The Laowai fever

[dropcap]D[/dropcap]avid trabalhava num gabinete de arquitetura na Califórnia mas decidiu trocar a terra da liberdade por outro tipo de liberdade mais individual numa terra menos livre. Como quem troca o bom tempo californiano por um frio seco na esperança de, mesmo assim, se vir a sentir mais quente. Após um divórcio doloroso, deixou as duas filhas adolescentes com a mãe por uns tempos e veio estabelecer-se em Pequim.

Costumava aparecer nos workshops bimensais de poesia que eu organizava com o Colectivo Artístico Spittoon. O homem de 43 anos vestia-se de forma sóbria, como quem estava habituado a trabalhar num escritório de arquitectos. Trazia sempre vários poemas para a devida sessão de análise, interpretação e crítica construtiva com o resto da comunidade literária que se juntava no internacional Zarah Café, na zona hip de Gulou. Eu seguia o David nas redes sociais mas não lhe era muito próxima. Os meses foram passando e o David começou a frequentar mais eventos sociais em Pequim, começou a praticar mais desporto – cross-fit, montanhismo, passeios conjuntos de bicicletas. Decidiu, a certa altura, criar a sua própria plataforma comunitária para encontros sociais com as mais variadas atividades entre os locais e os expatriados, estando ele no centro de toda a ação (e atenção). Faço scroll pelos momentos do Wechat. Vejo uma foto em que David tem o cabelo rapado dos lados e uma poupa punk pintada de verde. Veste apenas umas calças de desporto e um colete de pele. Faz o sinal V com os dedos e uma boquinha de peixe. Num dos vídeos está a rebolar por um monte e ouvem-se diversas vozes femininas com um inglês muito chinês a lembrarem-no do quão maluco e engraçado ele é. Riem-se, essencialmente. Filmam-no enquanto parece cair deliberadamente.

Noutro vídeo, David está a atravessar uma passadeira na zona de Gulou, movendo-se com as mãos enquanto eleva as pernas. David não é verdadeiramente o nome da pessoa que efetivamente conheci mas é definitivamente alguém real. David sofre de um dos fenómenos menos estudados na história da sociologia, tão pouco estudados que me permitem patentear o conceito altamente inovador na área. David sofre de “Laowai fever”.

Tal como o David, milhares de brancos ocidentais apanham esta patologia ao fim de alguns meses de China. Podem ser pessoas que se costumavam vestir na Zara mas que agora só compram roupa em lojas de moda coreana. Mulheres que subitamente só querem vestidos com folhos e canetas que cor-de-rosa iguais às que usavam na escola primária. Homens que não podem dispensar o fato de treino da Supreme e os óculos de massa grossa. Podem mesmo ser pessoas que, tal como muitos jovens chineses, decidem que preferiam ser coreanos, de uma maneira geral. Há muitas possibilidades. É uma passagem entre o normal para o excêntrico e este fenómeno psicológico, quase sociológico – porque de grupo – fascina-me. Há um processo mental que antecede a mudança drástica da forma de vestir, dos dedos em V e das selfies carinhas-de-peixe, mas esse processo é para mim, ainda, um enigma.

Para sistematizar a análise da mudança súbita de comportamento do “estranja” (laowai) teremos de partir de alguns pressupostos. O Laowai em questão quando chega à China parece ainda manter-se no estado em se encontrava e que antecede o rótulo de laowai. As transformações ocorrem gradualmente. Há várias hipóteses teóricas levantadas por curiosos observadores ao longo destes anos de abertura da China ao estrangeiro.

Depois de falar com alguns sujeitos do sexo masculino que se enquadram no perfil, cheguei à conclusão que estes se sentem “mais confiantes” desde que chegaram à China. “O nível de atenção que passamos a ter por parte do género feminino é uma grande influencia para melhorar os níveis de auto-estima.” diz um anónimo Laowai que entrevistei para este artigo. Mas será apenas o aumento de capital erótico proveniente do exotismo étnico justificação para tanta excentricidade? “Numa cidade com mais 20 milhões de habitantes, ninguém olha para ninguém. Há todo o tipo de pessoas. A mega metrópole faz-me sentir mais livre para ser quem realmente sou” – continuou. Uma espécime do género feminino afirmava, por sua vez “Gosto de me vestir como uma princesa. No ocidente, a mulher é muito sexualizada com roupas justas e decotadas”, “Não achas que a infantilização de uma mulher adulta é, também, uma forma se sexualização fetichista?” A esta questão ela não me respondeu. Lembrei-me de como os asiáticos eram, estatisticamente, os maiores fãs de Ariana Grande.

Será o choque cultural tão grande que deixa os estrangeiros confusos em relação à sua identidade? Será a solidão e o isolamento que os levam a criar dezenas de atividades? Será esta vida de expatriado um prolongamento da experiência Erasmus? Muitas perguntas, poucas respostas. Eu só vos aviso: o fenómeno está para ficar. Já o observo desde 2008. Quando eu voltar da China vestida de Sweet Gothic Lolita, não se surpreendam. É só uma pequena febre de alguém que vem de fora.

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