Plano de vazio

Percursos secretos entre as paredes como sentidos entrelinhas. Entre paredes. A que é real, de origem e de pedra e a que a cobre de uma aparência inócua. Deixando entre elas um espaço para iludir a humidade, que amplifica sons reais ou da imaginação. Um vazio entre planos.

Tenho que contar a história do meu rato. Melhor dizendo, o caso do meu rato. Ou ainda do rato, porque de repente, em mim, o instinto humano e animal de propriedade me leva a designá-lo somente desde um destes dias, como “meu”. Porque me invade o lugar que considero território meu naquela pura ilusão de poder escolher com quem estou só e com quem, acompanhada, ali. Surge-me este pensamento. Pueril, é certo. Atemoriza-me o bicho invisível, incomoda-me quando confirma que está, como se dali pudesse acontecer todo um conjunto de possibilidades, mais do que imaginar a face deste protagonista escondido mas audível, os dentes, as unhas que lhe oiço distintamente, o arranhar amplificado pela parede de pladur, o pêlo malcheiroso. Ou talvez seja um monstro enorme e desconhecido, mas de uma grande delicadeza que tenta não incomodar mais do que o pequeno – sendo assim – arranhar da parede e que não consegue evitar pelo transtorno do seu porte excessivo, quando se ajeita para descansar. Mas consolo-me neste raciocínio de deixar correr o tempo sem antecipar invasões maiores, este pensamento de que tudo é real, tudo é parte da natureza de uma cidade velha. E de que faz parte do lugar e é meu, queira ou não queira. Aceito. Como se isso o tornasse melhor. Como se isso fosse possível.

Tomo posse. O passo seguinte, diz alguém, é dar-lhe um nome. Mas é aflitivo, sim. Ouvi-lo ali dentro das paredes. Nitidamente mas com impotência. Mas não é arrogância minha, de posse. Não é posse, é ponte. Dinamitada. O meu rato que não é o rato HP, vermelho e doméstico em cima da mesa, mas um que digita realmente de forma audível com unhas que arranham e se fazem ouvir. Dou por mim a espia-lo, a duvidar, a dar pancadinhas em vários tons na parede que nos separa. A encostar o ouvido naquele ponto preciso da parede, para lhe sentir mais nítido o percurso e os gestos, as unhas. Não me parece assustar-se mais do que eu no incómodo que queria provocar-lhe com as pancadas a desinquietar, a provocar uma fuga que me dissesse que não está preso nem confuso. Percorro a parede com os dedos a aferir a relação causa-efeito. Eu do lado de cá e ele de lá, silencioso agora. Mais para a direita e o arranhar das unhas onde, como se não existisse?

O salitre que retomou o seu curso. Como a natureza. A natureza que produz e a das coisas produzidas, a reaver o que é pasto dela. Inexoravelmente. A vida secreta da natureza que subjaz a uma cidade. Os lençóis de água que por capilaridade e como uma seiva, lhe sobem pelas paredes a envelhecer uma vida da matéria, que as tintas e betumes somente disfarçam de juventude precária. Como se se montasse uma tenda frágil no meio de uma natureza forte e imparável. Não é o que se quer da casa. É preciso senti-la inabalável. Segura contra tudo o que perturba e todos os que nos abalam.

Depois silenciou-se o arranhar que o fazia nítido e presente, do lado de lá da parede. Abalou ou ficou por ali quieto para sempre. O que não é bom de pensar. Mas se abalou pode sempre voltar. Por esse caminho secreto que o levou ali. O que também não é bom.
Nunca vou saber.

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