António Cabrita Diários de Próspero hPosturas Quando tive de ir para o hospital consegui levar alguns livros (bom, escolhas que tinha de fazer de modo sonâmbulo, febril, e em cinco minutos). Peguei ainda no tomo completo do Herberto Helder mas folheei cinco páginas e esbarrei em palavras abstractamente líricas, vazias, uma luxúria que vem do raciocínio, como uma máquina, que produz ideias ou metáforas segregadas por outras ideias e que, por terem abandonado o contacto com a vida nua, resistiam agora menos à violência, à prova do cateter. A poesia tem de voltar a uma dimensão humana, de superar a prova do cateter (esse embate com a dor e a violenta drenagem de fluidos num vaso sanguíneo), ter o seu quê de mancha humana e de grito. Quantos poetas chegarão lá acima para a pergunta fatal do S. Pedro: eh tu onde meteste as tuas tripas? Estou a ser injusto com o velho vate e aliás ao contrário de muitos adorei os seus últimos livros porque precisamente havia aí uma nova porosidade com a vida que prescindia de volutas e da gratituidade do engenho para ir direito ao osso, à humílima presença do ar que se partilha. Mas, pelo meio, a provação da doença destapara os brilhos de alguma talha dourada naquele húmus, algum apego ao adorno. Embora não esqueça que quanto mais uma coisa tem profundidade mais deva ser refinado o espírito que a pode entender. E havia o problema do peso. Com quantos tomos completos me deixariam entrar no isolamento? Mais tarde, já no hospital, optei por baixar na net uma antologia de Gullar. E logo ao quarto poema apanhei, AS PERAS: «As peras, no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?/ Paremos a pêndula. Deteríamos,/ assim, a/ morte das frutas?/ Oh as peras cansaram-se/ de suas formas e de/ sua doçura! As peras,/ concluídas, gastam-se no/ fulgor de estarem prontas/ para nada./ O relógio/ não mede. Trabalha/ no vazio: sua voz desliza/ fora dos corpos./ Tudo é o cansaço/ de si. As peras se consomem/ no seu doirado/ sossego./ As flores, no canteiro/ diário, ardem,/ ardem, em vermelhos e azuis. Tudo/ desliza e está só.(…)», um poema magnífico, que naquela cama abismada pela espectralidade dos sudários, me levava a identificar-me com as peras, com a fugacidade que lhes dá e rouba a doçura e com essa voz que desliza para fora dos eixos do tempo. Li entretanto, outras coisas com alguma densidade paliativa, que me desviaram de pensamentos tétricos, “A Tempestade”, de Vladimir Sorokin, que à partida me parecia e se confirmou como um pastiche do romance russo do século XIX mas que vai enlouquecendo à medida que progride e o absurdo se torna toda a medida, e o esplêndido segundo tomo da biografia de Doris Lessing, “Andando na Sombra”, que não deixa nada em pé dos mitos do século xx (da derrocada dos mitos políticos da esquerda, à figura do escritor como pêndulo de certos valores, em retratos onde esta pose é esgarçada pelas garras da autocondescendência, do paradoxo quanto à frequência com que se encontram em desacordo com a sua consciência, ou a da inveja) mas é de uma coragem na exposição da intimidade e duma honestidade que retempera e recupera, ainda que sob a sombra perpéta da possibilidade do erro, uma certa força moral. E reli sobretudo um ensaio com um prazer redobrado: “Experience Esthetique et Spirituelle chez Henri Michaux /la quete d’un savoir et d’une posture”, de Claude Fintz. É um livro que me é vital pois separa o trigo do joio e aqui é menos a estética do que o espiritualidade que me interessa, nessa vertente heterodoxa mas tão sériamente vivida por Michaux e onde também sinto ser o meu sulco – não falo dos conseguimentos mas do lugar onde me posiciono -, tal como na Catalunha o sinto na obra de Chantal Maillard, que já traduzi e espero vir a apresentar com outro fôlego. Transcrevo dois excertos do Fintz, onde me sinto totalmente identificado: «Escrever permite, a um tempo, mudar-se a si mesmo, apaziguar as desordens individuais, mas também mudar o mundo e regular-lhe o mal. Michaux sonha com uma escritura sem traço, transfigurada em força radiosa. Ele crê na eficácia mágica duma escrita que desembocará no bem e cuja “crueldade” se metamorfosearia em poder de cura». A segunda: «A escritura em Michaux é explicitamente pensada como empreitada de conhecimento de si (…) a escritura é certamente espelho das inquietações, esperanças, hesitações, impasses da via experimental, mas ela é em si mesmo o caminho perdido e reencontrado de si; ela permite “percorrer-se” sobre diferentes modos – compreendendo-se aí o ficcional e o imaginário – mas ela é em última instância una ascese que leva à maturação, quase à mutação interior». Portanto, naquele umbral em que me encontrava confirmei as minhas convicções: merda para o cinismo, para o realismo, para o niilismo. Nós somos melhores do que isso – é o que vos digo. E para alguém como eu, a quem interessa mais a espiritualidade do que a infusão num Deus nomeável, não deixo de encontrar sentido na questão levantada por Karlfried Durckheim: «Vocês serão melhores pintores, sapateiros ou carpinteiros, se sentirem que a vossa responsabilidade é para com Deus e não somente para com o vosso cliente.» Sim, é preciso que a sensibilidade da poesia testemunhe o seu tempo (é o fragor existencial de que não devemos abdicar) e ao mesmo tempo, numa dobra, como algo que difere ou se bifurca, desperte uma instância “anónima” e mais profunda, enraizada num outro plano onde o pequeno ego se reconcilia e dissolve – é isso que nos mede e reconstitui. É também o que nos dá uma dimensão crítica, um sentido da proporcionalidade dos valores que emudece o encantamento das sereias.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hÁgua [dropcap]A[/dropcap] água é o princípio. Tales de Mileto (624/623–548/545 a.C.) exprime o que pode – mas não deve – ser despedido como uma banalidade. Na água está pensada a humidade. Está pensado, por oposição, o seco. O seco é uma característica essencial da terra. Nos quatro elementos ou letras do alfabeto da realidade: água e ar, terra e fogo, encontram-se características que não são apenas estáticas, mas dinâmicas. A água metamorfoseia-se em diversos estados: líquido, sólido e gasoso. Mas os processos com que se transforma são também experimentados por nós. A pedra de gelo derrete sobre o chão da cozinha ou mistura-se com a bebida, arrefece a sopa, refresca o sumo. A água nas couvettes congela no frigorífico, a neve gela. A relva molhada pela rega seca ao sol, ao ar. Do rio sobe uma neblina. Há uma relação entre arrefecimento e humidade e aquecimento e secura. Podemos tentar compreender, assim, os diversos processos que efectivam diversos estados: evaporação que transforma a água em vapor, faz nuvens a partir de rios, lagos, mares, oceanos, mas também de plantas e animais por transpiração. A condensação transforma o estado gasoso em líquido. Cai chuva. A precipitação enche de novo o caudal dos rios. A água é bebida, sorvida e absorvida pelos seres vivos. Não terá Tales pensado a água neste ciclo hidrológico, as características de cada estado, os processos envolvidos na transição de um estado para o outro e a relação existente entre todos? Não é apenas um elemento que foi identificado, uma substância, por mais complexa que seja, mas o próprio processo de transformação, o vir a ser e o deixar de ser, a passagem a ser e transformação de uma mesma estrutura que se metamorfoseia. E a relação de todos os seres vivos com esse elemento, humanos, animais, vegetais, orgânicos e inorgânicos. Bebemos água potável. Respiramos água no ar. Deslizamos no gelo. Não vemos no nevoeiro, neblina. Sentimos a chuva a cair, o caudal dos rios engrossar, aumentar e diminuir a rapidez, nadamos, navegamos, mergulhamos. O ser vivo está implicado, envolvido por, água tanto que a falta de água globalmente põe em cheque a sobrevivência da própria vida. O que se percebe com a água na sua dimensão metafísica, percebe-se com a terra, o fogo e o ar e a versão mais rarefeita do ar, o éter. Mas não é por aqui que vamos. O que importa também ver, para lá da dessubstanciação da água e a compreensão do seu ser “verbal”, ser água é poder ser líquido, sólido e gasoso, é passar de um estado para outro, é relacionar-se com outras características que aumentam e/ou diminuem a sua quantidade: quente e frio, seco e húmido. Talvez seja o que está expresso pelo verbo “aguar”. A ligação da água com outros líquidos primordiais: sangue, suor, lágrimas, sémen é feita não por analogia, mas pelo isolamento de uma propriedade da água num dos seus estados: o estado líquido. A liquidez, a sua produção, no corpo humano, por exemplo, permite perceber à vista desarmada, que somos água, somos líquidos e não apenas por bebermos. Mas para Tales a água não é apenas um elemento físico, fundamental, mas um elemento que tem de ser posto em relação com outros elementos e que existem em estados diferentes. A água é arkhê, princípio. É elemento no sentido em que dizemos que uma atmosfera é um elemento. O nosso elemento humano é terrestre, embora tendamos a conquistar e ocupar outros elementos: os rios, lagos, mares, oceanos, como o ar e o éter do vasto cosmos. A água é uma atmosfera. Há ar líquido, húmido e frio. É onde existimos, o que respiramos e bebemos. Há uma relação entre o exterior e o corpo, uma relação de acção recíproca. Há água dentro de nós e fora de nós, entre nós e as coisas. É conhecida a relação da água com a sobriedade e o cansaço que empapa a cabeça, contrastante com o efeito de outro líquido que também tem água, mas com outros efeitos diferentes do da sobriedade, o vinho que embriaga. “Ter a cabeça em água”, depois de muitas horas de trabalho dedicado a coisas difíceis ou simples, mas depois de muito tempo. “Ter a cabeça nas nuvens”, quando nos distraímos e deixamos de ter os pés assentes no chão. São possibilidades humanas expressas metaforicamente. O vinho com que nos podemos relacionar tem efeitos contrários, mas os efeitos resultam do elemento água nele presente, também aquece e arrefece o corpo, embriaga quando encharca e deixa-nos sóbrios, ao abandonar-nos. A sua actuação no corpo e na mente é diferente da que a água produz. Mas é a água o melhor de tudo, como diz Píndaro na primeira Ode Olímpica? Mergulhamos, nadamos, navegamos nas águas de rios, lagos, mares, oceanos e também em águas paradas: tanques, poços e piscinas. Atravessamos o rio a nado, oceanos em barcos e navios, mergulhamos para nos refrescar sem ir ao fundo ou para sondar as profundezas oceânicas. Na travessia e no mergulho, estamos em elementos diferentes. Estamos expostos à manifestação da superfície das águas: calmas ou agitadas, da maré que enche ou vaza, do rio de maré cheia ou de maré vazia, na tempestade e na bonança. Mas no fundo do mar há correntes em dimensões muito mais complexas do que as águas dão a ver ao manifestarem-se à superfície, com ondas ou sem ondas, vagas sucessivas ou na formação de uma única gigante, no mar alto ou a abater-se sobre a orla marítima, em penhascos ou à beira mar. No mar, mergulhamos em várias correntes, de água quente e fria, que puxa muito ou não existe. Há lençóis de água que os pescadores ou caçadores submarinos conhecem mas nós não. No mar, voamos para o fundo e emergimos para o cimo, para a superfície. O mar é a vida. Talvez Tales de Mileto tivesse um contacto privilegiado com o ser da vida. Não é o mar que é uma metáfora da vida, mas a vida uma metáfora do mar. Píndaro. (2017) Odes Olímpicas. Tradução: António de Castro Caeiro. Lisboa.
Sara F. Costa Artes, Letras e Ideias hComo tem passado? “O sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?” Fernando Pessoa, em Carta a Ophélia Queiroz – 29 Nov. 1920 [dropcap]A[/dropcap]lguém passa à janela de sombra vazia. Pressinto a sua solidão. Os olhos que lhe cheiram a vento. Vai encarcerar-se mais cedo ou mais tarde, atrás da porta do quarto, no silêncio obrigatório dos divertimentos possíveis. Conheço gente assim. Pessoas trancadas que lêem cappucinos e bebem Cruzeiro Seixas. Gente incansavelmente alta que se estende para lá de si mesma para ver uma onda casual num mar permanente. Passam por elas madrugadas sem olfato. Por entretenimento, travam uma batalha com um peixe-mistério que se infiltrou na frota. Jantam as suas espinhas. Aquele quarto podia ser um poema mas é antes uma equação. Quantos óbitos se confirmam entre os recuperados? Vários webinars depois, o sol não parece menos contagioso do que ontem. Mas elas põe o coração de quarentena, reorganizam armários e lavam as mãos como quem lava os pés, como quem compreende o Inverno melhor do que os outros. E eu na fila de espera. Nós na fila de espera. Sento-me à máquina de escrever para te falar do meu dia. Este novo dia no novo normal. Esquecer-me de palavras: também eu deixei a minha sombra vazia e abandonei paisagens. A minha paisagem é esta, uma rua perto do mar por onde passam transeuntes ocasionais. Outrora foi uma visão para a metrópole pós-punk que é Pequim, noutra foi uma pequena estrada de passagem em Lisboa, noutra era um campo em Braga. É novamente dezembro. Mês de fecho. Fazem-se as várias contas, as referentes a contabilidade e as referentes a outro tipo de acertos a prestar com alguma entidade ou connosco próprios. Este olhar nostálgico pertence a uma disciplina importante: auto-conhecimento. Eu sei, a palavra tornou-se melosa. Esta época moderna, demasiado pós-positivista para qualquer decurso minimamente hermético. Pouco fã de abstrações. Não terei pudor em admitir que me dedico, também, ao auto-conhecimento. A todos os níveis. Avalio as minhas crenças e ações, as escolhas tomadas em alturas em que havia escolhas a tomar. Serei parte de uma lonjura imperativa ou estarei a desenhar um único trajeto? Penso, “não é relevante atribuir-lhe significado ou valor”. Começo antes por considerar a importância de me tornar mais íntima comigo mesma. Reconheço que parte da ansiedade exibida como forma de estar nas janelas contemporâneas, deriva da evasão. Os mecanismos que acreditamos serem a cura para ultrapassar, seguir em frente, fazer o que tem de ser feito, são tantas vezes, mera distração. O prolongamento inadiável da distração, que nos parece confortar, resulta antes em desconforto. Afinal, estamos desconfortáveis com a mera ideia de desconforto. Ou seja, mais prisão, menos prisão, não somos exclusivamente o que pensamos que somos. Resta-nos o abandono como exercício. O deixar para trás como mantra de dia-a-dia à hora do café. “Vai-se andando” “como se pode” e quem tem mais experiência disto de estar vivo sabe que tudo passa. Que importa se hoje deixo para trás algumas das percepções mais basilares da minha vida na última década? Alguém passa à janela e depois passa outra pessoa após algum tempo. Tudo passa. A crise, o desalento, o tédio, a indignação, as dores de cabeça, o cansaço, a falta de olfato e a solidão. Tudo passa. Até as pessoas.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hFreud & Maradona Lda. [dropcap]D[/dropcap]e papo para o ar, deixo que o domingo se instale e me entorpeça as flexões. Para não voltar a dormir, pego no livro Le Divan et le Grigi, a longa e maravilhosa entrevista de Catherine Clement a Tobie Nathan, o actual papa da etnopsiquiatria. Peço umas torradinhas e a manhã, o corpo e a vontade encaixam. E chego à parte em que Tobie Nathan fala da sua descoberta de Freud, com 14 anos, e do seu fascínio inicial; parecia-lhe que o terapeuta propunha “verdades tecnicamente verificáveis”. Até que quando Tobie quis passar à prática e recapitulou por antecipação os passos de uma sessão: «Bom, o psicanalista, instala o paciente no seu divã e cala-se, porque espontaneamente – seria essa uma espécie de lei da natureza – a pessoa há-de entregar-se às associações livres!». E em boa fé, bateu à porta do psicanalista. E continua Nathan: «E bom, é falso! Alguém se deita no divã, tu calas-te e o paciente entrega-se a toda a espécie de coisas porque primeiro que tudo tenta integrar-te, a todo o transe, na conversação. Porque a situação é absurda e o paciente faz tudo para instaurar uma situação mais normal… e quanto às “associações livres”, terás, como psicanalista de ensinar-lhe como produzi-las. Produzir associações de ideias não é o funcionmento espontâneo do espírito, é um dispositivo artificial que os pacientes levam um certo tempo para aprender – alguns recusam-se mesmo, deliberadamente.» Imediatamente me lembrei da batota que Michel Serres atribuía ao método de Sócrates, nos tais debates dialécticos que fizeram a posterior fortuna de Platão, pois, explicava, era Sócrates quem à partida estabelecia as regras da discussão, o que lhe dava logo vantagem. O que tem tanto de engenhoso como de embuste. Nunca me ocorrera o que Nathan denuncia, embora baste pedir aos alunos para se entregarem ao jogo das associações livres para verificá-lo; não flui, rapidamente fica tudo emperrado. Para resultar terão de ser “instruídos” primeiro. Resultará melhor em aulas de escrita criativa, alunos que à priori se dispõem ao “artifício”. Diga-se o mesmo sobre alguma teatralização que se instalará na narração dos sonhos, da mesma forma que se detectou e estudou as raízes teatrais nos ritos de possessão. A psicanálise identificou umas certas leis gerais do mecanismo psíquico de um modo oblíquo, fazendo uso de um certo embuste, do mesmo modo que, para alguns teólogos, primeiro induz-se a crença, depois logo se verá se Deus existe. Eis, na generalidade, a história da aventura do espírito humano. Investe em esquemas e embustes para tactear o que está ainda na sombra mas foi adivinhado antes de conseguir delimitar a sua realidade. Porque à realidade, simplesmente, só a conseguimos conhecer através de ficções, mediante conceitos ideais, por projecções de entes irreais ou por ou intuições criadas pela nossa inteligência. Às vezes capotamos, outras acertamos. E aqui, não é raro atribuirmos um grande papel à intuição. Quanto a esta, Arthur Koestler usava uma imagem muito sugestiva para a definir: a intuição, dizia, é como uma cadeia montanhosa da qual só vemos os pináculos que se elevam acima das nuvens; se pudéssemos ver simultaneamente por baixo das nuvens, veríamos perfeitamente como esses cumes se enlaçam uns nos outros. Se pudessemos, conclui, assistir à cadeia de associações que se forma sob a consciência veríamos também como se enlaçam esses cumes que denominamos “intuições”. Verdadeiras intuições tinha Goethe, que um dia escreveu: «Que precisamente o homem só pensa quando não pode conceber aquilo que pensa». É extraordinário que ele tenha escrito isto quase um século antes de Freud. Esta asserção alude aos labirintos em que qualquer criatura que tenha por trabalho a imaginação mergulha, mas será preciso alguma robustez psíquica para deixar que o devaneio que o pensamento faz brotar desponte, nesse preciso momento em que tomamos consciência de estarmos perdidos no labirinto, em vez de nos esmagar o pânico. Consequentemente, só num assomo de serenidade reencontramos o fio de Ariadne. Mas não é preciso sermos nem construtivistas nem realistas para entendermos que a realidade entronca num terceiro enfoque, aquele em que acredito: a realidade existe mas apresenta-se instável, movediça e irredutível a parâmetros fixos, de tal modo que desenha trajectórias no palco em que antes figuravam objectos e sujeitos. A realidade existe e devemos escutá-la para interagirmos com ela e penetrarmos nas suas ressonâncias. De papo para o ar, sou servido de mais torradinhas e cismo outra vez nas flexões. Desta vez nas flexões de rins em que era especialista o Maradona e lhe permitia as fintas. Tantas delas magníficas. Mas é porque a realidade existe, antes e para além das representações que lhe apomos, que acho inaceitável a facilidade com que eregimos mitos. Toda esta deificação em torno de Maradona é simplesmente patética. Gosto de futebol mas dou-lhe a importância que terão na minha vida as coisas triviais, são breves travesseiros, nos quais repouso a cabeça ou dos quais me sirvo como apoio a outros rins alheios e a outras sibilantes flexões morfológicas e afinal menos acessórias que uma sucessão de cantos falhados. Além disso, em casos como o Cristiano Ronaldo, ou o de Zlatan Ibrahimović, eles introduziram novos paradigmas no desporto, no que respeita à metodologia dos treinos e aumentaram o tempo útil de duração do desportista em actividade, numa associação entre a plasticidade e a veterania, o El Pibo pelo contrário foi um homem que menoscabou o seu imenso talento e que chegou ao pleno da sua própria caricatura, como se a sua própria sombra fosse uma fasquia demasiado alta para manter. Um jogador de paixão, disse dele Jorge Jesus, e acrescentaria eu, como Vítor Baptista. Dois jogadores de duas escalas diferentes, é verdade, mas que no melhor da sua exuberância técnica foram fascinantes, apesar de serem dois profetas absolutamente ocos e totalmente aquéns do mito.
Luís Carmelo Artes, Letras e Ideias hAs origens não se escolhem [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 24 de Novembro, li este breve texto do poeta Jaime Rocha ilustrado com uma fotografia do mar da Nazaré: “Aqui estou na terra onde nasci, a agradecer ao mar, não o peixe, mas as palavras. Silenciosamente, como um velho lobo do mar, grato por ele lhe ter adiado a morte. Faço-o sempre que termino ou publico um livro. Um ritual que dura há mais de cinquenta anos.” Este impressivo texto fez-me pensar, pois há quase quarenta anos que escrevo livros e jamais desenvolvi este tipo de devoção face às minhas origens. Nasci em Évora no verão de 1954 e aí vivi até aos 15 anos de idade. Sairia depois para regressar até ir viver na Holanda, o que aconteceu nos anos oitenta. A partir da década seguinte, passei a trabalhar sempre em Lisboa, mas nunca deixei de ter casa na cidade onde fabulei muito do meu tempo. Na última meia dúzia de anos a minha vida organizou-se de vez em Lisboa. Contudo, na passada primavera, a pandemia e uma inundação obrigaram-me a regressar à cidade durante quatro penosos meses e essa estadia fez-me reflectir sobre as relações difíceis que sempre mantive (interiormente) com Évora. Na realidade, quando termino um livro, jamais me passaria pela cabeça ir a Évora e ao seu mar – que é de planície e brancura – ritualizar um agradecimento demiúrgico como o do Jaime Rocha que, confesso, admiro profundamente. Comecemos por uma primeira (e dupla) pergunta: o que são as origens e o que é uma cidade? A resposta parece-me simples: uma cidade é uma confluência de memórias (físicas e imateriais) em ininterrupto atrito com os actos que fazem e desenrolam o presente, enquanto as origens se podem definir como tudo aquilo que não se escolhe. Podemos enraizar-nos no mundo, ou seja, criar raízes e estabilizá-las em geografias de diferentes qualidades, o que, para mim, foi sempre uma urgência; no entanto, das origens somos todos escravos. Ficam para sempre. Este talvez seja o primeiro grande entrave, muito parecido, afinal, com o da família. As origens dão-nos sempre uma família, seja de que natureza for, embora, com o tempo, pelo menos no meu caso, a família se tenha vindo a tornar cada vez mais num pequeno grupo de pessoas de quem gosto e com quem me identifico (e não nas pessoas com quem tenho “ligações de sangue”). Isto significa que só mesmo as origens estão fora de um horizonte de escolha e de radical autonomia pessoal. Posso esquecer raízes, riscá-las, fazê-las desaparecer; mas as origens não. Nas primeiras duas décadas de vida fui eterno como todos os jovens. Tive sorte em alguns aspectos, pois a vida social era particularmente dura naquele tempo. Quando percebi que não era eterno, comecei a escrever, tinha pouco mais de vinte anos. Apesar de ter desenvolvido mil e uma actividades ao longo de toda a vida, escrever foi sempre o meu fulcral ‘fio de prumo’, título, aliás, do primeiro livro que publiquei (corria o ano de 1981). Existirá um segundo entrave que me afasta das origens. Chamar-lhe-ia desolação. É evidente que existe um apelo existencial nesta metáfora que, sendo breve, implica subtrair à idealidade aquilo que lhe sobra em estado bruto. De facto, durante parte substancial da minha vida adulta, vivendo fora ou dentro da cidade, sempre imaginei o que a cidade podia não ser, projectando-a numa espécie de utopia íntima dificilmente traduzível. Talvez tenha sido essa exegese interior que me levou a desenhar cidades, algo que faço há já várias décadas (e é mesmo uma das minhas poéticas mais preferidas). O resultado desta involuntária operação figurativa é que, sempre que reentro em Évora, tudo aquilo me parece uma ruína adiada, espécie de meio termo entre um amuralhado de lápides sublimes e um universo de fantasmas que se move em círculo fechado, repetindo sempre os mesmos (e cansativos) pregões. Um terceiro entrave terá uma dimensão mais simbólica e humana. Conheci diversos escritores que mantiveram com Évora relações especiais. É o caso de Vergílio Ferreira, Mário Ventura ou Almeida Faria. Todos eles, para além do fascínio estético, me revelavam a ideia de que a cidade tem – terá sempre tido – as suas “gavetas fechadas” (cito de memória Vergílio Ferreira numa conversa que tivemos os dois há precisamente trinta anos na sua casa da Av. dos Estados Unidos da América). Pode, pois, viver-se durante meio século em Évora, mas nunca se sai realmente da aridez do tampo e do pó da secretária. As gavetas – sejam elas o que forem – serão sempre território vedado. Esta falta de respiração, ou, se se preferir, esta ausência de saudade ou de nostalgia do cosmopolitismo (que a cidade viveu há inúmeras gerações) torna o seu ambiente – e o efeito aqui parece-me francamente atemporal e não apenas “da era da outra senhora” – numa escultura algo estática, sem ânimo e sem projecto. Não será caso único na sua imobilidade poética (ou protésica), é claro, mas a própria morfologia da cidade, atada por muralhas, torna a alegoria demasiado plausível. O meu prazer de regressar às origens faz-se a levitar por cima destas atmosferas alterosas. Talvez seja por isso que sou totalmente avesso a bairrismos, a regionalismos e a regionalizações. Claro que haverá sempre um fim de tarde com ‘antigos amigos’ para desenganar a cegueira. Mas não encontro, nem creio que alguma vez encontrarei em Évora um oceano aprazível que me permita o tipo de devoção demiúrgica que o meu querido amigo Jaime Rocha pratica. Num romance escrito há quase década e meia, já este tipo de decantação surgia de modo particularmente nítido: “Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.”. Frequentar as origens, apenas porque são as origens, tem sempre qualquer coisa de romagem ao túmulo desconhecido de nós próprios. Declino para já esse poema.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e Ideias hDas vidas da vida Horta Seca, Lisboa, terça, 10 Novembro [dropcap]A[/dropcap]travessamos tempo e lugar de nós mais ou menos cegos, nuvens pesadas a fazerem-se chão duro de palmilhar, vidro moído, areias movediças, pântanos sulfurosos; ao nível dos olhos instalou-se nevoeiro compacto de nos tirar horizonte, as bússolas ora baças ora em doida rotação; no entorno aquele vociferar contínuo de bandeiras misturado com o sussurrar de desgraças íntimas, a fome a morder calcanhares, o inesperado anunciado em relatórios dos serviços de inteligência a insistir que nada nos está nunca garantido, portanto. Quantas palavras serão precisas para dizer continuar? Este texto não saiu do lote dos atrasados, dos em falta, dos ardentes. Veio de uma das muitas crises que a crise vai desovando, e estava longe de imaginar, quando conheci final e pessoalmente o Luís Cardoso há um ano redondo, que estaria agora nesta dança com ele. Gentil, desde o primeiro momento. «O plantador de abóboras (sonata para uma neblina)» envolve-nos a partir da primeira palavra-frase, possui ritmos de encantamento, leva-nos aos cenários mais ásperos como aos de seda, faz-nos trocar de pele com personagens fortíssimas, mulher, homens, e nelas incluo fauna e flora, burro, ganso, café, abóboras, rosas. Sem nunca cometer o pecado do óbvio, sem tentar explicar, demonizar ou até descrever, mas assumindo a delicadeza do mistério vai fundo nas teias do colonialismo, como a aguarelar até a dor. Na linhagem ancestral dos grandes contadores, tudo se oferece com simplicidade líquida, de rio a rumorejar para humedecer os diálogos, para lavar o sangue, para desenhar destinos. Ergue-se devagar para dizer dessoutro doloroso processo de depuração que desembocou em país. Conta-nos de Timor, e assim não haverá outro livro, por só agora acontecer. Timor nasce neste livro. Nada mais que uma história, mas, digo eu, sem peso, nem conta ou medida, que fará História. Não há países sem pessoas, e acompanhámos, ao longe mas com intensidade, quantas se perderam para que Timor Lorosae o fosse. Como não há nações sem literatura, sem textos fundadores, rios e montanhas, marés e árvores, mão e pensamento, vontade e esforço, gestos de semear, de rasgar, de acariciar, de erguer, passos e visões. Tudo acontece por causa da gente vivíssima que aqui habita, que morrerá jamais graças ao laborioso discorrer do autor. É de crises feita a nossa paisagem, a íntima e a outra. Jamais deixaremos de andar sobre brasas, de atravessar tempestades, de nos perdermos na floresta, de olhar cada rosto da violência, de tratar o medo por tu. É a puta da vida. Seja ela maior do que a própria vida. Há que dizê-lo cuspindo nas trombas da vida: cresce e aparece! Assim afastaremos a morte, ainda que por brevíssimos instantes. Desabafo tonto: nenhuma lição se retira dos livros. Ou melhor: o editor tira, sim. O modo como as figuras maiores deste romance andavam pelo meio das plantações, como habitavam as casas, as varandas, pegavam nos livros, se vestiam e despiam, mas também como tocavam na vida animal e vegetal, sugeriram-me de imediato a Ana [Jacinto Nunes] para pintar as portas e janelas do habitual na nossa colecção (a da capa, aqui na página). Devo confessar, com tanto desacerto a acontecer-me, que assisti em delícia ao resultado do seu encontro com o texto. O que parecia primeira proposta, revelou-se esboço e depois nova série e outra ainda, cada uma trazendo olhar distinto, em investigação de leitor a reler, a detectar o pormenor de um olhar, um sobrolho a carregar-se, sempre o rosto como palco. A escolha estava feita, mas a Ana continuou a ler com o corpo todo no papel. Se dúvidas tivesse acerca das potestades que se escondem nestas páginas estavam desfeitas a pincel. Sequeiro, Lisboa, sexta, 13 Novembro Acolho a nefasta memória deste dia com almoço que só não é como antes, porque a nova normalidade tende a expulsar-nos dessas maneiras de ser. Vivi nos bastidores de alguns textos, por estes dias. Alguma dor os habita, por tratarem da matéria de que somos feitos. Deixemos para depois. Quero trazer o registo contabilístico de conversas acerca da construção do texto, prazer, portanto. Prosa, primeiro. O Joaquim [Paulo Nogueira] surpreendeu-me com romance que força os limites dos mecanismos narrativos, de recusar a reflexão sobre a forma, nem excluir o que lhe interessa, também no teatro, desconfio, a aproximação à vida, sabendo que será inevitavelmente outra coisa, que nunca a agarrará. Como em trabalho de dramaturgia, vi-me a empurrá-lo para o risco, para o entusiasmo, para o fulgor. Conhecemo-nos há muito em contexto de trabalho vivificador na direcção da não-violência. Reconhecemo-nos agora pondo as mãos na violência. Depois a poesia, que me atirou para as órbitas da infância, esse astro escaldante. O José Ricardo [Nunes] vem amadurecendo volume com afã de jardineiro, atentíssimo à dimensão dos canteiros, ao convívio das espécies, ocupado a distribuir as luxúrias, sem maltratar as daninhas. Incluiu os astronautas e foi isso que me pôs a voar. Mas a partilha de leituras no lugar fresco da generosidade, a trocar truques para excitar a cor do antúrio ou garantir que o carvalho atravessa o verão, na caça ao advérbio ou aos anti-climax, nos alinhamentos que servem o baixo contínuo, na perseguição do título justo, permitiu-me a mim ver mais. Sobre a cosmonáutica e o arrastar dos pés. Horta Seca, Lisboa, quinta, 26 Novembro Não se entra impunemente nos livros de José Emílio-Nelson. Deviam mesmo ser proibidos, garantindo assim as leituras que merecem. Ao «Putrefacção e fósforo», que me é dedicado ferindo o meu pudor, que quase sangrou agradado, segue-se «Coração Cru», intervalados com os desenhos libertinos da Bárbara [Fonte]. Libertinos, não tanto pela abundante e convivente genitália, mas pela absoluta liberdade no redesenho dos corpos. As obsessões tocam-nos ou deixam-nos, entram e saem. Uma delícia, se quereis saber. O voluminho contém a energia do mais potente explosivo, somando reflexão erudita, prosa poética, versos, momentos de puro teatro. Um índice pontiagudo com o qual assinalar a pele dos temas mais excruciantes da nossa vida conventual, portanto doce e castigada. Habitamos os corpos como lugares do sagrado, mas saberemos qual o lugar neles para a oração? Nenhum sabor, por acre ou pestilento, está excluído. Não conheço ponte mais virtuosa e desafiante que nos ligue ao absoluto. A partir da inevitabilidade marmórea do cadáver. Horta Seca, Lisboa, sexta, 27 Novembro Puxo duas semanas e sento-me. Nos ares rodopiam os bumerangues: lista de traduções a pulsar na direcção de várias línguas, com o Arno Schmidt à cabeça, uma ideia de texto que me queima, as conversas na margem de Deus, as micro-narrativas com o André [da Loba], o velho infanto-juvenil também com ele, a confirmação do documentário sobre livraria onde o antigo vem à tona respirar, o projecto de puro gozo a partir da cerveja, aquela colecção nova a celebrar a memória, e, por falar nisso, a investigação sobre os passos dados por Jean Moulin em Lisboa, as possibilidades entusiasmantes que chegam a cada almoço pausado há séculos e os primeiros traços firmes no desenho associativo das editoras independentes. Fuga para frente, mas às arrecuas.
Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e Ideias hDa memória [dropcap]Q[/dropcap]uer dizer: sabemos que ninguém rejuvenesce nesta vida. Que os nomes, os lugares, as coisas, os dias começam inapelavelmente a escaparem-se de modo a que muito do que vivemos, bom e mau, se transforma em paisagens impressionistas e distantes. Francamente não me parece que isso seja uma má notícia do ponto de vista individual. Desde que escapemos à tragédia de patologias cruéis, em que lúcidos deixamos de reconhecer quem mais amamos, a erosão do que lembramos pode ser até salvífica. Quem sabe mesmo um mecanismo de evolução natural. Que a memória pode ser selectiva é um facto conhecido; o pouco que se pode lamentar ou louvar é o critério dessa selecção. Interessará que apenas me lembre dos melhores momentos da minha vida ou irei angustiar-me porque não os consigo lembrar? Qualquer que seja a resposta há um facto irreversível: não me lembro mas vivi-os. Isso, acho eu, deveria bastar. Mas a este nível a questão leva a escolhas ou traços de carácter. Se lamentamos um paraíso perdido, lembramo-lo como uma redenção melancólica e inútil; se houver um acontecimento terrível que nos assombre, continuamos presos. “O passado é um país estrangeiro”, diz uma das mais famosas aberturas da literatura. Sim, certamente; e o ser humano divide-se entre aqueles que persistem em habitá-lo e os outros que aceitam que fez parte de um caminho que veio dar até agora mesmo. Eu faço parte destes últimos. Mas se dou valor ao agora é porque tenho a possibilidade de lembrar o ontem e aprender com ele. A memória, como David Hume escreveu, serve também para conservar as ideias e a sua ordem. E é por tudo isto que me custa viver num mundo e mais particularmente num país cada vez mais amnésico. Serei sincero: se há coisa que Portugal não tem é uma cultura de memória. Não se pode atribuir isto apenas aos ares do tempo e ao actual modo de pensar basta-juntar-água. Infelizmente o meu país tem rastilho curto no que ao lembrar diz respeito. Lembram-se ocasiões grandiosas, celebram-se efemérides; mas esquecemos os pequenos actos que podem mudar um destino colectivo. Muitas vezes até as grandes infâmias são levadas pela torrente do presente. É certo que quando se trata de factos históricos os fantasmas estarão sempre `disposição dos vencedores. Mas o que custa é o contraditório ter quase desaparecido, existirem poucos que digam “isso não terá sido assim”. Esta ausência de memória colectiva leva a outro efeito mais grave: não honrar quem já não está. Para não variar socorro-me de António Vieira: «O efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco». Estes ausentes, neste contexto de país, são aqueles que se notabilizaram pelo bem comum. E são honrados não apenas pela lembrança individual mas sobretudo pela conservação de registos materiais de vária ordem que este país parece desprezar. Livros, documentos, fotografias – ou estão em lugar incerto ou é o próprio país que muitas vezes não os deseja nem protege. A memória, é certo, pode ser nossa inimiga mas tem que existir. É um factor de civilização essencial que por aqui está em défice. E mais do que isso: são as migalhas deixadas no chão dos tempos que nos ajudam a encontrar a saída do labirinto dos dias.
Paulo José Miranda Artes, Letras e Ideias hA caminho de nada [dropcap]T[/dropcap]om Trambley, escritor canadiano, nascido em 1940 em Ontario e recentemente falecido por Covid-19 – que ainda privou com Saul Bellow, embora fosse vinte e cinco anos mais novo –, quando publicou a sua obra prima «Uma Montanha de Nada», em 1987, disse numa entrevista que escrever não era uma tarefa como as do político, do médico, do economista ou do sapateiro, mas uma modalidade de desequilíbrio, uma disfunção orgânica como a bi-polaridade ou a esquizofrenia. «Refiro-me à escrita que transforma, que rasga os sentidos que damos por certo que temos da vida como se rasga um início de carta mal escrita. Ninguém escreve “A Metamorfose” num estado perfeito de saúde ou a gostar muito da sua vida ou da vida humana em geral. Na melhor das hipóteses, escreve em estado de estupefacção com a vida humana.» Em «Uma Montanha de Nada» Tom Trambley escreve a história sem história de Andrew Parker, através de um narrador que não sabemos se é ou não o próprio Andrew, se o narrador está a inventar Andrew à medida que escreve o livro ou se é alguém por quem tem ressentimentos. «Uma Montanha de Nada» começa assim: «Andrew subia a montanha, com a mochila carregada, os calções largos, as botas-tanque e um boné verde escuro. E subia a montanha sem perguntar uma vez sequer por que estava a fazer aquela caminhada. Nem por um momento se lembrou de perguntar: “Para que estou eu aqui a gastar um fim-de-semana a subir uma montanha com um pequeno grupo de estranhos?” Ou “É isto verdadeiramente importante para mim, para a minha vida?” Nunca perguntou nada. Mas de algum modo devia pensar que lhe fazia bem gastar um fim-de-semana a subir uma montanha com um pequeno grupo de estranhos, a caminho de um topo que não lhe ensinaria nada, não lhe revelaria nada, a não ser, talvez, dizer que fez uma coisa que a maioria das pessoas não faz. Mas o que mais há no mundo são coisas que a maioria das pessoas não faz. Cada um de nós não pode fazer todas as coisas estúpidas e desnecessárias à vida que existem para fazer no mundo. A pergunta “porque devo deixar a minha casa, a minha cidade, para gastar um fim-de-semana a subir o raio de uma montanha?” nunca foi feita e ali estava ele, debaixo do sol de Agosto, ligeiramente desidratado, apesar da garrafa de água, a carregar às costas uma mochila cheia de coisas que não existem na montanha, mas necessárias à sobrevivência de uma pessoa e por isso as transporta consigo. Andrew assumiu correr uma situação de relativo perigo para a sua vida, pelo menos de acréscimo de desconforto é, por não saber o que fazer com ela.» Trambley coloca-nos de imediato a conhecer o seu herói como alguém de quem não devemos gostar e com a sensação de que narrador não gosta do seu herói, de Andrew Parker. E, neste sentido, faz do seu livro uma espécie de noticiário a que estamos a assistir, dando notícias de pequenos actos trágicos ou ignóbeis. Andrew, contudo, não é má pessoa, é apenas como todos nós, não sabe o que anda a fazer na vida e por isso mesmo faz as coisas mais disparatada que se possa imaginar, como subir uma montanha com um grupo de pessoas num fim de semana. Mas poderia ser, e o livro mostra outras situações igualmente disparatadas, como inscrever-se em cursos de arte ou em aulas yoga ou até a tentativa frustrada de ter um gato, de modo a saber quem é ou a sentir-se bem consigo próprio. A meio do romance lê-se: «Andrew, a vida reduz-se a um dia. Infelizmente, tu não sabes o que é um dia. De sol a sol, é uma parte de ti que perdes e não tem volta.» O narrador não relata apenas a vida de Andrew, ou a critica, como tantas vezes parece, dirige-se também a ele, como se lhe falasse directamente. Um dos momentos mais hilariantes do livro é quando Amanda, uma colega do curso de «História da Arte Para Quem Nada Sabe de Arte» seduz Andrew e, perante o evidente, encanto deste pela colega, o narrador escreve: «Não, Andrew, não faças isso! Mesmo em prejuízo da minha narrativa, não faças isso. Que pode essa mulher fazer por ti, pela tua vida? como pode essa mulher libertar-te do alheamento acerca de ti em que vives? Diz-me, por favor, e eu faço com que vás para a cama com ela… O teu silêncio disse tudo, Andrew. Vou levar-te a casa, para pores a lasanha no micro-ondas e uma cassete no leitor de vídeo. Não é melhor do que ires para a cama com Amanda, mas a solidão pode um dia acordar-te e um erro a dois jamais.» Trambley, o narrador, conduz a sua personagem ao longo do livro com desprezo, mas ao mesmo tempo como se esperasse que isso mudasse, como se um dia acontecesse um milagre. No fundo, como muitos de nós nas suas próprias vidas, esperando um dia em que tudo mude, mas sem que se faça nada para que alguma coisa que seja mude. Leia-se: «Andrew, talvez um dia consiga deixar de te ver como uma esposa que aguarda que o marido se torne num príncipe que nunca foi ou uma mãe espere que o filho deixe a droga e consiga aquele emprego sonhado, mas por enquanto não acredito que vás algum dia mudar. Não é da tua natureza tornare-te alguém. A despeito disso não consigo apenas virar-te as costas e deixar de te falar como se faz a um canalha, apesar de não seres um canalha. Pelo contrário, tu és uma pessoa decente, que não sabe nada de nada e inocentemente procura por si onde precisamente não se pode encontrar. Porque o ginásio, a yoga, o curso de história da arte, as caminhadas, tudo isto é tu a afastares-te de ti. E também não penses que preciso de ti para escrever este livro. Vejo em ti aquilo que sou e detesto-te por isso, embora escrevê-lo, por alguma desconhecida razão, me apazigue. Se não te posso mudar, nem mudar-me a mim, maltrato-te. Tu representas o que de pior há na humanidade, porque me lembras exactamente quem sou.» O narrador odeia a sua personagem como um amante aquela que deixou de o desejar. Um dos momentos, talvez o mais eficaz, que nos coloca a hipótese de o narrador e Andrew Parker serem uma e a mesma pessoa acontece nesta passagem: «Na verdade, Andrew, tu e eu somos a mesma pessoa e tu sabes bem disso.» Evidentemente, pode tratar-se de um efeito retórico, em que alguém se reconhece como sendo igual ou semelhante a outro, mas ao longo do livro são dadas pequenas pistas, que fazem com que esta passagem se encaixe como a peça que faltava neste puzzle literário. Uma dessas pistas é a passagem de onde retiro o título para este meu texto: «Mas não te preocupes, Andrew. Na verdade, estamos todos a caminho de nada. Nós não somos diferentes dos outros. Nem eu sou diferente de ti, se é que não somos a mesma pessoa. Como podemos saber que não somos outro?» Seja como for, Tom Trambley nunca deixa cair a ambiguidade e isso é um dos trunfos do livro. Nunca sabemos bem qual a relação que existe entre o narrador e o seu herói. Nunca sabemos quem é o narrador a não ser através do modo como descreve e critica o seu herói. Nós também nunca sabemos quem somos, a despeito de termos de viver como se soubéssemos alguma coisa acerca disso. Um livro que nos prende tanto pela situação existencial relatada quanto pelo modo eficaz em que é narrado.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias Cartografias hAos mortos [dropcap]N[/dropcap]ada se nega. Como disse algures Mário de Sá Carneiro: “a um morto nada se recusa”. E nisso confiou Santa-Rita, ao deixar expresso o desejo profundo de que todo o seu trabalho fosse queimado depois da morte prematura que o apagou ainda antes dos trinta. E foi o que o irmão fez, entregando às chamas o trabalho de atelier. O possível. Para isso servem os irmãos. Para isso e, muitas vezes, para o que é contrário a isso. Santa-Rita Pintor. Como apelido. Como a revelar a pertença a uma família, de coisas feitas e por fazer. Se por uma vez pudéssemos espreitar o interior do espírito de uma pessoa. Se alguma vez pudéssemos acreditar conhecer alguém por dentro. Esse mistério profundo que são as pessoas, querendo ou não, assume-o Santa-Rita Pintor. Fez Historia também nisso, porque há vestígios e memória. Teria ele desejado, se fosse possível, estender as chamas também a esse lado incontrolável que fica? Talvez tenha sido o único e o maior – com ou sem obra feita ou deixada – “futurista e tudo”. Porque levou o ímpeto de destruição do passado, preconizado pelos italianos, à sua expressão máxima e na esfera privada, apagando-se e simultaneamente o seu passado, a sua passagem. O seu trabalho. Como se nada valesse ou como se a ninguém competisse retê-lo. Ou então, como se cada parte de trabalho feito, à semelhança de uma célula cerebral, com falta de irrigação, morresse. Não podendo sobreviver ao cérebro que a produziu e entendeu como ninguém. Abre-se uma gaveta. Repleta de objectos familiares ou estranhos ou até mesmo insólitos. Mas eles têm uma ordem ou desordem particular e guardam um segredo de intencionalidade. Nunca poderemos entender o todo como adição simples de todas as partes. Mas uma gaveta é o retrato do interior da cabeça de uma pessoa. A casa, um retrato de corpo inteiro. Porque as pessoas vivem na casa como no interior da sua cabeça. E o trabalho é ainda um retrato, mas elaborado para ir um pouco mais longe e se revelar um pouco mais. E esconder. Nas malhas tecidas do discurso. Quando alguém parte deixando para trás as suas coisas, não é o mistério por vezes já conhecido no seu trabalho que detém os olhares e mãos estranhas em interrogação ou descoberta. É o interior de gavetas e de armários fechados sobre um mundo objectual que por vezes nunca viu luz do dia. Nunca foi tocado nem orquestrado senão pelo corpo de cujo interior revelam parte, fazem parte ou reproduzem em parte. Um corpo de sentido. E, como de qualquer corpo, é precisa uma enorme proximidade para se conhecer e entender. Um rio pode fluir e um dia desaparecer na areia surgindo eventualmente mais à frente. É a imagem escolhida por Pessoa, em carta a Santa-Rita, relativamente ao desaparecimento da revista Orpheu. Mas as pessoas não são assim. Elas voltam, sim, voltando-nos à memória. Mas serão sempre a possibilidade de não o serem, mas sim sósias, essas aparições virtuais e sabe-se la quão parecidas com quem desapareceu ou com quem inventámos. Chave. Apropriamo-nos dela. Tenho dado por mim tantas vezes, nestes últimos anos, a pensar como as pessoas entram e saem da vida dos mortos. Devassam, porque tem que ser, o lixo, a intimidade, objectos e memórias e coisas frágeis que só por acaso têm uma aparência física e a possibilidade de serem tangíveis apropriáveis e possuídas, mesmo quando na sua essência são afinal conhecidas e partilhadas pela memória. Que se transformam em coisas úteis ou inúteis sem fuga possível e com um novo certificado de posse e não de habitação. Como podem os objectos de quem parte, ser tocados e arredados daquele centímetro exacto à beira daquele nó da madeira, daquele grão de pó que se fez fronteira entre o último gesto e o repouso para depois das mãos que partiram. Um fragmento de vida, preso naquela particularidade das coisas no espaço e iguais a um outro momento. Mas somente até conhecerem outro gesto. Como podemos mover do lugar um caderno, um lápis manuseado, uma página marcada ou um pedaço de papel, que nem o vento deveria retirar da sua sombra levianamente? Como fazer com as coisas dos que partem. Como viver com a possibilidade de, dos objectos, desaparecer esse último gesto e essa última respiração ou enfado ou impaciência ou meditação. Como deixar partir os vestígios sólidos de uma invisível impressão digital. Como deixar que outras se substituam a essas. Como permitir que alguém invada todos os pequenos meandros de um pensamento, de uma distracção, de uma dúvida? Presos ao que de matérico é o limite do possível, a reter a ausência antes que se torne dissipação e se torne ausência de ausência. Há que fechar a mão sobre a chave, pelo tempo que for necessário. As estações levarão consigo camadas de nitidez, algumas, e de sentir. Mas antes e sem se saber, é melhor esconder a chave. Senti-la na mão a ganhar a temperatura. Que o metal não tem. Mas a mão. Porque as coisas dos mortos, não têm fuga possível. Nem eles. A menos que tenham um irmão, um amor, que ame nas coisas o que delas entenda. No mínimo, que elas são o interior da cabeça de alguém. Que podemos nunca entender na totalidade, mas que é preciso amar. As coisas, como as pessoas a quem pertenceram.
Michel Reis Artes, Letras e Ideias hO invulgar Segundo Concerto para violino [dropcap]S[/dropcap]urpreendentemente, apesar da sua prolífica produção para o violino, Max Bruch não era de forma alguma um violinista com grandes dotes, o que é difícil de acreditar quando ouvimos o seu glorioso e sempre popular Concerto para Violino e Orquestra no 1. O seu segundo Concerto para Violino ficará sempre na sua sombra. Não obstante, o Concerto, estreado no já desaparecido Crystal Palace em Londres, em Novembro de 1877, com o violinista e compositor espanhol Pablo de Sarasate, a quem foi dedicado, como solista, é poderoso, expansivo e profundamente recompensador. Sarasate, que também estreou o primeiro Concerto para Violino de Bruch, foi também claramente a fonte de inspiração desta obra. Considerando o número – e a qualidade – dos padrinhos-fadas que compareceram ao seu nascimento, o Concerto para Violino e Orquestra nº 2 em Ré menor, Op 44, de Max Bruch, deveria ter começado a sua “vida” da melhor maneira possível. Durante algum tempo, pareceu estar a segurar-se nas salas de concerto europeias, mas, como aconteceu com muitas das obras de Bruch, o seu ímpeto vacilou e, em seguida, praticamente morreu. A morte do seu principal defensor, Pablo de Sarasate, em 1908, selou o seu destino e tornou-se o reduto de alguns defensores determinados da obra, incluindo mais recentemente os famosos violinistas Jascha Heifetz e Itzhak Perlman. Dependendo fortemente das habilidades musicais, sabedoria composicional e influência de Joseph Joachim, Bruch tinha, no final da década de 1870, um novo herói violinístico, Pablo de Sarasate. O virtuoso espanhol deixou gravações suficientes para que pudéssemos ouvir que personalidade envolvente possuía, expressa por meio de uma técnica de execução leve, arejada e deslumbrante – a própria antítese do semblante sério de Joachim. Após dirigir as apresentações de Sarasate do seu primeiro Concerto para Violino em Frankfurt e em Wiesbaden em 2 e 8 de Fevereiro de 1877, numa carta ao seu editor Simrock, Bruch descreveu o seu solista como “um violinista extraordinário e um homem encantador”, acrescentando: “Vou escrever algo para ele – isso é bastante certo.” Três semanas depois, escrevia a Simrock: “… as ideias principais já estão delineadas – produtos da inspiração que a sua [de Sarasate] execução indescritivelmente perfeita do primeiro concerto despertou em mim.” No início de Maio, o novo trabalho estava ‘virtualmente concluído’. Em meados de Outubro de 1877, Bruch fez a sua primeira visita a Inglaterra, viajando com Sarasate, que tocou o Primeiro Concerto sob a sua batuta no Crystal Palace. No dia 4 de Novembro, os dois homens estavam de volta ao Crystal Palace para a estreia do Segundo Concerto, tocado a partir de manuscritos. O crítico do Sunday Times foi duro: “Herr Max Bruch, o compositor, é um daqueles homens que não podem contentar-se em seguir um exemplo – seja ele bom, mau ou indiferente – e o seu novo concerto mostra como ele despreza completamente os cânones da ‘forma’. A interpretação da obra pelo violinista espanhol foi inteligente e bem sustentada do início ao fim, mas isso não nos leva a ter uma opinião elevada sobre a composição.” Bruch fez revisões, como fez novamente depois dele e Sarasate fazerem a estreia em Berlim em Janeiro de 1878. Aconselhou-se com o violinista Robert Heckmann e, como tantas vezes antes, com Joachim, com quem se encontrou em Barmen e em Koblenz em Fevereiro. Disse a Simrock que o mestre húngaro tocou o concerto prima vista, “como o Diabo”, e que Joachim o achou mais fácil do que o primeiro concerto, enquanto Sarasate, a quem foi dedicado, pensava o contrário. O musicólogo e historiador alemão Wilhelm Altmann revelou que Sarasate, que tinha uma imaginação fértil, havia dado a Bruch um cenário para o concerto, retratando o rescaldo de uma batalha nas Guerras Carlistas espanholas. Aparentemente, o primeiro andamento, um invulgar lento e dramático Adagio ma non troppo que abre de forma sombria e ameaçadora, representa um campo de batalha repleto de soldados mortos e moribundos. Uma jovem move-se no meio dessa carnificina, em busca do homem que ama, e uma marcha fúnebre acompanha uma procissão fúnebre. O andamento é na forma-sonata com dois temas principais, o primeiro bastante fluido, e o segundo mais dramático. Brahms foi contundente sobre a ideia de começar um concerto com um Adagio, embora mais tarde tenha modificado a sua opinião. O andamento central é um recitativo dramático no qual a orquestra comenta, quase como um coro, as frases do violino. Bruch talvez estivesse a pensar no tipo de cena operática que Louis Spohr empregou no seu concerto “Gesangsszene”. O Recitativo termina com uma passagem evocativa de trompa e conduz directamente ao finale, marcado Allegro molto, novamente na forma-sonata e aparentemente retratando uma acção de cavalaria: começa dando continuidade ao clima expectante do Recitativo, com batidas de tambor de cascos de cavalos e ritmos marciais, bem como alguma música mais maleável e muitas passagens virtuosas para violino nas quais Sarasate se notabilizou. Sugestão de audição: Max Bruch: Violin Concerto no. 2 in D minor, Op. 44 Ingolf Turban, violin, Bamberger Symphoniker, Lior Shambadal – Claves, 1993
José Simões Morais Artes, Letras e Ideias hA exploração do atlântico [dropcap]C[/dropcap]laudius Ptolemaeus (87-170) escreveu Geographia por volta do ano 150, onde situava as coordenadas de muitos lugares da Terra, cuja esfericidade era já reconhecida no século V a.n.E. por Pitágoras e um século depois por Pytheas (Píteas), que calculara a latitude de Marselha. Ptolomeu ensinava em Alexandria quando num mapa representou a metade do mundo conhecido, demarcado em longitude desde o meridiano 0º no Atlântico, a abarcar para Leste o Norte de África e Europa com a Islândia, o território Romano à volta do Mediterrâneo, o Mar Vermelho e a Pérsia, a Índia e o Sri Lanka banhados pelo mar fechado do Índico, os Himalaias até ao Sinae (China) e acabava no mar com o meridiano 180º, para lá do qual, terras desconhecidas na metade não representada. Apresentava sobretudo o hemisfério Norte, que terminava nos 63º de latitude e para Sul, até à linha do Trópico de Capricórnio com um território indefinido. A obra de Ptolomeu em 1478 foi reeditada em Roma. Bartolomeu Dias em 1488 abria à navegação a passagem do Atlântico ao Índico, mas no Atlântico faltava explorar dos Açores para Oeste e com esse intento, desde 1484 Cristóvão Colombo propunha-se chegar às Índias. Expôs o projecto ao Rei de Portugal D. João II, mas foi recusado. Aqui as histórias bifurcam-se, pois há quem refira existir um conluio entre ambos e ser Colon um agente duplo a trabalhar por Portugal ao serviço de Espanha. Para creditar tal, no regresso de três das quatro viagens, Colon foi primeiro a Lisboa e só depois se apresentou aos reis espanhóis. Teoria explanada no livro Portugal e o Segredo de Colombo por Manuel da Silva Rosa, de quem são algumas das informações aqui apresentadas. Sobre a vida de Cristóvão Colombo há uma história oficial a dá-lo como genovês, filho de um tecelão e refere ter havido uma boa dose de sorte dos intervenientes, pois tinham um rústico conhecimento náutico para conseguirem atravessar o Atlântico. Outra, escondendo a sua vida anterior, iniciava-se quando em 1484 se apresentou em Castela como Cristóvão Colon, nome pela primeira vez mencionado e oficialmente registado como português. Refugiara-se em Castela sob a protecção da Rainha D. Isabel e viera inserido no grupo implicado na tentativa de matar D. João II, onde se destacavam dois sobrinhos do Rei. Os anos embarcados ao serviço de Portugal permitiram a Colon ganhar larga experiência e conhecimentos sobre navegação, assim como colheu muita informação de D. Bartolomeu Perestrelo, 1.º Senhor de Porto Santo, cargo a quem chegavam actualizadas notícias marítimas. Em 1484, meses antes de seguir para Castela, casara com Filipa Moniz Perestrelo, filha de Bartolomeu, de quem teve o filho Fernando. Com a herança da escola de cosmógrafos criada na Universidade por o Infante D. Henrique, o Rei D. João II (1481-95) abria um novo ciclo ao fundar a Junta dos Matemáticos para aprofundar o já avançado conhecimento náutico dos portugueses. Cristóvão Colon, cujo historiador António Ferreira de Serpa diz ser Salvador Fernandes Zarco, fora um dos prestigiados capitães do rei e tivera acesso à arte de navegar no Atlântico, sobre os ventos, correntes, baixios, assim como novos instrumentos, tabelas e actualizados mapas, com as mais recentes descobertas de terras, tudo escondido como importante segredo de Estado. 1.ª VIAGEM DE COLON A morte do Rei de Castela Henrique IV, levou a sua irmã Isabel a proclamar-se rainha em Dezembro de 1474, casada desde 1469 com o Rei Fernando de Aragão. Em 1484, Cristóvão Colon, após ser recusado por D. João II, foi-lhes expor o seu projecto, que só ao fim de sete anos o aceitaram, apesar de lhe concederem um salvo-conduto a 12 de Maio de 1487. Conquistado o reino Nasrides de Granada a 2 de Janeiro de 1492, pôde então Colon iniciar a sua viagem para o Ocidente. Não era a primeira realizada por europeus, pois no início do século XI os viquingues tinham uma colónia na Gronelândia e navegaram ao longo da costa até à Terra Nova. Aí foram, em 1463 João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem, directamente dos Açores, e em 1487, ao serviço dos ingleses o genovês Giovanni Caboto, onde teve a noção de estar num extenso continente. Diogo de Teive em 1452 e Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito em 1487, partindo dos Açores tentaram reencontrar as Antilhas, visitadas em 1424, mas desapareceram no Atlântico. As expedições para Norte de Pedro de Barcelos e de João Fernandes Labrador (de quem veio o nome Terra do Labrador), entre 1492 e 1495, foram para realizar medições sobre a posição da Terra Nova e encontrar pelo Árctico passagem directa ao outro lado do mundo, mas o gelo impossibilitou. Como se percebe, antes da primeira viagem de Colon já D. João II sabia da existência de um novo continente a Oeste do Atlântico. No ano em que foram corridos os muçulmanos de Espanha, era a 1 de Agosto de 1492 promulgado o decreto de expulsão dos judeus ascanazis, que desde o século VIII entraram com os islâmicos na Península Ibérica. Teriam de sair até ao dia 3, data em que partiu Cristóvão Colon do porto andaluz de Palos de Moguer (Huelvas) com 87 homens em três caravelas: a Santa Maria era a maior, a Pinta e a Niña. Sabendo não poder navegar directamente para Oeste, devido aos ventos, tomou o rumo das Canárias, onde fez aguada e a 6 de Setembro singrou em mar alto durante cinco semanas. Sem terra à vista a tripulação amotinou-se e foi-lhes prometido que se dentro de três dias não a avistassem, regressariam a Espanha. Bastaram dois, pois a 12 de Outubro de 1492 encontraram terra, baptizando-a São Salvador, hoje ilha de Watlings, Bahamas. Rumando para Sul, a 28 de Outubro aportava a Nordeste de Cuba. Encontrou a Hispaniola (Haiti e República Dominicana) a 5 de Dezembro, onde no dia de Natal encalhou a Santa Maria e fundando a povoação de La Navidad, aí deixou cerca de 40 homens. Recolheu alguns nativos para os levar a Espanha, onde chegaram apenas sete, sendo grande atracção em Sevilha, mas traziam a sífilis, que em 1495 causou uma epidemia na Europa. Iniciou a viagem de regresso a 16 de Janeiro de 1493 e sem terra à vista navegou 25 dias, atracando na ilha de Santa Maria, Açores. Referia Colon estar já nos mares de Castela quando uma tempestade o obrigou a refugiar-se no porto de Lisboa, onde ancorou a 4 de Março. Passou os dois primeiros dias reunido com matemáticos e cosmógrafos do rei de Portugal, com quem esteve também, e a 13 de Março partiu, chegando dois dias depois a Espanha. Em Barcelona, os Reis receberam em audiência Cristóvão Colon em Abril, para lhes dar a notícia da descoberta das Índias. Estranho! Estava já o globo terrestre dividido em 360º e sabendo-se pelo mapa de Ptolomeu encontrar-se a Índia entre os meridianos 110º e 140º, então Colon navegara 220º, os 180º da metade desconhecida e 40º no mundo conhecido; mas não referia a China, onde teria de passar para chegar à Índia. Seria por faltar um preciso cronómetro a medir a longitude?! Quanto a benefícios económicos da viagem, nenhum, só despesas.
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias hÉ tempo de… [dropcap]T[/dropcap]udo o que nos aparece tem o seu tempo, a sua hora. Existimos no interior de uma atmosfera temporal. Agora, à tarde. Antes, no princípio da manhã. Depois, ao serão. A cada instante e durante todos os momentos da nossa vida, é como se houvesse um “agora quando…” antes de e entre toda a realidade. Toda realidade – qualquer momento da actualidade presente, mas também passado e futuro – tem um registo no tempo lido nos relógios. Respondemos às horas precisas quando nos perguntam por elas e é com precisão que esperamos que nos respondam à pergunta: “que horas são?”. Mas não estamos sempre a querer saber das horas. Às vezes, porém, sucede que sem disso nos apercebermos, olhamos de soslaio para um qualquer relógio disponível. Ou será que a omnipresença de relógios na nossa época contemporânea nunca deixa de nos dizer as horas? Haverá um relógio interior que nos dá a noção do tempo? Temos noção que há situações que demoram e custam a passar. Há outras que “é um instante”. Passam rápido, como se o tempo tivesse pressa de ir e de acabar o que está a ser. É sempre hora de qualquer coisa. A realidade é aberta primordialmente por uma hora que é o tempo em que qualquer coisa é feita ou deveria acontecer. Agora, é hora de ir. Agora, é hora de começar. Agora, é hora de acabar. Tudo na vida tem o seu tempo, como se disséssemos sempre sem o proferir: “é tempo de…” Agora, é tempo para escrever a crónica. Há pouco, foi tempo de almoçar. Daqui a nada, é tempo de ir treinar. Ser tempo de… é a forma de toda a experiência do mundo. E mesmo quando não fazemos nada é tempo. Dizemos – ou se não o dissermos pensamos – é tempo morto. Também há tempo sem haver tempo para nada, quando temos muitas actividades ou ficamos efectivamente sem tempo. Perguntamo-nos “que horas são ou que tempo é?” A pergunta é feita de nós para nós. Outras vezes, porém, o tempo que é tempo revela-se-nos a nós, interrogando-nos: “não é tempo?” “Que fazes tu do tempo?” Agora, é tempo. Não sentimos o tempo a passar, quando não “vemos horas” – como se pudéssemos ver as horas! O que vemos é só o conteúdo distribuído pelo tempo, dividido em segundos, minutos, meias-horas, horas, dias, semanas, meses, anos civis e lectivos. Há tempo da realidade mas não só no mundo exterior, hoje com a abóbada azul do céu lá no alto, amanhã, cinzento cinza e negro e muita chuva. É tempo também do pensamento que paira sobre nós como uma nuvem. O tempo traz conteúdos do interior que, mesmo íntimo, é o nosso céu. É tempo de abrir a dimensão para ser transportado para o passado, na infância, quando havia nodoas negras nos joelhos e calções e gelados e lanches. Depois, a sesta. E esperávamos 11 meses pelo verão. Depois, é tempo para um pensamento que vem com as asas da música. Ou será que vem com barbatanas e mergulhamos para a profundidade das alturas? Não nos atiramos para o oceano de água, mas para o oceano estrelado do vasto universo. E assalta-nos a antecipação do futuro. Perguntamo-nos de nós para nós como será depois? Como tem sido, é e terá sido depois? Está sempre a dar horas o relógio do tempo. É o coração que pulsa. É esse tempo que vemos medido mecânica ou digitalmente nos relógios. E se o tempo do relógio é o que visamos, quando perguntamos a alguém pelas horas ou só a nós a partir de nós, o tempo da vida não é medido pelo tempo do relógio. Quantas vezes mais será véspera de Natal? Quantos verões sobreviverei à morte dos meus? Quantos dias haverá ainda para ser no tempo? E a pergunta daquele filósofo: “sou eu o tempo?” Que tempo é esse em que se funde com a própria ex-istência (manifestação do tempo a deixar de ser)? Já não há pressa para ir ao encontro de quem se foi. Mas há o tempo todo de mim cá sem todos. E há o tempo vazio em que não tinhas vindo. Mas vieste e tudo mudou. Às vezes olhamos para o relógio para ver quanto tempo falta e cumpre-se a hora com tudo dito e tudo feito. Mais uma aula, mais um treino, mais uma ida ao sítio tão habitual que é como uma outra pele. Mas há tantas paisagens encerradas, tantos sítios onde não vamos já. Não é por não nos deslocarmos lá. É porque o plano de fundo das nossas vidas – colunas do templo grego da vida que vão até ao céu – desmoronou. A cada instante é hora e nem sempre nos abrimos para o exterior ou para o interior. Há tempo, porém, em que o presente não é vivido sem a pujança de tempos idos. Como outrora foi, no princípio, com o fulgor e o encantamento de todas as histórias de amor. Mas o presente pode ser de novo esse haver sido, cheio de amor, cheio de esperança, cheio da potência do poder que faz querer tanto ser que não se pensa em não ser e apenas se pensa no futuro. É o mesmo ter futuro e ser, ter ser e ser futuro. E a vida é tão poderosa que até com o não ser namora. A morte é o tempo todo da eternidade e olha-nos sempre a partir desse futuro em que tudo pode perfeitamente continuar a ser. Sem nós por cá, porém. O presente pode ser olhado como uma outra infância, cheia de histórias. O “era uma vez” é agora e abre-se ao futuro, porque é do futuro que vem o possibilitante. É deixar-nos estar a ser assim. Este deixar-se ser assim não tem tempo nos relógios. Faz também ver, contrariamente ao tempo que queremos “fazer” e “matar”, que nem tudo se esvazia, mas enche-se como como a maré enchente de um rio. Daqui a nada, vou treinar, depois vou ter contigo, amanhã vou acordar na clareza da manhã como se houvesse um grande dia, como nos dias primordiais da infância: primeiro dia de aulas, primeira comunhão e fundamentalmente: primeiro dia de férias. Agora é tempo de acabar a crónica.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico Oriente hÍndia Mater [dropcap]E[/dropcap]nquanto os ingleses a pisavam com suas botas duras e os portugueses ficavam gratos por todos, incluindo eles próprios, se esqueceram dos restos dum velho domínio, a Europa de fins do século XVIII redescobria a Índia. O sânscrito e o indo-europeu, uma amálgama de Hinduísmo e de Budismo, o subcontinente como viveiro de religiões, madre de filosofias e de sistemas de misticismo, são ideias novas para a Europa de finais do século XVIII. Na Europa de Oitocentos, a Índia chegava para ser, em paralelo com a Grécia, um mais antigo e mais longínquo berço da Europa. Afinal, o país dos Árias era apenas a outra ponta de uma grande e comum civilização que se estendia até aos confins da Ibéria. Em 1950, um autor francês chamado Raymond Schwab interpreta todo este fenómeno, essencialmente anglo-francês, do século XIX como uma “Renaissance Orientale”, por dar origem a grande acervo de tradução e de recepção. É claro que esse processo fora já em boa parte realizado, talvez em proporções não menores, pelos missionários portugueses dos séculos XVI e XVII. Ora, apesar de conceder alguma relevância à missionação no processo, só isso chega para infirmar a tese de Schwab em abono de uma “Renascença Oriental” no termo do século XVIII enquanto novo humanismo, já que outras Renascenças orientais parecem ter sido possíveis. Ao tempo em que Friedrich Schlegel (1772-1829) compunha Sobre a Língua e a Sabedoria dos Índios (1808), aquelas fontes eclesiásticas já haviam mergulhado no ocaso das bibliotecas conventuais portuguesas, permitindo assim que a leitura parcial de Schwab se tornasse aceite. Este “novo humanismo” que o autor de La Renaissance Orientale ainda mais romanticamente leu nos autores românticos que se interessaram pelo Oriente consistiria num desejo de regresso ou de reunião com a sabedoria esquecida da outra metade do mundo. Em particular a Índia, espécie de súmula de Oriente e de Ocidente, repositório sempiterno no qual seria possível aceder à religião e à filosofia ainda em estado nascentes: ex oriente lux. Contudo, este louvor do Oriente como tendo sido grande no passado, e continuando a sê-lo apenas por referência a esse mesmo passado, certamente deshistoricizava a Índia, pondo-a como mero espelho no qual a Europa se mira para se entender na diferença. Coisas semelhantes foram ditas sobre a China, embora decerto nunca tenha ocorrido a cabeças românticas ou quejandas tomá-la por origem do Ocidente. A visão romântica do Oriente continua, portanto, a ser uma distorção a que alguns chamariam orientalista, mesmo se motivada por respeito ou até veneração. Já perto do final do século da imprensa e do progresso, nas várias tentativas de compor uma epopeia moral da Humanidade como a Lenda dos Séculos de Vítor Hugo ou a Visão dos Tempos de Teófilo Braga, a Índia foi ainda representada pelo poema dramático europeu como correspondendo a um estágio ou fase primitiva da Humanidade, ainda que responsável pela criação do sentimento religioso, no âmbito dessas várias tentativas de formular em verso complicadas sínteses da História e do pensamento. Assim, a Índia é para Teófilo um “leito de morbidez e graça” (1895, p. 148), e o cerne das “idades teocráticas” da História, num determinismo tipicamente oitocentista. É contra esta linha de representação ainda orientalista da Índia, que se prolonga pelo século XX adentro, que o goês seareiro Adeodato Barreto escreve em 1936 Civilização Hindu, em tempos a única obra que o leitor português dispunha para se informar sobre cultura indiana. Ainda que incomparavelmente mais informado, além de constituir a voz de um natural, é de novo a India Mater de matriz romântica que reside lá no fundo, sobretudo na idealização de uma Índia pacificamente civilizadora, tanto que a própria Revolução Francesa devém, para Adeodato, um exemplo de uma atitude que já tinha sido antecipada por um velho rei budista: “Eis uma verdade que as nações ocidentais não assimilaram ainda. O Dharma-raja de Açoka, reino da Justiça e do Amor, foi recordado à Humanidade pela Revolução Francesa. Mas constitui, infelizmente, ainda hoje, um ideal a alcançar!”.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hO buraco da agulha [dropcap]J[/dropcap]á reconheceram o camelo, no buraco da agulha? É o Trump a esforçar-se, a encolher a papada, a barriga, a apertar o espartilho, a submeter-se a regimes alimentares (menos dois hamburgers ao dia) para conseguir passar a prova da agulha. A cabeça já passou para o outro lado, já concedeu na transição, faltam-lhe os ombros. O coração, neste caso, admitem alguns, passará depois dos pés. Também me acontece ser renitente às transições. Porque havia o foção Trump de passar tranquilamente a bola ao democrata, que o derrotou? E porque continua tão magro, dois mil anos depois, o buraco da agulha? Imaginemos que ao titã Atlas – habituado, segundo o mito, a estar no topo da montanha, em Marrocos, a carregar com o mundo às costas e a separar o céu e a terra -, lhe dizem, Rapaz, sem deixares de carregar com o mundo às costas tens de passar agora por este buraco de agulha, mas, atenção, não se desprenda uma laranja da sua árvore no transbordo. É uma acrobacia excessiva. Uma vez, na ginástica, eu estava quase a manter-me em Cristo, nas argolas, mas olhando em frente, para a miúda gira que treinava rodas na trave vi que lhe saiam uns pêlos púbicos do maillot e foi o suficiente para me desconcentrar, nunca mais estive tão perto de fazer o Cristo. E, reparem, a pressão sobre os ombros, sobre os músculos dos braços, nesse particular exercício nas argolas é similar à pressão gigantesca dos céus sobre Atlas, eu sei do que falo. Bom, mas Trump, o melhor de todos em tudo, há-de passar pelo buraco da agulha, só não esperem que dele escorra. Ainda por cima, contaram-me, tem um braço ocupado a comer romãs, esse fruto que misteriosamente é associado ao Inferno. Embora as romãs sejam também um símbolo do amor e da fecundidade e tenha a romãzeira sido consagrada à deusa Afrodite, dado acreditar-se nos seus poderes afrodisíacos. A esperança do Trump é que a Melania dê por isso, pelas nódoas de romã na sua camisa Dior. O Trump ainda espera pôr três ovinhos nela. É muito trabalho para um homem só, mesmo que presidente, segurar o mundo nos costados, comer romãs com uma mão, pôr ovinhos na Melania, jogar uma última partidinha de golfe e passar com destreza pelo buraco de uma agulha – tudo ao mesmo tempo, sem que um pomo caia da árvore e se desperdice. Há que ser pacientes. E todavia atormentam-no todos os botões que não premiu, os códigos que não pôde activar, os mísseis nucleares que não desferiu, os ditadores a quem não pôde estreitar num abraço, a resistência da China, o carolo que não deu ao primeiro-ministro Trudeau por este lhe catrapiscar a miúda, o muro por acabar – apesar dos apóstolos da desgraça dizerem agora que o muro perturbou o eco-sistema e criou condições para a desertificação da zona. Muita tormenta para quem o destino incumbe de realizar o impossível e de passar pelo buraco da agulha. E a dúvida fere-o: leva consigo uma Bíblia ou não? Ou escreve ele um Evangelho? Cabelo tem ainda para dar e vender (apesar das más-línguas), como o Sansão, e a bem dizer nunca encontrou a sua Dalila, portanto a esperança de ser reeleito em 2024 está intacta – e garantida fica a coisa se for o único camelo da história do mundo a ter passado pelo buraco da agulha. Ficarão assim demonstrados os seus poderes. Porque, no fundo, adivinha que as eleições se perderam quando os seus assessores não o deixaram sair do hospital vestido de Super-Homem. Era uma ideia tão boa. Desta vez, apesar dos tribunais não terem acreditado na sua palavra, contra a crença de 52% dos americanos numa fraude eleitoral, tudo parece conjugar-se. Não o querem como presidente? Passará pelo buraco da agulha. É canja, uma mera questão de tempo. Não queiram é apressá-lo, nem que sorria à morte. Bendita a hora em que lhe contaram do tal rei Sebastião de Portugal e da profecia de voltar num dia de nevoeiro. E o nevoeiro não se dissipa desde que a vacina do Covid vai que vem e não chega. Porque o George Soros, aliado aos laboratórios de todo o mundo, conspirou para o tramar. Contudo, mesmo o nevoeiro ser-lhe-á favorável, e tudo tornará ao seu lugar quando ele transpirar, por inteiro, do outro lado da agulha; envolto na auréola de ter sido o único a passar pelo buraco da agulha. Nem que para isso leve quatro anos – os prodígios demoram. Em 1999, o partido nacionalista hindu utilizou a epopeia do Mahabharata para a sua campanha eleitoral. Nessa altura, toda a Índia assistia à série do Mahabharata produzida pelos estúdios de Bombaim. E o presidente do partido nacionalista passeou por todo o norte da Índia disfarçado do legendário herói Arjuna, num carro adornado de grinaldas. E assim ganhou as eleições. A Trump negaram-lhe a fatiota de Clark Kent. Como é um homem de acção: resolveu passar pelo buraco da agulha. Tolos os que acham que ele se submeteu à provação da parábola para passar a bola ao Joe Dorminhoco Biden, tendo já feito passar a sua cabeça muito oleada pelo buraco da agulha, desenganem-se. O que ele quer demostrar é a sua adequação quântica a todas as agulhas e produzir o Milagre que lhe capitalizará os créditos para 2024. Depois, de novo presidente, finalmente irá a Marte e há-de implantar aí o “Hotel Trump – Miúdas em Barda”. Será? Ou será como aquele homem que dormia com os seus braços e a quem um dia lhos amputaram, tenfo ficado desperto para sempre? Tenhamos fé! Trump, amigo, o povo está contigo!
Luís Carmelo Artes, Letras e Ideias hElogio da embriaguez [dropcap]N[/dropcap]ietzsche nasceu em 1844, um ano depois da morte de Holderlin. A sucessão pode parecer inócua mas não o é, pois 44 anos depois – os números têm por vezes o seu quê de mágico – a penúltima obra do autor a ser impressa, ‘O Crepúsculo dos Ídolos’ (1888), destruiu com alguma ferocidade o que restava do mito da inspiração que, de uma maneira ou de outra, chegou até aos nossos dias com aquela patine e rasgo próprios das estações de caminho de ferro abandonadas. Timothy Clark, autor de um livro que há uns anos me marcou, ‘The Theory of Inspiration’ (1997), referiu-se ao mito de Holderlin como o “de um jovem poeta destituído de si e do mundo, dolorosamente apaixonado e angustiado e que perdia literalmente a cabeça por causa dos contactos imediatos com a linguagem dos deuses.”. Nos antípodas destes relâmpagos de incandescência platónica, Nietzsche defendeu neste seu livro que, “para que haja arte” e “para que haja alguma acção e contemplação estéticas, torna-se indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez”. Esta embriaguez não é uma metáfora. Quando muito é um género que se divide em várias espécies. Lendo as passagens 8 e 9 do capítulo “Incursões de um intempestivo”, poderíamos dividir a embriaguez em quatro tipos (as designações são minhas): a vital, a extrema, a estimulada e a arrojada. a) A embriaguez vital corresponde à excitação sexual (a mais antiga e originária de todas), mas também à embriaguez resultante de certos influxos meteorológicos, como por exemplo a “embriaguez primaveril”. Juntemos a estas doses luminosas a embriaguez que se segue a todos os “grandes apetites” e “afectos fortes”. b) A embriaguez extrema diz respeito a todo o “movimento” que inclua “festa”, “rivalidade”, “feito temerário” ou “vitória”, mas também a embriaguez que resulte da “crueldade” e da “destruição”. c) A embriaguez estimulada advém, por sua vez, do “influxo dos narcóticos”. Das drogas ao álcool vale tudo nesta secção que sorri a muitos e bons poetas de todas as eras ‘in saecula saeculorum’. d) Por fim a embriaguez arrojada é a “embriaguez de uma vontade sobrecarregada e dilatada.”, ou seja, talvez a única que brota de dentro para fora como se cada ser humano fosse a nascente do poderoso Ganges. Depois desta categorização, Nietzsche explica a razão de ser da embriaguez enquanto condição da criação artística, dividindo o argumento em três passos. O primeiro prende-se com a excitação (“A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: antes disto não acontece arte alguma.”), o segundo prende-se com a procura de um sentimento de plenitude e sobretudo com a intensificação das forças; por fim o terceiro passo – e o mais importante de todos – é o que mistura no limite o cosmomorfismo com o antropomorfismo: “deste sentimento fazemos partícipes as coisas, contragemo-las a que participem de nós, violentamo-las, — idealizar é o nome que se dá a esse processo”. Neste seu curiosíssimo diagnóstico, Nietzsche refere ainda que o embriagado apolíneo mantém excitado sobretudo o olhar, enquanto o embriagado dionisíaco, ao invés, intensifica e excita todo o sistema emotivo. Um e outro irão agir e entregar-se-ão à metamorfose que os fará ser sempre um outro, ou então o próprio mas com capacidade para redesenhar as coisas do mundo de um modo ilimitado. É evidente que, depois de ter aqui colocado a par a patologia inspirativa e a etiologia da embriaguez, só me apetece regressar a Al berto com quem, infelizmente, apenas falei por uma única vez. Neste trecho, a teoria de Nietzsche parece ganhar todo o seu fogo: “Mal começo a escrever sou eu que decido do caos e da ordem do mundo. Nada existe fora de mim, nem se entrechocam corpos etéreos, nem flutuam frutos minerais sobre o deserto da alma. A paixão extraviou-se. Não há contacto entre a realidade e aquilo que escrevo neste momento. Há muito que deixei de sentir, de ver, de estar, por isso mesmo escrevo”*. Este ‘deixar de ser’ em Al berto funciona, na realidade, como um lugar já ‘depois da embriaguez’ que, no extravio da sua paixão, acaba também por parodiar a respiração inspirada. Ficamos KO, desapegados a um canto do ringue, sem teorias para coser os brocados que ainda restam. Diria que é o melhor estado de coisas que existe na vida. Funciona como se fosse um tempo ainda sem começo. É nesse oásis desprovido de deserto e de miragens que tudo afinal se inicia ou reinicia. Todos os dias. Holderlin de porcelana a lançar o disco e Nietzsche também de porcelana a lançar o dardo. E eu a vê-los a tragar uma IPA (Indian Pale Ale de apreciável amargor e sem ídolos) e a contemplar o movimento livre dos patos que voam entre o Jardim da Estrela e os baixios húmidos da Pampulha. *Al berto, O Medo, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, pg. 26.
Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e Ideias hA cidade não recolhe [dropcap]S[/dropcap]im, há qualquer coisa nestes dias de céu azul-lisboa. Sei que esta afirmação é um lugar comum mas não só gosto de lugares comuns como acreditem: este é um belo lugar para habitar. A força deste azul, nesta manhã de saída precária em que vos escrevo, parece contrariar tudo: o estado do mundo, da humanidade, de mim. Torna-se difícil ser melancólico sob este céu e devagar há uma espécie de optimismo discreto que vai entrando pelo corpo e que, se não tivermos cuidado, pode dominar-nos mais depressa do que o vírus. Mas por um momento acolho essa visita e resolvo olhar em volta. Muita gente que apressa alegremente os seus afazeres antes que soe a hora do recolher obrigatório. Passeios, cafés, mercearias, a rua viva como se se tratasse de um dia de festa, como se o Dezembro que se aproxima fosse igual aos Dezembros de há pouco. Na zona onde estou, típica de Lisboa, pouco português se ouve. Há brunches, take away, latte. Mesmo o café-restaurante onde me sento – dos mais antigos da rua – não escapa aos cartazes que prometem “croque-monsieurs” e “croque-madame”, para além de “Les sandwiches typiques de jambon” e “boeuf”. Os estrangeiros que aqui passam são recém-lisboetas que transformaram o bairro. Sinto-me como um turista na minha cidade e por um momento, amigos, gosto disso. Se viver é sempre um acto de resistência, numa altura como esta ainda o é mais. A cidade pode estar sôfrega, ligada à máquina, bisonha; mas mantém a aparência, por vezes de forma desesperada, por vezes de forma natural e mais antiga. Na sua extraordinária vocação para a miscigenação, Lisboa aceita com suavidade e graça os contrastes dos seus habitantes e é daí que se lhe pode sentir o pulso. Lembrei-me disto quando, levado por um amigo, fui a um restaurante modesto na fronteira de Alfama. É um desses típicos estabelecimentos que não quer distracções para os seus comensais: a sua decoração consiste na ausência de decoração e o que conta é mesmo o que se come. Mas este lugar é especial: o seu guardião – o senhor Eduardo – é uma figura única, profundamente lisboeta mesmo que não tenha nascido aqui. Franzino, com pouco mais de 1,60 e um rosto que por vezes poderia lembrar Putin se o ditador soubesse sorrir, o senhor Eduardo não se inibe em partilhar a sua sabedoria com os clientes. A máscara sanitária que tem de utilizar realça o brilho dos seus olhos enquanto discorre sobre os mais variados assuntos. Que digo eu?, sobre todos os assuntos. E fá-lo num português imaculado, pausado. Por vezes inventa neologismos, que se apressa a explicar. Outras sugere teorias para o que quer que seja. Utiliza palavras pouco comuns em contextos agora comuns, como “remição” a propósito do recolher obrigatório e no sentido de nos resgatarmos a nós próprios. Num país onde abundam os tudólogos, o senhor Eduardo, no seu conhecimento imaginativo e renascentista, é um alívio e um prazer. Por causa dele jurei voltar ao pequeno restaurante. Porque gosto de ver a vida viver, gosto de pertencer onde quero pertencer.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e Ideias hNocauteado Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 24 Outubro [dropcap]A[/dropcap]credito sem verificar no que me diz em dedicatória o seu director, José Carlos Marques: a «DiVersos» é a única revista de poesia a lançar-se aos nossos olhos, sem interrupção, há mais de 24 anos. Cada edição sabe-me a água fresca, no seu modo simples de, alheada aos modismos, recolher vozes das mais díspares geografias, em estilos diversos, tratando temas que vão da padaria aos números, e que não se ficam pela contemporaneidade. No número 29, a páginas 113, na versão brasileira de Matheus Peleteiro e Edivaldo Ferreira, mora poema de Niels Hav (Dinamarca, 1949) que ecoou nesta minha idade média: «Incapaz de achar uma resposta». Começa por, encontrando-se «sozinho na luz cintilante/ com a simples verdade», seguir com toada avaliadora. «Eu devia ter feito tudo diferente,/ isso é fácil de perceber./ Geralmente eu estava nocauteado,/ preocupado com as tarefas mais triviais,/ preso em preocupações banais sobre dinheiro/ ou me sentindo exaltado por apenas existir.» Enumera depois o seu gasto do tempo com insignificâncias, as do quotidiano. Até ao regresso à luz inicial. «Muitas vezes desconsiderei fazer coisas mais úteis/ a fim de reflectir sobre o mistério,/ na esperança de captar um pensamento/ ou a articulação adequada num devaneio.// Era comigo mesmo que estava em guerra?/ Olhar a verdade nos olhos/ é tão insuportável quanto encarar/ o sol. A verdadeira insanidade/ parece normal.» Horta Seca, Lisboa, quarta, 4 Novembro Soubera eu sonhar e teria construído em imagens profusas e barrocas uma casa, que ainda assim haveria de ser modesta e instável, em constante mutação, azulejo ou parede trasnfigurado ecrã, sem sombra de linhas rectas. Portanto, organismo respirador, com colunas de casca e seiva e modos têxteis de acolher os corpos. E as ideias. Certo salão, à entrada do qual se pintaria «Inferno», palavra que também se ouviria sussurrado nem sei de onde nem por quem, ficaria reservado para as intenções, essas aves-projecto que vislumbro agora imóveis em pleno ar. Às vezes espreito da porta, sem ânimo para transpôr o umbral, e temo muito tocar-lhes, o que conseguiria com facilidade, pois não sei se voariam como todos anseiam e eu desejo ou se se quebrariam logo ali em milhares de fragmentos. Por inabilidade minha, perderam a qualidade do movimento e são, vistas daqui e agora, âncoras no céu. Ponho-me a contá-las pelos dedos e logo me transfiguro em granito e peso, obstáculo irredutível onde me fecho. Não sei se os conseguirei recuperar todos, se passarão a detalhe pintado em trompe l’oeil, a fingir paisagem. Arrisco ainda quebrar o fio frágil que me liga ao outro que aguarda em ânsias. Soubera eu sonhar e estaria, como vou estando, a testar a elasticidade de outro ramo da mesma casa-árvore colorindo folha atrás de folha, que depois planto na linha que me sustenta em dificuldade à espera que pegue. Manda a botânica que dali nascesse, em vez de enxertada, mas não funciona assina na natureza do sonho. Sem me livrar do medo, insisto em atirar bumerangues, vários e ao mesmo tempo, de assustadoras dimensões, recolhendo ao mesmo tempo e em malabarismos de muitas mãos incontáveis possibilidades de formatos múltiplos. As folhas rodopiam com os ventos passantes soltando cores, de dia como de noite. A casa suspira, sugerindo que se alimenta tão só de pensamento e de palavra. Mas na cave, onde laboraram as mais sinistras preocupações, reina enorme confusão de silêncios sepulcrais e bússolas partidas. Sento-me e ajuízo se não deveria acordar. Estivera eu a dormir. Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 8 Novembro Telegrama final, por enquanto. Ponto. Sabia do teu cansaço. Não fui a tempo de continuar aquela conversa sob as arcadas de Alvalade que durou até pintares a noite do teu habitual. Todos os teus céus eram negros, mesmo quando tinham cores. A tragédia era o cenário certo para convocar os corpos compósitos de restos, ruínas de carne e sangue, que misturavam cada plano oferecendo-lhes equilíbrio e consistência. Levaste à cena as explicações de como nos erguermos do lodo para ver ao longe. Ninguém homenageou melhor a realidade (ilustração na página). Ponto. Soube agora da tua morte, à beira dos números redondos, Cruzeiro Seixas. Convém rir da cabalística com os dentes todos. Mas tudo vai piorar. Pouco a pouco as formas deixarão de saber como acasalar. Os olhos perder-se-ão cegos no vazio. As mãos inchadas do tanto por escrever vão usar inadvertidamente os aparos para furar as nuvens e soltar apenas o sopro da tristeza. Os braços da liberdade perderão a força com que seguravam as chaves. As chaves, sempre elas irão gritar bem alto a sua eterna orfandade. Ponto. Dizem-te o último, mas desconfio que foste dos primeiros. Os que conseguem ser ao acabar levam consigo o âmbar da singularidade. Mas deixam sinais. Ponto. Alecrim, Lisboa, quinta, 19 Novembro Encontrando-me a correr atrás de uma das tais possibilidades com prazo de validade, passo mais tempo no meio de livros que o venceram, ao tempo. Amiúde queima-me as mãos uma qualquer preciosidade radioactiva por esta ou aquela razão: os modos de ser objecto, o fogo das gravuras, a raridade, a força de um fragmento, o pedaço de papel esquecido pelo leitor. Hoje, chegou inesperadamente à Livraria Campos Trindade por um daqueles acidentes do afecto, «A Morte na Raiz», de Bernardo Santareno, de 1954, com dedicatória. Deliciámo-nos com ligeireza no comentário ao volume de generoso formato, imaginámos razões para a interrupção na leitura, deixadas virgens tantas páginas, ou na estranha gralha que trocou em título o último pelo primeiro amigo. As datas andam desbotadas pela insanidade e só no dia seguinte o Bernardo [Trindade] reparou que naquele exacto dia o autor faria 100 anos. Que muda uma coincidência? Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 21 Novembro Não sei se deram por isso, que não lhe encontro tanta diferença, mas o Público rearrumou-se. Deliciosas têm sido as reacções à mudança de lugar do Bartoon, do mano Luís [Afonso], da última página para a vizinhança das páginas de opinião no miolo. O provedor foi chamado à prosa e suscitou as explicações do director: que foi ali que nasceu, que «a visão do país e do mundo» tem mais a ver com opinião do que com a ludicidade do fecho, afinal início para tantos. Estranho que não se perceba a diferença entre cartoon e tira cómica, mas arrume-se na gaveta da desatenção crónica. Sento-me com prazer a saborear a relevância que a pequena tira tem na identidade do jornal. Ainda vai havendo leitores.
Michel Reis Artes, Letras e Ideias hO mais popular concerto para violino [dropcap]O[/dropcap] compositor alemão Max Christian Friedrich Bruch, cujo centenário da morte se assinalou no passado dia 2 de Outubro, nasceu em 1838 em Colónia, filho de Wilhelmine Almenräder, uma cantora, e de August Carl Friedrich Bruch, um advogado e mais tarde oficial da polícia de Colónia. Bruch recebeu uma formação musical precoce com o compositor e pianista Ferdinand Hiller, a quem Robert Schumann dedicou o seu famoso Concerto para Piano e Orquestra em Lá menor. O compositor boémio e virtuoso do piano Ignaz Moscheles também reconheceu a aptidão do jovem Bruch, que aos nove anos escreveu a sua primeira composição, uma canção para o aniversário da sua mãe. A partir de então, a música passou a ser a sua paixão e os seus estudos foram entusiasticamente apoiados pelos seus pais. Escreveu muitas obras iniciais menores, incluindo motetes, configurações de salmos, peças para piano, sonatas para violino, um quarteto de cordas e até obras orquestrais, e o prelúdio de uma ópera, Scherz, List und Rache. Poucas dessas primeiras obras sobreviveram, e o paradeiro da maioria das suas composições sobreviventes é desconhecido. Bruch teve uma longa carreira como professor, regente e compositor, movendo-se entre vários postos musicais na Alemanha: Mannheim (1862-1864), Koblenz (1865-1867), Sondershausen (1867-1870), Berlim (1870-1872) e Bona, onde residiu de 1873 a 1878, trabalhando como professor particular. No auge da sua carreira, passou três temporadas como regente da Liverpool Philharmonic Society (1880-83), em Londres. Ensinou composição na Berlin Hochschule für Musik de 1890 até à sua reforma em 1910. Bruch casou-se com Clara Tuczek, uma cantora que tinha conhecido numa digressão a Berlim em 1881. A sua filha, Margaretha, nasceu em Liverpool em 1882. Alunos de destaque incluíram a pianista, compositora e escritora alemã Clara Mathilda Faisst (1872-1948). As obras complexas e bem estruturadas de Bruch na tradição musical romântica alemã colocaram-no no campo do classicismo romântico exemplificado por Johannes Brahms, ao invés da “Nova Música” de Franz Liszt e Richard Wagner. Na sua época, era conhecido principalmente como um compositor coral e, para seu desgosto, muitas vezes era ofuscado pelo seu amigo Brahms, que era mais popular e amplamente considerado. Max Bruch encarnou absolutamente o período Romântico da música clássica na sua obra. Cada uma de suas ideias musicais é como uma definição de dicionário daquilo que significava ser um compositor romântico – extraordinário, na verdade, dado que viveu até a idade notavelmente madura de oitenta e dois anos e ainda compunha música ao lado de compositores como Schoenberg e Bartók. Hoje em dia, como durante a vida de Max Bruch, o seu Concerto para Violino e Orquestra nº 1 em Sol menor, op. 26 é um dos concertos para violino românticos mais populares e o mais popular do repertório alemão. Nesta obra, Bruch usa várias técnicas do Concerto para Violino em Mi menor de Felix Mendelssohn, incluindo a ligação dos andamentos, bem como a omissão da exposição orquestral de abertura clássica e outros dispositivos estruturais formais conservadores de concertos anteriores. Apesar dessas alterações ao estilo romântico convencional, Bruch foi frequentemente considerado um compositor conservador. O Concerto foi composto entre 1864 e 1866. A primeira versão foi interpretada pelo violinista Otto von Königslöw em Coblenz, no dia 24 de Abril de 1866, sob a direcção do próprio Bruch. A versão final, para a qual Bruch obteve a ajuda do famoso violinista Joseph Joachim, a quem acabou por dedicar a obra, foi estreada por este último no dia 5 de Janeiro de 1868, em Bremen, sob a batuta de Karl Reinthaler. O Concerto é a peça mais conhecida de Bruch e a sua popularidade eclipsou outras obras do compositor, os seus outros concertos para violino e a sua Fantasia Escocesa. O primeiro andamento é incomum por ser um Vorspiel, um prelúdio do segundo andamento e está directamente ligado a ele. A peça começa lentamente, com a melodia primeiro tomada pelas flautas, tornando-se então o violino solo audível com uma curta cadência. Isso repete-se, servindo como uma introdução à parte principal do andamento, que contém um primeiro tema forte e um segundo tema muito melódico e geralmente mais lento. O andamento termina como começou, com as duas cadências curtas mais virtuosísticas do que antes, e o tutti final da orquestra flui para o segundo andamento, ligado por uma única nota grave dos primeiros violinos. O segundo andamento, Adagio, é frequentemente admirado pela sua melodia e geralmente é considerado o coração do concerto. Os temas, apresentados pelo violino, são sublinhados por uma parte da orquestra em constante movimento, mantendo o andamento vivo e ajudando-o a fluir de uma parte para a seguinte. O terceiro andamento, Finale: Allegro energico, abre com uma introdução orquestral intensa, porém tranquila, que cede à declaração do solista do tema energético brilhantes em cordas duplas. É muito parecido com uma dança que se move a um ritmo confortavelmente rápido e enérgico. O segundo tema é um belo exemplo de lirismo romântico, uma melodia mais lenta que interrompe o andamento várias vezes, antes do tema da dança retornar com os seus fogos de artifício. A peça termina com um grande accelerando, levando a um final ardente que fica mais agudo à medida que fica mais rápido e mais ruidoso e, eventualmente, termina com dois acordes curtos, mas grandiosos. Sugestão de audição: Max Bruch: Violin Concerto no. 1 in G minor, Op. 26 Kyung-Wha Chung, violin, London Philharmonic Orchestra, Klaus Tennstedt – EMI Classics, 1990
Amélia Vieira Artes, Letras e Ideias hCinzas Quem é este? Ele chama-se Devorador de Milhões, quando está na colina de Unet. se alguém o percorre, que se acautele para não cair sobre as facas! Ele chama-se o Violento, é o guarda da porta do Ocidente. in Livro dos Mortos do Antigo Egipto [dropcap]E[/dropcap] a morte terá por fim o seu domínio sobrepondo-se ao abandono a que tentámos reduzi-la. Um tempo que a disfarçou em emaranhados silêncios, encruzilhadas que a subestimaram com os depósitos excrementícios da novela de má qualidade das vidas, que ela, mesmo empilhada, incinerada, esquecida e escondida, é a mais precisa das fontes, que a seu lado, toda a expansão se reduz a uma gigantesca avaria mecânica. Mas sim, a morte é sempre triste, a condição é trágica, a vida demasiado curta para contemplar tanto definitivo, mas impressionantemente há coisas piores, como o não saber lidar com ela por não haver vida que se consinta a ser vivida, só existida, assistida… estamos em viagem de cruzeiro esquecendo por completo a Barca. São os tempos em que as crianças nunca foram a um enterro e queremos delas sempre outras coisas e mais, por isso as doutrinamos ao ponto da sujeição, da utilização, em aglomerados de insanidade sempre com temor injectado nas veias para o caso de perguntarem algum dia por aquelas coisas essenciais. Uma sociedade de argumentistas saberá a um tempo ponderar a propósito daquilo que a diminui face ao corpo vital das provas, por isso se reveste de uma higiene que a imortalize e de uma segurança que lhe permita um certo elo de perenidade. E eis-nos no caminho mais temível que é o do sorvedor das cinzas: quando nos tiram os corpos para as incenerações num lustral nazismo sem mácula que nos faz acreditar até em goelas necromânticas que se escondem mesmo por detrás das câmaras de extinção. Esperamos acabrunhados para que tudo esteja reduzido a pó, e que a natureza emocional de cada um impluda para níveis de relativismo programado. Tudo isto é tido como uma prática normal e desejável para a não expansão de corpos na Terra por decomposição em profundida, ela, que continua cada vez mais pequena para um enxame de gentes cuja felicidade as espera logo ali ao virar da esquina. E as pobres pessoas bem-intencionadas lá andam a acompanhar o vazio ardente de um momento que se evapora mas também lhes inspira alguns súbitos galanteios à vida. Toda a litania fúnebre se desfaz, e as carpideiras, esses abençoados seres que evocavam o tamanho da nossa dor, tão esquecidas foram que se inverteram os cânticos. A morte não gosta disto, e como tal, foi precipitando a nossa demanda, temos só números e poucas vozes por parte daqueles por ela visitados, o que faz ultrapassar em muito o que é expectável. – Sem querer entrámos no domínio da Besta com a plumagem de lindos Cordeiros, amigos de Lobos, em marcha para a liquidação total. Das cinzas, alguns já fizeram anéis para continuarem com os seus defuntos entre os dedos, e algumas ainda foram espalhadas pelas reservas dos vivos, debaixo das árvores, ou em torrões de açúcar embalsamados com lúgubres indicações por cima, isto dá-se naquele reino da desflorestação em série e no domínio anatómico da sexualidade intrusiva, e nesse fim de mundo de grande superficialidade, abrir uma cova tornou-se um esforço de tal ordem gigantesco que exige argumentos capazes de revirar as tripas do centro planetário. A diferença face ao nazismo primeiro é que não há aproveitamento comercial de outro material orgânico, muito embora o negócio da queima seja bastante lucrativo: a pira funerária está lá para não permitir que se ocupe espaço na terra- a terra- esse elemento abrasivo e lento que ao invés de nos ceder sempre nos resiste… terra, excrementícia anatomia cinzelada pelas nossas cinzas que até fará brilhar os caminhos vulcânicos. O plano da organização da morte dita sempre a composição das leis sociais, ela acompanha o fluxo das circunstâncias, como o tempo da implantação dos cemitérios públicos a grande medida social das Luzes, democratizando-a e banindo pragas, hoje, é-nos filtrada pela desmesura negacionista e pela falta de um período chamado luto que nada mais é que a salutar época de saber integrar um processo doloroso. Ela surge-nos em muitos contextos pela culpa, relembrando-nos a todo o instante que o mundo está repleto de assassinos involuntários, ou não, mas nunca afirmando que se morreu. Falece, fenece … É! Para o que não se pode dizer todo o eufemismo serve até aos seus sinónimos. Por culpa ou não, nós sempre morremos, pois que somos mortais. Deve haver um culpado para tal condição?! Talvez… talvez não… e neste interregno construamos, isso sim, o direito a ter uma alma, intacta, firme, em altos voos, enquanto o corpo carregado de desamor se encaminhe para um espaço protector. Nesse invólucro habitou uma centelha imortal que não esquecerá a sua antiga casa, só que nesta habitação de poeiras corremos o risco de retrocesso até à primeira ovulação da Terra. Bom lembrar aquilo que nos define como espécie, a noção do mistério da morte, e que os primeiros altares do mundo foram todos em seu nome. Naquelas pedras erguia-se uma certa evolução de que hoje tanto nos orgulhamos. Por isso, a não podemos esconder. Só que Tu Subiste ao Céu Atravessaste as águas celestes, Estás associado às estrelas, e na Barca te aclamamos.
Paulo José Miranda Artes, Letras e Ideias hNunca vemos [dropcap]A[/dropcap]lfonso Guillermo Ibarra, nascido em San Sebastian em 1978, publicou um romance em 2013 que rapidamente se tornou um clássico: «Nunca Vemos». O livro começa com este diálogo: «Estraguei tudo, pá, disse ele. Mal me tinha sentado à sua frente e perguntava-me como é que ele poderia ter estragado tudo e o que era esse tudo? Por insegurança, continuou ele, enquanto entornava mais vinho no copo, por me fazer passar por quem não sou, ou exagerar partes minhas até ao caricato. E eu continuava a não entender aonde ele queria chegar com a conversa. Mas não demorou que me respondesse: porque a verdade é que queria aquela mulher como a mim mesmo, aliás, mais do que a mim mesmo. E eu continuava a não entender nada; como é que se podia estragar algo? Como é que alguém pode estragar algo se dois não querem estragar?» Assim, logo no início percebemos que se trata de um livro acerca da solidão. Da solidão dos encontros, isto é, da solidão que espoleta por existirem pessoas e elas nunca se entenderem, e da solidão maior, segundo um dos heróis do romance, Xavier, que é a de encontrar alguém que julgamos certo e não fazer nada por isso ou até fazer tudo para que isso não aconteça. Como brinde, o romance mostra-nos ainda a solidão de não nos fazermos compreender, mesmo àqueles que nos são mais próximos, amigos de longa data. Xavier leva todo o romance a falar – a um grande amigo – de um encontro que teve com uma mulher com quem viveu durante um mês, até que acabaram. É este amigo que nos conta a história. Xavier e Maitê acabaram, tendo ele a certeza de que ambos não deram o seu melhor «como se cada um de nós estivesse boicotando a felicidade». Durante o romance nunca ouvimos a mulher falar, nunca a conhecemos a não ser por palavras de Xavier. Percebemos que Xavier e o amigo, o narrador – Alfonso, o mesmo nome do escritor –, estão bebendo, e à medida que o romance avança Xavier vai ficando mais bêbedo e torna-se surpreendente como o final se liga ao que ele dizia no início, sem que no final o diga, mas mostre. No final, Alfonso entende perfeitamente o que pode ter acontecido a Xavier, que tentou explicar durante um romance inteiro sem se fazer compreender. Como em determinado momento se lê: «Não conseguimos dizer o que sentimos, nem o que pensamos. E quando estamos próximos de o fazer, muitas vezes dizemos precisamente o contrário, julgando que isso poderia parecer mal, de tão estranho nos parece. Porque tudo nos parece estranho quando é bom. Alfonso, sinto que estamos perdidos entre o que não conseguimos dizer e o que queremos dizer.» O livro pode ser lido como a génese de uma bebedeira, como a descrição alargada de uma dor de corno ou ainda como um elogio ao amor. Elogio no sentido em que o amor aparece no romance como aquilo que se almeja, embora não se alcance. Apesar de tudo é um elogio. Lê-se: «As palavras de Xavier levaram-me a pensar que o facto de ser tão difícil amar e ser amado mostra bem que se trata de um exercício que os humanos têm de praticar até ao fim; suspeito que os humanos nunca serão suficientemente bons no amor.» Um dos interesses do romance é o facto de Alfonso, o narrador, amigo de Xavier, que passa o romance a falar de terem dado cabo do amor – por vezes diz que foi ele, por vezes diz que foram os dois, por vezes diz que é do humano estragar as coisas –, é padre. E este padre vai reflectindo acerca do amor erótico através do relato do amigo. É como se de algum modo fosse um olhar estrangeiro, pois Alfonso nunca sentiu esse amor, embora tenha lido acerca dele em romances e ouvido os seus amigos de escola, antes do seminário, falarem. Assim, se de um lado temos alguém que, por experiência, julga que o amor está condenado a fracassar, de cada vez que se tenta, e mais fracassa quanto mais próximo parecemos estar dele, do outro lado temos alguém que, a despeito de não ter experiência e talvez por isso, vai fazendo tudo para salvar o amor dos fracassos humanos. Há momentos hilariantes nesse confronto. Como o caso em que Xavier conta «E depois eu não tenho nenhum talento em pedir desculpa ou em agradecer; dou as coisas por certas, como se fosse normal alguém me dar um abraço vindo do nada ou trazer-me uma garrafa de vinho da rua ou levar-me a jantar fora […]; e se me chamam a atenção, ou eu mesmo me dou conta de ter feito um gesto mal ou que deveria ter dito algo que não disse, não consigo dizer desculpa. Xavier, disse-lhe eu, o que tu tens é de treinar; começa por dizer várias vezes ao dia “obrigado” e “desculpa”, “obrigado”, “desculpa”, sempre que alguém falar contigo. Isto muito fez rir Xavier, o que por si só já foi um bem sem medida.» No fundo, embora em tom de brincadeira, o padre tem razão: tudo no humano é prática. Como ele diz um pouco mais à frente: «Embora a prática possa não ser suficiente para tudo, talvez não nos faça mal nenhum em insistir nela.» Infelizmente não vou ter tempo – e talvez não seja a pessoa indicada – para falar acerca da questão de estilo do romance. Mas, e como já devem ter visto, a escrita ocorre sem separação de voz, quer seja por aspas ou por travessões. Damo-nos conta de quem está a falar pela própria voz do narrador ou, melhor seria dizer, pelo contraste entre a voz de Xavier e a do narrador. A verdade, é que não nos damos conta desse artifício, ou pelo menos rapidamente esquecemos, tal é o ritmo de escrita que Alfonso Guillermo Ibarra nos impõe. Nas últimas páginas do livro, Xavier, já muito embriagado, começa por dizer ao amigo que não devia tê-lo convidado para isto, para desabafar, para tentar que ele o entendesse, que na verdade foi uma estupidez, visto que ele nunca sentiu o corpo de uma mulher, que não sabe o que isso pode fazer a um homem. Nas últimas páginas, vemos um homem diferente do que vimos no início e do que fomos vendo ao longo do romance e percebemos como as coisas podem dar errado. Quero deixar claro, contudo, que as coisas não darem certo não tem apenas a ver com o excesso de bebida de Xavier, embora possa ter sido por isso ou algumas vezes isso possa ter ajudado. As coisas não darem certo entre a maioria das pessoas tem apenas a ver com a frase que o narrador pensa, quando Xavier vai pela última vez a caminho da casa de banho: «Faz-se tudo… tudo não. Mas há pessoas que fazem o que se pode para que nada dê certo.» É como se fôssemos cegos, como se nunca víssemos o bem que nos acontece. Porque, como pensa Alfonso, «[…] só por cegueira posso entender que alguém deite tudo a perder.» Mas deita. Não é só da nossa natureza perder, deitar a perder também. Mas no fundo é como diz o padre: nunca vemos. Porque deitar a perder é uma forma de cegueira.
José Simões Morais Artes, Letras e Ideias hAntigas viagens marítimas [dropcap]O[/dropcap] Oceano Pacífico dá o mote aos próximos artigos, pois estão a comemorar-se os 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães. Mas para os europeus começarem a navegar no mais vasto dos oceanos, tiveram no Atlântico os espanhóis de o atravessar e procurar ao longo da costa americana uma passagem e os portugueses, usando os ventos e correntes, de conseguir entrar no Índico e pelo Estreito de Malaca chegar ao Pacífico. Este Oceano, se na parte Oriental era um Grande Mar, a Ocidente, sem essa dimensão de único, estava dividido em muitas ilhas e vários mares, navegados milénios atrás por polinésios e chineses. Fora atravessado da Ásia para a costa americana por volta do ano 2500 a.n.E., quando algumas embarcações se perderem no nevoeiro na batalha naval entre os exércitos do Imperador Amarelo (Huangdi) e dos rebeldes comandados por Chiyou, no período da reunião das tribos chinesas num único povo. No Pacífico Ocidental estão os mares do Sul e do Leste da China, o Mar Amarelo junto à península da Coreia e a Nordeste, o Mar do Japão, o de Okhotsk e o de Bering. A Sudoeste, o Mar de Banda e o das Celebes a banhar as Molucas, o Mar de Java, das Flores e de Timor a envolver o arquipélago da Indonésia. Mares navegados à muito por barcos chineses, como refere a História da dinastia Qin (221-206 a.n.E.), pois o Pacífico banha toda a orla marítima da China. Daí partiu durante a dinastia Han do Leste (25-220) uma armada comandada por Gan Ying que, chegando a um porto do Golfo Pérsico no ano de 97, demandou o caminho para o Mediterrâneo. Mas os partos dissuadiram-no, pois não queriam perder o controlo do negócio da seda com os Romanos. Cinquenta anos depois, faziam trato entre si no Sri Lanka. Já durante a dinastia Song, no século XI os chineses atravessavam directamente o Oceano Índico até África orientados pela agulha de marear, criada a partir da bússola, invenção também sua do século IV a.n.E.. A agulha de marear viajou para os países muçulmanos no século XII e daí para a Europa um século depois, quando aí apareceu o cadaste do leme, outro dos contributos chineses. Após as sete viagens do Almirante Zheng He, ocorridas entre 1405 e 1433, os chineses fecharam o ciclo marítimo, tendo navegado os seus juncos no Pacífico e Índico. Faltava o Atlântico, por onde então os portugueses se iniciavam: em 1418 João Gonçalves Zarco chegara a Porto Santo e Tristão Vaz Teixeira no ano seguinte à Madeira. Os portugueses em 1427 andavam já nos Açores, mas ainda não atingiam o Cabo Bojador. O Rei de Portugal D. João I faleceu em 1433 e na Índia, o Almirante chinês Zheng He morria no seu barco, o baochuan, em frente a Calecute, 65 anos antes de Vasco da Gama aí chegar. Fechava-se o primeiro ciclo da navegação marítima portuguesa, iniciado por o Rei D. Dinis quando fundou a Universidade, mandou plantar extensos pinhais de verde pinho e em 1317 contratou o genovês Manuel Pessanha (Pezagno) como Almirante mor para organizar uma frota de galés e formar marinheiros. Em 1434, Gil Eanes dobrava o Cabo Bojador numa barca de 30 toneladas, com remos e apenas uma vela triangular, sem qualquer coberta. A caravela usada em 1436, com menos de 20 metros era um barquinho comparado com o baochuan, de cento e vinte metros de comprimento e cinquenta de largura. A chegada de Dinis Dias em 1445 a Cabo Verde permitiu encontrar o vento alísio de Sueste, importante para fugir à vasta zona das calmarias equatoriais junto à costa ocidental africana e fazendo no Atlântico a volta para Oeste, atingir o Sul de África. Daí o evoluir da caravela para um porte de 50 a 80 toneladas, e de dois ou três mastros com vela latina a permitir navegar contra o vento, o bolinar, legado dos polinésios com dois mil anos. VIAJANTES NO PACÍFICO Zheng He elegera como portos estratégicos, Malaca, Ormuz e Adém, os mesmos que cem anos mais tarde Afonso de Albuquerque planeou para controlar o comércio no Índico. Os mares chineses e do Sudeste Asiático foram visitados por o mercador veneziano Marco Polo (1254-1324), que passou dezassete anos na China e em 1292 embarcou no porto de Quanzhou (em Fujian) a escoltar, ao serviço do Imperador Kublai Khan (1260-79) da dinastia mongol Yuan, uma princesa chinesa que ia casar na Pérsia. Após uma viagem de vinte e quatro anos, Marco Polo regressou a Veneza em 1295. No século seguinte, o viajante berbere de Tanger, Mohamed Bid Abdullah Ibn Batoutha (1304-77), mais conhecido por Ibn Battuta, entre 1325 e 1349 percorreu quase todo o mundo conhecido. Saíra de Tanger a 14 de Junho de 1325 e entre 1331 e 1332 viajou pelo Norte da costa oriental africana (Mogadíscio e Mombaça), visitando no ano seguinte a Índia. Estava na China em 1346, onde ficou um ano e no porto de Zaitun (Quanzhou, Fujian) refere ter visto três tipos de embarcações chinesas: os juncos de grande porte, que conseguiam transportar mais de mil pessoas, os zao de médio porte e aos mais pequenos chamou-lhes kakam. Os portugueses só chegariam em 1511 ao Pacífico e os espanhóis em 1513. Com uma ancestralidade nas viagens marítimas, os chineses legaram muitas das suas invenções náuticas aos muçulmanos do Mar Arábico, para onde Pêro da Covilhã foi enviado em 1487, afim de saber como aí se navegava e quais os principais portos de comércio. Andava já Bartolomeu Dias com três caravelas a caminho do Índico, para desfazer “as ideias de Ptolomeu, que concebia o Atlântico e o Índico como mares interiores e sem qualquer comunicação entre si”, segundo Luís de Albuquerque. Com o problema dos ventos alísios contrários de Sudeste ao descer a costa ocidental de África, Bartolomeu Dias chegava à confluência do Atlântico com o Índico e após dobrar o Cabo das Tormentas, no início de Fevereiro de 1488 atingiu o Rio do Infante, na costa Oriental africana. Regressou a Lisboa com a missão cumprida em Dezembro de 1488. Por outro lado, Pêro da Covilhã, com todas as informações registadas, entregava-as em 1490 no Cairo ao mercador José de Lamego, que logo as levou em carta ao Rei D. João II. Relatava, os portos das especiarias por ele visitados, as técnicas de navegação no Oceano Índico e as rotas dos barcos comerciais muçulmanos com quem seguiu até Sofala. Ligando a navegação de Pêro da Covilhã, do porto de Sofala à Índia, com a viagem de Bartolomeu Dias, faltava aos portugueses, na rota para a Índia, apenas navegar no Mar Arábico entre o Rio do Infante e Sofala. Confirmava-se, ao contornar a África poder-se chegar à Índia e haver passagem do Atlântico para o Índico; logo eram mares abertos, ao contrário do que em 150 Ptolomeu desenhara no seu mapa. No Atlântico restava explorar dos Açores para Ocidente, pois guardado em segredo ficara a chegada às Antilhas, sigilo quebrado num mapa feito em 1424 por genoveses ao serviço de D. João I, que logo despediu os que ainda trabalhavam para o Almirantado. Em 1484 Cristóvão Colon pretendia atingir a Índia navegando para Ocidente, mas só a 3 de Agosto de 1492 partiu em três pequenas e já maltratadas caravelas.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias Cartografias hDating the city [dropcap]N[/dropcap]a verdade o espaço de todos os dias sob o olhar do outro que invade o quarto. As roupas, como se delas se fizesse a clareza com que a vida flui em visibilidade no outro. O que somos do outro. As roupas. As peças desmembradas e amorfas num curto espaço de quinze minutos de pressa para sair como se de tudo isso dependesse o sentido da vida a revelar ao outro olhar e àquele olhar que se enviesa desconfiado e acutilante na indecisão ou no desafio a rasar o espelho, também ele falível. Os espelhos antigos são deformadores por excelência. Há que procurar a zona de clareza por oposição à zona de deformação. Das proporções. Mas para o corpo, esquecendo o rosto, passa discreta a deformação e o que sobra é a ideia geral. Sai. Detrás do espelho. Que já não é tempo de confundir a estética com o amor. A questão das roupas passa também pela evidência da cor. Como tudo. As roupas, como animais abandonados sem dono sobre a cama. Outras vezes sobre o chão sem tempo para mais esmero. Despir rápido ou lento, ritual. Às vezes de desejo. As roupas esvaziadas porque neste dia não servem nem se lhes reconhece alguém. Estranheza em cada peça descartada. Esta não. Não hoje. Não ontem mas sim num dia outro qualquer. A identificação. Ali sim, pareço ser. As que ficam coladas e ancoradas ao corpo até ao fim do dia. Provamos como se roupas e máscaras inteiramente desconhecidas. Esta roupa ontem servia e hoje não serve. Não se reconhece. E os sapatos fazem as pernas curtas onde ontem se dispunham generosos e repunham as proporções. O arquivador doméstico como se do seio familiar. Esta tia hoje não me responde, esta não me reconhece e esta outra é como se eu não a conhecesse. Não me conhecesse – digo – E assim. O tempo a escoar-se no limbo da roupa interior já ultrapassada como etapa. No provador. Doméstico. Revestido de um olhar como se do outro. Um curto momento de visita entalado entre o passado e o nada que antecederia o futuro indiferente. Entro e subo escadas entupidas de restos e poeiras e escuridão. Um primeiro andar adivinhado na entrada do prédio com pequenas montras esguias ao logo do átrio de entrada. As montras do que é mais acima adivinhando o tema íntimo da roupa a experimentar. Noutros tempos. Antes do pó e da derrocada de tudo. Materiais em desvario e fechaduras de exígua privacidade ou segurança, agora. Entra-se nos restos de um passado mais lento. De uma atenção mais cúmplice. Afinal falamos de roupa interior, a derradeira fronteira da intimidade. Se esquecermos a pele e tudo o mais de misterioso. Tudo devoluto, hoje. As noções e os espaços. Anúncios de colorido vintage. Um charme estilizado. Uma pose para o olhar do outro Para a sedução. Ali ao Chiado. A derrocada completa no interior prestes a requalificar. Um provador íntimo e recatado e dois espelhos de moldura metálica naquele ângulo específico para ver e ao mesmo tempo ver. Haveria um balcão de madeira nobre e quente com espaço para desvendar caixas de cartão baixas e quadrangulares, de onde se desnudavam gradações de rendas e tonalidades. Das mais finas às mais barrocas e das mais suaves às mais intensas. Em papel de seda. Com gestos delicados a acumulá-las umas sobre as outras em escadinha. Para escolher calmamente. Uma porta, um espaço silencioso, uma banqueta para sentar o corpo em exposição dupla. Roupa interior e um olhar de si e de outro. Como se as duas coisas pudessem ser simultâneas. E não alternadas. Ainda ali está o prédio. Na esquina como uma esquina teria sido cada corpo que ali se interrogou. Entre um olhar de si e um olhar exterior a si. A ver se ficava bem. No quase somente corpo, a pele fina de rendas delicadas. Era uma divisão, anteriormente assoalhada, talvez, pequena e aconchegante, um provador de espelhos posicionados como na vida, com um ângulo particular. Molduras em metal de perfil fino. O olhar não carece de moldura, já é. É em si suficientemente abrangente. Esse olhar do outro. Mesmo ali. Sento-me calmamente em roupa interior. Como se fosse. Outro tempo. Observo e relembro como se tivesse olhado com esse olhar de ali estar pousando sobre a banqueta e de olhar no espelho sobre um corpo em roupa interior. Interior é mais ainda para dentro mas não para além desse olhar no momento, sobre o olhar do outro. Visto-me, ponho a máscara, por cima da roupa interior. Essa fica. Como nos filmes. Quando é que alguém deixa de escolher, com essa duplicidade no olhar e dois espelhos em ângulo? Quando é que se abandona um sorriso secreto? Talvez voltando a Schopenhauer, e como sempre a propósito de uma outra coisa, revirar a frase sobre si própria a ver se serve. Como roupa interior. “Sentimos a dor mas não a sua ausência”. Quando deixa de existir a hipótese de ausência da dor, de intimidade? Esse nada. Que é desinteresse. Ou indiferença ou esquecimento ou abandono ou idade. Sento-me sentindo-me no provador, ante espelhos. Que fazer na ausência desse olhar? Que vem depois de antes. Quando ainda “todo o fruto delicioso amadurece lentamente”. Como a intimidade.
Sara F. Costa Artes, Letras e Ideias hRir para existir [dropcap]O[/dropcap] Arthur começou a rir-se aos três meses. Foi uma das suas primeiras formas de comunicação. Nessa altura, ainda não conseguia coordenar movimentos, não tinha força nas pernas, não percebia que tinha de fechar as mãos para agarrar coisas. Começava há pouco tempo a virar-se para olhar em direção às vozes que o rodeavam. O seu riso precoce derretia o coração dos seus cuidadores. Era quase interpretado como um sinal de gratidão perante o nosso esforço. O riso, perguntava-me, seria uma ferramenta genética de sobrevivência que fazia com que quem cuidava, tivesse mais prazer no processo, tivesse mais paciência? Um riso é uma forma de despontar ligações, é um sinal de paz. É das ferramentas mais eficazes que possuímos na nossa expressão corporal para criar empatia. Mas o riso é também a compreensão de que, em determinado contexto, algo não bate certo, é absurdo e por isso é engraçado. Para filósofos como Platão, Aristóteles, Hobbes ou Descartes, o riso é essencialmente uma forma de superioridade. Rimo-nos de situações ridículas porque nos sentimos superiores a elas. Rimo-nos de pessoas que consideramos inferiores. Por vezes, rimo-nos até dos nossos líderes políticos ou ícones populares porque o humor é também uma forma de colocar em causa todos os que possuem alguma forma de poder. Freud, por sua vez, dizia que rimos para nos libertarmos do stress. Uma anedota costuma começar com uma situação de tensão que depois se resolve: “O que acontecerá se o Pai Natal morrer?”, “– Ele não estará mais em trenós.” As nossas expectativas fomentam tensão – porque o Pai Natal pode eventualmente morrer – mas logo de seguida percebemos que a situação apresentada não é válida porque, reduzindo-se a uma piada, não há nada a temer. É nesse momento que, segundo Freud, libertamos tensão acumulada. Henri Bergson vai mais longe na sua interpretação da função do riso. Para este, o riso é uma forma de manter a sociedade funcional. Bergson declara que qualquer tipo de mecanização do ser humano é uma forma de ameaça à existência. Defende a durabilidade de um impulso vital baseado na fluidez das pessoas. Sem o humor, que coloca todas as formas de poder vigente em causa, não teríamos flexibilidade suficiente para questionar as narrativas vigentes. Para além disso, o humor absurdo, baseado em situações imaginárias extremadas, é também essencial para se compreender o que é estar à margem de qualquer contributo para o desenvolvimento social. Estes dois tipos de humor podem corrigir aquilo a que o filósofo chamou de “automatismo fácil dos hábitos adquiridos”, ou seja, seguir um hábito de forma automática, sem o questionar. Conduzir a existência através de tarefas que não requerem o pensamento, é mais característico das máquinas do que das pessoas. Por exemplo, quando alguém age sempre da mesma forma, ou repete sistematicamente as mesmas frases, é fácil imitar essa pessoa. Quando outra pessoa imita essa, vai procurar o riso na audiência que conhece a pessoa imitada. A pessoa, ao repetir-se, tornou-se mecânica e o instinto humano é o de corrigir esse aspeto mecânico do nosso comportamento. Neste caso, segundo Bergson, através do riso. Mas será essa a função do riso do meu bebé? Dificilmente ele se conseguirá sentir superior a algo. Muito menos poderá satirizar alguma figura do poder para a colocar em causa. No entanto, a teoria de Bergson pode ser aplicada a um bebé. O bebé consegue já reconhecer situações absurdas como caras estranhas e barulhos esquisitos. Também consegue libertar tensão através do riso quando eu finjo desaparecer atrás de um pano para logo reaparecer – afinal não desapareci, ainda estou ali e, tal como o problema criado pela possibilidade do Pai Natal morrer, a criança também se apercebe que eu não desapareci realmente. Um adulto que se aproxima muito do seu frágil corpo pode constituir uma ameaça – mas não quando ele percebe que ele só está muito próximo para lhe dar beijos na barriga ou fazer-lhe cócegas e, por isso, ele ri – libertando tensão. Quando ele vê a mãe demasiado séria, durante demasiado tempo, decide sorrir e isso faz-me sorrir também. Com esse sorriso, o bebé está já a demonstrar a sua existência neste mundo irremediavelmente integrada numa comunidade, está a dizer-me “mãe, não estejas tão séria a trabalhar ou a pensar em algo, não caias na repetição desses hábitos mecanizados. Sê humana. Sorri para mim”. Eu já suspeitava que o Arthur fosse um bebé erudito mas nunca pensei que andasse por aí a citar Bergson ainda sem falar! (Estão a ver o que eu fiz aqui?
António de Castro Caeiro Artes, Letras e Ideias h“Não vos inquieteis é a realidade que se engana” [dropcap]A[/dropcap] frase estava escrita nos muros da NOVA FCSH na primeira metade dos anos 80. Antes de lá ter estudado, fazia de autocarro a Av. de Berna. Não havia hipótese dos 15 aos 17 de saber que ia passar lá as décadas seguintes até hoje, como estudante, primeiro, e, agora, como docente. A frase prendia a atenção para quem era sensível à metafísica. Como é que a realidade se pode enganar. A realidade é a realidade. As pessoas é que se enganam. E, no entanto, aquela Avenida metamorfoseia-se ao longo do tempo: antes de ter ido para a Faculdade, durante o meu tempo de estudante – com várias épocas – e a partir de 1990, quando comecei a dar aulas. E durante estes últimos 30 anos foi sem dúvida diferente, sofreu várias transfigurações e metamorfoses. A própria frase tem sentidos diferentes. A realidade da Avenida é diferente e é a mesma, como a cidade de Lisboa e os seus bairros, como Portugal e a Europa. Todo o mundo se alterou. Ou terá sido a vida que muda? No GPS é no mesmo sítio. E, ainda assim, é completamente diferente. E o que engana? A aparência de ser o mesmo, quando muda? E como é possível mudar a matéria da realidade. O envolvimento perceptivo, a percepção com que percebemos o que se passa tem em si implicadas diferentes realidades. A avenida percorrida é diferente consoante o local para onde vamos. Depende de estados de espírito, do que sentimos, da atenção que prestamos às coisas ou não. Quando olho através da janela do autocarro para o muro sou eu no passado lá sentado quem vê. E quem olha através desse olhar de então agora aqui sentado a olhar para o ecrã? Só coincide no olhar exterior e nem isso. O que eu via através da janela em percepção é o que vejo na lembrança, mas a fase da vida é inteiramente diferente. Tudo mudou. Pessoas que não havia na minha vida, há agora e as que havia já não moram cá. A mudança não está atestada objectivamente ou então muito pouco. Para mim é sempre enigmático como por um lado há uma “substituição” do “valor” do passado pelo “valor” do presente, a que chamamos actualidade. Portanto a realidade é a actualidade do presente, presente que empurra continuamente para o passado a sua própria actualidade. Converte-a sempre em in-actualidade ou, pelo menos, assim percebemos a tendência da vida para o fazer. Por outro, parece que é a eficácia do passado que se sobrepõe à ineficácia do presente. Pensemos no impacto das primeiras impressões nas nossas vidas, sobretudo na “importância” da infância, da juventude, do tempo em que era tempo. Vi isso nos mais seniores. Vejo isso em mim. Como se o passado não fossem ruinas nem se tivesse desmoronado e a mansão do presente fosse composta de adereços postiços ou adornos cinematográficos. A vida resiste em ir-se. A realidade é o quê, então? É a realidade que se engana. Achamos que está sempre presente. Mas o rosto da cidade muda em décadas. E não é como quando vemos filmes do passado e comparamos uma zona que frequentamos, por exemplo, as Avenidas Novas, com o presente dessa localidade. O filme antigo dá a sensação do tempo passado pela qualidade da imagem, do preto e branco ou então das cores do cinema scope. A substituição de edifícios por outros, o surgimento de espaços verdes ou a destruição deles, a reabilitação do tecido urbano ou a sua destruição, tudo isso é feito a um ritmo vital que não nos deixa perceber para onde foi o passado obliterado, bloqueado, inacessível pela percepção do presente, sem termos nenhuma sensação dele. A vida faz-nos crer que só há presente, actualidade, quando está ensanduichada entre um passado e um futuro, inactualidades, não presenças. O passado que se foi e o futuro que virá ou não. E a inquietação? Quer queiramos ou não é inexorável a passagem do tempo e parece que é só o presente que existe. A humanidade sempre foi enfeitiçada pelo presente. Tanto que a eternidade é um presente que existe para sempre, sem passado nem futuro. Ou então é esse o desejo. No fundo sabemos que o tempo verdadeiro, o tempo na sua autenticidade, o tempo da vida não é esse. É outro, completamente diferente. “Não vos inquieteis. É a realidade que se engana”. Esteve durante décadas nas paredes da NOVA FCSH. No princípio dos anos 80, quando fazia de autocarro a Avenida de Berna para ir treinar, estava longe de ir estudar filosofia para a Nova. Mais longe ainda de lá ter ficado e agora já dar aulas há 30 anos. É difícil de reconstituir esse passado. Não sei bem quem era eu aos 15 anos, quando começava a treinar artes marciais, tocava baixo, ia estudar engenharia. Os dados objectivos têm e não têm nada que ver comigo. Por outro lado, essa subjectividade e a realidade desse tempo não desapareceram ou então são meras curiosidades. Agora, porém, o sentido da Av. de Berna, Faculdade, é diferente, ainda que o referente seja o mesmo, como diz o lógico Frege. Chegou até mim. As duas realidades entram em conflito. Não sei se é porque me surgiu uma memória dessa frase, se rebentou em mim uma certa nostalgia por um qualquer motivo desconhecido. O que me deixa perplexo é que também a realidade que eu agora acho actual de 2020 vai com o meu eu de agora e o plano de fundo que lhe dá sentido para o ralo do passado, está a escoar-se. A actualidade está a desaparecer. Mas há uma avalanche de tempo que se aproxima sempre e é de onde vem o tempo, em ondas num afluxo maciço. E chega para ficar presente durante algum tempo ou instantes ou até décadas. E a Av. de Berna há-de perder a sua significância actual e eu agora com essa importância, o que eu cá faço transformar-se no que eu lá fazia, eu agora passo a ser quem eu fui outrora. Ou então, não. Persiste tudo algures, mas sem mim cá. Não vos inquieteis. É a realidade que se engana.