele, no momento em que é comido, no arrependimento de ser comido. A serenidade faz ver como somos. Vivemos entre a ânsia de uma possibilidade sem medirmos a consequência da sua perseguição, o momento da contracção de prazer, o arrependimento por todos os motivos, sobretudo porque a agenda da compulsão não é nossa. A tristeza da vida dedicada a conteúdos compulsivos é que não somos os protagonistas das nossas existências. Não temos vontade que seja nossa. Não temos querer. O querer é de uma vontade que nos dá e nos expulsa de nós próprios. A serenidade faz ver esta estrutura de uma forma extrema, como a nossa raiz das coisas. Mas há um outro pedido que fazemos à serenidade, de que interceda por nós junto da coragem. A coragem para mudarmos as coisas que podemos mudar. A mudança é possível. Podemos viver como gostaríamos de viver e não apenas deixar-nos de viver como não gostamos de viver. Não é apenas precisa a coragem para a desistência de uma hipótese de vida que não nos leva a lado nenhum. É necessária a coragem para um encontro com a possibilidade da mudança. A obsessão é a estrutura da própria existência. A vida acontece entre o primeiro momento e o derradeiro não testemunhamos nenhum e, contudo, esses momentos lançam sobra sobre nós, projectam-se ainda e já nas nossas vidas. Fixamo-nos em conteúdos obsessivos por uma confusão entre nós e as coisas, entre um amor e as coisas que julgamos amar, em quem pensamos de manhã à noite, mas que nos podem destruir. A coragem que a serenidade nos dá revela-nos o nosso amor e o nosso amor liberta-nos não nos escraviza. A serenidade dá a ver a diferença que há entre a impossibilidade de mudança da vida e a possibilidade de mudança do conteúdo da vida. A aceitação da estrutura da vida entre o princípio e o fim. A possibilidade de se compreender que o apego ao que dá prazer confunde a loucura da alteração da consciência com amor. O amor é totalitário, mas não prende, não subjuga, não existe entre a ressaca e a bebedeira provocada por uma substância do mundo. Liberta e lança-nos para a sua própria possibilidade possibilitante, faz-nos da altura do céu em toda a sua extensão, com todo o seu azul. O ser que eu sou deixa de estar hermeticamente fechado entre a ansiedade para estar fora de mim e a obrigação em estar em mim na ressaca que só se vence com outro shot, outra aspiração. Eu aceito que sou assim e posso mudar ser assim ao mudar de sentido, não de existência.

Na formulação que Reinhold Niebuhr terá preferido da oração da serenidade lê-se: “Deus, concede-nos a graça para aceitar com serenidade o que não pode ser mudado, a coragem para mudar o que deve ser mudado e a sabedoria para distinguir uma da outra.”
A serenidade é uma das faces da verdade.

5 Nov 2020

Saltos na fé

[dropcap]A[/dropcap] anedota é curta: um homem cai num poço e mergulha 30 metros antes de conseguir agarrar-se a uma magra raiz que detém a sua queda. A sua mão vai perdendo a força e, desesperado, grita: Há alguém aí em cima? Olha para o alto e vê um círculo de céu. De repente, as nuvens abrem-se, um raio brilha sobre ele, e uma voz profunda ecoa: Sou Eu, o Senhor, estou aqui. Solta-te da raiz e eu salvo-te. O homem pensa mais um minuto e grita: Tem mais alguém aí em cima?

Quando se está pendurado por um coto, um magro filamento de raiz, a tendência é de fazer a balança pesar para o lado da razão. Que se alimenta da dúvida: O Gajo existe ou a minha necessidade acabou de inventá-lo? Daí que René Descartes tenha preferido cultivar a razão em vez da fonte divina de conhecimento.

E a que fé se podia agarrar Kafka quando escreveu numa carta a Milena: «os beijos por escrito não chegam ao seu destino; são bebidos no caminho pelos fantasmas», afastando com isso qualquer possibilidade, a mínima fímbria (o beijo) de contacto?

O salto na fé, como lhe chamava Kierkegaard, é um dos grandes desafios do homem, sendo isto independente de acreditar-se em Deus ou não. Como fazer convergir a si a energia que só uma convicção indubitável engendra? O amor só se consolida e expande se houver um salto na fé, de contrário fenece como uma flor de época, narcísica.

Escrevi um prefácio para um livro do Christian Bobin e tive de reler La Lumière do Monde, um magnífico livro de entrevistas onde, como na Alice atrás do espelho, tudo parece estar invertido. E aí encontro um exemplo de como a ilogicidade aparente pode ser uma prova viva do mais verdadeiro: «O que me convence na cena do túmulo vazio, na manhã da Ressurreição, é que ninguém aí se detém: os evangelistas não lhe dedicaram mais do que duas linhas. Os falsificadores teriam escrito volumes e volumes sobre a Ressurreição. Eu acredito porque existem apenas duas linhas. É estranho que a coisa mais importante quase nunca esteja nos Evangelhos. É a mesma estranheza que me convence no caso de Maria: ela teve essa Graça de lhe ter sido anunciado a natureza divina de seu filho, e trinta anos depois ela esqueceu. É exatamente como a vida».
Bobin tem razão. Mesmo para um ateu, crer implica iluminar o que a vida omitiu por demora e esquecimento e encontrar aí novas texturas, trânsitos, inteligibilidades e uma sintaxe intersticial – outro foco, na narração da memória – que, ao modo das sinapses, active uma re-organimação do real e a festa do nosso reencontro com ele; visto que somos intermitentes, no contacto que lhe devemos.

É o nexo que encontro numa história espantosa de John Cage, que só agora julgo compreender. Escreveu o músico sobre a sua mãe, nos seus diários: «A minha mãe casou-se duas vezes antes de desposar o meu pai, mas nunca se referiu a isso, a não ser já próximo da morte. Ela não conseguia lembrar-se do nome do primeiro marido».

Esta passagem final mergulhava-me em tinhosas reflexões sobre os alçapões e os labirintos da memória. Psicanaliticamente, é um cliché dizer que só recordamos o que queremos e censuramos o que nos desagrada.

O facto é que as histórias felizes não imprimem enquanto o sulco das mágoas é muito mais duradouro. Não interessa quanto tempo durou esse primeiro casamento, é mais pertinente interrogar se há intensidades sem um nome que as transporte. Se tivesse sido uma relação traumática, das que deixaria uma cicatriz vertical na psique da mãe de Cage, os anos trariam aos seus lábios o nome do agressor, porque embora o tempo aja como uma momentanea amnésia paliativa e cauterize a dor, deslocando-a, levando-nos a perdoar, não nos faz esquecê-la  —  e ao mal, até por defesa, nós designamo-lo. Nós nomeamos a figura do mal como uma prova de superação, mas nenhum judeu de Auschewitz esqueceu o nome dos seus carrascos.

Porém, como falar da felicidade? A felicidade é como o tempo: podemos experimentá-la mas falar dela é um contra-senso e uma felicidade demasiado consciente, meta-relacional, seria o primeiro sinal de um défice.

O que me deixa desconcertado nesta curiosa amnésia da mãe do músico é a hipótese da senhora ter sido tão tremendamente feliz no seu casamento que, face ao que se sucedeu, lhe fosse insuportável atribuir um nome ao que, por qualquer motivo, perdera para sempre.

É uma hipótese nada descartável ainda que pareça pouco lógica — contudo, o que o escritor persegue não é a lógica mas as anfractuosidades do sentido, o seu esplendor indiciário; a lógica está para o escritor como o pé chato para o maratonista: é um empecilho. O escritor vive dos saltos na fé.
Por isso, na mesma lógica invertida, escreve Bobin:

«Cioran é um benfeitor, não pelo facto, como dizem os seus falsos discípulos, de ser um desencantado com o mundo, mas porque não deixa nenhum falso encantamento. É alguém que limpa o deserto. Com uma vassourinha, ele retira toda a porcaria das consolações fáceis, e é para mim, depois deste trabalho, que ele começa a ter uma palavra verdadeira. É preciso o trabalho de inverno: de retirar por fim os ramos mortos: a isto se chama preparar a primavera». Absolutamente.

Um salto na fé, igualmente, o que foi dado pelo museu de cera Madame Tussaud de Berlim, ao ter colocado a sua estátua de Donald Trump num contentor do lixo, nesta sexta-feira. Gente que não está só arreigada ao comércio.

4 Nov 2020

Cláudia dá uma lição a Kant

[dropcap]C[/dropcap]láudia R. Sampaio é uma artista florescente. O trabalho visual que vem criando nos últimos anos é uma ascese que acasala tradições de luz e visão (ou de utopia e apocalipse), através de figuras aparentemente sem território, mas que, apesar disso, voam, vogam e vagueiam habitando assim essa ausência como se cumprissem uma promessa antiga.

No campo da poesia, a Cláudia é autora de vários livros, editados entre a Douda Correria, a Tinta da China e, já este ano, na Elogio da Sombra/ Porto Editora (nomeadamente ‘Os dias da Corja’, ‘A primeira urina da manhã’, ‘Ver no escuro’, ‘1025 mg’, ‘Outro nome para a solidão’ e Já não me deito em pose de morrer’).

Acompanhei esta rica produção poética com proximidade e recordo – agora que a pandemia nos estoura as têmporas – os fins de tarde luminosos no Irreal, na Mymosa e naquele amplo bar-salão ao pé da Sé onde a Cláudia sonhou construir um recife de ouro.

A Cláudia é uma das artistas residentes do projecto ‘Manicónio’, um espaço no Beato onde artistas com doença mental trabalham. No seu segundo livro, as atmosferas e memórias deste padecimento – nem sempre socialmente entendido – ressurgiram com cristalina clareza: “as miúdas poéticas contemplam o suicídio/ mesmo depois de uma taça de Corn Flake/ olham/ os telhados laranja de Lisboa/ e pensam noutro sítio qualquer/ semeiam flores para terem perfume/ matam-nas, por amá-las de mais”. Como ela própria referiu, numa entrevista à revista Sábado, “Com as palavras, tudo é possível, fazem-me sentir infinita”.

Vem toda esta evocação – que paradoxalmente me surge com apertada nostalgia – a propósito de um texto de Kant, datado de 1764, que eu desconhecia completamente, e que foi traduzido, há uma década, por Pedro M. Panarra na ‘Revista Filosófica de Coimbra’. Intitulado ‘Ensaio sobre as doenças da cabeça’ e publicado numa revista da sua cidade (a ‘Königsbergischen Gelehrten und politischen Zeitungen’, de que era editor e fundador o seu ex-aluno Johann Hamman), o texto terá sido motivado por um acontecimento concreto.

No ano anterior, no início do Outono de 1763, apareceu nos arredores de Königsberg um polaco chamado Jan Komarnicki com “aspecto esfarrapado” e atitudes de fanático religioso a que chamavam “profeta das cabras”, por responder a qualquer solicitação que lhe fosse dirigida através de versículos bíblicos que sabia de cor. O homem convivia com perturbações alucinatórias e a sua presença deverá ter sido muito marcante na altura, ao ponto de lhe ter sido dedicado, na mesma revista, um artigo de Hamman em jeito de reportagem. O artigo de Kant, muito racional e geométrico na sua organização, surgiria poucos meses depois.

O texto, após uma curta introdução, é particularmente assertivo. Escreve o autor: “As deficiências da cabeça perturbada dividem-se numa multiplicidade de categorias”, mas “julgo que podem ser ordenadas segundo as três divisões seguintes: (1) a inversão dos conceitos empíricos no desarranjo (Verrückung), (2) a faculdade de julgar posta em desordem por esta experiência empírica, no delírio (Wahnsinn) e (3) “a insânia (Wahnwitz) em que a razão é invertida no que concerne a juízos mais universais.”. E continuava: “todas as demais manifestações do cérebro doente podem ser entendidas, no meu parecer” (…) “de maneira que as podemos subordinar à classificação anterior.”.

Os exemplos destes três “males” assim categorizados surgem depois ao longo do artigo.
O primeiro, relativo à inversão e ao desarranjo, decorreria do facto de nós humanos estarmos quase sempre “ocupados a pintar imagens de coisas que não estão presentes ou a completar as semelhanças imperfeitas entre as coisas presentes na representação, através de um ou outro traço quimérico próprio da nossa faculdade poética criadora (schöpferische Dichtungsfähigkeit)”, facto que pode, de um momento para o outro, passar a dominar e a impor-se à nossa vida dita “normal”.

O segundo, relativo ao delírio, remeteria – com algum desdém bem visível no tom – para a soberba e para uma certa forma de melancolia: “um soberbo é um delirante que escarnece da conduta dos que o fitam” e “o melancólico é um delirante devido às suas suposições tristes ou ultrajantes”.

O terceiro, relativo à insânia, incluiria as “inumeráveis intuições subtis que se enxameiam no cérebro em ebulição: o comprimento dos mares, a decifração de certas profecias, e sabe-se lá que outras misturas de quebra-cabeças fúteis.”. A esta capacidade de ultra-imaginação soma o autor a perdição, digamos, total: “Quando o infeliz perdeu simultaneamente a capacidade de formular juízos sobre a experiência, então chama-se vesânico (Aberwitzig)”.

As três categorias, como Kant se lhes refere, fazem pactuar, ao fim e ao cabo, um ‘excesso’ de disposição poética (aquele que “sonha acordado”) com o delírio (seja dirigida para o exterior, a soberba; ou a si próprio, a melancolia) e, por fim, com a fuga imaginativa face a quem navega sempre ‘com os pés na terra’. Para um autor que, três décadas e meia depois, escreverá um texto fundamental sobre a estética, o génio, o belo e o sublime (‘Crítica da Faculdade do Juízo’), é estranho que nunca tivesse reparado como a loucura e o ‘fazer poético’ são campos afinal tão íntimos, tão envolvido e tão próximos.

Para reparar essa estranheza, Cláudia R. Sampaio dá agora a devida lição a Kant, a bordo do seu ‘1025 mg’, de que ainda me lembro tão bem do lançamento: “O tecto está rente à minha cabeça./ Quero deixar a alma cosida aos hemisférios nocturnos./ Tenho de me parir lenta./ Tenho de me cobrir como um ramo de crisálidas luzentes/ à espera do céu./ Agora tenho tudo porque já vi cair as falésias./ Não sei do ar, não sei dos pais, não sei dos médicos./ Guio-me à existência calafetada de um dente em proa./A minha casa inexiste com o cheiro das praias. (…)”. A genialidade à solta de Jan Komarnicki, o “profeta das cabras”, entenderia bem estas palavras. E eu também. E até mesmo Kant as entenderia, se tivesse conhecido e lido devidamente a poeta. Obrigado, Cláudia.

Panarra, Pedro M. ‘Immanuel Kant – Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764’ (Trad. e introd. de Panarra, Pedro M.) em ‘Revista Filosófica de Coimbra’, Coimbra, Nº 37, 2010, pp. 201-224.

4 Nov 2020