Salitre, de Duarte Drumond Braga

Por Jorge Arrimar

 

Cláudia Ribeiro, no seu livro, No dorso do dragão (2001), escreveu que “a China sofre do facto de ter sido sempre, por excelência, o repositório de todos os sonhos impossíveis do Ocidente, pois este tem no Oriente a sua noite.” (2001, p. 11-13)). De certa forma, podemos dizer que Macau foi o travesseiro onde alguns escritores portugueses sonharam uma narrativa diferente. Este será o caso de Duarte Braga em Salitre, seu livro mais recente (2021), publicado em Macau pela Capítulo Oriental.

Diz-se que a criação é uma dor e que o autor (re)constrói-se através da sua obra. Este é o mistério do texto literário, que resiste a ser desvendado, como se fosse uma gruta de segredos que só ganha significado quando se consegue entrar nela. E o acto de ler é o “abre-te sésamo” que só se completa, só é eficaz, quando se consegue ver “o não escrito”, como diz Guimarães Rosa (Ed. 10, O Sindicato, 1999), e tocar a nudez do texto. Assim o leitor tem de olhar para o livro, Salitre de seu título, como a gruta do poeta, onde este se confronta consigo mesmo e com os seus fantasmas. É nesta solidão quase iniciática, que, umas vezes o ouvimos murmurar palavras leves de que só apanhamos a sombra; outras vezes, palavras pesadas de água que nos encharcam.

Em Salitre, Duarte Braga vai-se mostrando na confissão das emoções, aflorando a velha arte de trovar escárnios e maldizeres, uma pegada antiga, deixada na cidade que neste livro tem lugar central. É uma metáfora de Macau, uma acumulação de sinais, a maior parte deles muito familiares aos seus habitantes, como o bolor, o mofo, o próprio salitre, mas que, neste contexto, exigem uma outra leitura. Aqui o autor reinventa-se na personagem principal do poema, salgando a carne dos seus próprios versos. Apresenta uma identidade subterrânea e traça um perfil líquido, impreciso, uma espécie de biografia esfumada.

Aparentes contradições perturbam uma leitura menos atenta e exemplo disso é o poeta afirmar que se sentiu perdido num deserto interior que depressa se ampliou em outro deserto, quando o que o sufoca permanentemente é a humidade. Porém, a nebulosidade constante não o impede de observar o que o cerca, olhar as pessoas que passam, ouvir a língua que falam, a escrita que desenham… Afinal, a pátria sínica chega até ali, está em todo o lado, ao virar da rua, ao dobrar da esquina. E tenta chegar-lhe, tocá-la com cuidado como se fosse uma antiga porcelana, interpretar-lhe os sinais. Mas não é empreendimento fácil. É como se pretendesse descodificar a tatuagem das folhas que as árvores deixam cair sobre a face turva do tempo. Por isso tem vontade de vir a “ser poeta da natureza” para “ler os nomes das árvores”, confessa. Mas desilude-se depressa pois só consegue ver magros calígrafos que recolhem lírios e os depositam nos “rodapés dos dicionários”. Incomoda-o este conhecimento de nota de pé-de-página e, ao que parece, resta-lhe esperar na varanda dos dias e depois juntar-se aos demais, aos outros, no “pátio da harmonia irrefutável”, para se deliciar com “gomos da felicidade”.

O “poeta é um fingidor”, já dizia Pessoa, e fingir a dor que deveras sente, é assumir que esta faz parte da matéria-prima da criação, seja ela de que área artística for, da pintura à poesia. Neste caso, o autor, através do texto, (d)escreve o que não é dito ou ouvido. Como diz Catherine David “Pedacinhos da realidade, fragmentos de luz, estas experiências minúsculas participam no silêncio da realidade, como as pinceladas de Cézanne participam na montanha” (Catherine David – La Beauté du geste [A beleza do gesto], Actes Sud, Babel, 2006). Salitre é apenas um dos pedacinhos dessa realidade complexa que é Macau, uma pincelada literária e perturbada, uma gota de tinta grossa na tela da escrita, versos de salitre no corpo do poema. E o poeta, “com o rosto a arder no escuro”, recolhe à cidade eternamente sitiada, conservando, contudo, o cheiro ao alecrim das janelas de sacada que guarnecem a calçada de Santana, em Lisboa; acompanha-o um vendilhão de sonhos e de azulejos da Praia Grande, a de S. Luís do Maranhão e a da cidade do Nome de Deus de Macau. É o sujeito de uma aventura com o gosto acre das laranjas agras que decoram as cidades velhas e sitiadas, “pequenas lisboas de troca e insalubridade jogadas pelos trópicos”, onde o poeta se recolhe, confessando, contudo, que as ama.

Em Salitre constrói-se uma utopia de pernas para o ar, denunciando-se o lugar onde os bons poetas escrevem maus poemas e o próprio autor quer acreditar encontrar-se preso num haiku de Pound ou numa ostra encontrada nos tintins. E neste passo do bailado da escrita, o poeta deixa um legado patético, um “molho de imagens” e um tropel de sugestões. O salitre que corrói as paredes é o que brilha nas palavras e envenena a língua. Assim o poema nasce como o nenúfar num pântano e a apoteose é o grande aquário, de onde se retiram peixes dourados, mortos, secos ao sol e convenientemente salgados, enquanto ao longe, veem-se “barcos de flores a chegar e partir entre felácios e rosas (os lábios do carmim desflora)”. A poesia é, afinal, uma fuga… não da realidade, mas para a realidade, como diria o poeta brasileiro, Mário Quintana. (Gabriel Perissé – As experiências reversíveis […]. Dispon. em: < http://www.hottopos.com/convenit4/perisse.htm >).

Salitre não é de leitura fácil e dócil. O seu autor não se deixou ir na corrente literária mais em voga, antes preferiu ser disruptivo em relação a ela, o que torna o texto diferente, tanto em termos de conteúdo, como a nível estético e conceptual. Por tudo isto, não será de estranhar que Salitre possa vir a ter um lugar especial enquanto criação literária.

24 Jan 2022

Cinema espiritual: Red Cliff de John Woo

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie Oyang, apresenta 12 realizadores chineses, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.

 

John Woo é um realizador imensamente prolífico, além de escritor e produtor. Realizou 37 filmes desde a sua estreia em 1968. Embora tenha nascido na China continental, Woo estava mais associado à indústria cinematográfica de Hong Kong quando ingressou em Hollywood. O mestre dos filmes de acção é também conhecido pela elaboração e pelo realismo que põe em cada cena. No entanto, a sua segunda carreira nos Estados Unidos frustrou-o e, já há muito tempo, decidiu voltar às películas de temática chinesa. O seu filme Red Cliff  ilustra uma batalha épica travada durante a guerra que teve lugar há 18 séculos.

Red Cliff não é um filme de Hong Kong estilisticamente promíscuo, embora – inevitavelmente – seja um filme de época que retrata um romance célebre. Red Cliff não parece ser suficientemente avassalador e caótico para nos fazer evocar a lama, o sangue e o terror de um cenário de combate. Enquanto escrevo estas palavras, sinto que, de alguma forma, há algo que me escapa. Esta saga com milhares de figurantes, que se concentra apenas em quatro personagens, não pretende alcançar o espectáculo da guerra nem um estilo artístico extravagante, à la Zhang Yimou.

A história baseia-se em acontecimentos reais. Cao Cao, o desagradável primeiro-ministro do Império Han (séc. III DC), tinha ambição de conquistar dois pequenos reinos. Nesse sentido, enviou uma armada através do rio Yangtze para atacar os governantes desses territórios, Liu Bei e Sun Quan, que desempenham papéis secundários no filme. A aliança crucial contra Cao Cao foi estabelecida entre os dois líderes estratégicos, Zhuge Liang e Zhou Yu. A quarta personagem principal é a bela Xiao Qiao, mulher de Zhou Yu. Cao Cao há muito que cobiçava Xiao, e por isso ela é a opção lógica para desviar as atenções do invasor, enquanto Zhuge e Zhou preparam o contra-ataque final.

Entretanto, vamos assistindo ao bramir das espadas em câmara lenta, à recitação de poesia, à caligrafia, à cerimónia do chá, e pombas que representam a paz celestial no meio da carnificina terrena. Assistimos ainda ao surgimento de uma intensa e espirituosa amizade masculina durante um dueto de cítara. Depois de terem chegado a um entendimento, os dois estrategas começam a planear as duas grandes linhas de acção do filme. Na primeira, usam “a formação tartaruga” para repelir e finalmente cercar os soldados de Cao Cao, em número superior. A segunda linha de acção envolve barcos, fogos e uma mudança oportuna da direcção dos ventos. Zhuge revela-se um metereologista com um conhecimento de primeira sobre o comportamento e a natureza dos ventos.

Considerado o filme chinês mais caro de sempre, Red Cliff impressiona pela amplitude, escala e precisão. Todo o aparato do filme lembra-me um jogo Go no mundo real.

O Go é mais simples que o xadrez e no entanto mais complexo. Mais simples porque todas as peças são iguais, embora existam peças brancas e peças pretas. Neste jogo as peças não se movem através do tabuleiro. Aqui, o Go, como um sistema bem equilibrado que tivesse uma falha, permite que um jogador mais forte (Cao Cao) jogue em pé de igualdade com um jogador mais fraco (Aliança Zhuge & Sun Quan) e que seja vencido.

Red Cliff é suficientemente grandioso para entreter, mas emocionalmente distante e pouco profundo para chegar a ser emocionante. A narrativa também parece estar mais focada na táctica militar do que na dinâmica do desenvolvimento das personagens, nas batalhas psicológicas ou na dimensão moral. Woo tenta ser um pioneiro do espiritualismo – mostrar o “coração” oriental ou o “coração” chinês, por assim dizer – o que pode acabar por ser uma forma entediante, mas bastante aventureira de fazer cinema.

  • A não perder: The Killer (1989), Face/Off (1997), Red Cliff: Parte 1 (2008), Red Cliff: Parte 2 (2009)
    Citações famosas de John Woo para reter
  • Posso usar o cinema como uma linguagem. Não só posso enviar uma mensagem positiva, como posso transmitir às pessoas o que penso, como vejo o mundo, como vejo a cor, como vejo a música, como vejo todas as coisas.
  • Os filmes que gosto de fazer são muito ricos e repletos de paixão. Algumas pessoas vêem-me como um realizador de filmes de acção, mas a acção não é o único elemento dos meus filmes. Gosto sempre de mostrar a natureza humana – qualquer coisa de profundo dentro do coração.
  • Também quero que as pessoas saibam que na verdade o futebol começou na China há cerca de 3.000 anos.
  • Penso que fui rotulado em Hollywood como realizador de filmes de acção, por isso só me davam argumentos desse género.
  • Os meus filmes têm sempre a ver com a família, a amizade, a honra e o patriotismo.

 

Julie Oyang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram selecciondas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.

Writer | Artist | Namer of clouds
www.julieoyang.com | Instagram: _o_writes

21 Jan 2022

Alexandria

Existe na cidade de Alexandria um Porto Interior. Fixa o Norte, de onde lhe veio o pai. Num dos seus extremos, alguém de novo ousou a Grande Biblioteca. Abundam livros e mulheres jovens. Pelo meio, sobre as praias, debruçam-se esplanadas, num excesso de mar. No outro extremo, passeia a desmesurada gente, talvez à espera do momento certo para voltar a pegar fogo a isto tudo.

*

Já Marte sobre o fim da cidade se levanta, mas nem por isso os homens sossegam e olham de novo o mar antigo. Pela urbe persiste o ruído, o caos que pouco cintila ou alcança. A cidade deixa à estrela esse castigo. E ela olha do alto e pouco vê, nada procura. Onde estão os épicos fantasmas da minha literatura? Ficaram os homens impuros e as suas mulheres cercadas. E as ruas belas como rugas ou trapos pisados nas calçadas.

Na casa de Kavafis paira um odor a abandono. Apenas um refrão, sussurrado por um bigode. Escasseiam os livros e sobram as horas. Os versos lamentam a sorte rasa. Poemas dormem sem abrigo pelas ruas. Nada há para fazer, só para ver e os olhos humedecem da tristeza do que não é (talvez nunca tenha sido), a sentirem fundo a culpa de uma deslocada ambição.

*

Nos versos de Kavafis expirava o último heleno e talvez uma cidade.

*

Havia no lugar onde em 1902 foi construído o Hotel Metropole um obelisco de dois mil anos. Cleópatra impusera-o para celebrar Marco António. Agora existem sombras posteriores a marcar corredores, um elevador de três portas e as colunas solenes do átrio. — Ainda há onde respirar, rosno curto.
Kavafis frequentava o Hotel Metropole. Não sei se unicamente a entrada, de onde se disfruta a rua em poltronas altas; se subia ao primeiro andar, e deslizava pelos salões, entre brandys, golpes de estado, charutos e revoluções.
Provavelmente, pouco disso o interessava, como lhe deviam ser indiferentes os veludos e os pendentes adamascados. Imaginemos que, sem sabermos de quê, lhe interessava a possibilidade. Fantasiemos que esse quê poderia surgir, vindo da rua, sob a forma de um cavalo ou de um príncipe, ainda pingentes de suor de um galope ou de múltiplas defenestrações.
E o poeta esperava, naquele canto sóbrio, meio enternecido de sombra, raspado do passado, ainda que o hotel fosse então novo e pouco fizesse prever a glória a que o meu coração o consagra. Previra os bárbaros, é certo, mas não os previra assim.
O obelisco está algures em Nova Iorque. Central Park, creio.

in Anastasis

20 Jan 2022

Ser uma força do passado

Pier Paolo Pasolini, 1964
Tradução: Régis Bonvicino, 2019

 

Ser uma força do Passado é perceber a parte mais vital da nossa Memória, a sede das nossas Memórias e Conflitos. Não compreender o seu Passado significa revivê-lo, mas viver o Passado em forma de pedra significa tirar-lhe a sua parte vital. A palavra Força expressa um conceito presente de dinamismo não necessariamente ligado ao movimento, por isso não me identifico com o Passado e não venho do passado, mas sim vivo no presente estimulado por forças multiformes. Não me identifico com o Passado, mas vejo os seus rituais e ciclos humanos, gestos repetidos ao longo dos tempos que recolhem os sentimentos de gerações, e sinto que o meu amor de hoje tem raízes profundas nesse Passado.

Venho directamente das ruínas das casas agrícolas abandonadas ou destruídas por bombas, das igrejas que pontilham cada uma das nossas regiões, dos retábulos que também estudei, analisei, admirei, das aldeias dos Apeninos ou dos Pré-Alpes, onde a vida morre deixando apenas alguns habitantes a vaguear como fantasmas. Era aí que viviam os nossos irmãos, aqueles que cultivavam o trigo e lavravam os campos de acordo com as fases da lua, entre a fome, a guerra ou um mestre prepotente. Esse é o nosso passado.

E encontro-me hoje, na Via Tuscolana, aquela antiga estrada que levava de Porta San Giovanni a Tusculum, a moderna Frascati. Mas em que parte do Tuscolana é que me viro como um louco? Que tipo de paisagem está à minha volta? Vejo casas modernas, edifícios densos como colmeias, mesmo assim, e eu a passear com um cão vadio ao longo da Via Ápia. Porque é preciso saber que a Via Tuscolana para um determinado trecho corre quase paralelamente à Via Appia Nuova, são estradas próximas que comunicam. Vivo aqui agora, estas são as novas paisagens da nova era, olho à minha volta perdido, sempre espantado e com um nó na garganta que não me desata.

E, no entanto, observo os poentes e as manhãs sobre Roma, porque qualquer pessoa que nunca tenha visto um crepúsculo romano ou o amanhecer pelo menos uma vez, sentiu o calor daqueles raios de sol brilhantes e poderosos na sua pele, é pouco provável que compreenda do que estou a falar. Assisto ao nascer e pôr-do-sol de Roma, da Ciociaria e depois do resto do mundo, à beira de uma civilização enterrada nos primeiros agitadores de uma nova era primitiva. Tudo pelo mero privilégio anatómico de ter chovido ali, nada de especial.

De repente apercebo-me que sou o fruto deste Passado agora morto e percebo-me como um ser monstruoso, como alguém nascido do cadáver de uma mulher morta. Choveu sobre esta terra sem possibilidade de governar o meu destino, inconsciente e frágil como um feto, mas com mil e um séculos de idade, vagueio soldado pelo nosso tempo, inexoravelmente ligado ao nosso tempo, à procura dos irmãos que já não sou. A razão desta busca é motivada pela necessidade de não perder as nossas raízes, para assegurar que este tempo posterior perca o seu anonimato, a única forma de encontrar novas línguas e novas identidades.

Eu sou uma força do Passado

Eu sou uma força do Passado / Somente na tradição está o meu amor / Venho das ruínas, das igrejas / dos retábulos, das aldeias / abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes / onde habitavam os irmãos / Vago pela Tuscolana como um louco, / pela Ápia como um cão sem dono. / Vejo os crepúsculos, as manhãs / de Roma, da Ciociaria, do mundo, /como os primeiros actos da Pós-História, /que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época / sepulta. As vísceras de uma mulher morta / pariram um ser Monstruoso. / E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que todos os demais / a procurar irmãos, que não existem mais.

20 Jan 2022

Plano de vazio

Percursos secretos entre as paredes como sentidos entrelinhas. Entre paredes. A que é real, de origem e de pedra e a que a cobre de uma aparência inócua. Deixando entre elas um espaço para iludir a humidade, que amplifica sons reais ou da imaginação. Um vazio entre planos.

Tenho que contar a história do meu rato. Melhor dizendo, o caso do meu rato. Ou ainda do rato, porque de repente, em mim, o instinto humano e animal de propriedade me leva a designá-lo somente desde um destes dias, como “meu”. Porque me invade o lugar que considero território meu naquela pura ilusão de poder escolher com quem estou só e com quem, acompanhada, ali. Surge-me este pensamento. Pueril, é certo. Atemoriza-me o bicho invisível, incomoda-me quando confirma que está, como se dali pudesse acontecer todo um conjunto de possibilidades, mais do que imaginar a face deste protagonista escondido mas audível, os dentes, as unhas que lhe oiço distintamente, o arranhar amplificado pela parede de pladur, o pêlo malcheiroso. Ou talvez seja um monstro enorme e desconhecido, mas de uma grande delicadeza que tenta não incomodar mais do que o pequeno – sendo assim – arranhar da parede e que não consegue evitar pelo transtorno do seu porte excessivo, quando se ajeita para descansar. Mas consolo-me neste raciocínio de deixar correr o tempo sem antecipar invasões maiores, este pensamento de que tudo é real, tudo é parte da natureza de uma cidade velha. E de que faz parte do lugar e é meu, queira ou não queira. Aceito. Como se isso o tornasse melhor. Como se isso fosse possível.

Tomo posse. O passo seguinte, diz alguém, é dar-lhe um nome. Mas é aflitivo, sim. Ouvi-lo ali dentro das paredes. Nitidamente mas com impotência. Mas não é arrogância minha, de posse. Não é posse, é ponte. Dinamitada. O meu rato que não é o rato HP, vermelho e doméstico em cima da mesa, mas um que digita realmente de forma audível com unhas que arranham e se fazem ouvir. Dou por mim a espia-lo, a duvidar, a dar pancadinhas em vários tons na parede que nos separa. A encostar o ouvido naquele ponto preciso da parede, para lhe sentir mais nítido o percurso e os gestos, as unhas. Não me parece assustar-se mais do que eu no incómodo que queria provocar-lhe com as pancadas a desinquietar, a provocar uma fuga que me dissesse que não está preso nem confuso. Percorro a parede com os dedos a aferir a relação causa-efeito. Eu do lado de cá e ele de lá, silencioso agora. Mais para a direita e o arranhar das unhas onde, como se não existisse?

O salitre que retomou o seu curso. Como a natureza. A natureza que produz e a das coisas produzidas, a reaver o que é pasto dela. Inexoravelmente. A vida secreta da natureza que subjaz a uma cidade. Os lençóis de água que por capilaridade e como uma seiva, lhe sobem pelas paredes a envelhecer uma vida da matéria, que as tintas e betumes somente disfarçam de juventude precária. Como se se montasse uma tenda frágil no meio de uma natureza forte e imparável. Não é o que se quer da casa. É preciso senti-la inabalável. Segura contra tudo o que perturba e todos os que nos abalam.

Depois silenciou-se o arranhar que o fazia nítido e presente, do lado de lá da parede. Abalou ou ficou por ali quieto para sempre. O que não é bom de pensar. Mas se abalou pode sempre voltar. Por esse caminho secreto que o levou ali. O que também não é bom.
Nunca vou saber.

18 Jan 2022

Outras caravelas

Quando os cavalos estão com sede e a praça cheia, levamo-los a beber aos poços de Monsanto.
No topo da cidade aterram aviões regressados da guerra das estrelas.
E o bulício entre tempos cruzados sacode a vista do alto.
Um rei que se julgara perdido regressa enfim, teletransportado, envolto em matéria rarefeita.
O rio secou, é agora uma pista de aterragem de lava prateada, densa, brilhante,
Qual magma iluminado.
Custa a crer que tivesse saído daqui matéria oscilante e com ela navegado mundo.
Agora no frontispício deste livro que alguém escrevera, soletrando-o.
A capital, o país, a Europa, o gelo, as brasas, parecem lendas.
Neste ecrã vagueia-se pelo tempo em várias dimensões e todas as visitações são estranhas.
Descendo encontra-se muito caos. Os organismos de circuito fechado defendem-se em absoluto.
Dizem que é vida, e olhada assim, é tão singular como será por ventura estar aqui.
Entretanto os meus cavalos já devem ter bebido, vou sair da fórmula, pegar nas rédeas e olhar um pouco mais a cidade.

Caravelas?

Foi quando descemos da Arca
Havia animais- amámos os animais- e todas as aves do céu.
Éramos humanos, lembrávamo-nos de Deus.
Que a Terra já está no tempo da memória
Nem sempre ela rodou, e quando fixou o eixo
Nossas caravelas deixaram as águas para se encontrarem no deserto.
Nenhum sábio foi escutado, nem se sabia se sábios havia…
Foi tudo de repente.
Escuto agora, que Noah, um menino, apareceu.
Voltou a criança perdida, que estando despida
Foi à procura do Jardim.
Foge tudo. Fugimos uns dos outros em camadas etárias desenvoltas.
Que estando na roda – a roda gira – e sempre nos encontraremos nas entradas como nas saídas.
A vida era uma história de terror, aqui se nota a grave batalha dos titãs.
Muitos deixaram o planeta e nunca mais foram vistos, resgatados pelo grande guindaste
Do sistema paralelo, mas não se sonharia com a presença do infinito temporário
Nessa rede de circulação de sangue fechado.
Alguns, de tão rudimentares, queriam ser muitos, e se fosse apenas um, queria ter de tudo em abundância. De tanto ser nada perdeu-se a abastança.
Depois enlouqueceram quando a vaga [zumbie] resolveu atacar a frágil cobertura vegetal.
Atiravam-se uns contra os outros como choques elétricos e nunca mais houve trovoada.
Cada dia tinha então vinte e quatro horas quando o sol era um motor sem freio.
Nós aqui, somos sistemas extrassolares, nem nunca vimos sol.
Que entretanto explodiu muito antes do previsto instante que davam como certo.
Mas nada era certo nesse planeta.
Acertavam em coisas que nunca o pensamento teve.
Aqui, estrela paralela, estamos abismados com o filtro das coisas vindas
Pois que de todas as funções foi a emoção que retivemos.
Como foi possível ter a ideia das coisas e nunca as ter experienciado?
Que o amor era um nome que enganou a todos e mesmo assim ele parecia sempre novo.
Tudo é espantoso quando os cavalos bebem água numa grande clareira que já não há
E ficamos no som do Universo a ver como se pode criar uma ilusão.
Nós não temos corpo, a manifestação está distante.
Que tudo é maravilhoso, mesmo quando encontramos uma frecha
Para um abismo repleta de flores.

18 Jan 2022

Templo de Fu Xi em Qinzhou

Nos Anais Primavera-Outono encontra-se um diagrama onde se lê: o Imperador Verde, Tai Hao representado por um dragão, está localizado no Leste, contém a virtude da madeira e simboliza a Primavera. Na dinastia Qin (221-206 a.n.E.), oficialmente Fu Xi passou a ser a divindade Tai Hao Di (太昊帝).

Após a História do templo mais antigo a Fu Xi em Gansu, situado na Colina de Gua Tai, segue-se o Tai Hao Gong, o Palácio do Deus Tai Hao, existente em Qincheng (秦城), parte antiga de Tianshui, chamado pela população local também Ren Zhong miu (Templo do Ancestral dos Seres Humanos).

Recapitulando a História; após a proliferação na dinastia Yuan de templos a homenagear os Três Ancestrais (San Huang), logo no início da dinastia Ming com o seu primeiro imperador, Tai Zu (1368-1398), apenas o templo de Fu Xi em Huaiyang (Henan), onde se encontra o mausoléu, passou a ter autorização imperial de existência. De reputação igual, o da Colina Gua Tai declinou e por isso, no livro Da Ming Yi tong zhi apenas é mencionado ser Gua Tai Shan a moradia de Fu Xi, sem haver referência ao templo.

Entre 1483/4, o oficial civil Fu Nai, à frente da cidade de Qinzhou (秦州, nome dado entre 220 e 1913), hoje Qincheng, usava a razão de ser este o local de nascimento de Fu Xi para construir Fu Xi ci (ci, 祠, pequeno templo), na parte Oeste da cidade. Era simples e sem estátuas e existia já em 1347. Em 1490 as pessoas ricas e governantes locais foram doando dinheiro para se terminar a construção do templo, ficando este com um paifang e um pavilhão.

Depois foi erguida a estela (碑, bei) 《XinXiu TaiHaoGong MenFangJi》 (新修 太昊宫 门坊记), onde se registou quem o mandou construir e a data. Este bei continua a existir.

O oficial de Gansu baseado neste Fu Xi ci escreveu uma carta ao imperador a pedir permissão para construir um templo a Fu Xi em Qinzhou. Em 1516, o Imperador Wu Zong aprovou e no livro Ming shi, no capítulo Li Zhi, se refere que baseado nesta aprovação somente em dois locais se podia oferecer sacrifícios a Fu Xi, um em Qinzhou e o outro em Chenzhou (actual Huaiyang).

Em 1521, o oficial governador de Gansu escreveu outra carta ao imperador, a dizer que para fazer sacrifícios a Fu Xi, a Colina Gua Tai ficava afastada da cidade, não cómoda e conveniente para os governantes aí se deslocarem. Logo no mesmo ano veio a autorização imperial de Shi Zong para a construção em Qinzhou de um templo a Tai Hao. Mas apenas em 1523, no local onde se encontrava Fu Xi ci, começou a ampliação do pequeno templo dedicado a Fu Xi construído em 1490. Assim só em 1523 se pode considerar haver em Qinzhou um templo ao primeiro dos Ancestrais, que passou a ter três paifang, sete Xian Tian dian, cinco Tai Ji dian, vinte Chao fang, um Jian Yi ting e por ser construído com muita pressa, a qualidade não era boa, nem estava pintado. As duas estátuas de Fu Xi existentes são dessa altura.

Na região os tempos eram de fome e os governantes sucediam-se; por isso o templo não estava terminado e rapidamente se foi degradando. Tudo isto registado num bei de 1532, que também ainda existe, quando o templo foi reparado por ordem de três governantes, de Shaanxi, Gansu e Qinzhou, sendo pintado e o muro do templo concluído, ficando com o seu maior tamanho. Virado a Sul tinha quatro partes.

No fim da dinastia Ming, apenas havia em toda a China dois lugares para se oferecer sacrifícios a Fu Xi, Qinzhou e Chenzhou e no aniversário deste Ancestral, o Imperador enviava uma carta para ser lida pelos oficiais a representá-lo durante as celebrações.

Já na dinastia Qing, em 1653 o templo foi reparado, mas no ano seguinte, Qingzhou sofreu um grande terramoto que matou 7464 pessoas e destruiu 3672 casas. Registos sobre o templo apenas voltaram a aparecer no tempo do Imperador Kang Xi (1661-1722) e no 《秦州志 庙坛》 QinZhouZhi Miaotan diz existirem dez ciprestes. Em 1739, 1805 e 1885, o templo foi sucessivamente reparado e na nona vez, entre 1885 e 87, foi ele ampliado, ficando com a área de 13 mil m², mas actualmente tem apenas 6600 m².

O templo em 1939 foi transformado em quartel do exército do Guomingtan e asilo para deficientes. Estas pessoas destruíram as pedras He-tu (河图) e Luo-shu (洛书), a estátua do Dragão-Cavalo (龙马, Long-Ma) e transformaram Xian Tian dian num armazém, usando os pátios para instalar uma fábrica de tecer.

Em 1949, com a República Popular da China, o templo sob controlo do governo de Tianshui continuou a ser usado como fábrica. Em 1955, o governo de Gansu aí colocou uma escola para formar professores, havendo setecentos estudantes a nele viver. Em 1966, durante a Revolução Cultural (PoSiJiu 破四旧, quatro velharias) os estudantes destruíram quase tudo o que se encontrava no templo. O Museu de Tianshui passou em 1986 para o Templo de Fu Xi e no ano seguinte, o Instituto de formação de professores saiu do recinto, sendo o templo reparado em 1988, sobre a direcção do Museu de Tianshui.

TEMPLO DE QINZHOU

De estilo antigo, todos os edifícios estão virados a Sul e colocados sobre um eixo central, tal como acontece com os mausoléus dos imperadores. Com quatro átrios a partir da porta de entrada do Sul, encontramos alinhados pelo eixo central um paifang (porta sem portas), a porta da Frente (Da men) e a porta do Aspecto (Yi men), onde antes de se passar se deve compor a aparência, desmontar da montada e arranjar a roupa e cabelo. Segue-se o Palácio Central (Xian Tian dian) e o Salão Tai Ji (Tai ji dian). Os trabalhos esculpidos em madeira e pertencentes à estrutura do templo primam pela excelência.

A torre do Sino (Zhong lou) e a torre do Tambor (Gu lou) situam-se lateralmente tal como os recentes edifícios Chao fang, onde se espera para fazer sacrifícios aos deuses. Situadas lateralmente à Estrada de Estelas (碑廊, Bei lang), as salas de exposições, fechadas na nossa primeira visita, abriram a 22 de Junho de 2010 renovadas como Museu de Tianshui, onde exposta se encontram várias Culturas da zona com oito mil anos de História.

“No pátio existem dois grandes ciprestes centenários que os habitantes locais consideram árvores com ling (灵), isto é, dotadas de espírito sobrenatural e por isso, com poder de curar as mais variadas doenças. Por esse motivo os devotos costumam colocar nos seus troncos figuras humanas recortadas em papel e queimar com um pivete de incenso o ponto dessa figura que corresponde ao lugar onde se aloja a enfermidade no doente que lhe roga a sua cura (Tan Manni, na revista China em Construção, vol. IX, n.º 11, Pequim, 1988).” E continuando com a professora Ana Maria Amaro no livro O Mundo Chinês volume I: “anualmente, no dia 16 da primeira lua, dia do aniversário deste mítico imperador realiza-se, ali, uma festividade em sua homenagem.” “O dia 13 da 5ª lua é também dedicado em certos pontos da China ao Rei Dragão.”

Segundo uma lenda, a 45 km de Tianshui, as grutas na Montanha de Maiji, ainda na província de Gansu, tiveram a sua origem com Fu Xi e Nu Wa, cuja tribo a que pertenciam vivia a montante do Rio Wei.

17 Jan 2022

Vamos ao Nimas II

“Don’t look up!”: um produto genuíno e bem calibrado da indústria de que emana, sem merecer nem as paixões que move nem o descaso de tantos. Aliás, talvez mais interessante de analisar seja o debate que provocou e ter-se descoberto que, afinal, sob as pedras da calçada não há a praia mas uma legião de críticos de cinema.
A fita é uma paródia aos filmes-catástrofe a que juntou uma oportuna sátira política à mentalidade e à pauta de comportamento dos neo-liberais.

A narrativa expõe logo as suas premissas, por um lado o seu espartilho e por outro a garantia de que o esquema se cumprirá. Daí a estereotipia das personagens, só existem para ilustrar o tema e não para evoluírem para algum tipo de autonomia orgânica e existencial – simetricamente, as suas diferenças complementam-se e justificam o estado das coisas.

Não podemos deslindar no filme os traços do seu género – a paródia – e a meio do jogo esperarmos que se mudem as regras. Também os géneros são condutivistas. Esperar que este filme nos reservasse surpresas é como supor que um lavagante escorregará à vontade nos intestinos de Bolsonaro, se afinal um simples camarão o obstrui. Há regras aristotélicas que não se compadecem com as mudanças.

A alguma eficácia satírica de “Don’t look up!” depende de tudo ser previsível na sua estrutura, é o que torna aqueles políticos ou aqueles pivots televisivos abjectos – i. é, incapazes de grandeza, de reconhecer que há coisas sérias e fora da dimensão do espectáculo ou de serem susceptíveis à mudança (, já que ser dignos está-lhes vedado: o show off devorou-os, como ao cientista a pivot televisiva). O molde que os conformou é rijo como as carapaças dos caranguejos, que anda para o lado quando quer avançar.

Aquilo que, ainda assim, “Don’t look up!” nos apresenta em modo crítico é-nos servido em “Homem-Aranha – sem volta a casa”, de modo jubilatório.

Os filmes da Marvel estão para o cinema como os placebos para os remédios.

Uma semana depois de ter abandonado a fita aos 40 min, ainda continuo atordoado. Por que há-de ser o prazer néscio?

Escrevi por descarga, no Facebook: «Se visse esta fita com o meu neto mergulharia na culpa infinita de o ter estupidificado, se o visse na cama de hospital desejaria morrer por não haver redenção para este grau -zero em matéria de gosto… Que Deus (que é ateu, como eu) perdoe aos milhões de carrapatos que tornaram este “filme” um mega-sucesso de bilheteira. O que só indica que a frivolidade e a menstruação das múmias congelaram os cérebros. Trump vai voltar, melhor sintoma do que este não há!» – mas a coisa é mais triste.

Bom exemplo de cinema, para traçarmos um contraste, é “O Poder do Cão”, de Jane Campion (o melhor da realizadora em muitos anos). Este western, para além de nos arrebatar pelo modo como nunca se esquece do espaço como dimensão cénica (em vários planos as montanhas ganham a maciez de uma pele de animal), sufoca-nos com a teia psicológica que o carismático vaqueiro arma em redor daquele adolescente irresoluto e de dúbia sexualidade.

Como as aparências nos enganam. Durante uma hora vivemos a angústia do cordeiro que sente a águia a pairar. O espectador é penetrado pela atracção e o conflito entre as personagens, bem enfatizado no choque entre a escala das paisagens e a intimidade do drama. Não há um plano neutro, uma cena neutra, tudo é indício numa escalada natural da emoção e, neste filme, a inteligência finta-nos, surpreende-nos, sidera.

Nos filmes da Marvel já é indiferente a posição da câmara (intenta-se o olhar ubíquo de Deus, no afã de tudo mostrar e de tomar o espectador por idiota) e os seus enredos não oferecem um verdadeiro conflito, um prévio determinismo associado aos poderes dos super-heróis reduz o Mal a papel-bolha. Não há limites físicos para os heróis, a dor, neles, é uma mera questão turística – os obstáculos atrasam apenas a rendição do Destino à eficácia dos seus poderes.

Ora, justamente, como na tragédia grega, o cinema vive do conflito entre a irrevogabilidade do Fado e a vontade das personagens, sendo aquele um obstáculo a que nem os deuses escapam. Hollywood inventou os finais felizes, mas não raro as mais magníficas personagens derrapavam num sentimento da perda, só lhes sobrando a dignidade, uma redenção nada isenta de sacrifício.

Há pouco assisti com deleite e susto a um vídeo onde o Tarantino enumerava os 20 melhores filmes deste século, na sua perspectiva. Vi depois o filme japonês que ele elege inequivocamente como a obra-prima do século, “Battle Royale”, e conclui, o Tarantino percebeu que na América ganha mais se der sinais de não ter crescido e exalta filmes muito imbecis para que se realce que ele é melhor cineasta que os seus modelos. É uma boa estratégia.

Já nem se procura que a técnica sirva adequadamente o ethos da história e a tessitura emocional das personagens. O marketing e a pirotecnia tecnológica abafam tudo. São grandes espectáculos mas são derivados do cinema, tal como o néon tem a forma da salsicha sem lhe atingir o sabor. Se senti um desequilíbrio em quase todos os últimos filmes de Scorsese, tão virtuosos tecnicamente como vazios na espessura e no interesse humano dos personagens (e estou a falar de um dos melhores), como encarar esta vaga de fitas da Marvel?

É um equívoco procurar aqui uma correspondência da “arte pela arte” que, noutras disciplinas artísticas, desencadeou algum amaneiramento estilístico. O Tarantino, com a eleição de “Battle Royale” pôs as cartas na mesa. As indústrias culturais já não servem a arte – a memória desta é um escolho e por isso apostam agora todos os seus trunfos na fraude.

Entretanto, já pensaram, o mesmo argumentista que deu aos primeiros filmes de Scorsese um carácter especial, uma profunda densidade humana, é o cineasta da “moda” nos últimos anos – Paul Schrader?

14 Jan 2022

És um peixe, parte de um cardume, numa rede

Não sei se é lenda urbana ou se corresponde a alguma realidade: um estudo comportamental realizado no século XX nas grandes cidades, povoadas por milhões de pessoas, chegou à conclusão de que os nossos padrões de existência e convivência tornavam os seres humanos cronicamente infelizes.

Explicava então o documento que para um ser humano o objecto mais interessante é a face de outro ser humano. Por isso, quando alguém nos cruza na rua, automaticamente, de forma inconsciente, a intenção do nosso cérebro é guardar aquela face na memória, tarefa impossível de realizar quando circulamos no seio de uma gigantesca multidão e milhares de faces se nos apresentam ao olhar.

Daí que este tipo de experiência nos cause desconforto e sobrevenha a tendência para baixar os olhos, evitando assim reparar na avalanche de faces que ao nosso lado desfilam. Explicaria ainda o estudo que, em termos gerais, física e psicologicamente, não somos muito diferentes dos nossos antepassados que viveram milhares de anos seguidos em pequenas comunidades e a essa configuração de aglomerado estavam ferreamente acostumados. Ou seja: a evolução biológica e mesmo psicológica do animal humano não foi capaz de acompanhar a evolução das suas criaturas. Ou, ainda por outras palavras: a cultura ultrapassou de longe, de muito longe, as possibilidades biológicas e a humanidade criou as condições perfeitas para a sua própria insatisfação.

Neste processo, a civilização ocidental deu pela emergência de um ser singular, estranho ao mundo antigo, sucedâneo do advento do capitalismo como modo de produção predominante: o indivíduo. Honestamente, não podemos dizer que o indivíduo seja unicamente uma criação económica da burguesia comercial florescente. O conceito como que subjazia a todo o pensamento, canónico ou mundano, desde que o ser humano iniciou a sua peregrinação pelo mundo. Claro que essa assunção foi sempre limitada por constrangimentos sociais que – e bem – compreendiam ser o desejo ilimitado do indivíduo, o seu egoísmo e a centralidade desses desejos, a semente de destruição das sociedades e da sua cultura.

A inovação, a originalidade, a mera distinção, foram sempre olhadas com desconfiança no mundo antigo, quer na Europa quer na China. Os desejos individuais, egoístas, foram em todos os tempos e em todas as civilizações, considerados o mal no mundo, a origem da desgraça e o resultado de uma profunda inadequação à nossa condição existencial. Esta é, na realidade, profundamente gregária. Contudo, o indivíduo sempre esteve lá.

Segundo Peter Sloterdijk (em Stress and Freedom), é em finais do século XVIII que, entretanto, esse mesmo indivíduo ganha foral teórico num texto de Jean-Jacques Rousseau, a saber, no quinto passeio, descrito no livro “Promenades d’un Rêveur Solitaire”. O filósofo suíço gozava na Europa da sua época, depois de obras como o “O Contrato Social”, “Emílio ou da Educação” ou o “Ensaio sobre a Origem das Línguas” de um estatuto de celebridade que não impedia, ainda assim, as autoridades suíças e francesas, inquinadas pela Igreja, de o perseguir por heresia.

Por isso, refugiara-se numa ilha perdida, praticamente deserta, no seio do Lago Biel, na sua Suíça natal. Aí, segundo Sloterdijk, “algo semelhante a um Big Bang ocorreu na moderna poesia da subjectividade”.

Dias depois de se ter instalado na ilha, Rousseau entrou sozinho num pequeno bote, deixando em terra a sua companheira Marie Thèrese, e remou para o meio do lago. Pouco depois, pousou os remos, deixou o barco ao sabor dos movimentos das águas e, sob o sol magro das terras helvéticas, dedicou-se à sua ocupação favorita: o devaneio (rêverie). Sloterdijk chama a atenção que esse “fluir da alma sem se agarrar a nenhum tópico como meditação imaterial” teria um sentido muito mais europeu do que oriental. Rousseau descreve que, por vezes, deixava o barco e o espírito vaguearem sem objectivo durante horas a fio, o que lhe proporcionava um prazer supinamente mais intenso do que o que se costuma designar por “prazeres da vida”. Nas suas palavras:

“Que prazer se retira então de uma tal situação? De nada exterior a si mesmo, de nada senão de si mesmo e da sua própria existência, pois enquanto esse estado dura é-se suficiente a si mesmo, como Deus. O sentimento da existência, despido de qualquer outro afecto, é em si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que por si só seria suficiente para tornar essa existência querida e doce para quem pudesse remover de si todas as impressões sensuais e terrenas que sem cessar nos distraem e perturbam a doçura da existência neste mundo.”

Aqui temos, portanto, a descrição de um indivíduo despido de intenções políticas, sociais, económicas, intelectuais, cognitivas ou mesmo artísticas. Ele é, praticamente, uma consciência pura, para si (indivíduo) e em si (essência/Deus), que puramente goza da mera existência, separada da existência dos outros homens, da cultura e da sociedade, num mero acto de auto-reconhecimento, ainda assim dotado de uma extrema profundidade. Nunca antes o indivíduo se atrevera a fazer de si mesmo uma tal descrição e sobretudo confessar que a pureza que advinha da construção desse instante lhe proporcionava um inaudito prazer.

Rousseau apresenta-nos um indivíduo sujeito de si mesmo (não do rei ou da própria linguagem), independente, totalmente livre, pelo menos enquanto mergulhado nos seus devaneios próprios e distante de qualquer contacto social. Este homem rousseauniano prescinde do resto da humanidade e adquire nesse distanciamento um prazer descrito como o mais sublime de todos os prazeres, embora consista unicamente na constatação e fruição da sua existência enquanto consciência individual.

Como acrescenta Sloterdijk, não estamos perante o tédio heideggeriano ou a consciência infeliz de cristãos, budistas, estóicos, freudianos e outros que têm moldado a nossa relação ao mundo. Este indivíduo, meramente por ser dotado de consciência, de um pleno sentimento de si, é soberano e feliz.

*

Ora este homem, este sentimento de absoluta solidão perante o cosmos, este sentimento de total liberdade, praticamente desapareceu. Desde os anos 90 do século XX que constantemente, em permanência, nos sujeitamos voluntariamente a outro tipo de experiência eminentemente social: vivemos em e para a rede. A consequência do advento da internet é, singularmente, uma vivência de grupo, ainda que virtual, dispensada que está a proximidade física para a maior parte das actividades humanas. Concomitantemente, a presença constante do telemóvel obriga-nos a estar a todo o momento à disposição dos outros. Estes exigem a nossa presença e a sua permanente existência constantemente nos faz viver para e com eles, considerando as suas opiniões os seus “gostos” e “desgostos”, um novo tribalismo cujas fronteiras ainda que mal definidas não deixam ainda assim de nos limitar as escolhas, os pensamentos, os atrevimentos.

Navegamos por diferentes redes sociais consoante a qualidade dos nossos desejos, mas estes encontram-se a todo o momento em xeque face às reacções que vamos obtendo e acabam por ser moldados por esse novo grande Outro que é o fantasma incognoscível que preside, finalmente, às redes sociais: os algoritmos que determinam o seu funcionamento. Nelas se espoja a nossa intimidade, as nossas opções políticas; nelas encontramos as ideias que confirmam as nossas e as dos nossos; sobretudo, nelas sorvemos a informação que instrói a nossa forma de pensar e fatalmente os temas em que pensamos. Sempre no plural, sempre acompanhados. A nossa servidão – no passado voluntária, na expressão de La Boètie, portanto de algum modo consciente e racional – é já hoje e será no futuro automática, algoritmizada, escapando totalmente ao nosso controlo. Pior: proporciona-nos uma estranha sensação de reversibilidade, de ilusão de escolha individual quando, na realidade, se passa precisamente o seu oposto.

O indivíduo, tal qual o experimentara Rousseau, e que depois atingiu o seu zénite no século XIX, morreu ou vegeta num limbo crepuscular sem capacidade de acção ou pensamento realmente solitário. Por vezes, é quase cómica a tentativa nietzscheniana de o salvar, embora a cada linha do filósofo alemão, a cada construção conceptual mais ou menos radical (como o Ubermensch) se pressinta a consciência do seu irremediável desaparecimento.

Edgar Allan Poe, perante o advento do mundo industrial e das grandes cidades, identificara já, no conto “O homem da multidão”, o horror da vida urbana que remete o ser humano, ao mesmo tempo, para um paradoxal sentimento de anonimidade, solidão e falta de outro propósito que não seja o estar acompanhado, embora tal não incluísse o contacto efectivo com outros seres humanos. O “homem da multidão”, um velho magro e demoníaco, recusa estar sozinho, precisa inexplicavelmente das massas, dos seus ruídos e vociferações, independentemente das suas qualidades (estamos já a caminho do “reino da quantidade”, a travessa em largura da cruz, de que nos fala René Guénon), mas nunca interage realmente com outros seres humanos, como se a presença do outro lhe fosse, a um tempo, fundamental e repugnante. Hoje, sentados em frente aos nossos objectos tecnológicos (porque albergam um intrincado logos) ou ocupantes da nossa mão, dos nossos dígitos, somos precisamente esse homem, na impossibilidade simultânea da solidão e do contacto.

Por outro lado, a globalização imprimiu uma machadada quase final nos chamados direitos individuais. Heidegger advertira-nos para as consequências radicais da primazia da técnica e de como esta embrulharia o seu criador numa teia da qual ele seria incapaz de se desenvincilhar. No filme “The Imitation Game” é exposto como a máquina adquire o seu estatuto máximo e rex, no sentido tirânico e devorador: o aparato codificador Enigma, que serve o império nazi, só pode ser batido por outra máquina e não por um grupo ainda que vasto de homens extremamente inteligentes, como explica Alan Turing ao construir o dispositivo que prefacia o actual computador. Este episódio marca a ascensão da técnica a um patamar de superioridade sobre o indivíduo do qual não voltará a descer, submetendo os sujeitos à presença e uso constante de objectos técnicos cujo funcionamento lhes escapa.

Afastamo-nos, assim, radicalmente, do tempo em que os objectos técnicos eram produzidos como reproduções melhoradas do corpo humano (como o martelo que imitava um punho, etc.. Hoje sobra-nos a, já de algum modo ridícula, transmissão de energia eléctrica que tem ainda como modelo o acto sexual). Neste novo mundo, os objectos técnicos baseiam a sua existência e funcionamento em formulações de partículas subatómicas, teorias quânticas, que são inspiradas por representações inacessíveis aos indivíduos que as utilizam ou são utilizados por elas. O progresso tecnológico preside assim à extinção do conceito moderno de indivíduo.

Hoje, sobretudo quando nos deparamos com questões que todos afectam num planeta cada vez mais pequeno e do qual foi erradicado o mistério, são os direitos colectivos que se preparam para assumir a primazia. Estes são apresentados como a possível salvação de uma humanidade que o excesso de individualismo e dos direitos individuais parecem conduzir, inevitavelmente, à extinção. O modelo económico neoliberal transformou o capitalismo num regime acéfalo e canibal, no qual definharam as responsabilidades individuais. As corporações transnacionais, com os seus conselhos de administração impessoais e os seus anónimos accionistas, substituem o tradicional capitalista/industrial, enfeitado pelo charuto e decorado Rolls Royce, que reproduzia ainda a inveja do estar aristocrático. A exponencialização, tida como imparável, do crescimento baseado no lucro, que se apresenta como a única possibilidade (there is no alternative), não tem consciência ou qualquer culpabilidade perante o seu auto-canibalismo e tem dependido, em grande parte, da deslocação das fábricas para países onde ainda é possível explorar intensivamente uma mão-de-obra barata, e da destruição sistemática da relação da espécie humana consigo mesma e com a Natureza, como se a primeira já não dependesse da segunda para a sua sobrevivência. O “mundo enquanto fábula” cartesiano permitiu ao conhecimento abandonar os seus limites ético-religiosos e avançar sem temor para a situação em que se acredita piamente na capacidade da humanidade para recompor aquilo que cega ou racionalmente destrói.

“O sonho da razão produz monstros” avisa uma gravura de Goya, na qual vemos um homem adormecido sobre uma mesa de trabalho, cercado de estranhos mochos, morcegos e outros seres monstruosos, que o assoberbam. O pintor espanhol prevê a monstruosidade de Auschwitz, o mais racional dos grandes crimes. Aparentemente, ninguém lhe prestou muita atenção e mesmo que tivessem prestado, provavelmente, pouco poderiam fazer.

Hoje, no mundo global, a ética dá lugar a uma nova moral, construída a partir de problemas e situações que dizem respeito ao que o presidente chinês Xi Jinping chama de “comunidade global de futuro partilhado”. Assim, ninguém tem a possibilidade de estar realmente sozinho, tal como ninguém se pode eximir da sua responsabilidade para com o outro.

As doenças do indivíduo, como as velhas histerias freudianas e a paranóia, a esquizofrenia enclausurada ou mesmo a depressão do actual homem-empresa, produto da sociedade da performance descrita pelo filósofo coreano Byung-Chul Han, não cessaram a sua existência, mas são ridiculamente insignificantes quando pensamos nas doenças colectivas como o aquecimento global e a destruição dos ecossistemas, a fragilidade neoliberal dos mercados ou as neo-pandemias para as quais se adopta uma cura autocrática, que passa precisamente pela ascensão dos direitos colectivos face aos direitos individuais. Esta emergência surge-nos, ainda por cima, crismada de uma inevitabilidade derivada da actual situação do planeta e surge decorada racionalmente como a única salvação possível de uma nova humanidade a haver.

*

O advento da pandemia provocada pelo covid-19 teve como resultado a visualização concreta, nas ruas das nossas cidades, entretanto reduzidas a espaços de consumo, centros comerciais, do design futuro deste mundo contemporâneo do qual o indivíduo rousseauniano se evola. Se, durante os séculos XIX e XX, na sequência das revoluções industriais e do deslocamento massivo para as cidades, já se referia a existência de multidões anónimas, como se descreve no início deste texto, a necessária utilização da máscara reforça de modo radical a anonimidade destas massas que hoje percorrem essas cidades. A Oriente é mais evidente: nas grandes metrópoles fervilhantes de milhões, a máscara altera, uniformiza, ainda mais a paisagem urbana, subtraindo-lhe a pequena dose de diferença que constitui a face humana. Afinal, a face é o que distingue um indivíduo do outro e permite o seu reconhecimento efectivo. As roupas, os cortes de cabelo, as joias, os automóveis, são símbolos eminentemente sociais e não individuais. De máscara posta, reconhecemos um grupo, uma pertença, até talvez uma ideologia, mas não um indivíduo.

De máscara em riste, fenece a empatia. A face – lugar da irredutível diferença, da prova da existência individual, a face que nos “impede de matar” (Levinas) – surge agora ocultada. Ora se a face é o lugar da irredutível diferença, da prova do indivíduo, a sua ocultação significa a extinção desse indivíduo na massa, passando a ser unicamente reconhecido pelos símbolos colectivos que ostenta mas não por aquilo que imediata e radicalmente o diferencia de todos e o torna num ser único – a sua face ou, se quisermos, a facialidade (visageté).

Tal explica a maior, ainda que fútil e perigosa, resistência ao uso da máscara sanitária em tempo de pandemia no Ocidente, que ainda se sonha eminentemente individualista, por oposição ao Oriente confucionista, onde a moral é há muitos séculos a principal preocupação dos pensadores e dos sistemas de pensamento. Em palavras contemporâneas, diríamos que, para Confúcio, o homem é, antes de mais e de tudo, um produtor de moral. Sabe distinguir o bem do mal e encontra-se dotado de livre arbítrio. Estas qualidades distinguem-no dos animais e de todos os outros seres. Portanto, daqui advém também a sua responsabilidade, o dever de incorrer em acção correcta, de modo a criar um mundo em que prevaleça a harmonia.

Assim, o modo como se apresenta, como se veste, como anda e como fala; o que diz, o que lê, o que desenvolve como actividade, o que produz e como se dirige aos outros; enfim, toda e qualquer acção humana (e mesmo a ausência dela) é imediatamente produtora de valores morais (e, num plano superior, estéticos), quer como exemplo para os outros, quer a partir dos resultados das práticas concretas.

De sublinhar que, ao contrário de Sartre (para quem “o inferno são os outros”), o confucionismo clássico só entende o homem em relação com outros homens, como animal gregário, social e cultural. Para ele, a vida são os outros e este é um facto incontornável. Dos desígnios do Céu, do mundo, da vida depois da morte, dos espíritos, pouco ou nada sabemos e de nada podemos ter a certeza. Por isso, antes de mais, devemos regular o que podemos controlar: as nossas relações humanas e sociais.

O confucionismo é um pensamento moral e ético, que visa uma prática, destinado a contribuir para uma excelsa regulação das relações entre os homens e destes com o mundo. Pensamento político, com certeza e, em grande parte, destinado aos que exercem o poder, no sentido de os convencer da necessidade imperiosa de autovigilância, virtude e benevolência nas suas acções, o confucionismo cedo ignora a metafísica e centra-se na regulação dos assuntos humanos.

Não por acaso, os actuais movimentos sociais de protesto utilizam a máscara para contrariar a tecnologia de reconhecimento facial, que se erigiu em arma repressiva, sustentada pela proliferação de câmaras de vigilância.

Paradoxalmente, portanto, espelham a anulação do indivíduo na sociedade contemporânea. É o caso das máscaras de Guy Fawkes, inspiradas pelo grupo virtual Anonymous e divulgadas pelo filme dos irmãos Wachowski “V for Vendetta”, utilizadas em vários Occupy; ou das máscaras negras dos activistas de Hong Kong, entre outros. A utilização de máscaras implica prescindir de uma responsabilidade individual nos protestos, de um assumido temor individual de represálias futuras, impensável, por exemplo, nas manifestações parisienses do Maio de 68. Nessa altura, a máscara não fazia parte da parafernália do cidadão, que orgulhosamente ostentava a sua face enquanto indivíduo politicamente consciente e orgulhosamente distinto da manada submissa e sem consciência de classe. A face mascarada pertencia ao reino do bandido, do assaltante, do fora-da-lei, sem consciência política e social.

*

Não é que este sentimento de perda individual não existisse já antes da pandemia e do uso da máscara. Por exemplo, como explicar a extraordinária disseminação recente da prática da tatuagem? Estamos longe, por exemplo, da explicação dada por Claude Lévi-Strauss, quando nos seus “Tristes Tropiques”, refere as tatuagens dos índios Caduveros como um meio de mostrar que se pertence à comunidade dos humanos por oposição aos animais e ao estado natural. Neste caso, não tatuar o corpo significaria uma recusa de pertencer ao grupo e, portanto, de se excluir da humanidade. Por outro lado, Lévi-Strauss refere que cada tatuagem, além deste objectivo geral, representa com os seus grafismos específicos a posição social de cada um.

Já Slavoj Zizek, curiosamente em sintonia com o referido antropólogo, entende que o uso da tatuagem estará relacionado com o pudor. Para o filósofo esloveno, a proliferação das tatuagens consiste num revestimento da pele, de um corpo que não se suporta totalmente nu, de tal forma que mesmo quando está sem roupa nunca se apresenta despido e natural.

É, contudo, na nossa opinião, Jean Baudrillard quem mais se aproxima de uma explicação eficiente quando, em “L’échange symbolique et la mort”, alvitra que o desenvolvimento do individualismo foi acompanhado de uma sacralização do corpo que “investido de um valor de troca, se torna num objecto fétiche” que é preciso fazer render, seja no ginásio, seja através da sua inscrição. A tatuagem passaria assim pelo “narcisismo da pequena diferença”, uma forma de se fazer notar e suscitar o desejo.

Quanto a mim, na linha deste autor, a tatuagem, os piercings, parecem-me ser uma tentativa inconsciente, um acto desesperado de individuação, na medida em que cada sujeito julga tornar o seu corpo indelevelmente distinto pela inscrição do que ele, enquanto hiperconsumidor (Gilles Lipovetsky, Le Bonheur paradoxale), entende ser uma escolha própria, especial, de símbolos individualizados. Se, nas sociedades passadas, a tatuagem significava a pertença a um determinado grupo, hoje a tatuagem procura sobretudo marcar a diferença, com todo o desespero possível a um “escravo de Estaline”, a frase que alguns dos prisioneiros dos gulags tatuavam nas testas, como forma de denúncia e resistência. Claro que, nas tatuagens contemporâneas, os símbolos são colhidos em conjuntos pré-existentes e que muito pouco têm de individual, constituindo assim mais uma armadilha de comportamento grupal, travestido de representação individuada, neste suave gulag global da produtividade e do crescimento económico compulsivo, do que uma resposta efectiva ao pressentido pesadelo: o esvanecer inelutável do indivíduo.

Não vale a pena insistir na ilusão, como se o desaparecimento do Outro, proclamado por Byung-Chul Han, em “A Agonia de Eros”, significasse um reforço de Si. Han tem razão quando atribui ao sujeito contemporâneo um narcisismo primário, relacionado com o sucesso e distante do amor-próprio. Contudo, este sucesso precisa do reconhecimento alheio. É, nesse sentido, predador como a sociedade que o inspira. Mas, bem vistas as coisas, o outro apenas se extingue, impossibilitando Eros, ou se torna insignificante, minimal, quando se dá ao mesmo tempo um esbatimento de Si, num movimento narcísico primevo de contemplação bacoca que implica extinção e morte de um logos único, na própria reflexão distorcida do indivíduo. Sim, somos atópicos, sem outro lugar que não seja, ainda assim, o reflexo que o outro nos proporciona. E, sem lugar próprio, sem Lago Biel para experimentarmos ao limite esse sentimento de Si, profundamente individual, somos finalmente meros sujeitos, como queria o estruturalismo, e não o homem senhor de si mesmo, capaz de justificar e responder pelas suas próprias decisões, que Nietzsche pretendeu, em desespero, imaginar como futuro. A questão ganha então um sentido trágico, irreversível, quando o dito outro, antes erotizado, deixa também de ter uma existência concreta e se resume a um devir digital, tinderizado.

Conclusão: és um peixe, parte de um cardume, numa rede. O que terei sempre de meu, de único, de irrevocável, de intransmissível na sua imensidade, é a dor. Aí, talvez, em certos casos, valência no caos, luz trémula na noite do mundo, persista ainda a permanência dessa ilusão que entendemos chamar indivíduo.

Artigo publicado na revista Torpor

13 Jan 2022

A Terra furiosa

O ciclo das batidas deste nosso Quaternário deixou de ser há algum tempo o da plurivalência de um planeta diverso, sim, porém indiviso no seu todo orgânico onde por longas eras espalhou equilíbrios sem deixar nunca de ser duro, brutal e repentino. Nesta última regência onde muitos ciclos humanos prosperaram, era ainda ele a inquebrantável sustentação do nosso mérito evolutivo, e nós, assim habituados, não soubemos antecipar o evidente choque que hoje vivemos.

Tempo anunciador esta década vivida! Apercebemo-nos como se rompem os complexos laços da sustentabilidade que nos pareciam infindos e como a radicalidade é afinal uma lei física que não deixa espaço para titubeantes e fraudulentas interpretações. Os sinos tocaram, e cada um, com mais ou menos capacidade de interpretação, lá foi gerindo a sua dinâmica do impacto, é certo – mas ninguém nos prepara para a crueza dos factos, nem para as disfuncionalidades dos programas, nada adianta elaborar perspectivas face ao repentino, inaudito, transfigurável e imprevisto. É aqui que chegámos, puxados pelas “correntes” atmosféricas.

E eis-nos a perscrutar os serviços meteorológicos como se fossem oráculos, pois de tudo o que de tão interessante existe ou deixa de existir, é essa efervescência que domina o frontal occipital que teve rápido de saber confrontar-se entre vital e acessório – mas uns dormindo não terão nem tempo para ligeiras metamorfoses, serão absorvidos com os neurónios intactos na grande Transformação. Melhor para eles!

É agora, e nunca como agora, que temos de ser progressistas, pois que não haverá mais nada para onde voltar: voltar à terra, aos prazeres bucólicos, aos muitos “aos”…. Não vamos voltar, na medida em que é neste grave instante uma ideia de miragem, pois que nada nos acolhe com a mesma estrutura encaminhada no sonho humano que gerou com a vida coisa prodigiosa, sim, mas que se rompeu, e também o Coro clamoroso dos que andam há anos debatendo a mesma coisa, com a paciência a que se atribui muitas vezes alto grau de pouca convicção, e sempre (ou talvez?) de ilustre incompetência, nós não vamos sair daqui da forma como chegámos.

Já entendemos que ficar brandido em cima da onda é o último púlpito de um grande acontecimento que a todos ultrapassa, ninguém largará o seu pódio antes da última enxurrada (como também alguns não largaram os seus livros quando foram para as câmaras de gás, e disseram: «o último segundo de vida ainda é vida» estando até aí corrigindo textos) – É! Chamar-lhe-emos resiliência? Não sei. Mas sei que é apanágio humano ir até ao limite de um processo, sempre em marcha lenta, que o ruído dos impactos nos aterrorizam ainda mais.

Se nos ocuparmos a discutir tal temática averiguamos como o mundo está prenhe de Carlos da Maia em direcções de onde até o fogo vem, o degelo endoidece, e as neves se transmutam, e num ápice, estamos numa estação pequena, todos juntos, para apanhar o elétrico: é que, mesmo que o mar já se levante na última maré, estamos atrasados para o jantar.

Merece-nos no entanto uma consideração dolorosa o que temos visto de fauna e flora literalmente engolidos por esta nova realidade de contornos bíblicos, e não raro, quem for ainda mais perscrutador, pensará escutar um estranho uivo das entranhas da Terra.

– Embarques para Cítara, perfeito! Local mítico paralelo a esta vida gerada, levando amigos, pajens, nas barcas do sonho… foi porque assim sonhámos que somos humanos e que hoje entendemos que não tarda teremos de procurar novos habita (s) se para tanto desejarmos continuar viagem. Não tardarão “bolhas” que são construções adaptadas a uma necessidade de oxigénio na nova vida planetária, com estruturas tais que não consideramos, só que elas não vão esperar pelo entendimento na voragem de um planeta que nos faz agora os mais intrigantes reféns.

– Inviabilizámos muitas coisas, mas face a isto não estamos preparados como seria conveniente. O Filme acabou, estamos numa produção de autor.

– Outrora, creio que a Terra sorria, lembro-me da força do iodo, do chão, das glândulas que cheiravam a estonteantes coisas que já nem sei explicar, tão forte se nos apresentava que a teríamos dado como imortal – não, não foi num outro Quaternário, foi tão só há quarenta anos- nós já morremos no espírito da Terra, e não aprendemos leis que nos libertem das suas inevitáveis agruras.

12 Jan 2022

Tudo o que precisa saber sobre Zhang Yimou

O Cinema é um formato belo e único. É simultaneamente um jogo e um transformador desse mesmo jogo. Nesta série, a autora e pensadora visual, Julie O’Yang, apresenta 12 figuras do cinema chinês, as suas obras e as suas invenções estéticas, que acabam por se revelar as invenções estéticas de antigos filósofos.
por Julie Oyang

 

 

Embora muitos sejam literalmente desconhecidos no Ocidente, a China tem sido, desde a fundação da República Popular, berço de alguns realizadores de gabarito internacional. Mas por vezes ficamos com a sensação que o cinema chinês se resume a um nome: Zhang Yimou.

Alegadamente um dos maiores cineastas de todos os tempos ultrapassou a barreira da nacionalidade. Seja qual for o tema que tratam, os seus filmes são visualmente deslumbrantes. Zhang Yimou é um criativo, simultaneamente criador de imagens sagaz e empreendedor. Por um lado existem realizadores e por outro lado existe Zhang Yimou.

A de “Art” ( Arte).  Os principais interesses de Zhang são a fotografia e a literatura. Estudou na Academia de Cinema de Pequim e a sua paixão transportou-o para a vanguarda do cinema internacional, com a estreia do seu primeiro fime, Sorgo Vermelho (1987) protagonizado por Gong Li.

B de “Businessman” (Homem de Negócios). Zhang é realizador, mas também é um homem de negócios. Zhang Yimou é uma marca, que se expandiu com o seu inconfundível cunho à ópera e aos musicais, mantendo sempre cenários espectaculares.

C de “Challenge One-child Policy” (Desafiar a Política do Filho Único). É alegadamente pai de 7 crianças, nascidas de 4 relações. Em 2014, o Gabinete de Planeamento Familiar, em consonância com a política do filho único, exigiu que Zhang pagasse uma multa por nascimentos não planeados e para cobertura de gastos com a segurança social no valor de 7.48 milhões de RMB (cerca de 1,2 milhões de dólares americanos). Diz-se que Zhang pagou a multa.

D de “Dedication” (Dedicação). Na sequência do sucesso dos filmes artísticos, Zhang decidiu fazer filmes comerciais (Herói, O Segredo dos Punhais Voadores) e também explorar um cinema mais auto-biográfico (Um Segundo).

E de “Collective Experience” (Experiência Colectiva). Zhang parece interessar-se pelo contexto de todas as coisas. Zhang Yimou: “Durante milhares de anos tem existido a tradição de nos ensinar a pensar em termos da experiência colectiva, por isso é raro conseguirmos agir em função dos nossos desejos e das nossas emoções.”

F de “Fight and Love with a Terracotta Warrior” (Luta e Ama com um Guerreiro de Terracota).  Em 1990, no filme Hong Kong, interpretou Tian Fong, a personagem masculina principal.

G de “Gong Li” (Gong Li). A actriz Gong Li foi decoberta por Zhang enquanto estudava na Academia de Cinema. As suas relações pessoais e profissionais recebiam eram seguidas de perto pela comunicação social, enquanto trabalharam juntos numa série de filmes aclamados e marcantes. Esta atenção lançou-os no mundo do estrelato internacional. Zhang Yimou e Gong Li são o equivalente de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman.

H der “Host” (Anfitrião). Zhang é o anfitrião criativo da Pátria. Acreditava que as audiências ocidentais podiam construir uma ideia da China através dos seus filmes, que via como exccelentes veículos de promoção da cultura chinesa.

I de “Industry” (Indústria). Zhang Yimou é um dos poucos realizadores que quebrou as regras do cinema chinês e que desafiou as convenções. O realizador contrbuiu imenso para a indústria cinematográfica chinesa e estabeleceu novos padrões.

J de “Justice” (Justiça).  A História de Qiu Ju, de 1992, é uma comédia dramática protagonizada por Gong Li. Conta a história de uma camponesa, Qiu Ju, cujo marido foi agredido na virilha pelo chefe da aldeia. Qiu Ju, apesar de estar grávida, viaja até à cidade mais próxima à procura de justiça. Os críticos cinematográficos interrogaram-se se este não seria um filme de propaganda para apoiar o esforço do Governo na implementação do “Estado de Direito”.

K de Akira Kurosawa (Akira Kurosawa). O realizador japonês foi o seu guia espiritual. Zhang é largamente influenciado pelo grande mestre.

L de “Loyalty” (Lealdade). Nos seus filmes mais recentes, Zhang aborda os heróis nacionais, os oficiais leais, as pessoas honradas, os governadores criteriosos, os artesãos habilidosos que, como ele próprio, dão contributos extraordinários ao seu país.

M de “Meaning” (Significado).  Zhang Yimou transmite um significado mais profundo nos seus filmes através da utilização de elementos chineses.

N de “Nimbleness” (Agilidade). Zhang é um estratega ágil e vende as suas obras com sucesso.
O de “Olympics” (Olimpíadas). O que é que aconteceria se juntássemos um realizador apaixonado por efeitos visuais deslumbrantes com a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos? Obtinhamos um bilhete para a entrada da China no palco mundial como superpotência emergente. Bom trabalho!

P de “Pioneer” (Pioneiro).  Um pioneiro na sua visão do passado da China, as suas narrativas transportam sempre um significado simbólico.

Q de “Quote” (Citação). “Como o mundo seria maravilhoso se as pessoas tivessem corações como os dos cães.”

R de “Revolution” (Revolução). Teve uma relação complexa com a Revolução Cultural.

S de “Soft Power” (Poder Persuasivo). A Grande Muralha (2016) realizado por Zhang Yimou é uma co-produção entre a China e Hollywood, protagonizado por Matt Damon, Willem Dafoe e a superstar chinesa Andy Lau.  Este filme é um exemplo dos esforços para alcançar um novo tipo de poder, o poder persuasivo chinês, que pretende colocar a China num lugar de destaque no palco mundial.

T de “Tea” (Chá). Impression Dahongpao (2010) é um recinto de espectáculos que cobre quase um hectare. Com um orçamento de 200 milhões de yuan, cerca de 29 milhões de dólares americanos, o espectáculo ao vivo de 70 minutos apresenta uma configuração com um ângulo de 360 graus e tem capacidade para acolher de 2.000 espectadores, evidenciando o cenário magnífico da Montanha Wuyi e da sua rica cultura do chá.

U de “UFO” (OVNI). Corre o rumor que no Verão de 1985, Zhang Yimou e Chen Kaige estavam a filmar juntos quando viram um OVNI! Esta experiência pode ter estado na base da criação da comédia O meu Povo , a minha Pátria (2020), produzido por Zhang Yimou.

V de “Visual” (Visual). Zhang é um mestre da cor. A cor nos seus filmes é uma linguagem profunda e misteriosa e ter o poder de influenciar as nossas almas.

W de “West” (Ocidente). O impressionante conjunto das obras de Zhang Yimou apresentam sistematicamente aos olhos admirados das audiências ocidentais uma cultura que se vai alterando sob a batuta da globalização, relacionando ideias e implicações sobre o poder, a soberania, a justiça e a modernidade chinesas. Pela primeira vez é nos apresentada a Terra do Dragão situada no globo.

X de “Xi’an” (Xi’an). Nasceu em Xi’an, o berço da civilização chinesa. A antiga metrópole foi o ponto de partida da primeira Rota da Seda.

Y de “Yearning” (Anseio). Os seus primeiros filmes eram arrojados, histórias apaixonantes que se centravam em mulheres que combatiam a opressão. Zhang retrata o olhar feminino consumido pelo anseio.

Z de “Zhang Ziyi”. A actriz de Memória de uma Geisha e de O Tigre e o Dragão tornou-se a segunda superstar lançada por Zhang Yimoua, a seguir a Gong Li.

Zhang Yimou nasceu a 14 de Novembro de 1951, em Xi’an. É um realizador chinês, actor e produtor.

A não perder: Sorgo Vermelho (1987), Lanternas Vermelhas (1991), To Live (1994), Herói (2002), O segredo dos Punhais Voadores (2004), A Grande Muralha Wall (2016) Cerimónia de Abertura dos Jogos Olimpícos de Pequim (2008)

 

Julie O’Yang é uma autora de naturalidade chinesa, artista e argumentista. É ainda colunista multilingue e formadora em criatividade. As suas curtas metragens foram seleccionadas para o Festival de Vídeo de Artistas Femininas e também para a Chinese Fans United Nations Budapest Culture Week. Actualmente, é professora convidada da Saint Joseph University, em Macau. Gosta especialmente de partilhar histórias inesperadas, contadas a partir de perspectivas particularmente distintas. Divide a sua vida entre Amsterdão, na Holanda, e Copenhaga, na Dinamarca.

11 Jan 2022

Relíquias perdidas do Templo de Gua Tai shan

Acima do nível do mar 1363 metros, a Colina de Gua Tai encontra-se no vale de SanYang, por onde corre em S o Rio Wei. Em viagem, numa estrada feita em 1993, embalados na cabaça (Hulu, 葫芦), já que o nome de Fu Xi significa oriundo de uma cabaça, chegamos ao recinto do Templo.

Há cinco mil anos, Fu Xi na juventude explorava o local pois habitava ali próximo, numa gruta, talvez onde nascera. Enquanto criança habituara-se a olhar à sua volta, vendo o comportamento dos seres vivos, animais, humanos e pássaros. Já jovem, em reflexão, do cume da colina contemplando, entendeu o Espaço onde prescreveu as relações da Natureza, e até aos 12 anos compreendeu as Leis Naturais. Nesse estar, questionando os anciãos quando necessário, se fez o primeiro dos Ancestrais Soberanos ao visualizar os oito diagramas, matematizando-os em trigramas.

No palácio central, Xian Tian dian, encontrava-se a meio do enorme salão a estátua de Fu Xi, e diz quem ainda a viu, ser da dinastia Ming e estar coberta por argila. Mas em 1966, quando a Revolução Cultural por aí passou para destruir as velharias, descobriu-se ser feita de ferro e cheia de caracteres onde um registo indicava a data: Jianxing (建, jian=eregir, 兴, xing=próspero), imperial nome da Era só usado entre o século III e o IV. Primeiro fizeram rolar a estátua até ao rio e dentro de água por alguns dias foi depois levada para um depósito, onde se colectava ferro e aí vendida por 13 yuan. Pago o quilo a 0,06 yuan dá a massa de 217 kg.

Xian Tian dian, apesar de existir já durante as dinastias Jin e Yuan, não se sabe como era o palácio e só ao de 1531 se conhece a arquitectura. Este, reconstruído em 1656, foi destruído em 1966, e de novo construído em 1987. Com três portas, tem nove colunas de madeira talhadas de dragões enrolados a trepar e um telhado com uma única trave de suporte. No interior, ao centro está a estátua de Fu Xi, à direita a estátua do Cavalo Dragão (龙马, Long Ma) e na esquerda, uma pedra onde gravados estão os 64 hexagramas e as 28 Su (宿, constelações de estrelas).

Outro objecto desaparecido de Gua Tai Shan foi o prato com trigramas (Gua pan, 卦盘), feito de madeira de pereira, que se encontrava no interior do templo. Este prato era quadrado (a representar a Terra) com 64 cm de lado e no seu interior, de maior espessura, um plano redondo (representando o Céu) com desenhos. [Teixeira de Pascoais explica, “Nós somos um edifício construído por fora com toda a terra, por dentro, com todas as estrelas. Nele vive silencioso e prisioneiro o fantasma do seu arquitecto.”]

Nesse círculo, na parte mais exterior estão representadas linhas yin e yang, a seguir os 64 hexagramas (64 Gua, 8×8 trigramas) e no interior da circunferência, as 28 constelações chinesas (28 Su, 宿, segundo os dauístas, habitadas por espíritos tutelares). Depois os 10 Caules Celestes (10 Tian Gan), seguindo as 12 Raízes Terrestres (12 Di Zhi) e os 24 Termos Solares (24 Jie Qi). Este gua pan (卦盘) era usado em estampagem por quem aqui vinha com papel fazer uma prova a tinta vermelha e levava para casa, colocando-o por cima da porta a afastar as más energias, impurezas (避邪, bi xie). Em 1966, quando os jovens revolucionários vieram para destruir o templo, este gua pan foi levado por um habitante da povoação Wu Jia Zhuang (吴家庄), situada na base desta colina, que o guardou, escondendo-o.

Importante edifício em todos os templos era o Chao fang, existente no templo de Fu Xi na Colina de Gua Tai desde as dinastias Jin e Yuan, mas o actual estilo apresentado é igual ao de 1531. Tanto no Chao fang do Oeste como no do Leste há três quartos. Reconstruído em 1656, em 1966 destruído e em 1994 de novo construído. O do Oeste serve como sala de reunião e no do Leste encontra-se outra estátua de Fu Xi, havendo caracteres escritos nas traves a revelar ter sido pago pela província de Taiwan.

Em Junho de 1994, estavam de novo edificadas as torres do Sino e do Tambor (钟鼓楼, Zhong Gu lou), construídas entre 1531 a 1533 e reparadas várias vezes, foram deitadas a baixo em 1966. Segundo os locais, antigamente na Torre do Sino havia um sino todo gravado com caracteres e a sua forma de octógono representava o Bagua. Ao ser tocado, o som ouvia-se a mais de trinta quilómetros. Segundo a lenda, quando no Outono as colheitas estavam prontas para serem feitas e aparecia no céu uma tempestade de fortes chuvas ou granizo, o toque do sino a repique fazia afastar as nuvens negras.

Pouco depois de deixar a Colina de Gua Tai, a caminho de Tianshui, passamos pela gruta de Fu Xi, mas por estar fechada não a visitamos. O mesmo aconteceu com o Museu de Tianshui, que mais tarde quando aí voltamos em 22 de Junho de 2010 estava a ser inaugurado.

Bagua

De acordo com o Yi Jing, (o mais antigo livro cuja versão actual, o Livro das Mutações da dinastia Zhou, Zhou Yi, tem três mil anos) deve-se a esse antiquíssimo sábio, Fu Xi, a imagem do dragão de onde retirou os oito trigramas, criando o desenho do Tai ji, pelo pulsar yin-yang da vida. O dragão é yang e terá sido escolhido como totem por Fu Xi, conhecido por isso como Rei Dragão, para representar o seu povo Jiuli, que formou a tribo Yi.

Esta tribo um pouco mais tarde, já com Chi You como chefe, entrou em guerra contra as tribos Jiang de Yan Di (Shen Nong) e a Ji (originária do Nordeste) de Huang Di, e sendo derrotada, dividiu-se em três diferentes ramos. Muitos integraram-se nos Ji e tornaram-se no povo Han (Huaxia), sendo na dinastia Han colocados na península da Coreia.

Outros partiram para Sul, seguindo o grupo Li para Hainan e talvez Taiwan, enquanto a Sudoeste se formaram os Miao, e para Leste os povos Qiang e Ba.

Fu Xi explicou aos seres humanos a essência de todos os aspectos do Universo contidos nos oito trigramas que inventou, e as inter-relações entre eles. Pelo conhecimento dos oito estados da Natureza e seu domínio poderiam, tal como os deuses, evitar muitos prejuízos causados pelas calamidades naturais e utilizar todas as coisas ao serviço da harmonia para com o que nos rodeia.

Fu Xi deu novos usos ao fogo, inventou instrumentos musicais como o lusheng e outros de agricultura, escolheu seis tipos de animais domésticos, como porcos e carneiros, ensinou a caçar e na pesca fez as redes, ao olhar para as teias das aranhas. Assim, com abundância de comida, promoveu há 4800 anos os casamentos, iniciando com Nu Wa essas celebrações. Depois, estas anualmente ocorriam na Primavera, no terceiro mês lunar, sendo celebradas num vale, protegido por uma montanha de vertente côncava, onde para propiciar encontros, os jovens se reuniam com a finalidade de se conhecerem e daí unindo-se, criar família. Daqui Fu Xi e Nu Wa serem os Ancestrais Soberanos do povo chinês, pois promoveram os casamentos e deram o nome às famílias. Nas acções mostrou aos seus a igualdade entre mulher e homem, reformou costumes e na administração como chefe reorientou o Neolítico estar, dando começo à Civilização Chinesa.

10 Jan 2022

Um editor deve cultivar a desmedida

Das crónicas publicadas no Hoje Macau por João Paulo Cotrim, recolhemos alguns parágrafos que assim republicamos.

Sou do Sul, portanto lugar de mesa invariavelmente estendendo-se sob sol-posto em rima com a maltosa feita casa, cal de parede e o sacudir de paisagem, serviço dobrado de sorrisos e vincos fazendo cama para pão e vinho. O cortejo dos dedos pendentes de suas mãos, marcadas pelo fazer, reparo, trazem comida e bebida, as cores, as dores. Alguém levanta a voz, sussurros concorrem com o vento, os talheres debatem-se, há-de alguém amanhar as tensões e as flores dos que, pelo toque, se dizem família. Os amigos, com eles montanhas e rectas. As falas que se partem como pão, dizem. As vozes logo se alevantam sob sopro da alegria, outros mandam calar, que faz parte. Há segredos para conter e revelações de nada para celebrar, corpos ansiosos por correr. Entorna-se um copo, elogia-se a receita, o forno, o gesto. Um dos outros terá que lavar a loiça, recolher os restos, abraçar o que sobra da partilha, uns que chegam e partem, a mesa afinal um peito. Como saber se a refeição abre, vai de meio, ou se finda? Só se ama conhecendo.

*

Surge-me estranha, a praça, talvez deprimente no sinuoso como se apresenta, indistinta entre o que deve ser a face e a rabada. Certos bairros parecem ser, de qualquer ponto de vista, traseiras. 

*

Desorientação militante. Não posso apoiar candidato maioritário e triste que foi entregando a cidade aos interesses mais venais, a ponto de continuarem a ameaçar uma das minhas colinas (a de Santana). Custa-me que seja socialista a gerir ao sabor das modas sexy. Não alinho na política cultural invisual e incapaz de perceber que nem tudo se constrói sobre nomes. Ergo, portanto, voz titubeante em favor do João Ferreira e de um partido comunista que se abra em curva sinuosa. 

*

Sucedem-se os almoços que alimentam dias inteiros. Os que se propõem prolongar agendas, acertar detalhes e definir convites, fazer pontos-de-situação, do mais estranho em dias lassos, ponto-pé-de-cruz em trapos. Também os há em que do inesperado fazem desabrochar ideias, esses cães raivosos que não deixam de me atormentar a apatia com os dentes afiados da possibilidade. 

*

A doença atravessa-nos tal fantasma de lenda, arrastando penas e ameaças, para nos deixar bombas no colo, que acariciamos até explodirem.

*

Belas massas moventes em tons de branco-cinza roçam os pontiagudos postes que defendem os altos edifícios de ameaças celestes ou procuram apenas e com singeleza metálica captar ondas. Vai chover. Chovendo no molhado: a acumulação de suspensos e irresolvidos, de encargos e tarefas, passou do papel para um qualquer lugar no corpo, um punho entre estômago e coração, rins e virilhas. 

*

Fui puto de Legos. Poucos, que a vida de então não dava para mais. Meia dúzia de peças davam me pôr na Lua, abrir velocidades, disparar sobre o Mal, erguer alturas desmedidas, construir castelos e absurdos. Tenho no céu da boca a recordação da aterragem dos primeiros paralelepípedos de pinos e encaixes na minha mão. Agora, não passa um dia em que uma peça, já não de plástico, não me aparece a ferir o pé descalço. Isto e aquilo, mais isto que aquilo, atitudes, um gesto, brutal esquecimento, humilhações, um incumprimento, um mau trabalho, friezas, avisos, pressões, desilusões, a notícia de que afinal. Para que não me esqueça: em certas vidas, as peças teimam em não encaixar. Como se não pertencessem.

*

Semeando metáforas à toa, enquanto vou rasgando pele nas silvas o que colho por ora são amoras, páro gastando a vista na leitura da mais enigmática das imagens: recebo em bêbada alegria ecografias, dadas como cartas de jogar, ases de copas pulsando no escuro os nomes, tanta menina e um puto que vem anunciando já coração. Coincidem nas horas, mas contêm tempos diferentes, e nem por instantes apagam a bossa nova que anunciam. Vai de arrastar pé e lançar braços ao céu. Brilham as grávidas de tal modo que os semáforos hesitam na função, Vénus despiu as lantejoulas, só a sábia Lua insiste em ser espelho das muitas fases que se anunciam. Arrastem-se os pés, afinem-se os instrumentos, encham-se os copos. Que sejam curtas as horas, tratem agora de dar a volta para assumir posição. Mil olhos postos e entretidos nos entretons das massas pulsantes de branco e negro, um nó de horizontes a definir as formas deste alguém. Estamos de esperanças, enfim um contra-ciclo de polinização.

*

O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas.

*

Que esconde uma montra? Percorro a página de abertura do sítio (www.abysmo.pt) e vejo como vem sendo parca a colheita, que nunca foi dada a abundâncias. Logo os restos de sangue camponês encontram razão nas vicissitudes do tempo, cargas de água e sol abrasador ou aquele nevoeiro que se abateu sobre o mundo e as vontades. O bom agricultor sabe ler a meteorologia, até a atmosfera da desgraça, pelo que não será apenas por isso. Onde se conservam as sementes adiadas, em que compostagem os apodrecidos? E as sombras, que celeiro bojudo as mantém na boa temperatura? Tanto por enfrentar e as ferramentas ferrugentas, rombas, quebradas…

*

Estão elencadas, e não apenas pelos profissionais do contratudismo, as fraquezas dos festivais literários: a vacuidade das ideias distribuídas, a claustrofobia dos temas e editoras dominantes, o espectáculo das vaidades, a promoção da leitura reduzida ao culto do autor, a dislexia entre performance pública e qualidade de escrita, a insistência em um só modelo de conversa pequena perante plateias enormes, etecetera. 

*

Vejo agora com o corpo todo que talvez seja desta matéria a despedida, momentos em que não distinguimos o que sobra de noite ou começa de luz, frescura nas mãos antes de cuspidas, os pulmões a encher com o céu do olhar, seis da manhã, talvez antes, contavas-me como no orvalho se colhem as derradeiras lágrimas de felicidade, sete da tarde final, devia ter levado enxada para marulhar as terras ajardinadas do claustro, círculo de tantos silêncios, era de ficar encostado ao cabo esperando pelo teus silêncios encavados (…).

*

Cuspo nas mãos, cuspo no céu. Hei-de aprender a dizer foda-se como quem reza. Toquei a madeira do teu féretro feito de veios, talvez raízes, e vociferei que do teu fogo se ergam árvores, mergulhem pássaros, voem copas e se enterrem asas. Sacudo a enxada batendo no chão, soltando terra até casa, marcando com som baço a linha directa ao coração. Volto a bater com a asneira no chão: caralho. Falta-me o ar.

*

Computador grávido de décadas resolve despedir-se, sem estrondo, mas com malefício. Afirmamos na conversa mole a dependência, mas não sabemos o modo como estes seres nos prolongam em prótese essencial para qualquer passo até falharem. Há vida além do ecrã, mas não sei já onde. Algures havia backups a velar pelo passado, aquele a que não voltaremos e o outro que nos falta como oxigénio embora respiremos, pelo que a desgraça talvez não seja tão grande agora surge. Algo se perderá, que não há outro modo do dia nascer. Só que o acontecido não se limita a mera alteração na rotina, funciona mesmo como reboot: as máquinas velhas têm manhas a que nos afeiçoámos ou pelo menos domesticámos, os programas em versões vetustas obedecem-nos, sabemos onde está cada botão, cada password, cada rotina. E a culpa assenta no nosso comportamento, que temos demasiado peso no correio, muitas mensagens abertas, muitos programas a funcionar em simultâneo, mais isto e menos aquilo, descuido e desrespeito. De súbito, vemo-nos obrigados a repensar mais esta relação, a começar de novo e o word não se diz da mesma maneira, é preciso recomprar o pacote dos básicos, aceder a dezenas de plataformas, redefinir milhares de palavras-passe, aceitar contratos em que cederemos até o futuro e um rim. Estou a ver a velha Olivetti armada em decorativo objecto sob a camada de pó e suspiro.

*

Ainda nos reunimos sob o signo do medo. Coreografamos os primeiros momentos com a dança da hesitação, não sei se mão se cotovelo, se abraço ou aceno. Afasto por instantes a máscara para que me reconheçam ou continuo oculto e falante? Perceberão que estou sério ou sorridente? Se as comissuras falassem…

*

Mês morto, mês posto. Neste reino nem distingo o suserano, presto vassalagem apressada e às cegas sem tempo nem para contar as baixas. A vibração do telefone no seu silêncio canta um desespero que rima com a incapacidade para atender. Nisto de desconseguir devo ser dos melhores.

*

É só por isso que os projectos valem a pena: há pessoas por detrás das coisas e das obras. Há vida antes da morte. O gesto estético só me interessa se estiver ligado à vida e à carne dos dias. Não é tanto a questão desirmanada da fantasia escapista contra a força de intervenção rápida do neo-realismo. Trata-se de encontrar a força ténue do acto criativo: uma interrogação que pode explicar; um momento que pode iluminar; uma imagem que pode dar a ver; uma ficção que nos pode mudar a vida. Ou não.

*

Até o mais escuro dos ateliers me aparece tomado pela luz. Assim com o esboço: mais do que revelar a ideia que desponta, o titubear antes do salto, portanto a potência, contém a mais livre e rude das espontaneidades. Se nos passos há caminho, naquela busca encontra-se logo logo horizonte. Daí que a oficina seja bastante mais do que bainha e bastidor, erro e ferramenta, suor e preguiça. É lugar de muitas subtilezas e espectáculos.

*

Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida.

7 Jan 2022

A pequena saúde e a grande vida

Na sociedade mediática, a saúde (ou o seu discurso) ganhou uma importância fundamental. Nunca como hoje as pessoas foram tão levadas a tomar a saúde como um dos principais modelos de referência nas suas vidas. Como muito bem notava Susan Sontag em “Aids and its metaphors”, existe uma concupiscência, uma estranha relação entre a doença, a comunicação, a política e, consequentemente, os comportamentos.

Para além de ser de desconfiar qualquer sobrevalorização do corpo, a posse da saúde – ter saúde, como se diz – mercantilizou-se como outra posse qualquer, é traduzível por quantidades de numerário (com o que se gasta no médico, na farmácia, no ginásio, no dealer). Hoje ter saúde significa também um determinado tipo de consumo, como significa determinado tipo de comportamento, ostentação de signos, sendo que este implica também a aderência a uma específica rede consumista.

A propagação real ou mediática das doenças restringe os comportamentos (como no caso da sida), modifica os hábitos (como o fitness e o jogging), proporciona novos gadgets à indústria (como no caso da pneumonia atípica). A doença ou a sua sombra proliferam através de uma quantidade assombrosa de revistas da especialidade, hoje predominantemente travestidas em forma física e componentes estéticas.

Na televisão são cada vez mais comuns os programas sobre doenças – em Portugal, Júlio Isidro entrevistava pessoas que sobreviveram a cancros e ataques cardíacos. Por toda a parte somos confrontados com a necessidade da precaução, da prevenção, da medicação, do rastreio; entrando para o nosso quotidiano termos bárbaros provenientes da medicina e da manutenção, cujo aspecto mais inofensivo se tornou amplamente numa mercadoria. O que o corpo tomar é o que ele é, sobretudo em termos de valor social.

Chegámos, portanto, a um tempo em que a química retomou os seus direitos, interferindo em todas as esferas. Está praticamente ultrapassado a era romântica em que a psicologia abdicava da factura química, na esperança de uma cura dita “espiritualista”. Hoje não há tempo para isso e, sobretudo, escasseia a paciência. “Quero a minha felicidade já, nem que seja em pequenas doses e tenho direito a ela, porque ela está em toda a parte” (como no caso do Viagra, outro potente mutante de comportamentos, ansiedades, emoções, relações) – sente-se e diz-se.

A saúde é, portanto, fundamental. Mas convém compreender que se trata de uma saúde especial. Muito dirigida e muito bem orquestrada. Mas raramente ultrapassa o nível farmacológico, mecanicista, que encara o corpo como um ente fragmentado, como no caso do culturista que desenvolve uma relação particular com cada músculo. O equilíbrio é agora procurado na química, na localização dos problemas. As terapias de outro tipo encontram-se agora em franca decadência.

Na verdade, lidamos com uma pequena saúde, feita de preocupações históricas sobre a decadência do corpo e a proximidade da morte. Trata-se, finalmente, do modo como a sociedade em que vivemos tira proveito das angústias (umas existenciais, outras que ela própria cria) e as molda de forma a serem mercantilizáveis. Assim, alteram-se igualmente os comportamentos e regista-se uma disciplina dos corpos e dos seus horários, bem conveniente ao circular da mercadoria, de cujo estatuto os humanos se aproximam cada vez mais e alegremente, como se nisso suspeitassem da existência de uma qualquer forma primeva de justiça.

Nem por sombras estamos perante uma relação ecológica e equilibrada ou sequer perante uma reflexão mais longínqua sobre o papel da ruptura num contexto natural. Cuidamos, amedrontados, isso sim, da nossa pequena saúde, de um corpo que encaramos como estando na nossa posse ou que nos possui, mas sempre com uma visão mecanicista e não integrada desse mesmo corpo. Este é comprado nos media, nos ginásios, nos médicos, nas farmácias, nos dealers (de algum modo, a drogadicção ilegal é uma medicina alternativa e mais generalista, talvez mesmo a que, nalguns casos, mais se aproxima de alguma espiritualidade).

As pessoas desfilam pois pela senda da pequena saúde, em muitos casos servos da sua ditadura. Por ela reorganizam as suas vidas. São induzidas a fazer do exercício físico uma parte dos seus quotidianos. As vitaminas, outra. Os programas, os filmes, as notícias, o obsceno, como o exemplo da dor alheia, vendida ao minuto nos ecrãs, são os altares desta religião, que monitoriza o dia, as refeições, o sexo, o sono, as relações, inclusivamente consigo próprio. A pequena saúde ganha foros de modo de vida. E o que fica de fora? A vida, precisamente a vida, a grande vida.

6 Jan 2022

Templo de Fu Xi na Colina de Tai Shan

O templo em Gua Tai Shan, local onde Fu Xi criou o Bagua (oito trigramas), teve desde 1516 permissão oficial para, a par de Chenzhou (陈州, actual Huaiyang, em Henan, local da sua capital e mausoléu) também poder fazer cerimónias de sacrifício a Fu Xi. Saia assim da lista dos templos a destruir editada em 1371 por o Imperador Ming Zhu Yuanzhang (Tai Zu, 1368-1398), devido à proliferação na dinastia Yuan de templos a homenagear os Três Ancestrais (San Huang), e permitia apenas preservar os templos dos mausoléus.

Abandonado durante anos, o templo na Colina de Gua Tai, construído na dinastia Sui (581-618), fortificado na Song do Norte (960-1127) e os palácios e outras salas na dinastia Jin (1115-1234), preparava-se em 1521 para ser reparado quando serviu de base ao pedido do governo de Gansu para o imperador permitir a construção de um novo templo agora dentro da cidade, em Qinzhou (秦州), hoje Qincheng (秦城), a parte antiga de Tianshui.

Em Fevereiro de 1531, o templo em Gua Tai Shan começou também a ser reparado, obra terminada em 1533, tendo sido construída uma muralha em torno do recinto, situado no cume da colina e virado para Sul. De arquitectura usada depois nos mausoléus dos imperadores, o templo com um eixo central constituído a partir do Sul por um par de arcos de pedra decorativos (牌坊, paifang), colocados lateralmente, aparecia de seguida o arco memorial de pedra (Wu men, 午门, a porta=men do meio-dia=wu), tendo no lado Leste, a Torre do Sino e a Oeste, a Torre do Tambor (钟鼓楼, Zhong Gu lou). Continuando para Norte, um pátio, havendo a Leste e Oeste casas (Chao fang, 朝房) para os preparos dos governantes às cerimónias. Ao fundo, o Palácio XianTian (先天殿, Xian Tian dian), de um enorme e único salão e a meio a estátua de Fu Xi. No pátio, 17 pinheiros baseados nos 9 Gong (九宫, Jiugong) e nos oito Gua (八卦, Bagua). Jiugong, quadrado mágico de ordem 3 (isto é 3X3), contém sinais de ordem supernatural do Universo. O Bagua, os oito trigramas, representa os oito estados da Natureza, constituídos pelas oito possíveis combinações de três linhas (inteiras e quebradas).

Como o templo na cidade de Qinzhou passou a ser onde os governantes faziam as cerimónias de sacrifício a Fu Xi, o de Gua Tai Shan perdeu importância. Em 1654, durante a dinastia Qing, houve um grande tremor de terra em Qinzhou e em Gua Tai Shan tudo ruiu. Dois anos depois, um oficial de Qinzhou deu dinheiro para a sua reconstrução, baseando-se a edificação no anterior templo existente na dinastia Ming, sendo em 1656 a última vez que os governantes se interessaram pelo templo da Colina de Gua Tai.

Longe do centro do poder, muralhado era nos conflitos armados um lugar de refúgio para a população e por isso, visto como um sítio sagrado protegido pelos deuses. O templo ficou à guarda dos habitantes locais e apesar de já não se prestar homenagem a Fu Xi, tornou-se um popular lugar de sacrifício aos deuses. A Leste de Wumen, nos finais da dinastia Qing, passou a haver um templo-sala em honra de Cai Shen (财神, deus da Riqueza e da Abundância) e outro a Ling Guan (灵官, o deus do Fogo). Na parte Oeste de Wumen foi construído um templo a Tu Di (土地, deus da terra) e outro a Niang Niang (娘娘, Senhora que ajuda as crianças). Em frente ao Wumen o palco para teatro (戏楼, Xi lou).

Durante os reinados dos imperadores Tongzhi (1862-1874) e Guangxu (1875-1908) alguns monges aqui viveram, pregando e propagando os ensinamentos budistas. Em 1875 e 1895, a população local arranjou dinheiro para reparar os edifícios do templo e no período de guerras as pessoas de novo dentro das muralhas se resguardaram, sendo a Colina Gua Tai então conhecido por Xi Tai Bao.

Em 1920 outro grande tremor de terra em Gansu e de pé apenas ficaram as traves mestras dos edifícios XianTian dian, Wumen, paifang e as torres do Sino e do Tambor. Tudo o resto ficou destruído, sendo reconstruídos os pavilhões com as traves mestras de pé, assim como o palco de teatro (Xi lou), o local Oeste onde os governantes se prepararem para as cerimónias (Xi Chao fang) e a casa dos monges (僧房, Seng fang). Não voltaram a ser construídos os templos a Tu Di, a Niang Niang, a Ling Guan, a Cai Shen e Dong Chao fang que ruíram.

As cerimónias de sacrifício aos deuses pararam em 1958 e as pessoas deixaram de aí aparecer.

Em 1966, durante a Revolução Cultural, os edifícios foram destruídos e mesmo, o sino datado da dinastia Ming, a estátua de Fu Xi feita em ferro e muitos das estelas desapareceram. Do par de paifang feito em 1533, apenas um restou, o de três portas, que fora reconstruído em 1656, mas colocado de frente em vez de estar perpendicular ao Wumen.

Em 1981 recomeçaram no templo as celebrações dedicadas a Fu Xi, que acorrem a 15 do segundo mês lunar.

Actual templo

O governo de Tianshui iniciou em Setembro de 1981 a reconstrução do templo em Gua Tai Shan, seguindo com ligeiras modificações a matriz do reconstruído entre 1531 e 1533, durante a dinastia Ming. Ainda em 1981, foram colocadas de pé as duas estelas, as únicas então encontradas.

Os dezassete pinheiros plantados em 1531, baseados nos Nove Gong (九宫, Jiugong) e nos Oito Gua (Bagua), cortados alguns em 1966, voltaram em 1982 a perfazer os dezassete.

Em Março de 1984, o palco de teatro (Xi lou) estava pronto e em Outubro de 1987 foi a vez de Xian Tian dian (o palácio central, feito de um enorme salão e a estátua de Fu Xi a meio) ficar terminado.

O arco memorial de pedra (Wumen) com cinco portas, reconstruído em Abril de 1993 seguiu o modelo do existente na dinastia Ming, feito em 1531, reparado em 1656 e destruído em 1966. Dong e Xi Chao fang e Zhong Gu lou (as torres do Sino e do Tambor) estavam em Junho de 1994 também edificadas.

Como em cada reconstrução ou visita de governante era de norma colocar uma estela (bei, 碑), para comemorar e fazer a descrição sobre tal ocorrência, estivera o recinto do templo recheado de estelas, mas em 1966 a maior parte foi deitada fora e agora apenas três existem no templo. Uma delas não tem já nada escrito e as outras duas, em frente ao Palácio (Xian Tian dian), a estela do lado Oeste era de 1531, do sexto mês lunar, período da construção do templo, durante a dinastia Ming e encontra-se inteira. Com uma altura de 183 cm e largura de 86 cm, conhecida por QinZhou HuaGua TaiXinJian FuXi MiaoJi 《秦州画卦台新建伏羲庙记》, tem texto escrito por o Alto Oficial Civil Kang Hai (康海, 1475-1540, nascido em Shaanxi), professor da Academia Han Lin (Han Lin Yuan, 翰林院).

Já a estela do lado Leste é uma junção de duas diferentes estelas de distintas épocas. A parte de cima julga-se ser da dinastia Yuan (1279-1368), enquanto a pedra da parte inferior é da dinastia Qing, do ano 1656 e foi escrita por Guo Zhen Du. Como a este bei desapareceu a parte superior, apenas um terço dos caracteres se lêem, sugerindo na altura fazer-se a reconstrução do templo da Colina de Gua Tai.

5 Jan 2022

A tecelã

29 de Setembro de 2021.

 

– E agora que na Canção de Gesta o sangue dos homens corre como seiva há nela páginas difíceis de decifrar- Quando nos encontramos mergulhados em épocas remotas e os tambores da guerra são a matéria do seu ciclo poético, observamos melhor como os homens eram máquinas de sofrer, teriam certamente mais belas anatomias, não podendo ser obesos para se ajeitarem aos seus elmos, cotas de malha e escudos, e no que diz respeito à lealdade, metem de lado qualquer alcateia. É bom pensar em vê-los nas grandes artérias atirados para as lanças inimigas neste outro tempo em que um Rei tinha a barba florida e todos estes homens que nada mais são que mistérios sanguíneos.

Perguntamo-nos como seria a ida para casa, para as suas mulheres, que estavam ausentes neste sangrar de campo aberto dos heróis, o que teriam em comum para sangrar a dois, que homem houve que afirmou «imagine um ser que sangra mas não está ferido. Imagine um ser que sangra mas não morre. Será uma criatura mágica, mítica, ou apenas uma mulher?» Esse ser que nasce de si a cada lunação deve ter ferido a consciência do herói, que na saga aparece como elemento de pranto e choro, apenas na matéria líquida das suas lágrimas, desaparecendo como que se liquefizesse, e a questão põe-se: podem estas duas criaturas amarem-se? Não creio! Deverão sobretudo ter paixão, que é o que a vida lhes exige impedindo o enredo moralista criado perante as suas naturezas.

Existiu uma rainha mais tardiamente que apercebendo-se da indignação dos súbditos quando ousaram dizer: “não vê que está nua”? Respondeu: – não reparei. A sala estava aquecida – Efectivamente reparamos que estamos nus quando alguma dor circunstancial se faz sentir, mas se estivermos bem, nem nos lembramos dela. Com tanto sangue que correu, devem os corpos estar vedados à tragédia, e deve uma mulher não consentir que tapem o dom da sua alegria, que as histórias estão carregadas de anciãs dizendo: picar-te-ás! Que por mais interdições e fadas boas, deve o corpo da jovem mulher, crescer, e não adormecer para resgate de uma noção de amor, e quando todo o desamor lhe cair vertiginosamente aos pés, deverá ainda assim saber que não carrega culpa alguma.

Quanto aos homens, sempre morrerão e, mistério maior, existirão mais, sangrando ou espalhando sémen, que a mulher continuará, sem que lhe descubram o mérito maior. Que das fêmeas não falamos, nem dos azares que as atormentam, que depois de tanta morte, quando uma se vai embora, é nela que o mundo repara.

 

Eu vi uma mulher que dormia. Em seu sono, ela sonhou que a Vida estava de pé
diante dela e segurava um presente em cada mão- numa o Amor, na outra a
Liberdade.
E disse para a mulher: “Escolha”
E a mulher esperou muito tempo; então respondeu: “Liberdade!”

« Presentes da Vida» in- Olive Schreiner

4 Jan 2022

O Boletim Oficial do Governo de Macau

Após 185 anos de se começar a publicar em papel o Boletim Oficial do Governo de Macau, o actual Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau desde 1 de Janeiro de 2022 deixou de ter suporte em papel e apenas é editado por meio electrónico e publicado no sítio electrónico da Imprensa Oficial.

A 7 de Dezembro de 1836 o Governo Português, pela pasta da Marinha e Ultramar, decretou no art.º 130 que o Governo de Timor e Solor estivesse colocado na dependência do Governo de Macau e nas províncias ultramarinas se imprimisse um boletim, cuja redacção ficasse a cargo do secretário do governo”. Daí, como afirmaram o Padre Manuel Teixeira e Jack Braga, a 5 de Setembro de 1838 foi editado em Macau o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor. Mas ao verificar essa informação no Arquivo Histórico, constatamos ser o n.º 1 do volume I o Boletim Oficial do Governo de Macau e não o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, que saíra na Quarta-feira, dia 12 de Setembro de 1838.

Todos os esforços para encontrar o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 5 de Setembro de 1838 ficaram gorados e estranhamente pareciam estar as informações dos dois historiadores de Macau erradas. Com o Boletim Oficial do Governo de Macau na mão e sendo o n.º 1 do primeiro volume de Quarta-feira, dia 12 de Setembro de 1838, só muito mais tarde, ao analisar os outros boletins reparei no Boletim da semana seguinte, com data de 19 de Setembro de 1838 ser o n.º 3 do volume I, pensando ter ocorrido um erro de numeração, pois não existia o n.º 2. Já a 26 de Setembro aparecia o número 4 e assim sucessivamente até ao n.º 17 do Volume I de quarta-feira, dia 26 de Dezembro de 1838, com o número 68 na última página. Regressando ao boletim n.º 1, com uma folha de duas páginas marcava na segunda a numeração da página, referindo ser a 8.ª. Assim, ao faltarem seis páginas compreendia ter existido o Boletim Oficial de 5 de Setembro de 1838, o verdadeiro n.º 1 e estar errada a numeração dada ao Boletim de 12 de Setembro de 1838, pois corresponderia ao n.º 2, que não aparecia em nenhum boletim.

Quanto à mudança de nome ocorrida do primeiro para o segundo número não consegui encontrar razões.
Na primeira página de cada Boletim Oficial do Governo de Macau por baixo do título cabeçalho e antes da tira com o número e data, trazia o seguinte dizer de Cataõ “Et levis et constans, ut res expostulat, esto: Temporibus mores sapiens sine crimine mutat”. Já na última página vinha registado ser “publicado por M. M. D. Pegado e impresso na Typographia Macaense”, que era pertença do Dr. Wells Williams (1812-1884), missionário protestante, linguista e sinologista americano, mas como gerente figurava Manuel Mário Dias Pegado para cumprir as formalidades da lei, segundo o blog nenotavaiconta.wordpress.com. Refere ainda, usando informações do Padre Manuel Teixeira, “Saíram apenas cinco números até 9 de Janeiro de 1839 e de tão irregular que era ficou suspenso, reaparecendo em 8 de Janeiro de 1840, sendo ainda impresso na mesma tipografia. A 9 de Abril de 1840 passou a imprimir-se na tipografia de Silva e Sousa”. Aqui parece haver um erro, pois esta tipografia só apareceu ligada à publicação do Boletim em 1846 e é também estranho não existirem no Arquivo Histórico os Boletins Oficiais entre os anos 1839 e 1846, sendo o último que encontramos o de 26 de Dezembro de 1838 e não o de 9 de Janeiro de 1839, mas se existiu, outros dois números desapareceram, o mesmo com os publicados de 1840 até 1846.

Referente ao ano de 1839 existiu o hebdomadário noticioso Gazeta de Macao de Manuel Maria Dias Pegado, que até então fora o editor do Boletim do Governo de Macau, sendo os 32 números publicados de 17 de Janeiro a 29 de Agosto de 1839. Este semanário destinava-se em parte aos documentos oficiais, sendo os 22 primeiros números impressos na Tipografia Macaense e os outros dez na da Gazeta de Macau.

O Boletim Oficial do Governo de Macau destinava-se à publicação das ordens, peças oficiais e de tudo o mais que fosse de interesse público e no de 12 de Setembro de 1838 apareceu na primeira página extraído do Pregoeiro da Liberdade parte do Diário do Governo n.º 3 de 3 de Janeiro de 1838, reproduzindo a carta do Procurador da Câmara de Macao ao Corpo Legislativo reunido nas Cortes na sessão de 2 de Janeiro. Guilherme José António Dias Pegado, o Procurador da Câmara de Macao junto ao Corpo Legislativo, solicitava e requeria urgentes Providências Legislativas para Macau. Este célebre deputado macaense e lente de matemática na Universidade de Coimbra, lente da cadeira de Física na Escola Politécnica, era irmão de Manuel Maria Pegado.

Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor

Interrompida a publicação do Boletim Official do Governo de Macao em 1839 só a 8 de Janeiro de 1846 apareceu como n.º 1 do Volume I o Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor, agora às quintas-feiras. Sem ter as páginas numeradas, deixava a Tipografia Macaense e passava a ser impresso na Tipografia do Boletim até 2 de Abril de 1846, pois no seguinte número, 9 de Abril era já na Tipografia de Silva e Souza.

No cabeçalho lia-se: “Assim, sem comprometer, os públicos interesses, se satisfará ao maior de todos eles, que consiste em que toda a verdade se diga, a quem toda a verdade é devida. Silvestre Pinheiro Ferreira”.

Se até 2 de Abril de 1846, o n.º 13 do Boletim do Governo não trazia preço, a 9 de Abril refere ser a subscrição por ano de $10, por semestre $6, ou por trimestre $3,5 e custam, folha avulsa 25 avos, anúncio por linha 10 avos e correspondência e comunicados 5 avos.

No Boletim n.º 14, de 9 de Abril de 1846, aparecia na última página, Postscriptum, aos nossos Subscritores, “Pedimos nos queiram benévolos relevar a maior demora que ocorreu na publicação deste número. As faltas que padecia a Tipografia em que começamos a impressão do Boletim, e que tem sido causa de se haver retardado a distribuição de quase todos os nossos números anteriores, nos moverão a final a passá-la para outra oficina mais abastecida; e nestes arranjos gastou-se necessariamente algum tempo: mas enfim já se acham concluídos: e contamos que a nitidez tipográfica, e a pontual regularidade com que daqui em diante vai sair a nossa folha, amplamente compensará aos seus Subscritores as faltas passadas. Esperamos poder dar na segunda feira seguinte o número que se segue; e o do dia 23 deste mês, no seu dia próprio ou o mais tardar no imediato. Macao – Na Typ. de Silva e Souza”.

Mas o Boletim do Governo da Província de Macao, Timor, e Solor, n.º 15 de 16 de Abril de 1846, refere, “A demora da publicação do presente número nos habilita a anunciar” a chegada a Macao do Exmo. Snr. João Maria Ferreira do Amaral novo Governador desta Província …”.

4 Jan 2022

A Lição do Diabo

«A musica, o luar e os sonhos são as minhas armas magicas. Mas por musica não deve entender-se só aquella que se toca, se não também aquella que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve suppor que se falla só do que vem da lua e faz as arvores grandes perfis; ha outro luar, que o mesmo sol não exclue, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturaes e nossos.
– Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo?
– É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?».
Eis o que disse o Diabo à desprevenida Mãe em A Hora do Diabo, de Fernando Pessoa.
Fico semanas a matutar na natureza dos sonhos em Pessoa – ‘só os sonhos são sempre o que são’ parece-me uma hipótese acabrunhante -, até que, ao navegar na Net, na leitura avulsa de uma longa entrevista com Jean Borella, vejo explícito o que me parecia útil traduzir nestas formulações do Diabo:
« …numa aula, ao ouvir uma explicação sobre a chôra do Timeu – termo que designa a substância protoplásmica universal, esse “quid” de que todas as coisas são feitas, o ‘receptáculo cósmico’ – compreendi então, tanto quanto é possível, o mistério a que a Índía chama Prakriti – princípio cosmológico análogo à matéria prima – , e, por extensão, o mistério metafísico da divina Mâyâ. Esta intuição livrou-me do encadeamento dos conceitos porque me colocou face a face com um ‘pensamento pensante’ que supera largamente a experiência do ’pensamento pensado’. Porque os conceitos transportam-nos aos objectos, cristalizam neles. Mas a chôra, a matéria-prima, não é um objecto determinado (- advertindo de antemão que esta matéria não se assemelha ao puro nada). Ela é, independente do modo, a condição de possibilidade de todo o objecto, o receptáculo onde se podem moldar/ aparecer todos os objectos, a matriz universal pela qual todos os seres podem ser concebidos. Ao intuir isto, por abandono das coagulações conceptuais e da ordem necessária que as encadeia uma nas outras, descobri o pensamento como actividade pensante. Sem dúvida que, a partir daí, como todo o homem, estava condicionado a continuar a pensar por conceitos, mas percebia gratamente um espaço supra-conceptual onde a inteligência podia verdadeiramente respirar: do mesmo modo que um homem para caminhar tem necessidade das suas pernas mas a quem só o olhar mergulha na luz inteligível.»
Recordemos agora como o Diabo detalhou a coisa: «O sonho é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço», e demos por certo que, depois de uma breve soneca em Pessoa, o Diabo espertou nas páginas de A Gravidade e a Graça, onde Simone Weil, lhe ouviu o ditado e redigiu:
«Participamos da criação do mundo decriando-nos a nós mesmos (tendo Weil, na página anterior definido deste modo o acto de decriação:«transformar o criado no incriado»)». A decriação opera a reviravolta, a inversão das hierarquias e a re-conversão do espaço em tempo, do agido em emoção, da semente em ascensão, da categoria em devir: e assim se converte em acção a ideia.
E como é que o sonho conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria?
Aqui a lição teremos de ir buscá-la ao Oriente. Os chineses, como os hindus e os japoneses, postulam a existência de uma energia constituinte de tudo o que existe no mundo físico. Os hindus chamam-lhe kundalini ou prana, os japoneses ki, os chineses chi. É uma vibração emanada por todas as coisas e seres mas não é algo que se represente e para a captar há que penetrar para lá dos aspectos superficiais e ser-se, por sua vez, possuído por esse ritmo vital do espírito. Não há observação do fenómeno exterior à implicação do observador.
Também os andaluzes têm um nome para esta energia, chamam duende a esse ritmo vital do espírito.
Já o escrevi, às vezes, a dar aulas, quando engreno, sinto o duende. Que um fio discursivo se solta e se conduz a si mesmo, usando-me como veículo de um fluxo discursivo que ultrapassa em muito os meus limites expressivos.
Para o Oriente não existem seres ou situações claramente delimitáveis, mas sim um processo de convergências e jogos de forças que vão variando de intensidade e cujas interacções potenciam a mutação de todas as coisas, sejam seres ou situações.
É essa tensão, metamórfica, de uma energia em processo (o mundo composto de mudança de Héraclito e Camões) que conserva a força do mundo enquanto lhe repudia a matéria, a identidade pré-determinada e cristalizada em objecto.
É esta a lição do Diabo, em Pessoa.

30 Dez 2021

Isaías

Tudo começa pelo nascimento de um filho. Vem de Abraão, e assim se vai repetir na saga tribal até à construção de um messias, podendo mesmo afirmar-se que a frase que a todos unira foi esta que de tão natural quase nos esquecêramos – «e um filho lhe nasceu» – e no livro de Isaías encontramos o tempo certo do anunciado em oráculos, cálculos fervilhantes, sinais anunciadores, daquilo que virá a ser pela força da construção. Este filho anunciado será também aquele que irá cortar os laços sucessórios e romper com a transmissão alargando as leis tribais para planos mais vastos, daí a importância da interpretação, pois que será também ele a cortar com todas as prerrogativas que deram origem à sua própria realização.

O livro de Isaías é um testemunho visionário, chamando-se por isso mesmo «Visão de Isaías», sendo uma obra densamente poética que usa a lei das assonâncias para interpretar os tempos. Logo no início, emite a voz de Deus nesse ronco amordaçado que brada contra as regras que ele próprio impôs, dizendo-se cansado face às inúmeras práticas de prestação ao seu culto, e assim, anulando o valor da unicidade que decretara para com o seu povo, é pela voz de Isaías que irá chamar a tudo isso de dons inúteis: reuniões de culto, celebrações lunares, sábados, festas e solenidades, que afirma, diz, serem-lhe insuportáveis. Também não aguenta mais os holocaustos, o sangue dos vitelos, a gordura dos bezerros, Deus odeia tudo! O que aconteceu então que nos mostra a negação do guia desvinculado da sua própria causa? Mudança de rumo?

É importante desde já saber que a condição humana é toda ela o cumular de um antagonismo permanente, e que os elementos da sua insuportabilidade também se remetem para a acção fora de si, projectar a culpa da sua própria insuficiência numa construção quantas vezes feita a partir das outroras soluções, é uma lei que sempre consente, porém, desconhece como a pode integrar. Cansado e sem escape, há um momento em que o cerco se aperta e passa a sofrer de abominação tenaz. Mais tarde terá ainda de recorrer a Teses, Antíteses, retórica, e todo a uma estrutura de pensamento que lhe permita aplacar a densidade a que se encontra submetido e valer-se da memória, pois que o exercício pensante pode adormecer em contextos paralisantes. Por isto e muito mais, devemos assinalar este momento como uma metáfora memorável que nos fala da noção do devir que todos tentamos mapear e sempre nos escapa.

Estamos por outro lado num domínio estritamente poetizante, não se devendo excluir essa singular faculdade que tem o verso para se apoderar de elementos subtis do tempo por vir, e um menino a nascer, que seja então na leitura do poema o mais esperado.

Quando é necessário mudar, sempre a vida há de encontra formas de tensão, isto, se não obrigar a mudança a trajectos repentinos, muitas das vezes é preciso cortes tais que transcendemos a noção das coisas, no entanto, adquirindo o domínio da vastidão, a evolução permanece o resultado extraordinário das «Visões» e mais do que isso, da capacidade de as sonhar. «Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.» Deus, esse, continua irado.

16 Dez 2021

A Relíquia, de Eça de Queirós – 8 (última parte)

Depois de esclarecido quem é responsável pela situação da sua vida, que era a sua Consciência e não Deus, veja-se o que é descrito às páginas 277-8 e 279: «O Deus a que te prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o Céu para quem os teus braços trementes se erguiam – o testamento da titi… Para lograres nele o lugar melhor, fingiste-te devoto sendo incrédulo; casto sendo devasso; caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a rapacidade de herdeiro… Tu foste ilimitadamente o hipócrita! Tinhas duas existências: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de rosários, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente, outra, toda de gula, cheia da Adélia e da Benta… Mentiste sempre – e só eras verdadeiro para o Céu, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a Jesus e à Virgem que rebentassem depressa com a titi. […] Eu não construo os episódios da tua vida, assisto a eles e julgo-os placidamente… Sem que eu me mova, nem intervenha influência sobrenatural – tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraísos da Terra e ser director de um banco… Isso depende meramente de ti e do teu esforço de homem. […] Chamo-me Consciência; sou neste instante a tua própria consciência refletida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual tu, mal-educado e pouco filosófico, estás habituado a compreender-me…»

Aqui, e depois de Teodorico encontrar um antigo colega de faculdade, Crispim, parecia que finalmente a sua vida entrava nos eixos, isto é, parecia que ele finalmente estava disposto a «elevar-se aos rendosos paraísos da Terra e ser director de um banco». Leiam-se as palavras do Crispim, depois de Tedorico ser sincero em relação ao que sentia pela irmã dele, que não era amor, mas via nela um «belo mulherão», que gostava muito do dote e havia de ser um bom marido: «Dá cá essa mão honrada!», diz o seu futuro cunhado. Mão honrada. Realmente, Eça quer que por instantes pensemos que Teodorico Raposo entrou nos eixos. Mas não é isso que vai acontecer nas últimas páginas.

Nestas, vemos Teodorico reconduzido ao sentido do mal radical, que na verdade nunca deixou, apenas por instantes adormeceu.

Esta mudança dá-se quando fica a saber que parte das propriedades da titi e a sua ex-amante, Adélia, foram parar às mãos do padre Negrão. Aquilo que, de repente, Tedorico se dá conta é de que o mal dele não foi ter sido hipócrita, mas não ter sido suficientemente hipócrite, isto é, deveria ter sido muito mais hipócrita do que foi. O padre Negrão foi muito mais hipócrita do que ele. No fundo, Teodorico percebe que em matéria de hipocrisia, isto é, em comparação com o padre Negrão, ele era um amador. Sempre fora um amador, quando pensava ser um profissional.

Deveria ter-se esforçado muito mais. Teodorico conclui que deveria ter respondido diferente, perante a camisa de dormir da amante que a titi encontrou no embrulho. Leia-se: «Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha uma compreensão mais positiva da vida: e sentia bem que tinha sido esbulhado dos contos de G. Godinho simplesmente por me ter faltado no oratório da titi – a coragem de afirmar! // Sim! Quando, em vez de uma coroa de martírio, aparecera sobre o altar da titi uma camisa de pecado – eu deveria ter gritado, com segurança: “Eis a relíquia! Quis fazer a surpresa… Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!… Deu-ma ela no deserto… // E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita: “Ao meu portuguesinho valente, pelo muito que gozámos…” Era essa a carta em que a santa me ofertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciais – M. M. Lá destacava essa clara, evidente confissão – o muito que gozámos: o muito que eu gozara em mandar à santa as minhas orações para o Céu, o muito que a santa gozara no Céu em receber as minhas orações! // E quem o duvidaria? Não mostram os santos missionários de Braga, nos seus sermões, bilhetes remetidos do Céu pela Virgem Maria, sem selo?

E não garante A Nação a divina autenticidade dessas missivas, que têm nas dobras a fragância do paraíso? Os dois sacerdotes, Negrão e Pinheiro, cônscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de procurar esteios para a fé oscilante – aclamariam logo na camisa, na carta e nas iniciais um miraculoso triunfo da Igreja! A tia Patrocínio cairia sobre o meu peito, chamando-me “seu filho e seu herdeiro”. E eis-me rico! Eis-me beatificado! Meu retrato seria pendurado na sacristia da Sé. O Papa enviar-me-ia uma bênção apostólica, pelos fios do telégrafo. // Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociais.» (285)

Veja-se a ironia e o sarcasmo com que Eça se refere, não apenas à Igreja, à religião, mas a toda a sociedade, mergulhada em profunda hipocrisia. Profunda hipocrisia que Teodorico não consegue, apesar de todo o esforço que faz. Apesar de toda a intenção e todos os esforços, Teodorico não conseguiu ser um padre Negrão. Ou tantos, como hoje, que são comendadores e respeitados homens de negócios.

Leia-se, por fim, o pequeno e último parágrafo de A Relíquia: «E tudo isso perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.»

No fundo, em A Relíquia, tudo é ilusão. Até o próprio leitor. A vida de Teodorico para a tia e para os amigos da tia, a vida da tia, configurada por uma inflexível fé católica, a própria vida e morte de Jesus Cristo, no famoso capítulo 3 do livro. No horizonte da vida de Teodorico, e do livro de Eça, também o bem é uma ilusão.

E, convém não esquecer, ao longo de tudo isto, o humor impera. Melhor seria dizer agora que o humor é a última ilusão. O humor dá-nos a ilusão de que aquilo que estamos a ler nem é mau, nem somos nós. Por isso nos agrada tanto ler o mal, como se fosse numa galáxia distante e não a vida que temos e levamos, no fundo, o humor permite que se veja o mal como se fosse um bem. A ilusão maior. «Sob a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia».

Não continua na próxima semana.

15 Dez 2021

Ângelo de Lima e a nossa loucura moral

Nos vinte anos passados em Rilhafoles nunca terá habitado o famoso panóptico, destinado aos loucos furiosos ou agitados, como se dizia à época. O psiquiatra Miguel Bombarda impusera-lhe no diagnóstico um vago “loucura moral”, que é como quem diz “loucura social”. Alguns anos antes, é lá que Fernando Pessoa, não se sabe acompanhado de quem, vai buscar um punhado de poemas para publicar no segundo número de Orpheu, assim respondendo a quem considerava loucos aqueles novistas, atirando-lhes como resposta um louco consumado e contumaz.

Ângelo de Lima, poeta e artista plástico, nascera no Porto em 1872. Ingressa muito novo no Colégio Militar em Lisboa, do qual é expulso em 1888. Regressado ao Porto, aí frequenta a Academia de Belas-Artes. Reconhecido desenhador, chega mesmo a substituir o pintor (e também poeta) António Carneiro na direção artística de uma das muitas revistas artísticas que pululavam na capital do Norte, A Geração Nova (1894-95). Continuará ainda a desenhar nas instituições psiquiátricas que o acolheram, mas a sua obra gráfica, tocada de óbvio academicismo, não se compara à importância da sua poesia. Como militar, oferece-se para seguir em 1891 na expedição a Moçambique que apresou o Gungunhana e está também envolvido na gorada conspiração republicana do Porto, no mesmo ano, e de que tem notícias ao chegar a Adem. Depois de complicações várias, incluindo um presumível incesto e um desacato público, em 1901 é internado em Rilhafoles, hospital em que mais tempo passará, até à sua morte em 1921.

A loucura domina assim como um signo fatal sobre o poeta e sua obra, não só comprometendo-lhe a receção, mas toldando ou até apagando o entendimento dela. Mais do que isso, toda a crítica – nem de propósito, Essa Crítica Louca é um título de E. Melo e Castro – está, na verdade, refém desta questão, na loucura moral de não ver o óbvio.

Cem ou mais anos para ver o óbvio: Ângelo de Lima nunca foi louco, foi feito dele um louco. Bastaria olhar a métrica perfeita e a articulada desagregação gráfica dos poemas. São textos enlouquecidos de um poeta que nunca foi louco, e apenas na aparência desarticulados: “– Mia Soave… – Ave?!… – Alméa?!…/ – Maripoza Azual… – Transe!…/ Que d’Alado Lidar, Canse… / – Dorta em Paz… – Transpasse Idéa!…” Já não é esse o caso da prosa, a maior parte da qual muito possivelmente escrita mais tarde, como a carta em que disserta acerca da feia bandeira do novo regime, apesar do seu republicanismo inflamado. É já uma carta de alguém de quem foi feito um louco.

Mas há que começar a ler Ângelo para além da sua (falsa) loucura. O seu caso é um de lenta patologização de comportamentos desviantes, como as obscenidades que terá proferido num teatro (“porra!”) ao ser comprimido pelo público e um incesto com uma suposta meia-irmã. É hoje em dia extremamente perturbador, e significativo do grau de controle e alienação de uma sociedade que não só encarcera alguém que diz “porra!” no lobby de um teatro, mas que ainda o patologiza com base nisso e num suposto incesto, nunca comprovado e sempre desmentido pelo poeta.

Do teatro vai direto para a penitenciária, e daí para Rilhafoles, num processo de criminalização da miséria amplamente documentado por João Gonçalves, no elucidativo A Penitenciária perante a Loucura, obra de 1908. Ratoneiros, latoeiros, lavradores analfabetos é que formam a brandoniana enxurrada humana que escoa em Rilhafoles. Seria essa uma das causas da patologização de Ângelo, empobrecido e alcoólico por anos de errância? Não sou eu quem o diz, antes de mais o poeta: “Eu não sou doudo, tenho sido manejado como um puro manequim”, frase repetida por João de Deus nas Recordações da casa amarela e que, quanto a mim, deve ser lida à letra. Nas últimas linhas da sua autobiografia diz ainda: “E agora aqui estou, resultado final, sob concorrente exótica – a determinação tão arbitrária dêsse acobertado com a autoridade legal – resultado final até aqui, dêste viver aqui neste papel descrito.” É outro texto que, pela sua desarticulação, já mimetiza, pelo menos na sintaxe, as vesânias que lhe atribuem.

Posto isto, falta só uma coisa, que é ler os seus poemas, lê-los realmente, e parar de os apresentar como exemplo de loucura em literatura. Parar de o tomar como exemplo de o que quer que seja. E então estaremos prontos para encontrar, por exemplo, o Oriente metafísico da sua poesia, ao qual não escapou a China, e que vai muito além dos livros de jade de uma Judith Gaultier: “– E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso/ Disse a Mu-Ang – Alguma Vez, Accaso…/ – Olha a Nuvem no Ceu… e como Corre!…/ – Assim as Horas da Ventura Minha… / – Quem Tem Filhos na Terra – Esse Não Morre!…/– Despozae – Se Sois Rei – uma Rainha/– Que É Tanto como Vós Pela Grandeza…/– E… Depois… de Espozardes a Belleza /Podeis Seguir Então Vossa Encaminha!…”

E é assim que, nesta reta íngreme em direção ao olvido na qual sempre vamos distraídos, ninguém se deu conta dos cem anos passados sobre a morte de Ângelo de Lima, em ano que se encontra agora perto do fim. Talvez este seja o único texto publicado na imprensa de língua portuguesa que se lhe dedica. Em Macau, o que é significativo.

Esperemos que não, embora muita coisa naquele país distante seja possível, o Grande Reino do Mar de Ocidente, como lhe chamavam os missionários que chegaram à corte imperial de Pequim. Posto assim, nominalizado e substancializado pelas maiúsculas, quase que essa inglória tradução da língua chinesa parece um poema de Ângelo de Lima.

14 Dez 2021

Vamos ao Nimas?

Só hoje, pela quinta vez em que vejo “A intriga internacional”, de Hitchcock – desta para o dar a conhecer às minhas filhas mais novas – é que dou conta do que me fora ocultado, até aqui. E pasmo. Pasmo do que não conseguia ver.

A dado momento de tão intrincada intriga, Roger Thornhill (Cary Grant) chega à inesquecível casa de Vandamn/James Mason, no topo do Monte Rushmore, vivenda que se desenvolve sobre o abismo (evocando a Casa Sobre a Cascata de Frank Lloyd Wright) e que se encaixa perfeitamente no cenário, com suas linhas horizontais nítidas (até parece embutida na pedra) e os vários cantiléveres. Também o interior, veremos depois, apresenta muitos elementos naturais, incluindo madeira e calcário.

Esta casa foi construída inteiramente nos palcos da MGM em Culver City. Os interiores foram construídos como sets de filmagem em escala real. Alguns dos exteriores foram igualmente montados no plateau como as vigas de aço apoiando o cantiléver, um elemento que não teria sido usado por Wright mas necessário para fornecer a Cary Grant uma forma de escalar fisicamente o exterior da estrutura.

Todas as cenas ocorreram ao fim de dia noite, para que os efeitos ficassem mais realistas.

O que nunca havia conseguido ver e que agora se me enfiou à primeira olhos dentro, como um argueiro que incomoda e não sai, é que a casa de Vandemn mais não é que a representação estilizada do Dragão, os cantiléveres são a maxila do monstro, e toda a cena afinal evoca a acção de S. Jorge, que também se meteu no insensato duelo com a criatura demoníaca para salvar uma pobre rapariga, a filha do rei da Líbia. Neste caso trata-se de salvar Eve Kendall/ Eva Marie Saint, a sensualíssima e misteriosa espia que só nesta cena se comprovará que não tem uma língua bífida (como os lagartos e dragões) e estar do lado de Thornhil, um filho de sua mãe América.

Em concomitância, as irregularidades da pedra nas paredes do exterior da casa, por onde Thornhil trepa, figuram as escamas do dragão, e toda a sequência adquire uma cândida, mas resoluta leitura política. Toda a aventura neste thriller, não nos podemos esquecer, evoca a Guerra Fria e o filme (lua de mel no comboio à parte) praticamente termina com Cary Grant pendurado no nariz da figura de George Washington, nesse encaixe simbólico que é o Monte Rushmore. Lembremos, a vitória de São Jorge sobre o dragão metaforizava a vitória sobre as hostes islâmicas na época das Cruzadas, e neste caso temos de um lado uma mitologia arcaica e telúrica (o dragão do comunismo) contra a benigna racionalidade de quem molda as energias selvagens da natureza num talhe antropomórfico, regulado. E eis Eve, que desde a primeira cena se comportou sempre como uma verdadeira Lilith, convertida ao “humanismo”: domada e adestrada para a lida da casa, como senhora Thornhill.

Desta vez, não precisando mais de estar atento à história, não fui transportado pelo transe da acção e vi o que lá estava. E o engenho do filme está em ser simultaneamente um filme de acção e uma “séria” alegoria política.

Vi também o que não gostava de ter visto em “The Thomas Crow Affair”, de Norman Jewinson, o original, de 1968. Não o revia desde que fora fascinado em miúdo (devo ter visto o filme com doze, treze anos) pelo modo de recrutamento para o assalto, com os faróis no apartamento a encadearem quem responde ao anúncio e impedindo assim que o cérebro do golpe seja identificado. A inteligência do processo fascinara-me (na minha memória durava imensos minutos, quando na realidade a cena é breve) a tal ponto que não me recordava da cena do jogo de xadrez entre Thomas Crow/Steve Mcqueen e Vicky/ Faye Dunaway, e que é verdadeiramente a cena antológica do filme.

O que hoje se retém do filme é menos a inteligência com que o crime (o assalto ao banco) é cometido como a inteligência prenhe de erotismo da investigadora dos seguros, Vicki Anderson. Personagem que aliás tem o mesmo desplante de Eve Kendall, a mesma abrupta honestidade que faz do jogo da verdade um trunfo sensual e uma idêntica vocação para desfrutar, apesar de todos os riscos, da promessa do sexo. Duas Liliths.

Revendo agora o filme, não me lembro de outro com a Faye Dunaway em que funcione tão bem a química entre as personagens e de alguma vez a ter achado tão atraente. E onde há bela vem o senão.

Na cena do jogo de xadrez, excelente na arquitectura da decoupage, há um contraste desconcertante entre os grandes planos de rosto dela (de um desenho e delicadeza ímpares) e os grandes planos das mãos, que movem as peças e vão revelando em vários meneios inadvertidos a geometria do desejo que se instala. Porquê? Não pela natureza dos gestos, que rimam com a situação, mas por causa de um adorno que marcará talvez uma época mas que quando o vemos fora do seu tempo devém vulgar e contrastante com o resto da figura. Falo das unhas postiças de Vicki, que de repente é uma deusa com adereços de manicure comprados no Centro Comercial da Mouraria. O que faz com que não bata a bota com a perdigota, a sofisticação do resto torna imperdoável a vulgaridade. No sugestivo plano em que Vicki “masturba” o bispo, aquelas unhas são cascos grosseiros e adivinha-se ali uma circuncisão sem anestesia em vez do deleite prometido. E nos pormenores está Deus e a Arte.
Quanto a Faye Dunaway, minha Nossa Senhora – que pena eu ser ateu.

9 Dez 2021

Sedução e sucesso

Poderia dizer que era um guilty pleasure, mas não tenho por hábito contrair compungimentos por dá-cá-aquela-palha. Gosto de trap, sobretudo feminino. Cardis, Megans, Nickis, entre outras amazonas de beats e letras bandoleiras, de uma marginalidade tão plástica como os seus corpos. Não são mensagens bonitas mas são mensagens aguerridas, cheias de violência áspera onde o corpo é tantas vezes utensílio sexual instrumentalizado para a obtenção de lucro e poder. O que eu quero dizer com isto é que, sim, a maior parte das letras destas mulheres do hip-hop são um enaltecimento à prostituição. A desproblematização do corpo feminino enquanto objeto. Não um objeto que é imposto pelo olhar masculino, antes um objeto que parte de uma situação de delegação de autoridade à própria mulher promovendo a sua emancipação. Com ele, traz o desmantelamento das prisões puritanas onde a mulher é, frequentemente, reduzida à sua candura condescendente, pueril, estado do que é geneticamente singelo. A apropriação que estas artistas fazem do uso do corpo como ferramenta acaba por ser, simplesmente, a celebração de uma prática humana – nada menos do que isso. Talvez nunca antes tão ostentada e celebrada. Houve épocas em que a prostituição era detida com relativo respeito. Evoquemos Paris em finais do século XIX. Lembremos personagens como Valtesse de La Bigne (1848 – 1910). Ainda que operando no universo demi-mondaine da sociedade, a cortesã francesa atingiu uma reputação irrepreensível junto dos artistas da época através dos seus serviços de cortesã (AKA prostituição de luxo).

Sabemos que o final do século XIX na Europa fica marcado por um crescimento industrial e consequentemente económico sem precedentes. O desenvolvimento da tecnologia e da ciência permeavam agora o temperamento dos artistas com determinismo e positivismo. A lógica e a ciência permitiam o livre questionamento da existência de Deus. Livre das restrições de um modelo social puritano de índole teocrática.

Apesar da persistência de um plano de existência demi-mondaine, a prostituição era encarada como uma carreira. As troupes de ballet eram antecâmaras de exploração sexual para homens com posses que, até porque estava na moda, arranjavam sempre uma ou duas bailarinas de quem se tornavam “patrocinadores” (sendo que o patrocínio era pago com o corpo das mulheres de belas pernas).

Valtesse de La Bigne foi, provavelmente, a cortesã das cortesãs. De dia, estudava ciências sociais, lia poesia, analisava romances. De noite, seduzia os homens das elites artísticas e políticas da sociedade parisiense. A Courtisane du Tout-Paris pousou para Édouard Manet e Henri Gervex e serviu de inspiração para personagens de Émile Zola, Théophile Gautier ou Edmond de Goncourt. A sua cama foi assim descrita por Émile Zola no romance “Nana”: “Uma cama nunca antes vista, um trono, um altar onde Paris passou a admirar a sua nudez soberana”. Conhecido é também o episódio em que Alexandre Dumas, pedindo acesso aos aposentos de Valtesse, levou com esta reposta “Desculpe, mas não me parece que possa pagar este serviço”. Difícil não ligar esta resposta de Valtesse com uma Nicki Minaj a explicar “there’s no such a thing as broke and handsome”.

Para além do seu impacto e influencia nas artes e na literatura, Valtesse tinha uma visão muito perspicaz da geopolítica mundial e aconselhou o seu amante cônsul em Hanoi, Alexandre de Kergaradec, a manter a soberania francesa sobre Tonkin na parte norte do Vietname. Na história da sua vida, podemos ver como o temperamento de Valtesse era tão heteróclito e provocador como os das personas criadas pelas artistas do trap. Esta assunção feminina do corpo e da sedução como vias meritórias de progressão social é muitas vezes encarada pela sociedade patriarcal como uma subversão de valores e a minha questão é, porque não antes celebrada pela mera veleidade fantasiosa que representa? Afinal, já dizia Cardi B na sua música de abertura do álbum Invasion of Privacy: “I ain’t tellin’ y’all to do it, I’m just tellin’ my story”.

7 Dez 2021

Fu Xi e Nu Wa em Tianshui

A área onde em 1985 foi criado o distrito de Tianshui (天水), na actual província de Gansu, era no século IX a.n.E. chamada Quanqiu e o reino Qin aí teve a sua capital até 770 a.n.E., quando a dinastia Zhou do Oeste (1046-771 a.n.E.) foi substituída pela Zhou do Leste e o Rei Ping (770-720 a.n.E), o primeiro da nova dinastia, mudou a capital de Hao (próximo de Xian, Shaanxi) para Luoyi (hoje Luoyang, Henan), levando o reino Qin a mover-se para Leste passando a capital para Yongcheng (actual Fengxiang, em Shaanxi). Seria a população desse reino Qin a descendente da tribo Feng (风, Vento) que em Gansu se quedou aquando da migração para Leste de uma parte da tribo, conduzida dois mil anos antes por Fu Xi e Nu Wa e que formou o povo Yi após chegar à Planície Central em Henan.

Fu Xi fora concebido em Langzhong, na parte Nordeste de Sichuan, de onde era natural a mãe, Hua Xu Shi (华胥氏), que pertencia à tribo matriarcal Hua Xu, mas foi em Tianshui, entre o ano 2953 e 2852 a.n.E. que nasceu, tal como três meses depois a irmã Nu Wa, ambos com o apelido Feng (风) do pai e por isso se compreende ser a tribo já patriarcal e serem filhos de diferentes mães.

Daí a visita a Tianshui (天水), que significa Céu e Água, nome dado em 118 a.n.E. no reinado de Wu Di da dinastia Han do Oeste, quando desde o século IX a.n.E. era chamada Quanqiu. A cidade Tianshui está dividida em dois pólos: Beidao (北道) construída com a chegada do caminho-de-ferro e a 16 quilómetros para Leste, a parte antiga chamada Qincheng (秦城), que teve o nome Chengji (成纪) e mais tarde, entre 220 e 1913, era denominada Qinzhou (秦州).

Sendo Tianshui a terra natal de Fu Xi e Nu Wa percorremos esse distrito à procura dos templos em sua honra. Relacionados com Fu Xi encontramos um na parte Oeste da cidade de Qincheng e o outro a 30 km, na colina Gua Tai (卦台山) situada em San Yang Chuan, 15 km a Noroeste de Tianshui, onde Fu Xi terá nascido.

Já Nu Wa viu a luz do dia em FengGu (风谷), localizada na montanha FengWei (风 尾山) hoje povoação de Loncheng na prefeitura de Qin’an, 40 km a Norte da cidade de Tianshui.

Cresceram juntos pois ambos eram filhos do deus do Trovão (雷公, Lei Gong, o deus Lei Ze, com cabeça humana e corpo de dragão, que começou por ser mortal, mas ao comer um dos pêssegos do pessegueiro celeste ganhou a imortalidade e tornou-se um humano com asas, tendo recebido uma maça e um martelo com que criava os trovões).

Segundo a tradição oral, perpetuada numa canção do grupo étnico Miao (洪水朝天, Hong Shui Chao Tian), há muitos anos o deus do Trovão e do Vento eram irmãos, tendo-se separado e enquanto Lei Gong (雷公), o deus do Trovão habitava no Céu, Jiang Yang (姜央), o deus do Vento vivia na Terra. Ao desentenderem-se entraram em guerra, dando origem a uma grande inundação que levou a água a chegar quase ao Céu.

A VINGANÇA DE LEI GONG

A história que se segue provem da província de Guangxi, perpetuada oralmente e mais tarde registada no livro Min Jian Gu Shi Zi Liao (民间故事资料).

O deus do Trovão (Lei Gong), representado com um rosto de macaco, bico de pássaro e asas que seguram um machado e um maço, tinha como esposa a deusa dos Relâmpagos (Dianmu) que com os seus raios punia. Lei Gong constantemente aparecia nos céus e com tempestades, de intensas trovoadas e diluvianas chuvas, fustigava os agricultores, arruinando-lhes nos campos as culturas.

Farto de ser vítima de tais calamidades e desesperado por trabalhar para no fim nada colher, certo dia o agricultor Zhang Bao Bo (张宝卜) ao aperceber-se pelo adensar das nuvens no Céu que o deus do Trovão se aproximava, resolveu confrontá-lo. Preparou uma gaiola de ferro e dependurando-a num poste, na parte de fora da casa, desafiou o deus para um combate. Furioso perante o desplante daquele terreno ser, irado atirou-se dos céus para acabar com o provocador. Mas o agricultor com a sua forquilha de ferro e cabo de madeira apanhou-o e num rápido movimento colocou-o dentro da gaiola, fechando-lhe a porta. Assim aprisionado, o deus perdeu o poder de fazer chover, voltando o Sol a raiar.

Precisando de sair para ir fazer umas compras, antes de partir o agricultor avisou os dois filhos para se afastarem da gaiola, não se dirigirem ao deus, nem com ele falarem e muito menos darem-lhe água.

As duas crianças, o rapaz de nome Fu Xi e a rapariga chamada Nu Wa, fartas de estarem em casa devido às constantes intempéries, aproveitando o Sol que voltara a aparecer ao fim de longos dias de chuva, brincavam no pátio da casa.

O deus do Trovão, que precisava de comunicar com o deus das Águas para conseguir reaver a sua poderosa força, apercebendo-se poder tirar partido da inocência das crianças, começou a lamentar-se do imenso calor que fazia. Estas lembrando-se dos avisos do pai tentaram ignorá-lo, mas a insistência do deus a clamar por compaixão, agora mirrado e com um aspecto inofensivo, mexeu com elas e perante as constantes e tormentosas súplicas, começaram a vacilar e a ficar condoídas. Percebendo tal, o deus prometeu não lhes tocar se lhe dessem apenas umas gotas de água para apaziguar a sede. Pensando não haver grandes consequências, deram-lhe assim um pouco de beber. Mas mal o deus tocou na água, logo a sua força e poder voltaram, libertando-se da jaula. As crianças assustadas iam para fugir quando o deus do Trovão lhes lembrou não lhes querer fazer mal e entregou-lhes um dos seus dentes dizendo para o plantarem na terra, pois este as iria salvar da grande calamidade que ele iria provocar, devido à ousadia humana de o terem preso.

Mal o deus do Trovão partiu e após se encontrar com o deus da Água deu início à vingança e tão grande foi que em poucos dias toda a Terra estava coberta por água. Seguindo o conselho do deus, os dois irmãos viram sair da terra uma grande cabaça que se dividiu mal a água chegou, embarcando cada um numa das metades.

O lavrador, com o cair das primeiras gotas, percebeu logo que Lei Gong se tinha libertado. Mas nada pôde fazer pois o deus do Trovão conjuntamente com o deus das Águas rodopiando abriram tamanha tempestade que durante dias inundaram todas as terras e até as mais altas montanhas ficaram submersas. Ninguém se salvou excepto os dois irmãos, que navegando cada um na sua metade de cabaça foram levados pelas agitadas águas e durante dias andaram à deriva, tendo-se perdido um do outro devido às correntes provocadas por o deus do Vento, que os levaram por caminhos diferentes, separando-os. Estavam as águas a chegar ao Céu quando o Imperador de Jade ordenou aos deuses seus subordinados para pararem e voltarem a colocá-las nos seus normais leitos.

Mitológica história perpetuada via oral contada com variantes por diferentes grupos étnicos como os Miao, Yao e Zhuang, mas a solução para a insanável questão sobre o pai das duas crianças aparece explicada no actual livro GuShenHua Xuan Shi (古神话选释) escrito por Yuan Ke (袁珂) que refere Lei Gong e o lavrador poderiam ser irmãos e ter havido na tribo lutas internas.

6 Dez 2021