Sobre o baptismo dos monstros

Do livro Embriologia Sagrada, escrito por um frade siciliano no século XVIII, abençoado pelo Papa Bento XIV e publicado em Português no ano de 1791. Neste passo do volume, em que o religioso pede auxílio a um especialista francês, discute-se a geração, ocorrência e o baptismo de monstros (Descoberto em Passarela, Gouveia, numa arca improvável):

 

“(…) Huma mulher póde ter commercio, primeiro com huma besta, e algum tempo depois com hum homem, ou com homem, e com besta, ou com huma besta sómente. No primeiro caso ha motivo para duvidar se a mulher concebeo da besta, ou se o féto, que sahe della, he huma produção do homem só, porém desfigurada, e feita monstruosa pela impressão, que a besta fez na imaginação da mulher no tempo da união, que precedeo á do homem: por outra parte quem póde afirmar que assim como huma besta pode fazer que huma concepção humana se faça monstruosa, também o homem não póde indireitar, e humanizar, digamo-lo assim, huma concepção bestial.

No segundo caso, se se suppõe que a mulher tem concebido do homem, toda a dificuldade está tirada (…), e sempre ha razão para duvidar e suspender o juizo; porém se huma mulher só tem tido commercio com uma besta, augmenta-se a dificuldade, e o embaraço: se he certo, como o crem muitos Fysicos, que o féto está formado todo, e organizado perfeitamente no ovo, e que se vivifica no mesmo instante da concepção, quem se atreverá a dizer que Deos suspende o seu concurso, e que não lhe infunde huma alma racional, seja quem for o macho que o põe em movimento?

Pois não se póde determinar se esta informação se faz logo que o féto se vivificou, isto é, no mesmo instante da concepção; pois não ha coisa que pareça deva impedir que entre nelle a alma racional; pois o féto, segundo esta hypothesi, não he todavia monstro; e he necessario, ao parecer, algum tempo, ou ao menos mais de hum instante, para que hum féto humano bem formado, e bem organizado se transforme, e possa converter-se em monstro.

Não sei que diga dos monstros, que nascem de bestas femeas com figura humana: confesso que tremo, quando revolvo esta materia: com tudo não sendo artigos de fé os systemas, que ideião os Medicos, e Fysicos, e os Anatomicos, parece que quando ha dous com pouca differença igualmente verisimeis, he permitido, havendo a mesma difficuldade em hum, que no outro, e sendo a cousa de tanta importância como esta, differir ao dictame de Medicos, e Fysicos muito hábeis, que julgam que o féto está todo formado, e perfeitamente organizado na semente do homem.

Mr. Levenhouc, Hollandez, faz ver por meio de seus globos de vidro, que na semente dos badejos machos estão formados inteiramente os badejos filhos, e que se movem algum tanto. Nesse sistema, se se supõe que o espirito seminal da femea põe em movimento o féto, e o vivifica ao tempo da concepção, e que a alma racional se infunde no mesmo instante, he necessario grande valor para decidir que o féto humano, formado todo, e perfeitamente organizado, só por estar no corpo de huma besta femea, não está informado de huma alma racional.

De tudo o que fica dito concluo, que se devia desejar que se visse baptizar geralmente tudo o que nasce de mulher, no caso de ter vida, e ainda os monstros, que nascem de bestas femeas, se tem figura humana, quando se sabe que algum homem tem podido ter parte na producção; pois é impossivel decidir que semelhantes monstros não são animais racionaes. Trata-se da salvação, ou da condemnação eterna das almas; e tendo-se feito o sacramento para as almas, e não as almas para o sacramento, a razão, e a piedade pedem que se aventure sempre o sacramento antes que a alma.”

Paris, a 25 de Maio de 1693. Fillipe Ignacio Save, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris.”

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