Duelo ao sol

[dropcap]T[/dropcap]erça-feira, dia 20 tem logo pela manhã uma manifestação em frente da Assembleia da República.

A razão, mais próxima, da convocação é proposta de alteração à lei do cinema em que, a propósito da recomendação diretiva europeia sobre a forma como as plataformas de exibição VOD (vídeo on demand) vão contribuir para as cinematografias nacionais em territórios da EU.

A razão de fundo é estrutural e resulta da ineficácia do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual – enquanto líder das ações do poder político para o cinema dando cumprimento às políticas públicas para a atividade cinematográfica e audiovisual. Esta ineficácia resulta primeiramente da incapacidade do Estado nos últimos 40 anos em entender e atuar em consonância o que é o cinema e audiovisual nas sociedades da informação e comunicação ( Castels, Manuel ; A sociedade em rede; o poder da identidade; o fim do milénio) , isto para nos remetermos ao período da normalização administrativa do regime da III República.

Em território nacional raras foram as vezes em que o cinema chegou à agenda dos media por motivos positivos, salvo quando da presença do cinema português em festivais como Veneza, Cannes, Berlim, Toronto, Sundance, Roterdão, Locarno, Rio de Janeiro, S. Paulo, Shangai, Tokio, Istambul, ou outros de relevância equivalente, o que felizmente e apesar da inabilidade e incompetência dos decisores políticos, vem sendo habitual e com presença nos filmes premiados.

As políticas públicas para o cinema trabalham sobre três atividades complementares e interligadas mas distintas do sector de atividade cinematográfica; produção, distribuição, exibição.

O digital, os satélites e a internet vieram alterar significativamente as três áreas de trabalho, como é por todos constatável, mas e apesar da famosa “transição digital” nas comunicações de intenção dos sucessivos governos, no cinema e na legislação que o enquadra, de estrutural pouco tem sido mexido.

A ser claro, o cinema como produtor necessário no diálogo contemporâneo como força construtora do mundo, como instrumento do soft power necessário e urgente a um pequeno estado como Portugal com forte identidade no mundo; o lugar do cinema na diplomacia cultural; a sua potencia e dimensão da nova economia digital; na criação de novos empregos no sector para os novos profissionais que saiem das escolas de artes e cinema; o lugar do cinema na coesão identitária e territorial nas aceleradas mudanças sociais contemporâneas, está longe das preocupações dos decisores políticos e até das preocupações de muitos do “fazedores” do cinema.

No recente estudo encomendado a António Costa Silva “visão estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030”, o digital está obviamente presente e domina as percepções de futuro. É afirmado: “Hoje, no nosso planeta, temos cerca de dois mil e seiscentos milhões de máquinas, smartphones, computadores que estão interconectados e a estimativa é chegar a quarenta mil milhões em 2040. É um aumento de dezasseis vezes, e tudo isto vai exigir energia” . A sociedade ecrã, denominação com que vários autores caraterizam as sociedades atuais, transportou os filmes da sala escura para o bolso do casaco, para os transportes públicos, cafés, parques de estacionamento, salas de espera, não se trata apenas de um aumento exponencial de ecrãs mas sobretudo de alterações de hábitos de consumo, bem como de oportunidades para sectores como o da atividade cinematográfica e audiovisual, dada a apetência para o crescimento do consumo por parte dos públicos; mas a esta afirmação o documento não chega. O plano no ponto 3.1.10 – Cultura, Serviços, Turismo e Comércio – da página cem à cento e quatro, a palavra cinema surge na frase : “A importância do sector da cultura no funcionamento das sociedades modernas é incontornável, pelas mais-valias e impactos que traz em termos de inovação e criatividade. Existe um conjunto de iniciativas do governo para lidar com a situação de emergência vivida neste sector, que passa pelo apoio aos agentes culturais, e que deve ser reforçado para contemplar os produtores de bens culturais, nas áreas da música, literatura, teatro, cinema e artes plásticas”. Esta é a realidade da discussão pública sobre o cinema em Portugal.

Temos é certo discussões nas páginas do FB ou em associações e núcleos de maior ou menor dimensão. Ainda hoje em Portugal para muitos a discussão é sobre a diversidade e pluralidade das obras, ou ainda sobre critérios de gosto impostos pelo Estado, discussão que é poeira para os olhos, conversa inútil, que promove um certo espetáculo de boxe ( sem a qualidade do grande filme Belarmino) , em se posicionam de um lado os lutadores do cinema “arthouse de qualidade” e do outro “ o cinema para o público ”, como se a questão cinema em Portugal se traduzisse nesta problemática.

Sobre a manifestação desta terça feira demonstra o que todos reconhecem; a dificuldade de financiamento. Não oferece dúvida que as operadoras /plataformas de difusão e exibição na web devem pagar, tal como pagam os canais de difusão tradicionais, em função da publicidade que passam. Esta é uma das formas de financiamento do cinema e do audiovisual em Portugal e não há, além da inscrição de verbas diretas no orçamento de Estado, ou da criação de medidas articuladas entre diferentes ministérios, ou outros incentivos de natureza fiscal, outras formas significativas de financiamento. Um dia, quando atividade tiver a centralidade que exige, complementarmente às formas de financiamento a partir das politicas públicas para o cinema, será também possível em Portugal o acesso ao capital de risco para montagem financeira dos projetos cinema.

A forma como esta nova contribuição deve acontecer não tem de ser necessariamente esta ou aquela, desde que esta ou aquela, sirva de facto a criação cinematográfica – filmes e séries, em Portugal.

O ICA, o instituto público que tem a finalidade de dar cumprimento às políticas públicas para o cinema, como sempre, não é líder na discussão, e tem ele próprio dificuldade em saber e propor que políticas públicas para o cinema. Aliás a própria tutela também dado que muito recentemente foi anunciado um estudo a uma empresa Inglesa sobre como devem ser a políticas públicas para o cinema de Portugal. Parece e é estranho, mas é uma notícia que não foi desmentida.

A situação que há muito se mantém é a de um ICA que delega em alguns atores da atividade cinematográfica a decisão da efetivação da política pública para o cinema. Esta realidade, sejam produtores, realizadores, distribuidores, argumentistas, diretores de fotografia, atores, ou outros, é uma perversão e o abdicar do que lhe é próprio na sua competência e do contrato dos portugueses com os seus governos. É historicamente demonstrável, tem sido sempre isto sustentado com o paleio “democrático” de ouvir os “agentes” do sector que, convenhamos, em vários casos tem um pensamento sobre o papel do cinema nos estados contemporâneos, e em particular no caso de um pequeno estado como Portugal, se não nulo, muitas das vezes próximo da ignorância. Entretanto na alta administração do Estado Português, s a preocupação com outras matérias, facilmente lava as mãos e delega nas vozes que se conseguem fazer ouvir nas TVs e Imprensa. E o cinema lá vai andando aos empurrões 80% a baixo da sua potencia e até necessidade, na construção do tecido social, cultural, económico, do país.

Dado o “estado de coisas” que o cinema português vive, é tempo de criar a Ordem do Cinema. No ordenamento jurídico português as Ordens Profissionais são caracterizadas como: “ associações profissionais particulares constituem-se para defender os interesses de um determinado grupo de pessoas e não estão sujeitas a qualquer tutela do Estado.

As Ordens Profissionais prosseguem interesses públicos traduzidos na garantia de confiança nos exercícios profissionais, que envolvem especiais exigências de natureza científica, técnica e deontológica.

São associações públicas criadas pelo Estado por devolução de poderes (recebem do Estado poderes a ele pertencentes), e, por isso, a sua criação e organização é regulada pelo direito público e não pelo direito privado (embora certos aspectos do seu funcionamento possam ser regulados pelo direito privado). Integram a Administração do Estado (administração autónoma), participando da atividade administrativa.
 Estão sujeitas a uma tutela estadual mais ou menos intensa.

As profissões ordenadas estão, por princípio, sujeitas a registo oficial dos seus membros, o qual tem uma função externa de publicidade e de proteção da boa fé dos cidadãos quanto à habilitação profissional.

Não existe em Portugal uma lei-quadro das Ordens Profissionais (a criação de Ordens Profissionais tem resultado de diplomas legislativos avulsos). Porém, traço comum a todas elas é o seu interesse geral relevante, apertados preceitos deontológicos e estrutura disciplinar autónoma (as penas disciplinares podem ir até à interdição do exercício da atividade profissional).

Segundo Diogo Freitas do Amaral que as Ordens Profissionais são associações públicas que:

1.º – Só podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas;
 2.º– Gozam do privilégio da unicidade;
 3.º – São de inscrição obrigatória;
 4.º – Podem impor a quotização obrigatória a todos os seus membros;
 5.º – Controlam o acesso à profissão do ponto de vista legal e deontológico;
 6.º – Exercem poder disciplinar sobre os seus membros

Verificando como o cinema tem vivido nos últimos 40 anos e o que é a sua potência em 2020, a criação da Ordem do Cinema, parece ser o instrumento necessário e aglutinador do sector para o desenvolvimento do cinema em Portugal.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários