Um elogio ao chinês

[dropcap]A[/dropcap] minha suposta profissão é a de escritor. Digo suposta porque encarar a escrita seriamente corresponde, em última análise, a não alimentar qualquer importância quanto as consequências pragmáticas que dela advêm, nomeadamente (mas não só), a indispensável componente financeira. Escrever não dá dinheiro. Reformulo:

é muito improvável que se consiga viver de royalties, especialmente se nos restringirmos ao anémico mercado português e se considerarmos unicamente a escrita literária – que é sempre mais fácil de definir pelos exemplos daquilo que não o é. Haverá quem o consiga, mas contam-se certamente pelos dedos da mão.

Preferia que assim não o fosse e que pudéssemos quase todos quantos escolhemos escrever viver da escrita. Mais a mais, a escrita exige tempo, respiração, leitura, muita leitura. Não se coaduna facilmente – embora quase sempre tenha de o fazer – com a exigência de uma profissão ocupando oito horas diárias. Por tudo quanto ouvi e vi desde sempre, nunca achei que me seria possível viver da escrita. Escrevo porque quero. A cada um o seu veneno.

Uma das parcas vantagens da escrita é ser-se traduzido e com isso poder ir a sítios a que de outro modo só se iria em documentários. E uma coisa que tenho verificado um pouco por toda a parte nas cidades da Europa onde me tem calhado estar (sobretudo França e Alemanha), logo no aeroporto, é a omnipresença da língua chinesa. Não só nas sinaléticas onde antes pontuava somente o inglês, mas em anúncios de todo o tipo, de ofertas disto e daquilo a incentivos vários ao tax refund e restantes modalidades de captação da divisa turística. É assim em Paris, em Frankfurt ou em Lisboa. Presumo que também o seja na maior parte das cidades em que o chinês-versão-turista vem largar uns cobres. Há coisa de vinte anos apenas – talvez menos – a quase totalidade dos turistas do extremo oriente a visitar a europa eram os Japoneses, afamados por comprarem artigos por prateleira e pela obsessão praticamente patológica que nutriam de documentarem fotograficamente a sua presença. As suas férias, dir-se-ia, começavam de facto quando, regressados ao Japão, abriam o álbum de fotos pela primeira vez para os seus convidados.

Por motivos felizmente alheios ao turismo, ando a (tentar) aprender chinês. Do ponto de vista gramatical e sintáctico, não é uma língua difícil. Infelizmente, tudo o resto o é. É uma língua tonal, coisa com a qual não estamos habituados a ter contacto (o mandarim tem quarto tons, o cantonês tem seis, fazendo com o primeiro contacto com o cantonês lembre uma multidão de pessoas a tentarem cantar dentro de um autocarro circulando numa estrada pejada de lombas). A escrita é ideográfica, pelo que a dificuldade não é ser-se incapaz de perceber o que se lê – como, por exemplo, para mim, o dinamarquês – mas o próprio acto de ler. Há de facto uma razão para a nossa expressão idiomática “isso para mim é chinês”.

Mas é uma língua fascinante. Para começar, não tem nem existe “sim” ou “não” em chinês. A concordância ou discordância faz-se verbalmente – afirmando ou negando o verbo da frase na qual vem expressa a pergunta, regra geral. Os verbos não flexionam em tempo, pessoa, número, etc. Parece-me, eu que tenho o chinês ainda apenas pelos tornozelos, uma língua de legos: as palavras encaixam umas nas outras sem deformação, quadradinhas, prontas a serem usadas de formas inteiramente diferentes e com outros sentidos noutras frases. Legos talvez não seja a melhor imagem. Tetris, que aos legos não se perde.

Tivesse eu nascido a tempo de começar agora a aprender uma língua estrangeira na escola, ia aprender chinês (isto partindo do princípio de que os nossos governantes dão alguma importância à língua da (brevemente) maior economia do mundo, falada por mil milhões de pessoas, e a instituem, nem que facultativamente, nos currículos escolares). Porque o inglês se aprende por contágio, na internet, e as restantes línguas europeias por paixão ou no erasmus – e estes, por vezes, coincidem em tempo e espaço.

28 Jun 2019

A história da caverna negra

[dropcap]A[/dropcap] 6 de Dezembro de 1947, Jorge Luís Borges deu em Harvard uma conferência no contexto das “Palestras Norton”, intitulada “Contar o conto”. A passagem mais significativa do texto compara a épica com a tradição moderna do romance. Referia o autor que a diferença não se situa “entre verso e prosa”, nem “entre cantar uma coisa e dizer uma coisa”.

A diferença de fundo era outra. Cito: “O que é importante no poema épico é um herói – um homem que sirva de modelo a todos os homens. Ao passo que a essência da maior parte dos romances está na falência de um homem, na degenerescência do carácter. Hoje, quando as pessoas pensam em final feliz, pensam-no como concessão ao público ou pensam-no como estratagema comercial. Contudo, durante séculos os homens puderam muito sinceramente acreditar na felicidade e na vitória, embora sentissem a dignidade essencial da derrota.”

Pode resumir-se esta duplicidade, aliás já bastante estudada, do seguinte modo: ao imaginar-se o homem a dialogar e a respirar no meio dos deuses, é natural que os relatos tendam a elevá-lo quase a deus. Por seu turno, ao imaginar-se o homem livre e capaz de tomar conta de si próprio, é natural que os relatos tendam a dar conta da sua queda. As histórias de Ulisses, Jesus, Gilgamesh, Alexandre ou Sindbad nada têm que ver com as personagens presentes nos enredos criados por Kafka, Poe, Roth, Rubem Fonseca ou Houellebecq. O mundo antigo e o mundo moderno chocam, de facto, neste ponto seminal.

O caso fez-me relembrar um romance de Ernesto Sabato, O Túnel, escrito quase na mesma altura em que Borges esteve em Harvard (1948).

O livro começa por anunciar do que trata logo no início: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne”. Aparentemente, o leitor é imediatamente lançado contra a parede. Nas páginas que se seguem, a ficção abre-se ao jeito de um desdobrável, dando conta da inauguração de uma exposição de pintura (o Salão da Primavera de Buenos Aires de 1946) em que uma mulher, Maria Iribarne, se apaixona por um pequeníssimo detalhe de um dos quadros expostos (uma janela de milímetros inscrita no fundo de um óleo onde contracenam uma mãe e um filho).

Este facto viria a mudar a vida do pintor Castel. Apesar de ter observado a mulher verdadeiramente extasiada apenas durante alguns minutos, nos meses que se seguiriam – cito – “só pensei nela, na possibilidade de a voltar a ver. E de certo modo só a pintei a ela. Foi como se a pequena cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha obra”.

O ponto de viragem é habilmente explorado por Sabato, pois dá origem a uma série de contingências mais ou menos inesperadas que conduz ao encontro dos dois e à sua inevitável (e fatal) atracção. Há cartas, telefonemas, idas de comboio a uma casa de campo, ciúme e toda uma encenação fantasmática que transformará a aventura em tragédia.

No final, a regra cumpre-se. Diz o protagonista: “Quando me entreguei, na esquadra, eram quase seis horas. Através da janelita do meu calabouço, vi como nascia um novo dia, como um céu sem nuvens. Pensei que muitos homens e mulheres começariam a acordar e logo tomariam o pequeno-almoço e leriam o jornal e iriam ao emprego, ou dariam de comer aos filhos e ao gato, ou comentariam o filme da noite anterior. Senti que uma caverna negra ia aumentando dentro do meu corpo”.

Percebe-se que a literatura visa uma simples brecha ou um lapso premeditado. Talvez nos queira só ensinar a morrer, nobre tarefa que enche toda a história da filosofia. A janela de Maria Iribane terá sido o simples pretexto para que um ponto de viragem pudesse dar acesso à “caverna negra”, ou à queda, que tanto atraiu os modernos e que tanto continua a cativar os contemporâneos.

Borges fez o diagnóstico elementar e Sabato cumpriu-o com um plot inventivo. A Argentina é um país maravilhoso, claro está. Mas estávamos ainda no plano dos livros, objectos que se abrem e fecham, quando viajamos de comboio no primeiro dia de verão, sabendo que antes contaram com editores, críticos, leitores devotados, filtros qb.

Há quatro anos, neste mesmo mês de Junho, Umberto Eco esteve em Turim para um doutoramento ‘honoris causa’ e testemunhou o desígnio da actual “caverna negra” com as seguintes palavras: “No nosso tempo, as redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que, antes destas plataformas (mesmo com romances debaixo dos braço), apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade”.

Se os humanos nunca se habituaram a viver fora de mediações razoavelmente restritivas, fossem elas proféticas, épicas, jornalísticas, científicas ou literárias, o actual cenário parece estar a recuar para um tempo pré-mitológico, dir-se-ia mesmo primitivo, e, portanto, anterior à noção de herói, configurando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. Mas este recuo alia-se ao poder da tecnologia, o que significa que o seu impacto poderá ser letal.

Sem alardes de pessimismo, parece claro que a “falência do homem” e a “degenerescência do carácter”, realçadas por Borges, estão prestes ou, pelo menos, caminham no sentido de atingir uma espécie de cume. Esperemos, contudo, que seja um cume de Sísifo.

27 Jun 2019

Relicário de sonhos III

[dropcap]S[/dropcap]onhei que toda a gente me perguntava constantemente pelos sapatos verdes de andar para trás. E eu ficava ofendida e magoada. Sei que a dada altura queria provar que não eram assim, que não eram verdes e que não os usava com esse propósito, e procurava por eles num grupo de caixas, em frente a algumas dessas pessoas, para depois encontrar, no meio de tantos, que pertenciam aos outros, um par de sapatos verdes intactos, que eram do meu número mas que eu sabia nunca ter calçado. Estava triste, e alguém me dizia que ia falar com o Rufus Wainwright, e ligava-lhe, na verdade eu estava chateada com o namorado dele, que não me consigo lembrar quem era, mas acho que também era conhecido, e ia procurar um poema que sabia ter escrito sobre isso. Quando o achei rasguei a folha em duas sem querer. Na altura já estava noutra sala e queria fazer as pazes, visto que eram ambos meus amigos. Não estava com eles mas conseguia vê-los de onde estavam. Para além disso, antes sonhei que o Lou Reed ia lá a casa para conhecer as minhas irmãs, que eram as Jenner mais novas, e tínhamos de provar que elas faziam bodyboard porque era o desporto preferido dele, e elas tinham de fingir que não sabiam que ele vinha. Mas o Lou só queria dormir, e até tive de o aconchegar. Quando se levantou finalmente e mesmo antes da apresentação, decidiu voltar para a cama, e as miúdas ficaram muito desapontadas, sentadas na beira da banheira com os seus fatos de bodyboard e as pranchas que mal cabiam no wc. Havia um buraco na porta que estávamos todos preocupados em ocultar, embora não perceba porquê.

Sonhei que fazia parte da família Kardashian e que estava com eles num hotel, e passava uma manhã inteira a nadar sem me cansar, toda a gente na piscina, Kim e Kanye inclusive, conversando, não me recordo sobre o quê, e eu tinha acabado de sair do hospital. A dada altura subia para escolher o quarto, havia muitos dentro da nossa suite, de seu nome Bairro Alto. Antes disso, andava pelas ruas com outras personagens, mas personagens mesmo, que fugiam, e talvez eu também, de alguém, e se disfarçavam, a dada altura, de apanhadores de lixo. Após passar o perigo eu tirava fotos, com as mãos, do edifício em frente, e o que fixei foi que iam sempre aparecendo cães diferentes em cada janela, que às vezes ocupavam a janela inteira, cães gigantes.

O prédio estava quase em ruínas, mas viviam lá pessoas que ocasionalmente surgiam ao lado dos cães. Ao lado havia um café muito bonito, onde vivia uma senhora que, diziam, também não era bem o que parecia. Eventualmente alguém ia lá obter informações, mas não me recordo de mais nada.

Sonhei que ia a uma livraria com a minha irmã, e ela dizia que eu tinha mesmo, mesmo de ler o “…Valsa Lenta” (ela nunca dizia o título todo, evitava De Profundis), e que não bastava ler o livro, tinha de ouvir a música, mas quando o folheava havia uma dedicatória para uma Joana e imagens de livro de receitas na contracapa. Havia mais dois livros que eu estava a ver, de capa preta, do mesmo autor, e um tinha capítulos minúsculos, mas do que li e agora não recordo, parecia ser muito bom; supostamente havia uma ordem correcta de leitura do conjunto de três. O dono da livraria estava ao nosso lado a aconselhar-nos, no entanto havia um casal a causar distúrbios mais à frente e então ele foi lá. Quando olhei para o lado direito (o senhor tinha estado do lado esquerdo), havia uma criança a treinar uma espécie de vira, para gáudio da avó. A mãe também aparecia, estava a arranjar a maquilhagem, e tinha um colar em forma de casa gigante e colorida que por algum motivo me lembrava os Pauliteiros de Miranda. Sei que tanto a mãe como a filha olhavam para os livros como se estivessem a ver-se ao espelho, e que antes de chegar à livraria tivemos de passar por muitos outros espaços e ficámos sempre paradas a falar com alguém. O resto ficou lá, mas fica sempre, não é?

Outro dia sonhei que ia a uma faculdade que ficava numa espécie de castelo, e que se podia adicionar/fazer amigos sem ter de estar com eles, e havia um rapaz que eu ia adicionar por recomendação de um amigo, no entanto hesitei e ele acabou por aparecer e impôr-se. Entretanto, aparecia um ex-amor, amigo desse rapaz, que me dizia que já sabia que eu ali estava mas tinha esperado pelo momento certo e fazia um belo discurso que, por algum motivo eu ficava muito feliz por ouvir. Em seguida eu atravessava um campo de futebol durante um jogo e defendia-me da bola com as mãos, acabando por pedir desculpa a todos, embora não fizesse parte de nenhuma das equipas. Depois, encontrava uma foto a preto e branco do futuro vencedor, lavado em lágrimas, de um prémio que vinha numa garrafa de cerveja. No cimo da torre estavam o Jorge Gabriel e uma apresentadora que não conheço a anunciar o dito. O chão coberto de tampas de abertura fácil de cerveja, gigantes e cinzentas, mas não havia ninguém na rua.

Sonhei que estava na faculdade e ia ao wc apenas para ser encurralada por três miúdas faladoras que pediam a minha opinião sobre um trabalho que iriam apresentar nesse mesmo dia, acerca da Barbie. Para além de o trabalho ser uma apresentação feita em quadro branco de sala de aula que elas transportavam para todo o lado, estava muito mal feito e parecia-me plágio de um trabalho que a minha irmã tinha apresentado. Como se não bastasse, a palavra Barbie estava mal escrita, “Barby”, e eu disse-lhes isto, mas elas não alteraram, e foram embora mas não sem antes me olharem com aquele desdém de quem sabe melhor do que eu como se escreve o nome da boneca mais famosa do mundo porque até há bem pouco tempo ainda brincavam com ela. Fui ter com a minha irmã e pelos vistos ela já estava em paz com o facto de toda a gente andar a copiar o trabalho dela, mas eu continuava preocupada com a palavra Barbie, receosa de estar errada, e não descansei enquanto não vi o logo algures e acabei o sonho dizendo, aliviada, “Eu sabia que era com ie no fim!”

2014

Sonhei que entrava no autocarro errado (ia para Sintra, vindo de muito longe), e assim que me apercebia pedia ao motorista para parar e deixar-me sair, contudo ele recusava, dizendo que se eu pagasse mais um euro ou lá o que era podia desviar-se até à cidade que me interessava. Eu ia à frente e o lugar do motorista era a meio, virado de lado, e conduzia com umas manivelas estranhas. O autocarro só tinha cinco bancos, todos eles ocupados, embora fosse de tamanho normal. Eu estava em constante assombro porque todas as pessoas estavam calmamente no meio da estrada e ninguém se desviava senão no último segundo. Era de noite e eu tinha muita pressa para ir pagar o condomínio de uma casa onde já não vivia há tanto tempo que tinha dificuldade em recordar-me da cidade e da rua onde vivera, e a única pessoa que poderia ajudar, e de quem eu só recordava o nome e o rosto, não atendia (tinha algumas pistas num papel que tentava ler, em vão, porque aparecia tudo em branco).

27 Jun 2019

A Arte Ressurecta

[dropcap]D[/dropcap]izia Francis Bacon que pintar oscilava entre a intenção e a surpresa. Enfatizava as contribuições não planeadas e inconscientes no processo. Também a escultura brasileira Ana Maria Pacheco: «Obviamente, sei qual é a estrutura da composição, mas não sei como vai evoluir. É por isso que não faço modelos, de outro modo seria apenas um design.

Estaríamos a lidar com aquilo que sabemos. Nas artes visuais temos de lidar com o que não sabemos».

Eis-nos nos antípodas de Jeff Koons que projecta e manda fazer as suas peças, nunca se envolvendo no processo, num gesto, diria Ana Maria, de designer. Também a famosa peça de Mark Wallinger, Uma Verdadeira Obra de Arte – um ready-made vivo: um cavalo – está mais do lado do design do que da arte: ficam os trunfos jogados no momento da decisão, abolida a experiência do processo.

E suspeito que diferente não seja com My Bed, de Tracey Emin, que foi finalista do Prémio Turner, uma peça que ilustra porque introduziu o poeta Craig Raine o termo “homeopático” para descrever uma obra cujo conteúdo artístico é tão diluído, que não oferece maior efeito estético que o de um placebo.

Um bom placebo, igualmente, a peça referencial de Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, onde se dispõem os três diferentes elementos que conformam o conceito cadeira: a cadeira, a imagem da cadeira, a descrição da cadeira. A redundância no jogo dos análogos não descola a peça do já sabido, nem incita a uma nova relação ou a jogo diverso com a cadeira. Temos programado design e não arte.

Estabelece-se uma nova relação quando, por exemplo, se ilumina que se traçarmos dois riscos paralelos entre si na verdade desenhamos também o risco branco que fica no meio entre eles e então somamos. 1+ 1 = 3. Se não se gera este movimento, inaugurando um âmbito, qualquer peça é amorfa, não nos transforma.

Eis a superioridade da cabeça do touro de Picasso sobre o urinol de Duchamp: a escultura não só subverte a funcionalidade dos elementos que a formam, molda outra percepção. Também sobre a arte mas sobretudo quanto a como re-inaugurar o mundo. Com Duchamp, combatemos os preconceitos sobre os limites da arte, emergiram novos materiais para a arte e ganhou-se um trocadilho, mas o mictório continua um mictório: o terceiro da relação não transitou do conceito para o coração – mudou a arte mas não mudou com esta o olhar. Pura tagarelice cerebral.

Aliás, para a escolha dos objectos que fossem “elevados” a ready-made, Duchamp tinha um adjectivo: indiferente. O objecto escolhido tem de destacar-se pelas suas não-qualidades. Busca-se uma isenção, uma impessoalidade. Estamos no pleno sistema dos objectos.

Daí que Duchamp tenha afirmado, Eu dou àquele que observa (a obra de arte), tanta importância como àquele que a realizou. A blague de quem sabe ter-se distinguido na singularidade de reivindicar o anonimato para a arte. Era um homem fascinado pelo engenho da sua inteligência, habituado ao bluff, ou veja-se a sua última obra: «Étant donnés»; aí obriga o espectador a mirar através do buraco duma fechadura, produzindo uma situação onde não só ele controla a posição do observador e o seu ponto de vista – quando suprimira o controle na arte –, como realiza uma obra que, contra tudo o que escreveu e defendeu toda a vida, é bastardamente retiniana.

O seu discípulo mais fecundo e um grande pensador foi John Cage, que se colocou contra o mestre em muitas posições. E por isso disse: O que peço à arte é que mude a minha forma de olhar.

Quando reparo que um selim e um guiador de bicicletas resultam numa terceira imagem que ampliou o meu campo da percepção, flano à procura de novos nexos que despertem outras alterações no padrão com que olhava a realidade e aí o mundo torna-se de novo maravilhosamente inacabado, ficando em co-criação com ele.

O artista, na concepção de Cage, é aquele que inaugura âmbitos. O âmbito abre um poro na nossa relação com o mundo, que passa a ser visto diferentemente porque fomos contaminados pelo despontar de uma nova interpretação, que nos constipou como o vento numa casa quando se escancaram as janelas. O artista transporta-nos à aventura de nos devolver um mundo inacabado e não cristalizado. E por isso passível de ser transformado.

Embora seja preciso acreditarmos que o mundo existe fora de nós e não é apenas a vitrina para expor a nossa arte, o circo de pulgas do nosso engenho.

Fiquei mais convencido ao deparar com uma artista conceptual que me parece dar um bigode à “esperteza” dos ready-made de Duchamp. Chama-se Cornelia Parker, a autora de uma das grandes obras-de-arte britânicas do século XX, Matéria Negra Fria: Uma Visão Explodida/ Cold Dark Matter (1991).

Parker pediu ao exército britânico que fizesse explodir uma barraca de jardim cheia de objectos pessoais. Depois, como se quisesse reconstituir um frame do acto da explosão, pegou nos fragmentos sobreviventes e suspendeu-os no tecto, iluminando-os do interior por uma lâmpada, o que cria um efeito dramático e projeta sombras nas paredes da galeria. Como é nítido pela imagem, Parker pega nos fragmentos e trabalha não apenas a escala alterada e a substância das coisas, ela suga-nos (aos espectadores) para o centro daquele caos (tal a força daquela luz centrípeta) e convida-nos a reconstituir com ela a catedral da memória, de que as sombras serão os vitrais. É uma experiência que, pela força inédita que nos atinge, equivale a uma estrondosa metáfora da vida. Eis um “ready-made” que não afecta apenas o olho e a mente, cativa o coração.

O que nos subtrai à “indiferença estética”: nesta galeria ficamos expostos a uma dança que nos mudará, nesse pas de deux.

«O universo está morto mas tem a capacidade de ressuscitar!», assegurava o físico Michael Polanyi.

27 Jun 2019

O carro à frente dos bois

[dropcap]H[/dropcap]oje, é o grande acontecimento, mais um pouco e esquecia-me. O senhor padre avisou que tinha de ser neste dia, ainda procurámos adiar, não estávamos preparados. Temos medo. Eu e os meus primos não vamos à escola, temos dificuldade em fixar o que nos dizem. Até as rezas que a minha mãe me ensina ficam sempre pelo princípio. Que posso fazer? Não me lembro. Não sou boa para teatros. E fico ali a dizer a cantilena que nunca mais acaba. Depois fico com fome. Com um formigueiro nos pés. E distraio-me. A barriguinha a fazer gluglu.

A minha mãe e o padre Faustino insistem, contam-me histórias, que veio um senhor à terra, e eu pergunto se é a nossa terra de Aljustrel e o que veio cá fazer. Se vai voltar. Ela a perder a paciência. Grita-me! Gosto sempre de visitas. É bom ver caras novas. Às vezes, trazem-nos rebuçados e colam-se aos dentes. E ralha-me. Diz-me: presta atenção, Lúcia! Está calor e imagino, quando me contam estes mexericos, o que estará a acontecer lá fora e que fazem os meus comparsas; podíamos estar a brincar no arneiro e a beber água fresquinha. No pátio grande da nossa casa há cinco figueiras, depois há umas escaditas até onde fica o poço, onde há macieiras, pereiras, cerejeiras e mais. No Verão, com a canícula, fico muito transpirada e só me apetece saltar para cima de uma árvore. Escorregamos por ali abaixo e deixamo-nos estar sentados no muro, que não é de pedra miúda, a roer caroços até à última. Em certos dias, quando é tempo disso, ficamos todos a esmigalhar o milho no meio da eira. Mas à noite, a querer dormir, a minha mãe não deixa de me ler o livro da Missão. À candeia.

A Jacinta e o Francisco são mais novos. Também não aprenderam. E por isso, demoram mais a ouvir o senhor padre, como se pelo meio, entre a boca de um e os ouvidos dos meninos, existisse uma grande cova, com uma charca e tudo, cheia de passarocos a chapinhar, no meio do olival, onde os homens se põem a arrancar ramos nos troncos junto ao chão, eu digo-lhes para não fazerem isso, que as cabras gostam de os comer. Os meus primos também devem querer mais estar a brincar do que estar ali. Mas o padre Faustino diz que é importante. Foi como se fez em França. E não precisamos de nos preocupar. Por via das coisas, é melhor dizer que o Francisco é mouco, assim não vai explicar nada. Não te esqueças que tu és mouco! Mas tem de se lembrar do que vê. Eles preparam tudo. Têm uma marioneta ainda mais baixa do que a Jacinta, onde puseram uns fuminhos e uns pirilampos, que se acende e começa a brilhar, com um vestidinho branco debruado a ouro e uns brincos amarelos. Um balão que voa. Se bem que lá fora – eu já disse ao senhor padre – não se deve notar muito e devíamos fazer as coisas mais no lusque-fusque, quando as pessoas estão a voltar para casa, dos campos. Mas ele teima, que tem de ser assim. Quando o Sol está no pico.

Hoje não era preciso grande coisa, repetiu. Depois, quando me perguntassem, teria de contar todo o preparo, que uma senhora cheia de luz se tinha assomado ao cimo daquele arbusto e falado connosco, os três. Não me posso esquecer das palavras. Que os homens tinham de se portar bem e rezar muito, senão o mundo ia acabar. Como castigo. Que durante seis meses ia aparecer ali, no mesmo dia do mês, mais ou menos à mesma hora. Pode ser que das próximas vezes seja mais para o anoitecer, se o padre Faustino deixar. É melhor! E para construir uma capelita naquele lugar e lojas para vender aquelas bonequinhas, de vários tamanhos e feitios, e uns cartõezinhos com as rezas, para as pessoas não se esquecerem. O terço, chiça! E velas, muitas velas. Para a noitinha? Mas o senhor padre não me respondeu. E mais tarde poderiam fazer ali uma grande praça, onde os carentes podiam chegar a arrastar-se com os joelhos todos esfolados, ou em camionetas da carreira, para cumprir promessas, acreditando que a senhora ia fazer milagres. Curar as doenças, pagar as dívidas, fazer com que os filhos tivessem boas notas. A uns sim a outros não. E todas as guerras iam acabar nesse mesmo dia, para os militares retornarem aos seus lares. Espero que não nos façam voltar à escola. Aquela terra iria ser tão grande que não ia caber dentro do monte. Que até lhe iam pôr outro nome com mais letras. Não me lembro bem qual, tenho de perguntar ao senhor padre. Na brasa das ideias, ouvi Maria do Rosário, não sei se era por causa disso.

Lúcia, presta atenção. Reza! – berra a minha mãe. Eu com a cabeça a ferver. Pai nosso que estais no céu. O pai está no céu, mãe? Não tinha ido à taberna do senhor Silva? Tenho fome, mãe! A candeia a fazer sombras na parede. São as alminhas, confirma, temos de as resgatar. E diz-me que não é o senhor Silva, nem o meu pai. Que é o Senhor que está no Céu, com letra grande, e junta as mãos para cima, o filho da Santíssima, também com S. Mas àquela hora já não enxergo, só penso no que vamos comer: umas batatinhas e umas couves, que a nossa terra dá sempre muito. Quando o Sol perde a última pontinha de luz, a minha mãe a pôr mais petróleo na lamparina – Lúcia? – e eu já a sonhar. A degolar rifões: em Fátima nada nos lembra Maria, é tudo negócio, pura idolatria.

Tanto que ali ia mudar. Era melhor os meus primos findarem mais cedo, porque não eram de confiança e podiam dar com a língua nos dentes. Isto disse outro homem, todo vestido de escuro como a cruz da igreja, a falar com o senhor padre. Que não lhes iam cortar os gasganetes, mas tinham de ver. Facilitava. Pensa nisso, Faustino! Foi o que ouvi quando voltei atrás para buscar a sacola, ali esquecida, porque tinha de ir fazer um mandado à minha mãe e não podia chegar de mãos a abanar senão ela batia-me. E a mais crescida vai dentro, disse ainda. Eu a sair porta fora.

Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão.

Arranjado foi, à hora da merenda já íamos a caminho da carrasqueira. Não me podia esquecer de aviar o recado. Vou depois da aparição, assim se chama. Os meus primos estavam esmorecidos a dizer que não queriam ir, que era melhor o gado pastar na serra, que ali não há erva da boa. Mas convenci-os, as cabras podiam comer algumas folhas da tal azinheira, já foi cortada e voltou a nascer. Eles que não prestaram atenção ao que o padre Faustino disse a seguir à missa. Se não rezam vão ficar de castigo na catequese. Castigados pela virgem. Não sei ler, mas sei que é com v de vitória.

O meu pai diz que sou uma intrujona, mas vou ser a artista principal e já decorei as minhas falas. Se não me alembrar também não será muito custoso, há-de-me aparecer alguma coisa à frente dos olhos. Falo no demónio, que é sempre coisa ruim, ou se estiver trovoada posso dizer que é uma batalha nos céus. Onde devem estar o senhor Silva e o meu pai. E o meu irmão Manuel que já foi às sortes e talvez vá para a guerra. A menos que os pirilampos façam mesmo o que dizem, dá-me para acreditar. Rogai por nós pecadores, cochicha a Jacinta, a rodar o seu colar entre as mãos. É o que devemos orar quando lá chegarmos. Ajoelhando.

O dia estava como o pêlo de uma ovelha tosquiada, começámos a correr porque vinha aí uma chuvinha e era melhor despachar aquilo não fosse a senhora molhar-se. Íamos só ver, para nos avezarmos ao lugar. Ficava ali perto, ainda no fosso do olival; a arvorezinha tinha uma fita num dos ramos, era fácil de ver.

Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão. Desde que me tornei pastora, já lá vão três anos, fico a tratar do gado o dia todo, pelos montes afora, a saltitar. Mas naquele dia, com os amanhos, pegámos tarde. Sou boazinha. E digo à minha mãe que não pequei, que tenho sono. Isso é uma reza? – desperta o Francisco, que só é surdo para o que tem de ser. Orações, sacrifícios, a graça do Senhor. Que está muito ofendido, sentencia a minha mãe. Que será que queriam dizer com o vou dentro? Dentro de onde? De uma raposa a passar, não é. E continuamos.

Como se chama aquele homem que morreu na cruz? Esqueço-me sempre. Será pão o que ela me pediu? Uma pouca de sal? Os panos para oferecer ao sacristão? Decoro outras coisas, mas nomes não é comigo. O senhor padre não gosta que esteja sempre a tratá-lo por vossemecê. Padre Faustino, caramba! Será o pavio para o candil? O Francisco sabe, diz que se chama Cristiano. Mouco, o filho da santíssima sua mãe. É Domingo, os pais foram à vila, só a venda do chinês está aberta. Se isto fosse a sério, gostava de perguntar à senhora pela Maria das Neves e pela Amélia, que se findaram no Inverno. Também terão ido no balão?

Anda, chegámos! – avisa a minha prima, olho para ela como se já tivesse partido. Podes começar.

27 Jun 2019

O feirante acidental

Galeria do 11, Setúbal, 1 Junho

 
[dropcap]C[/dropcap]ontinua por fazer uma história da ilustração portuguesa. Os contributos do Jorge [Silva] acabarão, tenho esperança, por erguer esse pano de fundo. E nele quantas figuras, de súbito, brilharão como Manuel Lapa (1914-1979), que tem nesta a sua primeira exposição? Que sabemos nós dele, sem uma única entrevista, depoimento, enfim, nada mais que vestígios?

Saberes instáveis e disciplinas discretas, como a ilustração, prestam-se a passarem entre os pingos de chuva da nossa comum atenção, mas convenhamos: tratamos mal a nossa memória. E perdemos com isso. Este autor, ainda assim notado como pintor, assina um enorme contributo para a nossa história visual, pela quantidade do trabalho, muito dele ao serviço das várias vertentes, educativas e outras, da propaganda do Estado Novo, mas sobretudo por um expressionismo riquíssimo em meios e assente no combate «Da Luz e das Sombras». As dicotomias sobre as quais o Jorge desenhou a exposição prolongam essa ideia revelando os vários rostos do artista, do livro ao cenário, das revistas às tapeçarias, do folclore à santidade, da espada à lebre: das sombras do mundo, do sal da terra, do sonho e da ilusão, do riso e das lágrimas, do céu e do inferno, da espada e do trono, da presa e do caçador (algures na página momento muito meu, assinado por Manuel Lapa). Acontece bastante cor, ainda que em tons baços, mas a força essencial exprime-se a preto e branco. Mesmo nos retratos, algo parece estar a acontecer, só o movimento nos traz o real perseguido. As massas servem de contraste para a figura, anunciam a peripécia, sugerem ambientes. E tantas nuvens passam por estes céus, estas decorativas, aquelas significantes, outras apenas correndo ininterruptamente. São sinal da elegância que habita este lugar. O equilíbrio entre originais, publicações e reproduções faz ainda desta exposição caso exemplar. E contém até o pormenor de um caderno de desenhos que não escapou incólume aos acidentes do tempo. Parece vociferar, no meio do dinamismo e da celebração de uma obra, que o comum descuido tem um preço: arde e até a água queima.

Largo José Saramago, Lisboa, 4 Junho

Ninguém pergunta: qual o gesto mais comum na vida de um editor? Talvez por se dar por adquirido que a óbvia resposta seria a leitura. Não: carregar com livros, eis o que mais fazemos.

Fui, portanto, carregado de exemplares, que queria exemplares, para a conversa com a Carla Oliveira, da Orfeu Negro, a convite do Jorge [Silva], no âmbito do «Faz-me Um Livro», ciclo dedicado ao design, edição e ilustração, comissariado pela Silvadesigners para a Fundação José Saramago. Tal como com outros deveres, estou atrasadíssimo com o primeiro catálogo da casa, com o qual pretendo fazer avaliação, mapa movediço do que foi sendo feito, aventando meia dúzia de porquês, enumerando episódios, falando dos modos, assumindo falhas e colhendo logotipos desta horta de abysmos, tão rica já. Estou atrasado, ia dizer, por carregar livros, o que não deixa de ser verdade. Dá muito trabalho sobreviver, nem sempre roubamos o tempo que nos permita pensar. E o catálogo há-de resultar de pensamento. E de tempo. Apesar das diferenças, reconhecemo-nos, a Carla e eu, em muitas das dificuldades da profissão neste momento concreto.

Não vos cansarei com a enumeração, mas os livros que levei eram dos que nos são devolvidos cansados e maltratados pelas livrarias. Apenas um sinal da irracionalidade deste processo que faz com que um livro não vendido possa acabar massacrado pelo hábito de o (mal)tratar como mercadoria. E não será? A mística arreigada ao objecto afirma que não, que se trata de um mudador de vidas, um abridor de horizontes, um «amigo». Fomos, espero, muito para além do fado habitual, dissemos das ânsias e desejos dos autores, da interferência do editor no processo criativo e da importância dos títulos e das capas. Acabámos falando, antes do mais, da paixão de continuar a esticar o objecto-livro em todas as direcções. Falámos sempre de livro na mão.

Feira do Livro, Lisboa, 8 Junho

Temo tê-lo repetido de mais: estreámo-nos na Feira do Livro com pavilhão próprio, partilhado com a Livros do Meio, editora que mora em assoalhada destas páginas. Havíamos participado antes de modos diferentes, sem grande intensidade, estou em crer que por não arranjarmos maneira de nos relacionarmos com o modelo. O ano passado tivemos até resposta entre o absurdo e o irritante a propostas solicitadas de animação, que nos permitiu anotar o interesse mínimo, para dizer o mínimo, que os organizadores devotam à poesia. A Feira evoluiu afastando-se do livro e da cultura em direcção ao comércio e entretenimento de massas. Passa pelo Parque muita gente, mas a pensar mais no passeio do que nos livros. Estes merecem a atenção de um olhar se os preços se agacharem tanto que rastejem pelos cêntimos, dando razões aos génios do marquetingue que dizem ser tudo igual, desde que com capa e páginas. Toda a lógica sopra a favor das grandes superfícies, digo, grupos editoriais que aqui copiam as ditas, com a sua lógica suicidária de descontos e neutralização. A programação da Feira não consegue apresentar-se com uma ideia forte, integrada e assente no essencial: o livro, o autor, a literatura. No concreto, o investimento revelou-se imenso, nos maravedis e no trabalho, sobretudo com o que se estraga e desperdiça. Ainda assim, pela primeira vez expusemos ao vento, à chuva e ao calor, mas também a alguns olhares interessados, o catálogo completo. A localização que nos calhou em azar afastou-nos das rotas, mas ainda assim demos um ar da nossa graça.

Horta Seca, Lisboa, 10 Junho

Um dos melhores jornais do mundo, The New York Times, cedeu à sanha moralista que envenena a opinião pública e, na sequência de críticas a um desenho de opinião do António [Antunes], que se “atrevia” a criticar as relações caninas entre a política norte-americana e israelita, anunciou o fim dos cartoons políticos. O principal visado, Chappatte, escreveu um texto que desafia os editores a não baixarem os braços. Só um sábio coquetel de resistência e inteligência nos poderá trazer oxigénio a estes tempos em que os gases das massas em fúria cega nos impedem de respirar horizontes. E também Martin Rowson, no The Guardian, disse o óbvio, lembrando as ameaças crescentes aos canários dos fundos da mina: «the New York Times’ decision is particularly irksome in its intoxicating combination of cowardice, pomposity, over-reaction and hypocrisy. » O NYT ofendeu-nos muito e merece castigo.

Feira do Livro, Lisboa, 13 Junho

Ficará da experiência adulta no Parque duas dezenas de páginas de certa edição especial que se atreveu a pensar, através do poema, do ensaio, do desenho e da pintura, que sentidos se colecionam nas massas difusas do etéreo em movimento. O jornal «Nuvens» teve, à sombra do pavilhão nefelibata, singelo lançamento, regado a duas versões da Trevo, a mais literária das cervejas do burgo. Foi um ar que se lhe deu, um corpus nubilum nascido de cadáver esquisito. «E se fosse a terra um modo movediço, reflexo chão do movimento acima? Como assentar escada na canção? Nuvem feita canção, verso que foge, cão.”

26 Jun 2019

Segredos

[dropcap]D[/dropcap]e vez em quando pensamos que estamos preparados para tudo. São momentos raros e, com sorte, não duram mais do que um nanossegundo. Mas não foi um desses momentos que me aconteceu quando há dias a enigmática menina Marina – a sábia do bairro – avançou inexpugnável e sem medo disparou: «Já sei que escreve uns artigos semanais num jornal de Macau». Tal foi a surpresa que nem sequer me interessou saber como o teria descoberto, eu que não sou dado a proclamar seja o que for em público ou em privado. Mas prosseguiu: «E todas as semanas um tema diferente… Isso é difícil. Qual é o seu segredo?». Por exemplo alguém fazer uma pergunta como essa e sem o saber estar a fornecer aquilo sobre o que poderei vir a escrever.

Naturalmente não foi isto que respondi e refugiei-me numas amenidades de circunstância. Mas outra vez a menina Marina tinha acabado de ser providencial.

A verdade é que o segredo é necessário a uma vida saudável. Não este que a pergunta referia, que terá mais a ver com um making of que pouca ou nenhuma importância tem para quem o detém e menos ainda para quem o quiser saber. Mais relevantes serão aqueles que pela sua ocultação podem afectar terceiros, individuais ou colectivos. A necessidade de escrutinar os nossos governantes ou quem possui poderes de decisão é uma das bases da democracia e de um estado de direito. Mesmo assim, em situações extremas, como conflitos bélicos, o segredo tem sempre um papel central.

Mas aqui neste canto do jornal o leitor sabe com o que conta, que são os dias, os passos dentro do nosso pequeno mundo. E até aí o segredo é essencial: pensemos o que seria da humanidade se toda a gente revelasse o que sabe do outro ou de si próprio sem filtros nem conveniências.

Não, o que aqui falamos é outra coisa. Não é o segredo malicioso, que prejudica. Mas aquele que é nosso, território desconhecido para o resto do universo. Um canto da nossa sala de estar mais íntima, um sentimento, um dia, uma hora. Se o revelamos, deixamos de ter uma relação real com os outros. Todos os temos, todos haveremos de morrer com alguns. O segredo, de certa forma, é essencial para a verdade e um bem a conservar e a não desperdiçar. António Vieira, que sabe mais e escreveu melhor, não hesitou em proclamá-lo num dos Sermões: «Nenhum segredo é segredo perfeito, senão o que passa a ser ignorância; porque o segredo que se sabe, pode-se dizer, o que se ignora, não se pode manifestar. »

Ter segredos só nossos é preservar a alma. E muitas vezes, mesmo nas mais apaixonadas e perenes relações, serve para preservar a união e a harmonia. Lembro-me dos versos de Four Flights Up, de Lloyd Cole: «Must you tell me all your secrets when it’s hard enough to love you knowing nothing?». Isso: de que serve uma obsessão pela “verdade” e pela “transparência” quando parte de amar e ser amado é justamente esconder o que nos incomoda em quem amamos no dia a dia?

O segredo nosso e que ninguém há-de saber é o que importa. Permite a convivência e o amor. E no limite, irá sempre garantir o mais importante de tudo: a nossa liberdade.

26 Jun 2019

De Mozart ao gamelão balinês

[dropcap]O[/dropcap]s compositores geralmente são homens (ou mulheres) complexos, mas poucos poderiam igualar-se a Francis Poulenc a esse respeito: parte um sofisticado e mundano parisiense, e parte um genuíno e devoto católico com, como ele próprio disse, “a fé de um pastor rural”. Nascido no seio de uma família francesa abastada, Poulenc parece ter herdado esses dois lados da sua personalidade dos seus pais. O seu pai, gerente da empresa têxtil Rhône-Poulenc, era um homem de fé profunda; a sua mãe era uma líder culta da sociedade parisiense, que, como o seu filho, adorava música, arte, literatura e teatro. No final da adolescência, Poulenc emergiu como um dos Les Six, um grupo moderno de jovens compositores que torceram o nariz ao establishment clássico e foram beber aos estilos populares. Assimilando músicos tão diversos quanto Bach, Mozart, Chabrier, Stravinsky e Maurice Chevalier num estilo unicamente seu, Poulenc descreveu-se, com razão, como “descontroladamente eclético”.

Em 1932, quando criou o seu vivo e despreocupado Concerto para Dois Pianos em Ré menor, FP 61, Poulenc era o compositor predilecto da nobreza francesa rica que frequentava os salões artísticos mais elegantes de Paris. Um dos seus membros principais era a Princesa Edmond de Polignac, nascida Winnaretta Singer, herdeira da fortuna das máquinas de costura americanas Singer. Ao longo da sua carreira filantrópica, a Princesa protegeu muitos dos principais compositores europeus, incluindo Stravinsky e Ravel, que lhe dedicaram obras importantes, como Renard e a Pavane pour une infante défunte, entre outras. A sua sala de visitas em Paris era um local de convívio da avant-garde musical. Encomendado por ela e escrito muito rapidamente no Verão de 1932, o Duplo Concerto foi projectado para ser um trabalho de puro entretenimento, para ser tocado por dois pianistas que eram amigos íntimos: o próprio Poulenc e o virtuoso do piano Jacques Février. A primeira apresentação do Concerto foi dada no dia 5 de Setembro de 1932, na Sociedade Internacional de Música Contemporânea em Veneza com a Orquestra La Scala, sob a direcção de Désiré Defauw. Poulenc ficou satisfeito com a recepção da obra e mais tarde executou-a com Benjamin Britten em Inglaterra, em 1945, sendo a mesma frequentemente descrita como o clímax do período inicial do compositor.

Com dois acordes bombásticos, o primeiro andamento, Allegro ma non troppo, explode numa série de melodias excêntricas ligadas por um motivo rítmico dissimuladamente conspiratório de quatro notas. Essa loucura transforma-se subitamente numa secção intermédia muito mais calma num ritmo lento e em êxtase; aqui os dois pianos dominam com melodias despreocupadas e ligeiramente exóticas sobre uma orquestração delicada. Depois de um regresso à música excêntrica surge uma pausa abrupta. A seguir, com os seus dois pianos, Poulenc evoca os sons mágicos e similares a sinos do gamelão balinês, em figurações modalmente inflectidas, como se lembrava de tê-los ouvido na Exposição Colonial de Paris de 1931, um perpetuum mobile recorrente no concerto. Adicionalmente, a instrumentação da obra e os efeitos de “jazz” são reminiscentes do Concerto em Sol Maior de Ravel, estreado em Paris em Janeiro de 1932.

O compositor admitiu que escolheu para tema de abertura do andamento lento, Larghetto, um tema mozartiano, por ter uma veneração pela linha melódica e por preferir Mozart a todos os outros compositores. Embora o andamento se inicie alla Mozart, depressa muda de direcção, com a entrada do segundo piano, exibindo inflexões cromáticas estranhas que nunca teriam sido ouvidas no séc. XVIII. Este cromatismo escorregadio transporta gradualmente a música para o mundo de Poulenc, e a secção intermédia torna-se sonhadoramente romântica ao estilo de Rachmaninoff.

O finale (Allegro molto) é o mais bizarro e diverso andamento de todos. Música brilhante para os dois pianos desemboca numa sucessão de melodias cómicas precipitadamente orquestradas. Mas também há passagens de lirismo encantador e romântico. Perto do final, a música de gamelão regressa novamente, agora mais brilhante e menos misteriosa. No entanto, as últimas notas do Concerto confirmam que este maravilhoso jogo musical não deve ser levado de todo a sério.

 

Sugestão de audição da obra:

Francis Poulenc: Concerto for Two Pianos and Orchestra, FP 61
Jean-Bernard Pommier and Anne Queffélec, pianos
City of London Sinfonia, Richard Hickox – Virgin Classics, 2008

25 Jun 2019

Das memórias de Adriano

[dropcap]M[/dropcap]emórias de Adriano» de Marguerite Yourcenar é um livro que foi quase uma instituição pública, porém, a direita europeia mais conservadora adopta para com a autora uma reverência estranha, incomum – não que não fosse digna dela, era-o – Yourcenar é um marco brilhante na literatura, mas este aspecto talvez extravase os domínios de uma elite mais apegada a leituras menos públicas. As Academias e as mais variadas instituições fizeram seguir debates permanentes, homenagens, simpósios, colóquios, de forma continuada e sistemática durante décadas. Mas vamos ao que interessa desta análise: Adriano.

Foi Adriano o mais radical antissemita que apareceu na História. É certo que construiu Jerusalém, mas a que preço e a que pretexto é que não pode ser esquecido: começa por lhe mudar o nome rasurando assim a sua herança e, passando então a chamar-se Élia Capitolina, ergue templos a deuses e a Júpiter sobre as ruínas da cidade judaica, proíbe a circuncisão sob pena de morte, e limpa a Judeia do mapa chamando-lhe Palestina que designa inimigo de judeus, neste caso em filisteu.

Os judeus, esses, esconderam-se nas grutas da Judeia e foram dizimados nas zonas rurais, e nem Tito chegou a tanto, nem mais ninguém, creio, depois de Hitler, não existiu mesmo alguma vez uma vontade tão forte e arrasadora. Dir-se-ia que Adriano pode ser considerado o primeiro exterminador, fazendo (pior que a morte) do Templo, altar para deuses pagãos. Ora que seja enaltecido, será certamente por outras qualidades em esfera ficcional mas, falando de Yourcenar, falamos também de rigor e intenção, pois que não foi um ser de plumas que alguma vez se deixasse atravessar pelo reflexo de si mesma e cuja metodologia seguia planos bem traçados.

No entanto, Yourcenar nos próprios apontamentos justifica a existência dele e diz isto: «Este livro foi concebido, depois escrito, completamente ou em parte, sob diversas formas, entre 1924 e 1929. Todos esses manuscritos foram no entanto destruídos e mereciam sê-lo.» Não sei se era prática dela fazê-lo, mas fê-lo neste caso. Por quê e o que por fim aconteceu ? Nada sabemos. A liberdade de escrita é maior que os desígnios morais, mas há sempre uma moral que serve mais que outra, sempre disposta a colher das coisas tudo o que delas interesse.

De forma bastante subliminar se construía um ciclo imparável de descodificação à obra, entusiasmadas que estavam as Academias onde nenhuma mulher até então tivera assento, e dando relevo a um nome que a imaginação do leitor popular se deixou guiar como um analfabeto sequioso de comando. Esta experiência é bastante interessante e capciosamente fabricada para não mostrar as verdadeiras intenções. A extrema-direita sempre esteve por cá, ora na forma de se saber insinuar fabricando “estátuas”, ora aplicando a fórmula literária da múltipla leitura. O certo é que, “engolido” Adriano, a origem da besta se desvanecia, e o que representou filosoficamente (dado que era também um Imperador filósofo) superava em muito qualquer mal que se lhe pudesse atribuir. Uma das razões para a História se repetir é a cegueira daqueles que por ela passam, os seres precisam de estímulos dominantes e cada época é useira na sua propaganda.

Debaixo dos olhos de todos, em todas as épocas, dormita a mesma evidência, mas a maior alucinação colectiva é o não conseguir vê-la. Mesmo os que têm responsabilidades parecem por vezes hipnotizados dado o grau de convencimento das fontes.

Élio Adriano foi então o Esposo de Élia Capitolina, uma rábula pagã dos Cânticos de Salomão, que dormitavam no pó ardendo em prováveis golfadas de indignação ao testemunharem tais brutalidades, mas estas medidas são no entanto entendidas por muitos como conquistas, e é de assinalar que este tema é de tal ordem importante que se arrastou para os séculos posteriores e muito particularmente para a Europa dando uma dimensão que a influenciou até aos nossos dias, porém, e só aqueles que estão em guarda a usam de forma a manejar o “objecto mundo” que é uma rosácea de mariposas onde nada de verdadeiramente importante se deve saber sem o filtro de um dirigismo preparado, que usam então para seu gáudio.

Foi este homem reabilitado na mais fina tradição cultural europeia e por ele se lourearam as teses e hoje pedimos aos judeus europeus para não usarem a “kipá” de modo a não serem agredidos, e voltamo-nos com unhas e dentes contra Israel, chamando os nomes que Marco António (sim, esse, verdadeiramente filósofo) disse ao passar por aquelas terras a caminho do Egipto: «sinto-me repugnado com os judeus mal-cheirosos e desordeiros». Agora é a esquerda barulhenta que faz suas estas palavras. Sim, que a direita das Academias pegou na eloquente versão de Yourcenar para mais subtis comandos.

Não é no hélio, mas no éter, que quero agora deixar uma diáfana pergunta. Porquê, Yourcenar?

25 Jun 2019

Festa a S. João Baptista

[dropcap]H[/dropcap]oje, 24 de Junho, para os cristãos nasceu S. João Baptista. Pagã personagem histórica do início da nova Era, como eremita no deserto purificava com água do Rio Jordão quem acreditava, dizendo: -Eis o Cordeiro de Deus.

Ritual animista inserido nos dias de celebrações ao Solstício de Verão, quando em colectiva exterior confraternização, esfuziante de alegria, se agradece as colheitas do ano. Encerra o período do fogo que começara no Solstício de Inverno. Regeneração iniciada pela festa da família no interior de casa a ocorrer à mesa em balanço do ano agrícola, e para os cristãos, dias depois, no Natal.

“Ensinam os livros que a Festa do Sol, no solstício do Verão, marca um lugar de passagem. Do formal para o informal, do finito para o infinito, do tempo para a eternidade. O Sol entrou no seu movimento descendente de declínio, a caminho do nadir e, de novo, da ascensão e do renascimento. S. João Baptista é o zénite, Cristo o nadir; e ambas as festas, o S. João e o Natal, convocam – dizem os livros – arquétipos primitivos da alma e da natureza dos homens”, segundo Manuel António Pina que adita, “S. João Baptista é tido como santo austero, dado a jejuns e às orações, mais do que a euforias; mas dizem também a Bíblia e a lenda que saltou de alegria na barriga de Isabel à visitação de Maria, mãe de Jesus. A Igreja partilhou entre os dois, João e Jesus, as festas solsticiais: João foi nascido (mais do que nasceu) no solstício de Verão quando o Sol, no zénite, inicia o longo declínio para a Obscuridade; e Jesus no solstício de Inverno, quando o ciclo solar se torna de novo ascendente, e os dias crescem, cada vez mais limpos e luminosos. João, testemunha de Jesus, não foi que disse: É preciso que Ele cresça e que eu diminua?”

Segundo Eugénio de Andrade, “… a festa do solstício de Verão, com as comemorações do fogo, da água e da vegetação, tem mais a ver com o espírito dionisíaco do que o cristianismo, que de solar teve sempre muito pouco”.

A escuridão prepara para tomar conta da luminosidade do dia e expandir cada vez mais a noite.

Noite de S. João

O solstício a marcar a passagem para o Verão é comemorado desde tempos imemoráveis como festa pagã. Vivida pelo exterior nas anuais mais curtas noites, sob o Céu expõe-se o ano ocorrido, manifestando o estar com que se entra e se faz festa. Colectiva energia cujo ânimo sem a diária competição faz realidades criadas pelo fogo e água, e resolvidas as questões do individual, renasce a amizade entre pessoas, originando a maneira espacial da cidade. Nessa alegria fraterna, as vibrações são alimentadas por rusgas e o saltar fogueiras, associado ao casamento e fertilidade.

Acesa a fogueira serve também para transmitir mensagens e segundo a tradição, assim Isabel avisou a irmã Maria do nascimento de João. Culto ao Sol com balões a subir pelo ar, cascatas recriando a natureza com musgo e água a correr, encontrando-se no meio S. João. Noite passada ao relento acompanhada de “comes e bebes das orgias e o matraquear dos ritmos que permitirão o transe, a entrega”, Yvette Centeno.

Durante toda a noite de 23 para 24 de Junho a comunidade sai de casa para celebrar na rua o início do Verão, esplendor no yang da Natureza. Corrente de gente vagueia em exterioridade purificadora criando a festa ao interagir com o outro. Com direito à rua, aí mostra o ano que passou através do instrumento com que acolhe o outro e é nesse comunicar ‘provocatório’, que pela interacção nos apresentamos. Assim, em outra grandeza o S. João é uma festa do cheiro. Para quem teve um bom ano expressa-o transportando o manjerico, vaso difícil de carregar, mas para quem toque nessa erva-benta, ela cheirar. Colocadas na terra do vaso, bandeirinhas com mensagens em rima, trocadas entre namorados ou de foro popular a malandrado. O alho-porro de quem insatisfeito tem algo a expressar pelo cheiro, ao batê-lo na cabeça do outro escolhido deseja boa sorte e no fim da festa coloca-se atrás da porta da casa para a proteger contra o mau-olhado. Da subtileza da cidreira, ou de outras ervas bentas, de aroma agradavelmente silvestre, onde por zangadamente enganado se podem encontrar misturadas urtigas, sendo o intuir do momento a decidir se cheirar, ou duvidar. Já as plumas campestres substituídas pelas de plástico perfumado revertem para os martelinhos e nesse concerto geral (de notar ser S. João Baptista também o padroeiro dos músicos e de muitas outras instituições e colectividades) se recompõe o ritmo das energias colectivas da cidade.

Perdida está a tradição do cravo vermelho, nessa noite comprado pelas raparigas a pretender casar e ao deixá-lo cair esperavam o rapaz que o apanhasse para com elas ficar. Noite para encontrar o par. Espera-se pelas orvalhadas, normais nessa madrugada, e sinónimas de fertilidade sobre essa humidade as jovens se rebolavam. Costume é ainda antes do nascer do Sol ir mergulhar na água como protecção do ano contra certas doenças, pois a água imuniza e limpa.

Mudança de Luz

Sendo o Dragão símbolo do paganismo, tem S. João Baptista como seu herdeiro e representante. João, conhecido pelo Baptista, a voz que clama no deserto, baptizou Jesus, sendo o seu precursor, como o Profeta Isaías anunciou. Era filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, prima da Virgem Maria, e preparava as pessoas para um novo ciclo, o da água.

Fiel aos princípios, sem nunca deles abdicar, João foi preso e degolado por censurar o comportamento do tetrarca Herodes de Antipas, acusando-o publicamente de adultério ao casar com Herodíade, sobrinha e cunhada, pois esposa do irmão ainda vivo. Ao contrário dos outros Santos canonizados, não é no dia da sua morte, 29 de Agosto, que se celebra a festa maior.

Após a sua morte foi a doutrina subvertida e encontramos a imagem do mítico Dragão a tornar-se num monstro feroz-mente a combater, primeiro por Paulo de Tarso e entre outros, mais tarde por S. Germano, o escocês, para libertar a cidade do monstro que comia criancinhas. Também S. Jorge, nascido na Capadócia e padroeiro de Inglaterra, montado num cavalo branco salvou a filha do rei de ser devorada por um animal feroz, transformado ao longo dos tempos num dragão a eliminar.

No entanto em Portugal o catolicismo incorporou muito desse estar pagão e com esse dragão soube englobar o outro, do que em si não compreendia e assim a diferença desta doutrina no resto dos países europeus. Interagindo com o outro, purificamos para encerrar o semestre do período do fogo. E pela água a redimir, abre-se o caminho aos que acreditam, para se conseguir fechar o Ciclo pela terceira idade do Ser Humano. A mensagem de Jesus, a do espírito santo, conquistado pelo consciente do idoso e iluminação do ancião.

Em Macau, os holandeses foram derrotados no dia 24 de Junho de 1624 e nessa altura, o Senado e o povo elegeram S. João Baptista padroeiro de Macau, prometendo comemorar todos os anos essa vitória. Voto escrupulosamente cumprido até agora e assim é celebrado o dia de S. João com festa na Calçada da Igreja de S. Lázaro.

24 Jun 2019

Quando da metáfora se faz sinapse

[dropcap]S[/dropcap]empre essa vontade amarga de me fugirdes à mão, de vos esquivardes à intimidade com que busco acolher-vos mansamente. A má vontade de quem, em correndo uma brisa, débil que seja, voejaria para longe, onde o gesto fortuito dos meus dedos não vos pudessse alcançar. Sou eu que vos peço, com brandura: Vinde cá, meu tão certo secretário. Pois que dizeis?

Que não ides a lado algum e estais sereno, esperando-me, e que só vos entedio nesta bajulação melosa, lisonja sabuja de quem vende o amor próprio, por um cílio de atenção, em esperança vã?

Pois que não é lisonja, nem adulação galante; retórica bem mal ataviada, talvez: leve captatio benevolentia de pacotilha, porque vos quero deixar, com violência escrita, de rajada e sem pedir licença, o registo de uma poeta das que causam espanto; daquelas cuja poesia se escusa à percepção, e, que, ainda assim, e só por isso (será esta a definição da poesia que ainda nos surpreende à esquina do verso), não nos cansamos de mirar, franzindo os olhos à leitura: Andreia C. Faria.

O livro Alegria para o fim do Mundo contém quatro dos livros da autora, publicados de 2013 a 2017. É esta uma poesia que surpreende pela permanência de uma tensão, um confronto pelejado com a linguagem. Vacilamos ao aceitar reconhecer a língua do poema como a nossa própria língua; lendo poesia, apesar das gradações, modulações, diferentes, nela reconhecemos, apesar de tudo, uma gramática quase nossa, quase comum, quase partilhada. Mas, nos poemas mais conseguidos, até esse pacto é quebrado, para que na intimidade de leitura se instaure uma comunicação restrita e particular, não partilhável: oaristo, em código, do coração da página ao nervo do leitor. Um poema/epígrafe do livro Um pouco acima do lugar onde se ouve o coração (2015), incluído neste volume, evidencia bem, não tanto o impulso de escrita, como se sugere, mas o próprio recebimento, pelo leitor, desta poesia: «Escrevo com nervo e impaciência/com uma lâmina que se sabe/ela mesmo excrescência».

Estes são, então, poemas que se lêem com o mesmo nervo e impaciência com que se dizem escritos: a impaciência com que se cavalga as imagens e se passa além da metáfora improvável, para exercitar o nervo, fintando sempre o óbvio, a piada certeira, ou o trocadilho ligeiro, facilitista.

Muito forte a tensão, em cada poema, e não só pelas alusões ou pelas referências irónicas, ou pelo peso das ambiências sugeridas, mas por esta capacidade geral de nos retirar o chão à linguagem. Ora vede, meu tão certo secretário: acolhei este poema e vede como se coloca a língua em tensão, estabelecendo novos eixos e ligações, exibindo novas regras da lógica da língua; como a mesma gramática, a mesma sintaxe, inauguram outra semântica:

Penso no cavalo que transporta o sangue até ao coração
no sopro que o devolve
inteligível às extremidades.

Penso em chamá-lo a suaves mortes como a flauta do pastor,
enterrá-lo numa leira herdada de alegria.

O puro-sangue que repousa
no pasto de um homem pobre-
vejo-o ao espelho, um clarão de rins desfeitos
sob a etérea camisa de noite. É um laço de vida
a linha que me cose
com a agulha do cansaço, da má colheita, da humilhação.
É a promessa de uma morte calibrada
pela veia espúria, o vernáculo
do antepenúltimo, o antepassado.
[…]

É nova, até, esta capacidade de desdobrar o seu próprio vocabulário (todo o poeta, sim, meu tão certo secretário, tem um vocabulário muito seu, que domina e que vai descarnando como pode, até ao osso, nesse áspero processo da poesia que desfamiliariza a língua). Por outro lado, é densa e ampla a tensão metafórica e a amplitude das sinapses, das relações que a cada poema se convoca, exibindo essa escrita nervosa e impaciente, essa espada em excesso que descasca as palavras e exibe a poesia como um acto de violência que intenta contra o próprio pacto de linguagem. Sim, meu tão certo secretário, sabemo-lo desde Colerige: A literatura, o romance, obrigam à suspensão da descrença, a este estranho movimento que nos faz esquecer do nosso real e crer na lógica interna dos textos: são as perfeitas construções de palavras, que nos afastam da realidade, oferecendo-nos outra, em contrapartida.

Mas o que dizer da poesia, meu tão certo secretário? Desta poesia, por exemplo, cujo vocabulário em inquietante metaforização parece insinuar ao leitor, a cada momento:« — esquece, pois, que até agora falavas a tua língua». Escrever poesia é ludibriar: sujeitar-nos à descrença, que não suspendemos, sem que no entanto consigamos desviar o olhar desta estranheza que nos causa espanto: a metáfora torna-se sinapse, estímulo de afinidades e correspondências, intuições sensoriais que se experimentam, quando nesta poesia se faz uso da palavra.

Mas, que faço, meu tão certo secretário? Todo o comentário a um livro de poesia, a um poema, sabemo-lo, é um acto similar a cobrir-se com lençóis brancos os móveis de uma casa que se vai abandonar: protege-se do pó a mobília, é certo, mas desfigura-se-lhes as formas; desolada imagem que se forma, ao conceder-se-lhe o último olhar da despedida. Mais vale o esforço de, tempos a tempos, ir revisitando a casa, de pano em punho, lendo, instalando-nos confortavelmente e limitarmo-nos a limpar-lhe o pó que, às vezes, se acumula nas esquinas das palavras.

Há uma história antiga, meu tão certo secretário, recontada por Jean-Claude Carière que nos fala de um «mestre espiritual [que] tinha vários discípulos e que todo o dia lhes falava da poesia, da natureza, da bondade, da beleza e do amor. Uma manhã, quando se preparava para falar, um pássaro pousou no parapeito da janela e pôs-se a cantar. O pássaro cantou por algum tempo e depois desapareceu. O mestre levantou-se e disse: «Terminou a lição desta manhã:»»

Sim, meu tão certo secretário, será uma parábola forçada, que não me apresto para mestre (e que discípulos teria…), e por lição, só este arremesso de crónica sempre mal alinhavada, que não lhe faz as vezes. Não tenho quase nada da história de Carrière. Só tenho o pássaro. Aqui fica ele, para vosso proveito:

Admiro a pele dos homens
o couro moreno, bem lavrado, com que se recobrem
tem, ao relento, o calor de um animal esparso.

Pontua, respirando, os veios e os poros
a macia constelação das escamas
o sensorial rebanho que a matança multiplica

Lembra certos utensílios, o rufar tenso dos tambores
ou a espessa luz dos candeeiros

Transpirada, escurecida pelo uso, lembra as malas silentes
que as mulheres sempre carregam

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo, Lisboa, Coolbooks/Porto editora, 2019
24 Jun 2019

Desarrumações

[dropcap]A[/dropcap] desarrumação é forma de disfunção. Não é só o quarto da infância que está desarrumado. Há muitas coisas sem rumo. Se desarrumar for impossibilidade de encontrar o rumo na direcção de X, Y ou Z ou na orientação por A, B ou C, não são só os objectos que estão desarrumados. Os objectos não estão no sítio certo ou no sítio habitual objectiva ou subjectivamente. Se livro estiver fora de sítio, está desarrumado, embora ocupe uma posição no espaço. Numa casa, as coisas têm sítios certos e muitas vezes diferentes, para as pessoas que habitam a casa. O açucareiro pode estar apenas a dois dedos de distância do sítio certo do açucareiro para alguém. Mas para uma outra pessoa pode estar perdido sem poder ser encontrado, porque uma pessoa não vai à procura de uma coisa num sítio onde ela não poderia estar nunca. Mas é a ideia de ausência ou de impossibilidade de rumo que importa perceber aqui.

A desarrumação das coisas num quarto, em vários quartos, na casa de banho e na cozinha, em todas as divisões de uma casa podem tornar uma casa inabitável. Não é apenas o quarto que está desarrumado, quando todas as outras divisões podem oferecer acolhimento. É a casa inteira que não dá rumo à vida. Não se consegue trabalhar no gabinete de trabalho, não se consegue tirar um copo para beber água, porque todos estão acumulados no lava-loiças. Toda a loiça está suja e por lavar. E basta pensar que não falta a água por umas horas apenas e de que nos vale uma casa de banho? A casa toda afunda o rumo da existência. Nada pode ser usado. Torna-se disfuncional. Há diversos tipos de disfuncionalidade, claro. Para uma criança que mal ande a casa é diferente da que um adulto habita, bem como é diferente a casa para um sénior que já anda com dificuldades, o mesmo vale, é óbvio, para pessoas com deficiência. Os espaços têm de melhorar para poderem ser “vestidos”, “habitados” de modo funcional, para que as divisões ofereçam as possibilidades que habitualmente oferecem o melhor possível. Que bom que era ter casas excelentes, sempre arrumadas, a oferecer rumos, onde vamos para fazer o que lá fazemos ou só para lá estarmos.

Mas também há formas de disfuncionalidade e falta de rumo, quando perdemos uma entrevista, quando perdemos uma consulta, quando não fomos a um encontro, por haver trânsito, por termos ficado a dormir, por nos termos esquecido. Tudo o que podia acontecer não aconteceu.

Não se fala apenas de consequências. Fala-se de não ter havido X, Y e Z que poderiam ter acontecido. Em todas as formas de cancelamento, de falta de comparência, verifica-se também este não ter acontecido que não deu rumo, não abriu portas, não se sabe o que teria sido. É difícil invocar esses momentos, que ficaram vida fora. Podem ser muitos ou poucos, mas estão a constituir tensão na nossa vida. Pergunta-se o que faltou, o que não aconteceu, a que encontro não fomos, o que falhou? Mas pode não ser apenas a, b, c, d, ou tudo até ao z das oportunidades perdidas por falta de comparência. Tudo pode ser assim mesmo quando não falhamos em nada, tivemos sempre presença assinalada, fomos assíduos. Já não se percebe como é que a assiduidade nos possa marcar falta de comparência, como se lá tivéssemos estado mas tivéssemos sido transparentes e a oportunidade que estava em ocasião não foi vista e por isso não foi agarrada.

O mesmo se passa com os dias perdidos. Quantos dias perdidos sem fazer nada? Quantas férias grandes a gastar tempo? Quantos dias? Poucos, muitos, nenhuns? Como na doença da infância, saímos para fora do quotidiano mais ou menos complexo da escola. Ficamos em casa, com quem nos tem em casa. Os dias são mágicos cheios de febre, cowboys, jogos, muito tédio. Os outros continuam as suas vidas na escola, nos ginásios, na saúde dos dias. Quando regressamos ganha-se de novo o fluxo do sentido da vida em direcção a exames, provas, que nos façam passar de um ano para o outro de épocas escolares para épocas escolares, tudo está regulado. Perdem-se os momentos mágicos em que o entardecer de inverno traz a chuva a bater nas janelas do quarto da infância. Quantos dias perdidos sem fazer nada? O que acontece quando toda a gente trabalha, exerce competências, desempenha funções, tem trabalho, tem vida, e nós não temos trabalho ou não queremos ter trabalho, e nada apetece?

Pode ser uma vida inteira em greve de zelo, sem querer fazer nada, em desobediência total às regras que mandam trabalhar, à disciplina, ao cumprimento que nos faz não brincar em serviço. E pode ser uma vida ao Deus dará. Conheci algumas pessoas, não muitas, assim, quando o sentido da vida, o quotidiano tem precisamente esta forma de desobediência. Poderei dizer que há uma desarrumação ou disfuncionalidade, quando se sente a liberdade de alguém que é absoluto, que está absolvido das amarras dos outros próximos e afastados. Há seres impermeáveis a qualquer sociedade e não são foras da lei. São errantes, mas não são criminosos. Viram qualquer coisa diferente da que eu vejo, que não tolero um quarto desarrumado e quando não encontro um livro me apetece chorar depois de o ter procurado com o zelo intenso de um concupiscente?

Sem nunca ter feito greve de zelo, sem nunca ter desobedecido, tendo sido cumpridas todas as regras, trabalhando como se não houvesse amanhã também pode ser disfuncional, quando tudo parece ser sem rumo. O desenraizamento, a desarrumação, o desnorteamento dá-se quando todas as coisas, tudo sem excepção parece estar arrumado. Mas quando não chega um pensamento até nós, daqueles de que fala Hofmannsthal que é como uma jovem águia a voar, não até nós mas para nos levar nas suas asas, então, sim: tudo se sente desarrumado.

E espera-se que de novo chegue esse pensamento como asas de jovens águias.

21 Jun 2019

Fatalismo, fatalidade

[dropcap]N[/dropcap]o período apelidado de Belle Époque não havendo guerras que empregassem os exércitos europeus, nem por isso a diplomacia arrefeceu as suas premências como forma de se fazer importante.

Simpatias, entendimentos e tratados foram amarrando as nações, mas se o intuito jurado era o apaziguamento, o verdadeiro incentivo para estas alianças acoitava-se nas suspeitas e animosidades que cada país sustinha pelos vizinhos. Impantes de positivismo as secretarias exerciam a sua plenipotência com cálculo e resolução; sentiam-se triunfantes, predestinadas mesmo – “A diplomacia é a guerra por outros meios.”.

Moloch, a divindade canaãnita que se cevava de carne humana, despertou então da sua letargia no centro de uma teia de compromissos quando no fim de Junho de 1914 Gravilo Princip, rancoroso e temerário como só o podem ser os patriotas, emboscou numa esquina de Sarajevo o Arquiduque Franz Ferdinand e a sua mulher Sofia. Com dois singelos tiros reduziu-os a cadáver.

Uma semana depois a 1.440 kms dali, em Potsdam, o Kaiser Guilherme recebe ao almoço um memorandum e uma carta pessoal do Imperador Habsburgo reclamando vingança pela morte do herdeiro com a extinção da ignóbil Sérvia, a seu ver uma charneca que só dava ameixas, merda de cabra e assassinos. Guilherme quis prorrogar, recomendar-se com o seu Chanceler, mas a rogos do enviado de Viena persuadiu-se na hora a dar “carte blanche” à acção punitiva do Império Austro-Húngaro.

Sabe-se hoje que nem a prudência nem a perspicácia eram os primeiros atributos do Guilherme prussiano, ainda menos a clarividência. Mas há-de ter captado quão brusco e desavisado fora o seu beneplácito. Assim que as baterias austro-húngaras começaram a bombardear Belgrado a Rússia, arvorada em madrinha dos povos eslavos, decretou mobilização geral em socorro da Sérvia. O Czar tinha as costas quentes com a Triple Entente, o pacto que chamaria a França e o Reino Unido em sua defesa em caso de agressão.

Agora Guilherme percebia que um fio que se puxasse ia tudo atrás. É mortificação do Príncipe, sobretudo dos retraídos e mercuriais como Guilherme, o pressentimento de ser a única pessoa na sala que não está a par de algo que todos sabem. E que as suas ordens são cumpridas e as vontades acatadas por mera deferência. Se o servilismo, tanto melhor quanto acrescentado de bajulação, ao menos deixa à mostra a hipocrisia, a probidade e o dócil conformismo dos que por fidelidade se demitem de objectar, são demónios que atormentam o discernimento do regente.

O que mais preocupava a titubeação de Guilherme era que em nome dele a casa de Hohenzollern continuasse primeira entre a aristocracia prussiana, famosamente ríspida e marcial, brutalmente agrária, culturalmente embebida da razão de Kant e do determinismo de Hegel-o-velho-de-Berlim. E os cabeças quadradas exultavam com a hipótese da guerra para glória e escudo da Alemanha. De tal modo que já haviam congeminado o Plano Schlieffen: num prodígio de precisão e disciplina logística primeiro lançar-se-iam 7 ou 8 exércitos contra a França, para numa vitória rápida assegurar a inibição da frente ocidental e depois virava-se tudo contra a Rússia.

A magnitude, a agressividade e talvez até o custo do plano impressionaram o Kaiser. Aproximando-se “O Dia” (em que a operação seria desencadeada), tão assustado andava que tresleu um telegrama do embaixador alemão em Londres, segundo o qual, dir-se-ia que por meias palavras, os britânicos garantiam a neutralidade da França. Radiante, Guilherme chamou Helmuth von Moltke, o chefe do Estado Maior – podemos atacar apenas a Leste.
Mas Motke retorquiu que tal não era possível: “não se podem alterar em tão pouco tempo os horários dos comboios e estes já estão em marcha.”

14 milhões de almas foram devolvidas ao Criador nos 4 anos de batalhas nas trincheiras da frente Oeste. Contudo os comboios circularam impecavelmente à tabela.

21 Jun 2019

Pouca esperança

[dropcap]A[/dropcap]o contrário da maior parte dos meus amigos, não fui votar nestas eleições europeias. Muitos deles não perderam a oportunidade de me relembrar a importância do voto numa sociedade democrática. Na teoria, a democracia enquanto sistema de governação política é o melhor dos sistemas conhecidos: permite, para além de escolhermos quem nos representa, uma saudável alternância regular de eleitos e respectivas ideias. Mas a democracia é uma ideia que envolve dois momentos constituintes distintos e necessariamente complementares: a forma, pela qual se anuncia a estrutura subjacente ao sistema democrático e o fundo, ou seja, as pessoas que preenchem os lugares constantes da estrutura do sistema. E é precisamente com esse ponto me tenho encanitado desde sempre.

A nossa jovem democracia foi-se consolidando e profissionalizando, nestes últimos quarenta e qualquer coisa anos. Sendo o processo de consolidação inerentemente bom e necessário, já o mesmo não pode ser dito daquilo que se entende por profissionalização da carreira política, que se tem pautado por ser mais semelhante a um regime mafioso, com as obrigatórias juras de lealdade, de silêncio e de fidelidade canina que lhe inerem do que propriamente com um processo fundamental para o desempenho da actividade política. A isto acresce ainda uma não módica quota de endogamia e nepotismo; no caso do Dr. Carlos César, um dos rostos mais visíveis deste PS em funções e deputado à assembleia nacional, difícil será encontrar-lhe um familiar que não esteja alapado a um qualquer organismo público. Nesse aspecto, os partidos do denominado centrão não se distinguem uns dos outros: são essencialmente redes de manutenção e ampliação de poder e de distribuição das prebendas que deste decorrem. Descontando o facto de se ter de deixar a coluna vertebral à porta para neles ter lugar, são de longe as melhores agências de emprego em Portugal.

À parte o desagradável facto de estarmos literalmente nas mãos de uma casta de meliantes profissionais, a maior parte das vezes sem qualquer currículo fora da esfera política, temos ainda de levar em linha de conta o nível de corrupção de que nos vamos dando conta quase diariamente pela comunicação social. Do governo central às autarquias, são raros os dias nos quais não sai uma notícia sobre mais um caso em que o visado, prontamente entrevistado, é lesto a declarar-se inocente e, não raras vezes, vítima de uma cabala política. Tudo bons rapazes.

Lembram-se de Sócrates? Ainda hoje estamos a tentar perceber a real dimensão da teia de influências e pressão montada à altura para capturar os mais importantes sectores de um país. O que tem vindo a lume nas audições da comissão de inquérito parlamentar à recapitalização da caixa é estarrecedor em dois sentidos: toda a gente parece de algum modo implicada na gigantesca marosca e, simultaneamente, temos a sensação de que aquela enorme montanha não produzira nada senão um desinteressante bode expiatório para satisfazer um nível infra-atómico de decência.

Há de facto outros partidos que, por razão de escala e de crónica distância ao centro de poder, têm currículos mais simpáticos, a nível de corrupção. Mas por um lado são partidos que normalmente propõem ou não se opõem à ideia de mais estado, de mais controlo estatal e, consequentemente, de mais impostos para financiar o paquiderme. Exactamente o contrário daquilo que gostaria de ver. Por mim, o estado não era dono de uma única empresa. Muito menos de um banco.

Os dias de votação têm sido para mim muito sossegados. Aborrecidamente iguais aos outros. Acabo por fingir algum interesse nos resultados, para me sentir integrado no desígnio nacional em curso, mas é sol de pouca dura. Os meus amigos muito activistas desfiam longuíssimas explicações sobre o sucesso ou fracasso de determinado partido de esquerda (sendo que alguns vêem sucesso e outros fracasso no mesmíssimo resultado). Eu há muito que deixei de achar isto interessante.

21 Jun 2019

Plano director

[dropcap]O[/dropcap] arquitecto veio a correr escada acima, atropelando a porta, a rugir que a obra estava toda malfeita. Que não era nada daquilo que vinha nas plantas que me tinha dado ou nos modelos tridimensionais que tínhamos passado a pente fino no seu computador e aprovados pelo município. Eu achei impossível e disse que ia com ele. Ainda a semana passada a vistoria tinha sido feita pela sua equipa, eu passo lá todos os dias ao fim da tarde e não me pareceu ver nada fora do lugar, aliás, não havia tempo para realizar uma transformação assim tão profunda e radical que levasse àquela algazarra. Por isso, achei que ele estava a ser demasiado meticuloso e que um desvio de alguns decímetros que fosse não seria caso para tanto chinfrim.

Tentei acalmá-lo, mas não me deu ouvidos. Passámos por cima da porta, ele pediu-me desculpa pelo sucedido e lá fomos. Estava exaltado como nunca o tinha visto, parecia até outra pessoa, completamente esbaforido, com outro tom de pele, que desalinhava toda a sua figura. Ele que primava pelo recato. A cara então parecia estar a entrar em estado de combustão. “Isto não pode ser!”, dizia. “Não é possível! Como permitiu?”

O edifício ficava numa zona de relevo irregular, traçado sobre a encosta de uma colina escarpada, aligeirando as diferenças entre as curvas de nível como uma volumetria de luva. Tinha uns andares mais em baixo e outros a um nível superior, como qualquer edifício, que acompanhavam as linhas da encosta, mas nos quais não se podia determinar qual era o piso térreo. Nos pontos altos deslocámos algum do terreno e fizemos aplanações. Transladámos o verde autóctone. Fizemos interligações à superfície e perfurámos alguns túneis que acolhiam escadarias várias, a escoltar toda a rede eléctrica, as canalizações e fibras ópticas e todo o mundo paralelo da malha de esgotos, das caixas para a circulação de ar e do aquecimento central. Por cima, um sem-fim de telhas solares e zonas ajardinadas no topo da construção e nas paredes laterais. O uso de materiais ecológicos e a toxicidade de toda a estrutura tinham sido definidos há muito e eram o pré-requisito principal no caderno de encargos. O plano era uma construção limpa e orgânica, que se imiscuísse na natureza sem ferir tanto o ambiente como a paisagem.

Era um edifício e peras. O traçado era enraivecido e singular, inovador em muitos aspectos e auto-sustentável na eficiência energética. A sua abertura iria mudar por completo o figurino da nossa pequena urbe, em termos visuais, de habitação e nos elementos que iria acrescentar ao quotidiano da população. Estava tudo a correr como planeado, com os prazos cumpridos à risca. A satisfação era plena. Mas quando lá chegámos e me deparei com a situação, quase que ia tendo um ataque. Deitei a primeira porta que vi abaixo e desatei por ali aos gritos. Não faltava muito para explodir e entrar em combustão. A minha figura toda desalinhada.

Tentei tranquilizar-me. Olhei para o arquitecto, para o mestre da obra, para os pedreiros e carpinteiros que se encontravam no local. Para o operador da buldózer estacionada no topo da colina que, quase a chegar à hora de almoço, abria a sua marmita, preparada em casa por uma companheira inquieta, tentando concentrar-se noutra coisa que não a realidade que tinha à sua frente. Todos de igual modo estarrecidos com a situação, nenhum deles tinha um esclarecimento e nem se atreviam a alvitrar o que quer que fosse. Gritaram, ao princípio, como os demais, mas depois, dada a complexidade do acontecimento, deixaram que o silêncio lhes tomasse conta do goto. Não havia outra forma de encarar aquilo, senão com a mudez e o benefício da meditação pura.

Visualmente, era impossível de descrever. À primeira vista, poderia supor-se que o edifício tinha sido acometido por uma doença ou um fungo gigantesco, encontrando-se por isso metastizado. O próprio empreiteiro não sabia como continuar com a obra, nem que ordens dar aos seus empregados. De mãos na cabeça revirava os olhos e olhava para as plantas de pormenor, tentando encontrar aquela distopia desenhada no traçado original. Como se por baixo existisse um plano mestre desenhado a lápis que tinha sido sobreposto à rectidão das linhas técnicas. Escondido nas cofragens, nas caixas de electricidade ou nas anotações para o reboco. Não dava conta de si e exasperava-se, ao mesmo tempo que procurava dissimular a sua exaltação. Um homem é de ferro, pensava, enquanto engolia mais uma baforada de ar.

Decidimos reunir na tarde seguinte, para que pudéssemos encontrar uma solução ou tão-pouco uma pequena desculpa para aquele curto-circuito. Acolhidas as coisas, assim à primeira vista, e de modo intuitivo, o facto que decorria desse olhar ignaro era de que o edifício tinha ganho uma vida própria. À roda de uma mesa, cada um divagou por teorias inventivas, repuxando a sua criatividade ao extremo, para que se encontrasse algum pequeno fio perdido no canto da sala, que levasse a uma equação mínima de bom senso por onde pudéssemos prosseguir. Sim, a edificação era agora uma criatura. Ninguém usou o termo monstro, por um lado porque o dicionário se tornara curto; por outro, porque a beleza – também não seria bem esse o termo a empregar – permanecia na essência da composição resultante. De resto, falámos e ouvimos, mas continuámos na escuridão. A casa estava viva.

Como se por baixo existisse um plano mestre desenhado a lápis que tinha sido sobreposto à rectidão das linhas técnicas. Escondido nas cofragens, nas caixas de electricidade ou nas anotações para o reboco.

Era complexa a vida, olhávamos para o céu e procurávamos na luz, um motivo que nos indicasse a razão de estarmos ainda ali. Vivos e a respirar. De um momento para o outro, até o simples trolha, que dias antes salivava por uma estagiária que passava perto dos seus andaimes, se tornara um filósofo. Fazia contas à vida, remastigava a sua existência. Tentava encontrar uma abertura de evasão para outra realidade, que não aquela de gritar para uma mulher bonita, como um regedor troglodita, se “aquilo” era tudo dela. Não se podia induzir apenas pela hipnose que tinha entre as pernas, não era um animal, e o seu cérebro não podia estar castigado na ponta dos braços. Era preciso agir de outra forma. Essa era a única conclusão a que todos tínhamos chegado. Nenhuma outra era mais clara.

Para tornar o processo de avaliação rigoroso era necessário analisar o problema com profundidade. Como tal, instalámos uma série de câmaras de vigilância, entre outros instrumentos de telemetria, para reunir dados precisos para a investigação. Queríamos chegar à origem daquele tumulto, à espoleta da granada. O que nos era sugerido, algo também ventilado na reunião anterior, era o conceito de que ao tentarmos organizar aquela construção em sintonia com a natureza a tínhamos plantado. Ao abrirmos as fundações, a escavadoras estavam a acamar a semente; ao elaborarmos a malha de ferro e vertermos o betão nos moldes, estávamos a iniciar um processo de irrigação que ignorávamos por completo. Como uma árvore, os alicerces desprenderam-se da sua massa corpórea e lançaram sinais para os outros seres em proliferação por baixo do solo. O edifício pejado de verde autóctone e de fibra óptica enraizava-se no subsolo e nutria-se, ganhando viço. Crescendo numa biossíntese de betão armado e vidro e provido de metabolismo próprio.

As imagens recolhidas não nos deram sequer uma vereda por onde entrelaçar os sentidos. O ADN arquitectónico saltou para os escaparates e era agora uma ciência discutida por todo o mundo. O evento tinha sido elevado aos antípodas e depressa se tentou replicar noutros lugares, ainda sem sucesso, a ocorrência na nossa terra, sendo o motivo de inúmeras teses e capas de revista. Sim, aquela obra mudara por completo o figurino da nossa pequena urbe. A todo o momento, sujeito à imprevisibilidade do tempo, surgia uma nova janela, um adelgaçar dos tectos, um andar dissimulado. Não pudemos inaugurá-lo, nem dar-lhe a vida interior que organizáramos nos fundamentos do plano, mas em termos visuais era uma peça única, que nos enchia de orgulho. Era mais do que uma num milhão, era o supra-sumo da arquitectura e da engenharia. Da ordenação e da estética. Do acto divino da criação. Onde se encontrara o Santo Graal que ordenava o Homem no espaço e na sua natureza, em composta melodia celular. Mais, era impossível de ambicionar.

No fundo, estava tudo a correr como planeado.

20 Jun 2019

Terá deus os carimbos em dia?

[dropcap]N[/dropcap]a escola primária aprendi a escrever a palavra “História” com maiúscula. Era uma questão de respeito, creio eu. A letra levada até quase ao tecto da página dava a sensação de tocar no céu. E sentia-se um calafrio, por vezes até um pouco de bafo divino que logo iluminava todo o tampo da carteira.

Nesse tempo, os sopros do presente ainda não se sobrepunham ao peso da longa cadeia de heróis que eu decorava com a devida altivez, a par dos caminhos de ferro de Angola. Nem seria preciso recorrer à farda impoluta e bem vincada de Mouzinho de Albuquerque, bastava abrir cartapácios um pouco mais antigos para o entender. Repare-se como um texto com quase três mil anos soa praticamente do mesmo modo que um outro – por baixo – apenas com cerca de quatro séculos:

“Tal como quando aos marinheiros aparece a chama/ do fogo ardente, que arde no alto de uma montanha/ num ermo redil, mas as rajadas à sua revelia os levam/ sobre o mar piscoso para longe dos que lhes são queridos – assim do escudo de Aquiles a chama chegou ao céu, escudo belo…” (Ilíada, canto XIX/ vs. 375-380*).

Vejamos agora este passo de um texto profético de autor anónimo, escrito na região de Aragão na segunda metade do século XVI (e encontrado, no séc. XIX, dentro da parede de um ‘pueblo’):

“Na Bretanha, fazer-se-á ouvir um novo David por argúcia do Encoberto (Encubi(y)erto) (investido) com alto e cristianíssimo poder*, para que todos os agarenhos saiam de Espanha, limpos (linpi(y)ados) com os hebreus, e lagostas, e lobos roubadores esfomeados e gatos religiosos; todos padecerão (junto) com os agarenhos e virá o encoberto com os da linhagem de Etor e limpará as tumbas (ku(w)evas) e a cidade de Hércules e dar-se-á (volverse á) grande guerra entre os lobos e os raposos com os gatos religiosos que são os conversos, e (ke) será tão grande e tanto o sangue que se derramará até próximo da fonte do ferro, e (ke) chegará à cintura dos cavalos, e (ke) será grande dor de (lo) o ver” (Ms.774 B.N.Paris- Fol 299v-300v*).

Em ambos os textos temos heróis a construir a sina da humanidade, seja Aquiles no primeiro caso, seja David e o Encoberto (é um outro, não é o do Bandarra, não) no segundo caso. Nos dois textos, é ainda patente uma ideia de salvação ou de completude que remete para transcendências, aliás diversas. Este mundo de ‘ligações perigosas’, em que a legitimidade andava de mãos dadas com a expiração desastrada dos deuses e dos seus simpáticos silabários, ainda foi o mundo que eu respirei em criança, imagine-se.

Vem este rememorar duma suave tarde de Junho a propósito do romance ‘Às Cegas’* de Claudio Magris que acabei de ler na passada semana. Ao longo do enredo (que mistura períodos diferentes da “História” com um relato biográfico situado numa experiência limite), deparei-me com diversas asserções sobre essa barra pesada que fazia do tempo uma espécie de guilhotina amestrada. Deixo quatro exemplos curiosos que falam por si:

“A História é uma câmara de reanimação e é fácil errar nas doses e mandar desta para melhor os pacientes que se queria salvar” (p.24).

“A História é um telescópio encostado ao olho vendado” (p.76).
“A História é uma mesa operatória para cirurgiões de pulso firme” (p.151).
“A História é como a mesa de jogo, primeiro ganha-se depois perde-se, alguém faz uma aposta em Austerlitz a dobrar, mas na vez seguinte calha Waterloo” (pp.177/8).

Sinal dos tempos: a “História” com maiúscula surge no livro de Magris parodiada, enquanto “câmara de reanimação” que soterra e faz desaparecer, deixando à mostra apenas o que interessa a quem a confecciona (os tais “cirurgiões de pulso firme”) e, por isso, terá sempre cavalgado de olhos vendados, transformando-se numa lotaria prestes a ser ‘bem’ orientada.
Impelida por dogmas e pela gesta dos territórios, a “História” quase se esvaiu, de um momento para o outro, enquanto mochila obrigatória. Isso aconteceu no momento em que as sociedades massificadas pelos media e pela rede nos condenaram àquela aparente leveza de ‘self-service’ que só tem razão de ser no coração (instantâneo) do presente. E lá se foi o “H” grande da minha escola primária em menos de três décadas. Com um grelo se colhem com um grelo se esmoem, diz (ou devia dizer) o povo.

Conviria então perguntar: O que existirá hoje em vez da ‘História com letra grande’ que desapareceu literalmente do mapa? E o que existirá hoje em vez da salvação que também se esvaiu do horizonte em três tempos?

Talvez não tenha sido a “História” que acabou, foi antes o auscultá-la com réguas e tabuadas cheias de medidas e guinadas precisas que se finou. E talvez não tenha sido a salvação que se esvaiu de vez, mas antes as bizarras criações que imaginámos, durante séculos e séculos, a ritualizá-la e a realizá-la.

O que não quer dizer que tenhamos atingido já o ponto-ómega. Bem pelo contrário. O que se atingiu no nosso tempo foi apenas um ‘pasodoble’ de irrequieta descrença. Ficámos sozinhos no palco, de um momento para o outro, a gritar que ‘aquilo’ afinal já não era teatro.

Terá toda a razão Claudio Magris, quando escreve na derradeira página do romance: “O cibernauta naufragou, acabou na boca dos peixes, mastigado, digerido, evacuado, cessou de existir.” (…) “Deus está em toda a parte, em lugar nenhum, o certificado de suposto óbito tem os carimbos em dia e fará vacilar todos os que desejam ansiosamente tomá-lo como válido” (p. 300).


*Homero, ‘Ilíada’ (Tradução: Frederico Lourenço) Cotovia, Lisboa, 2007, p. 396.
*Sánchez Alvarez, Mercedes, ‘El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París’, Gredos,  Madrid, 1982. Tradução Portuguesa: Carmelo, L. ‘La Représentation du Réel dans des Textes Prophétiques’, Universidade de Utreque, Utreque, 1995.
*Magris, C.. ‘Às Cegas’, Quetzal, Lisboa,  (2005) 2012, pp. 24, 76,151, 177/8 e 300.
20 Jun 2019

Brasas do fundo impróprio

[dropcap]E[/dropcap]screve Leonel Ray, no prefácio ao livro de Jean Portante, A ÁRVORE DO DESAPARECIMENTO, poeta luxemburguês, que a Exclamação, do Porto, lançará amanhã, na Férin, em Lisboa, às 18h30, com apresentação do Nuno Júdice:

«Jean Portante, num lirismo muito pessoal, mesmo se ele escreve como um eco às leituras dos poetas de que gosta, reencontra uma das funções exemplares da poesia: dizer o que escapa, o que se apaga, o que mexe na memória e nas palavras, trazer uma resposta possível à desordem inicial do universo e dos pensamentos e construir, mesmo com “a cinza das palavras”, juntar ramos sempre novos à árvore do desaparecimento.»

Este poeta é muito particular e foi-me útil a coincidência de o ler ao mesmo tempo do que um volume de entrevistas a John Cage, recolhidas por Richard Kostelanetz. Neste, conta o músico que num curso que fez com Schoenberg, o compositor alemão o fez ir ao quadro transcrever um dado problema num contraponto. Quando tiver uma solução, volte aqui e mostre-ma, disse o mestre. O que Cage fez. Schoenberg pediu então, Uma outra solução, se faz favor. E o Cage propôs outra e outra e outra solução, até que aí pela oitava, enfrentou o mestre e foi assertivo: Não há outra solução. Replicou Schoenberg: Ok, qual é o princípio que se subentende em todas estas soluções?

Associo esta história ao engenhoso fecho deste livro, o capítulo a história acabou (soneto desaparecendo), uma sequência de quinze variantes-ocelos que tiveram a sua ignição num verso do argentino Juan Gelman: a noite passa num dorso de gato, e na qual o soneto, no seu “trajecto” para a invisibilidade, passa do MENOS NADA (onde se sepulta o dia) ao MENOS TUDO (que evolou o poema), ou seja, em cada uma das catorze variações desaparece um verso ao soneto até que o ar o toma de assalto. Lê-se em (MENOS NADA):

comecemos por sepultar o /dia debaixo de um monte de horas / desordenadas. por pôr tudo no / cimo da pilha para que seque a // primeira hora do mistério. é / loira e inútil? ou silenciosa / como a viagem entre a vida e / o catálogo das imagens adormecidas? //é de um enterro que se / trata. quando chega ao fim /constrói edifícios sólidos. //o betão da negligência confere-lhe /asas pesadas. ao longo da areia /das nuvens fica o deserto do porquê.

E em (MENOS TREZE):

às vezes atrás da porta um silêncio que se despe.»

Porque escreve sonetos aquele que os sabe condenados a desaparecer? Está dito neste último verso, mas também podemos reapropriarmo-nos de uma resposta de Cage: “Para mim, a significação essencial do silêncio é abandonar toda a intenção”. E eis o princípio que subtende, esta poética.

Portante, um nómada, é igualmente um tradutor de dois poetas sul-americanos que traduzi numa antologia, nos prelos: o argentino Juan Gelman e o chileno Gonzalo Rojas. Para ambos, a reapropriação (ou seja: a intertextualidade) é uma palava chave. E o que redigi para o prefácio da antologia, ajusta-se a Portante:

«Rojas escreveu com insistência que o seu exercício poético não se fundava num projecto de invenção mas antes numa ideia de resgate e nunca descurou uma dimensão reflexiva constante, daí ser a sua poesia levedada pelo pensamento crítico. Nos seus poemas-remontagem apropriava-se dos seus poetas, como Celan, para entabular entrançamentos poéticos com que aclarava as suas visões e superava a sua amnésia global transitória. É deste modo que leio a profusão dos relâmpagos na sua poesia: são flagrantes em que a memória se reconstitui.

Folheando o volumoso La poesía de Gonzalo Rojas, de Hilda R. May, descubro que o poeta corrobora a minha intuição, e declara: “o relâmpago saca à luz, num sentido profundo, as muitas coisas na sua união articulada.”»

Para Portante os relâmpagos são os poetas com quem dialoga, de quem se reapropria, tal como os pré-socráticos se apoiavam nos elementos naturais como núcleos de conjunção unitária.

Embora, com o tremendo desassossego de saber que as presenças que se testemunham exigem despojamento:

«quem deixa uma pegada, deixa uma praga HENRI MICHAUX /nada mais fácil do que /rodar a chave na fechadura. /o norte diz caminha e o sul /levanta-se. a viagem será longa. /chamemos a essa pegada uma epidemia. /inútil calçar luvas. /AS RAÍZES SÃO A PRAGA DA ÁRVORE.» (pág. 21).

Volto ao prefácio de Leonel Ray, que explica bem a urgência de ler este poeta:

«A arte de Jean Portante relembra a dos poetas barrocos, é um teatro de surpresas da linguagem, uma fusão alegre de imagens, de minúsculos enigmas e de hipérboles. Há qualquer coisa de inesperado, de flamejante, a estranheza do jogo de palavras, não excluindo nunca que os véus se rasguem, que o ser surja da aparência e deixe aparecer o verdadeiro rosto, a angústia de viver, o retomar da subida feliz para o lugar irradiante das origens familiares.»

Pegando na epígrafe da primeira parte do livro, o carvão desce (a cinza), de CHAWKI ABDELAMIR: “às minhas fronteiras/ pedi uma/ fronteira”, apetecia ler o livro à luz do “sujeito do limite” e do “pensamento transfronteiriço” de Eugenio Trías, mas nem sempre é vantajoso que a beleza que jaz sob os fragmentos seja explicada, sobretudo se o que se ilumina não é tanto uma expressão subjectiva mas um fundo impróprio, o que fugazmente nos salva e se revela quando se abandona “a intenção” e radiosas e impessoais as brasas se reatam, na cinza das palavras.
«na verdade a cinza nada sabe dos nossos /CÁLCULOS. QUANDO TEM DÚVIDAS ABRE O /pára-quedas da luz. a queda assim / amortecida desenha sobre o caminho as duas /direcções do dia. de uma vem a mais-valia // do sacrifício. Vivemos mais /tempo que nós mesmos. na outra / está pendurada a pele que seca ao sol.»

Há ainda algo de mágico por aqui. O melhor é comprar e ler. Em silêncio.

20 Jun 2019

Relicário de sonhos II

[dropcap]C[/dropcap]hove. A cover que Cat Power fez do tema “Dream”, de Johnny Mercer, vem-me à cabeça com a sua beleza simples. Talvez eu esteja a sentir-me blue, nesta manhã de chuva miúda. Não acordei de sonhos intranquilos, não vou ouvir o charmoso Otto e o seu álbum maravilhoso com título kafkiano; poderia, afinal faço-o com frequência. Mas hoje é a Chan Marshall quem dá o mote ao texto. Acordei de mais um sonho bonito. Bonito mas proibido. Como diria Ricardo Araújo Pereira (a fazer de Marcelo Rebelo de Sousa naquele mítico sketch de Gato Fedorento), é proibido, mas pode-se fazer. Mas é proibido. Mas pode-se fazer. Substituir fazer por sonhar, que ainda ninguém mos confisca. Ainda sou do tempo em que se dizia que não devemos contar os sonhos se queremos que eles se realizem. Os motivational coaches dirão o mesmo de outros tipos de sonhos, e pergunto-me se algum deles alguma vez comeu os de cenoura ou abóbora, but I digress. Os sonhos ocuparão cerca de 25 por cento do sono, um duodécimo da existência da maior parte das pessoas. Ao fim de uma vida, teremos vivido pelo menos duas horas por noite em modo de simbologia onírica. Dizia Freud que A interpretação dos sonhos é a via real para atingir o conhecimento da alma. Ainda segundo o “Dicionário de Símbolos” de Chevalier e Gheerbrant, no antigo Egipto acreditava-se no poder premonitório dos sonhos como instrumentos divinos, mensagens de deus, janelas para ver um futuro que de outro modo estaria vedado à Humanidade. Existem os sonhos proféticos, os sonhos que nos avisam sobre algo ou alguém, como um pressentimento, os sonhos que reflectem as nossas preocupações quotidianas, os sonhos telepáticos, os sonhos que contribuem para o equilíbrio da nossa flora biológica e emocional, na tentativa de resolvermos enfim nesse mundo o que não conseguimos fazer acordados, por incapacidade própria ou falta de cooperação alheia. Quem nunca tentou acordar de um sonho ou continuar um sonho? Quanto não seria resolvido se nos conseguíssemos recordar de todos eles e interpretá-los. Sonhar é tão importante como dormir, respirar ou comer.

Se o estado em que a nossa casa se encontra diz muito sobre o momento da vida em que estamos e reflecte as nossas emoções, o bem ou mal que com elas lidamos, os sonhos não são menos relevantes e reveladores enquanto instrumento de avaliação e percepção desse mesmo estado do Eu. Jung alertava que Não devemos esquecer que se sonha em primeiro lugar, e quase exclusivamente, consigo mesmo e através de si mesmo. A internet está repleta de interpretações de sonhos sobre dinheiro, morte, amor. Temos de nos lembrar de quem morria e como, quem encontrava o dinheiro, se notas ou moedas, se roubado ou perdido, se era com o/a ex, ou um novo amor. Cada detalhe com implicações diferentes na nossa vida futura e significações distintas na vida actual. Há interpretações para todos os gostos, dos mais práticos aos mais místicos. Deixo aqui mais alguns dos meus. Freud que explique, se conseguir. Eu vou rever a belíssima série “Dreams of Flying”, do fotógrafo Jan Von Helleben, que é o melhor que faço.

Sonhei que tinha casado com alguém que não conheço lá muito bem, um casamento recomendado, e ele ia fazer anos em breve e eu nem sabia o dia. Queria fazer-lhe um bolo. Mas até nos dávamos bem. A nossa casa era péssima. Eu recebia a visita de uma amiga finlandesa… Não me recordo do resto.

Sonhei que eu e um conhecido éramos colegas de trabalho mas nunca tinhamos falado. Um dia íamos beber café, só que o dele tinha muita frescura, tinha de ser preparado quase como um ritual. E não era café, era um cappuccino qualquer, cheio de coisas e coisinhas. Enquanto esperávamos que nos servissem, eu era chamada pelo meu ex marido na ficção e na vida real, Reinaldo Giannechinni, porque tínhamos voltado a viver na mesma casa, e ele estava super aborrecido porque os meus livros estavam todos trocados por dentro. O conhecido acabava por ir falar com ele para o acalmar, mas depois nunca mais voltava.

Sonhei com uns gatinhos, mas não eram meus, eu apenas brincava com eles. Estava em casa de alguém, uma casa muito marcada pelo tempo, mas que não tinha paredes e sim varandas; era uma casa ao ar livre, e havia uma espécie de cama gigante. Um dos gatos era às riscas pretas e laranja… Era como o Hobbes

Sonhei com ginastas vestidas de cor-de-rosa, a fazer formações em pirâmide na praia.

Sonhei que estava numa mansão no meio da floresta, da Lana del Rey, e trabalhava na minha escola primária, que não estava no sítio original. Um dia a Lana decidiu fazer uma creche lá em casa, ocupando os quartos vazios com tudo do bom e do melhor, e chamando as educadoras de infância e os miúdos para a inauguração. À medida que andava de quarto em quarto a ver aquela obra fantástica (ela esmerou-se), só fiz um reparo: Lana, acho que temos de mudar a música ambiente. É que só se ouvia a música dela em todas as divisões da casa.

20 Jun 2019

Desonra e vergonha

[dropcap]D[/dropcap]urante estes dias lembrei-me bastante de Emil Cioran e dos seus escritos. Não se espante o leitor: Cioran é um autor que admiro. Mas a frequência com que os seus aforismos me vinham à cabeça era surpreendente, não tanto pelo seu conteúdo mas mais pelo facto do autor estar em monopólio na minha cabeça – coisa que nunca antes acontecera. E Cioran, logo ele. Um profundo pessimista, alguém que iluminava a vida com os ténues archotes das masmorras. Beckett conhecia bem os territórios escuros em que o romeno vivia; só que deles se aproveitava para fazer troça da nossa pobre condição, num riso de condenado. Ainda assim escreveu-lhe um bilhete a agradecer um livro: «Nas suas ruínas encontro consolo», escreveu o irlandês. Então porquê esta minha obsessão por esse poço fundo e sem regresso mas cheio de uma terrível beleza? E sobretudo este aforismo em particular, que me perseguiu vários dias: “Todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?”.

Até que um dia percebi a origem desta fonte de escuridão repentina. Deixem-me que a apresente desta maneira: várias fotografias. Uma: um rapaz jovem efectua malabarismos com bolas cor de rosa entre aquilo que parecem ser paralelepípedos enormes. A legenda: “What an incredible place!”, seguido de dois emojis entusiásticos. Outra foto: no mesmo local mas desta vez em cima de um desses rectângulos, uma rapariga jovem e bonita reproduz uma difícil posição de yoga enquanto sorri. A legenda: “Yoga is connection with everything around us”. E há mais, muito mais: raparigas que sorriem para a câmara, selfies de gente divertida a fazer o pino ou simplesmente em poses sexys. Todos andarão entre os 20 e os 30 anos. Todas estas fotografias e respectivas atitudes foram tiradas no Memorial do Holocausto, em Berlim, que homenageia e lembra os milhões de judeus assassinados na Europa pelos Nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

Perante isto fico estupefacto. Não tenho respostas, provavelmente porque me lembro das palavras de Hannah Arendt que acreditava que perante o Holocausto a única resposta civilizada é o silêncio. Mas há uma náusea profunda que me leva a desprezar estes seres humanos como eu.

Não sei se o que fazem é resultado de uma profunda estupidez, ignorância ou desumanidade. Provavelmente a combinação desses três factores. Sei apenas que é fruto destes dias, onde ser um anónimo que é tornado célebre através de um botão de um ecrã premido por outros anónimos parece ser um objectivo maior de vida.

E o mesmo se passa em Chernobyl: devido ao sucesso da (excelente) série de televisão os “influencers” – assim se chama esta tribo – migram em manada para tirarem fotos alegres e sensuais que contrastam com a profunda tragédia que os cenários evocam.

Por favor, não quero equívocos, percebam-me. Se alguém decidir dançar sobre a minha campa não irei estar muito preocupado e muito menos espero vir a interromper a celebração. Agora isto não. É inaceitável. Se há algo que ainda pode definir a nossa civilização e, de certa forma, o melhor da condição humana, é a capacidade de lembrar e honrar. Esta gente não faz nem um nem outro.

Se estes valores parecem anacrónicos é porque começam a sê-lo. Quem se promove de forma leviana sobre a memória de quem viu a sua vida destruída de forma brutal e trágica é um imbecil, e um imbecil infeliz que apenas ainda não o sabe. E o pior de tudo: somos nós que os estamos a criar.

Tenho vergonha e revolta. Não sendo nostálgico e gostando de viver nestes dias, estou perdido. Não sei o que fazer. Ao meu lado os Beach Boys cantam I Just Wasn’t Made For These Times. Não sei se é isso que sinto porque nunca saberei o tempo em que poderia viver melhor. Mas aquele refrão responde-me, como um eco: “Sometimes I feel so sad. Sometimes I feel so sad”.

19 Jun 2019

O microfone e o mundo

[dropcap]B[/dropcap]elize tinha um desacerto com o mundo desde que nascera. Tinha 26 anos, mas já vivia há mais de dez fora da cidade e do estado onde nasceu, longe da família. Tinha tido algumas dezenas de empregos, uns apenas por um dia, e um igual número de relacionamentos amorosos. Não tinha paz em nenhum lugar nem com ninguém. Quando a conheci, trabalhava no salão de beleza de uma amiga durante o dia e à noite entregava-se à sua paixão: cantar. Crescera a ouvir blues e jazz e era isso que gostava de fazer. Para além dos barzinhos onde cantava, com este e aquele, que a acompanhavam com violão ou com piano, começara a cantar numa banda de músicas originais. Era rara a noite em que não chegava furiosa, a queixar-se disto ou daquilo, mas assim que se punha em frente do microfone, o mundo deixava de existir. Naquele momento era só ela e a banda. E só aí conseguíamos ver Belize sorrir. Talvez com mais precisão: era só ela e a música; os outros eram apenas um veículo para o que mais lhe importava.

Passados uns meses, a banda deu certo. Começaram a tocar em vários locais, chegando mesmo a aparecer em shows na TV. A banda começava a ter reconhecimento mediático e Belize parecia finalmente contente, de bem consigo e o mundo, mesmo longe do microfone. O mundo muda quando fazemos o que gostamos, até nós parecemos melhor do que somos e toleramos mais os outros. É preciso coragem, ou algum distúrbio, para, a despeito das mudanças de circunstâncias, permanecermos com a mesma imagem do mundo quando este nos facilita a vida.

Belize agora não se queixava do mundo e este queria saber dela. Choviam entrevistas, de revistas e jornais, de sites de Internet e de programas de TV. O mundo estava claramente a intrometer-se entre ela e o microfone, mas parecia não lhe causar transtornos. Chegava à sala de ensaios a sorrir, sem nada por que se queixar. Para os seus colegas de banda, apesar de ser mais fácil lidar com ela, estavam preocupados, pois Belize não parecia ser ela. Também eles estavam mais contentes que o usual, mas não mudaram tanto. Alguns continuam pontualmente a queixar-se do mundo, como antes faziam. Belize transformara-se por inteiro. Até o modo como se vestia reflectia essa mudança. Trocou as cores escuras de antes, dos jeans e das t-shirts, por vestidos luminosos. O cabelo também acompanhava a mudança. Quem não visse Belize há alguns meses e estivesse distraído do mundo, se a encontrasse na rua, não a reconhecia. Como reconhecer a tristeza, se vier vestida de alegria?

Com toda esta mudança, cheguei a perguntar-me se o microfone era mesmo o que ela queria da vida ou apenas um instrumento para conseguir o que realmente queria da vida: ser reconhecida e ter uma vida facilitada. Talvez a música, afinal, não fosse a sua paixão, mas tão somente uma aposta legítima e inteligente para ganhar facilidade na vida.

Apareceu um novo problema na sala de ensaios: não apareciam novas letras, que sempre ficaram a cargo de Belize. Os outros continuavam a compor, mas o reportório não avançava por causa da falta de letras e de voz. Belize não parecia interessada em novas músicas, mas em cantar as antigas. Aquilo que a impulsionava a compor era conseguir o que já tinha conseguido e, portanto, agora não fazia sentido continuar a compor. Evidentemente, isto não era vivido assim por ela, nem pensado nem sentido, sou eu agora a pensar retrospectivamente na Belize, embora tudo isto pudesse ser pensado, não fosse o que veio a acontecer em seguida.

Com a pressão de comporem novas canções e o aumento de popularidade da banda, Belize começou a desenvolver um organismo de desculpa lateral: “não consigo compor com toda esta atenção à minha volta”. No fundo, era uma vez mais a velha má disposição em relação ao mundo.

Desta vez não era direccionada às suas más decisões e às circunstâncias que daí advinham, mas em direcção ao exagero do mundo em relação a si. Em menos de nada, refugiou-se no álcool e nas drogas e escondeu aí o seu problema maior: ter de lidar consigo todos os dias.

Provavelmente, Belize nunca gostara de si e encontrara nas contrariedades do mundo uma desculpa em forma de refúgio para esse desencontro consigo mesma.

Seis meses depois, Belize foi internada numa clínica de recuperação, devido ao abuso de álcool e cocaína. Nunca mais foi a mesma. A banda, essa, arranjou outra vocalista e continuou. Anos mais tarde, encontrei Belize a trabalhar numa lanchonete, a dizer mal de tudo e de todos, a não conseguir apaziguar-se com o mundo e a cantar à noite em pequenos bares, onde, por detrás do microfone o mundo desaparecia.

18 Jun 2019

Berlioz no Inferno: A danação de Fausto

[dropcap]A[/dropcap]ssinalam-se este ano 150 anos da morte do compositor romântico francês Hector Berlioz, ocorrida em Paris no dia 8 de Março de 1869.

O arquétipo da alma romântica torturada, Berlioz leu em 1828, aos 24 anos de idade, a primeira parte do poema dramático em duas partes Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, na tradução de Gérard de Nerval, e apaixonou-se imediatamente pelas histórias fantásticas, as vastas paisagens, e personagens multicolores. “Este livro maravilhoso fascinou-me desde o início”, escreve nas suas Memórias. “Não conseguia pousá-lo. Lia-o incessantemente, às refeições, no teatro, na rua”. O compositor identifica-se com o erudito Fausto, personagem que anseia transcender, romper com as normas e que é torturado pelo amor. O doutor Fausto, em busca do conhecimento e prestígio, vende a sua alma ao diabo, Mefistófeles, partindo numa trágica peregrinação que acaba por levá-lo à redenção através do amor. O seu fio condutor é a luta entre a luz e as trevas, expondo a dualidade humana, dilacerada entre o desejo de elevação espiritual e a atracção pelos prazeres e bens terrenos.

Berlioz ficou tão impressionado com a obra que compôs, entre 1828 e 1829, uma suite intitulada Huit Scènes de Faust (“Oito Cenas de Fausto”), para vozes e orquestra, que publicou como o seu Op. 1 em 1929, mas que não contavam uma história contínua. Na verdade, o próprio Fausto nunca aparece nestas cenas. Berlioz simplesmente queria conjurar a atmosfera da obra de Goethe.

Em 1845, mais de 15 anos depois, Berlioz estava pronto para trazer Fausto à vida novamente. Inicialmente pensou em compor uma grande ópera incorporando as suas “Oito Cenas”, pedindo ao libretista Almire Gandonnière que escrevesse o texto, mas acabou escrevendo ele próprio quase todo o libreto. Enquanto compunha a música, sentiu a necessidade de transmitir uma visão mais ampla da obra, para não a limitar pelo espaço operático tradicional, decidindo caracterizá-la como uma “lenda dramática”, para apresentação em concerto. Tal como já havia sucedido anteriormente com Romeu e Julieta (1839), Berlioz cria, em La damnation de Faust, novas formas musicais combinando elementos dramáticos próprios da ópera como monólogos, duetos e coros num formato de concerto próprio da sinfonia. Berlioz condensou radicalmente a trama da primeira parte de Fausto, eliminando mesmo algumas personagens e cenas. A filosofia de Goethe tão-pouco encontrou espaço no libreto: Berlioz, o eterno apaixonado, estava muito mais interessado no romance entre Fausto e Margarida. Como outros artistas antes dele, Berlioz mudou o significado da lenda de Fausto: o Fausto de Berlioz não é um grande estudioso; ele vive em busca, não de reflexões profundas, mas de grandes emoções; Fausto é torturado pelo tédio; não tem nenhum interesse na magia negra; Mefistófeles chega sem ser convidado; não existe nenhum pacto com o diabo, apenas um truque – Mefistófeles apresenta Fausto a Margarida com a intenção de levá-lo à danação; o amor é uma cilada armada pelo diabo; e quando Margarida vai para a prisão, Mefistófeles exige de Fausto a sua alma para que a de Margarida possa ser salva.

Este novo final foi a grande inovação de Berlioz. No poema goethiano, Deus sacrifica Margarida. No drama de Berlioz, o próprio Fausto é o redentor de Margarida. Ele sacrifica-se, descendo até ao inferno para que ela possa chegar ao paraíso, convertendo-se, assim, em seu salvador.

A música inovadora de Berlioz era frequentemente incompreendida ou ignorada em Paris e o compositor passou muito tempo em digressão pela Europa. Assim, grande parte de La damnation de Faust foi escrita durante a sua digressão europeia de 1845 a 1846.

A estreia da obra foi recebida com indiferença pelo público parisiense, com público escasso nas primeiras representações o que levou Berlioz a um grave revés financeiro. Tal como ele mesmo descreve nas suas memórias: “Nada em toda a minha carreira artística me fez sofrer mais que esta inesperada indiferença”.

Desde que voltou a ser representada em Paris com êxito, em 1877, a obra passou a fazer parte do reportório tradicional, revalorizando as suas indiscutíveis qualidades e do seu autor. Uma suite de três excertos orquestrais da obra – a “Marche Hongroise”, o “Ballet des Sylphess” e o “Menuet des follets”, costumava ser popular nas salas de concertos.

Sugestão de audição da obra:
Hector Berlioz: La damnation de Faust, Op. 24
Janet Baker, mezzo-soprano/ Nicolai Gedda, tenor/ Gabriel Bacquier, baritone/ Pierre Thau, bass/ Choeurs du Théâtre National de l’Opéra de Paris/ Orchestre de Paris, Georges Prêtre – EMI Classics, 1970.

18 Jun 2019

Conceitos e realização

[dropcap]S[/dropcap]erá mais importante conhecer a Natureza ou a essência do ser humano?

O assunto hoje trazido é controverso para a comunidade educada pela mente ocidental pois o fundamentalismo com que se aceita discutir o conceito de democracia enferma de uma visão reducionista para a qual o espaço fica restrito à forma. Também para os formados no curso de Direito, que ao saírem das faculdades vêm transfigurados com uma visão de primeiro andar, mas trazem a projecção na Axiomática Geral onde falta a trindade (3×3) do pensamento abstracto. Na parte dedutiva só conta os olhos, na teoria da observação fazem-nos de fora quando pertencemos a um todo, nas observações particulares centradas no observar-se a observar; os conhecimentos gerais anteriores sem memória, pelas regras lógicas jogam as imagens mentais criadas pelas coloniais fontes de informação que incessantemente nos impingem verdades e no modelo particular, trabalha a Ciência da Natureza. Assim, centrada no observador apenas se discute pelo sistema baseado na autoridade estatutária, sem querer saber sobre a Essência do Ser Humano, que daria diferentes significados às palavras e actos. Estas as falhas apresentadas nos métodos com que cientificamente nos projectamos.

No entanto aqui não importa o que se pensa, mas como se pensa e não trago o pensamento concreto, mas uma reflexão feita pelo abstracto.

O conceito de Democracia que temos como imagem mental é uma utopia que nunca foi realizável nem tem ou teve existência em nenhum país do mundo. De lembrar que na Grécia do século V antes da nossa Era a democracia só estava ligada aos cidadãos de Atenas, pois os escravos ficavam reduzidos a ter de os servir. Tal continua agora, não com escravos, conceito transfigurado pois então gozavam de prerrogativas desaparecidas [sendo eles os pais/antepassados de parte da população europeia], mas para servir é necessário criados. Hoje, por que nos dão dinheiro pelo trabalho realizado [na maior parte das vezes só chega para pagar a renda de casa, o transporte e comida, benefícios que constavam nos contratos dos culis do século XIX e seguinte], achamos sermos livres. Mas para quem não veio ao mundo para produzir riqueza material, mas purificar energias, a fome e o ridículo de ficar a falar sozinho. Ao menos Diógenes!

Com as leis de Sólon de 594 a.C. o povo tornava-se soberano, mas Atenas continuou quase um século a ser governado por tiranos, ficando a cidade sem possível governação. Então, numa assembleia de cidadãos Clístenes propôs uma nova forma de governo, com o povo pelo debate político e votação a exercer a autoridade, tornando-se assim Atenas em 507 a.C. numa república democrática, que durou 103 anos.

Se na antiguidade o poder estava dividido entre o temporal, representado pelo rei e o espiritual dominado pelos sacerdotes, com a revolução liberal os religiosos foram substituídos pelos homens das leis, ficando estas apenas ligadas ao material, deixando cair o espírito do estar, na altura não muito salutar.

Liberdade na forma

A democracia apenas está ligada ao material do ter e o poder escolher se queremos viver em solidariedade ou em competição não aparece como questão nas mesas de voto, pois essa primordial questão foi subvertida e apenas nos dão a escolher se queremos viver em competição solidária ou na competição pura e dura. Neste cisma entre o artístico estar ou o científico ser, desde o Renascimento ocidental, ao crer-se controlar a Natureza, o poder apenas se baseia na Ciência da Natureza e não na Essência do Ser Humano vivo. Assim não se complementa e sem a ética da dignidade do Ser Vivo apenas dá a máquina como padrão a seguir como definidora do Ser Humano. Continua-se a fazer crer na vontade do querer de quem tem mais poder, para aí se julgar com a aprovação científica essa materialidade onde se situam os direitos medidos perante o valor do ter, sendo os deveres de acordo com a posição social ocupada. Por isso, um advogado com um pensamento abstracto cujo reconhecimento da esfera material ligada ao etéreo espaço consegue desmontar todas as imagens mentais colocando-as em preconceitos e destrói todas as provas formais com que o seu cliente é incriminado. Não é por acaso que no Ministério Público a escolha dos magistrados recai quase sempre no ser feminino, que traz de natureza um pensamento concreto, substancial e assim, quando confrontado com o Espaço de essência de alguns bons advogados (professores universitários), o pensar abstracto dizima qualquer concreto pensamento. Daí a corrupção avassaladora dentro da Justiça, sendo o comportamento condenável a nível moral, mas não a nível de Justiça.

Curso de Direito

No ocidente já não é preciso a Censura, pois na memória não existe o Espaço que envolve as formas e nos coloca na unidade do Universo U∩O e transfigurando-o dão-nos o espaço dentro das formas, que nunca consegue englobar. Deixam-nos a liberdade de partir as formas, destruí-las, refazê-las à nossa vontade e nas verdades individuais que cada consegue encontrar, e mesmo aqueles que dizem aceitar a sua antítese, às formas não contrapõem o Espaço, mas o espaço dentro das formas. Quando alguém reivindica o Espaço essência não compreendemos o que está a querer, pois esse espaço não existe sem forma e logo sem matéria. Essa a liberdade que temos.
Liberdade só existe enquanto se vive no inconsciente de criança. Depois, tomamo-la subconscientemente como um desejo de memória vivida e nas imagens mentais a deformamos, crendo ainda estarmos quando agrilhoados ao tempo lhe damos intenções. O subconsciente domina a idade do adulto, que centrado em si mesmo define o que vê pelo que julga ser e parece não compreender ser o vazio de onde se formam todas as imagens mentais.

Assim as nossas mentes estão feitas pelo caos, onde já não entra a ordem, senão por uma composição feita pela autoridade estatutária, em que o mais forte define o seu querer como realidade. E aí está o curso de Direito.

Para a Justiça ser um garante de liberdade teria que haver nos cursos de Direito, não apenas a cadeira de Filosofia do Direito (existente como uma cadeira menor e semestral), mas também a de Filosofia da Palavra e uma outra disciplina, a de Civilizações, que permitiria entender os diferentes caminhos do Ser Humano.

Dão-nos a liberdade de escolher, mas tem que ser dentro do pensamento material, fora dele nada pode existir. Deixam-nos votar, no que já foi previamente escolhido para ir a votos pois o que faria a diferença está no conceito de Espaço e esse está colocado fora de existência há mais de 500 anos. Por isso repetimos ser a Idade Média a idade da escuridão, do obscurantismo, das bruxas (que eram quem lidava com o espírito), dos demónios (os que criam turbulência) e do Lúcifer (a Luz que cega).

Escondida a Idade Média pela mentira, às palavras que não podem ser deitadas fora dá-se-lhes outra significação, muitas vezes opostas à que tinham. E assim não mais interessa a Essência do Ser Humano, mas as Ciências da Natureza.

17 Jun 2019

Genet e as flores

[dropcap]N[/dropcap]ossa Senhora das Flores» é o título de um livro marcante de Jean Genet, um desfolhar de costumes em áreas fechadas num despir de convenções que faz fronteira com a “boa sociedade”. Chamou-lhe então a catedral magnífica para a trindade do Macho, da Bicha e do Herói. A natureza dessa senhora de branco tem muitos contornos e fixa sem dúvida a história de vida de cada um de nós. Nem toda a boa Humanidade tem acesso ao que se passa nos limites da incompreensível, e quantas vezes assassina outra Humanidade. Vivem fechados nas suas boas coisas como empalhados do nada, em labiríntico esforço das suas ternas intenções, mas faltando-lhes a inocência daqueles que nada sabem desses segredos e berços macios. E por isso, é bem possível que Genet tenha reinventado a sua própria vida pela perspectiva de alguém que não tem conhecimento do que trata a tão maravilhosa visão dos outros.

Genet, é uma espécie de Peter Pan, só que neste caso ele representa também o pirata. Não teve mãe, não teve pai, andou de Instituição em Instituição, até que viu no crime uma santidade mais para a sua virgindade de afectos, e é tão lindo que desejou amar o próprio assassino do seu amante para partilhar ainda aquela réstia de ternura que o sangue faz misturar aos corpos que tanto se deram.

Era a sua inocência, a sua força, a sua própria transcendência de grande escritor que já se manifestava à revelia das ficções de mau gosto dos contos negros de cada um. Genet é o tal Anjo da beleza terrível de que nos falou Rilke. «O sorriso do anjo», uma entrevista feita a Genet que ofende os sérios propósitos dos milhões de legítimos desonestos. De facto, Genet não precisou da família para nada, nem tão pouco recriou a sua. Homossexual, solitário, bandido a um tempo, sobrevivente a todas as ameaças, é ele no fim quem dita as condições e faz calar pela beleza os que gemem de raiva contra ele. Nem sequer gostava de Nabokov nem de Henry Miller, entendia então, que a virilidade era a capacidade de saber proteger uma mulher, e não esse aproveitamento de palavreado a mais. Ele que, pelos vistos, nem de mãe, nem de mulher propriamente dita, sabia o que era, mas esta posição distingui-o automaticamente.

É bem claro que estamos num mês mariânico e se sucedem as rimas frouxas dos amores das mães, dos maiores amores dos filhos, e por aí fora, num estendal que chega a ser nesta visão uma realidade incompreensível e como os incompreendidos são minorias a mais, destes nada se fala porque destoam do coro da vitória (pensam eles) da vida sobre a morte; mas aí é que está! Estas pessoas existem, elas souberam articular a fonte ao ser, e nasceram de si mesmas como os cavalos do vento: havia uma lenda que dizia que as éguas da Península Ibérica emprenhavam por ele, não sendo um hispânico, podem ter subido os ventos lá mais para cima… e dado um tão exemplar filho de ninguém! E até podemos imaginar que Jesus Cristo fosse filho de uma destas rajadas de oxigénio, a ver pelo desplante com que tratou a progenitora, que agora é de todos, mas para ele, e no dizer Pessoano, não passava de uma mala.

«O condenado à morte» de Genet (e nada nesta vida parece tão redentor) aliás, na sua execrável obscenidade em que raiou sempre um par de asas sublime, que aflige a moral como uma lâmina de guilhotina, nos parece mais próximo de uma vida que se liberta e se fez voz libertadora. Estes nasceres são capazes de coisas tais que não os imaginamos no cardápio das ideias puras. Estar preso é um derrame absoluto de sémen contido, e fechar os improváveis pode conter descargas de conhecimento transversal que obrigue os filhos, as mães, os pais, os tios e os primos, a suicidarem-se de vez, face a certas e improváveis vitórias da vida.

Quero deixar claro o meu amor por estas gentes, por Genet em particular, e pela lembrança sem rosto que jamais se debruçou na sua rota, onde o tempo legislou leis outras, nem seguir esquecendo a manobra trágica do amor que nos menoriza face aos gigantes indefesos, e para sempre os únicos inocentes. A consequência das coisas nunca é a que esperávamos, e, inconsequentemente se elabora o melhor que a vida tem. Genet pode ser o mais perto que há de um santo, mas não é, nem bom, nem esclarecido, tornou-se assim divino, porque agarrou nas palavras pelo lado que ninguém sabe alcançar, e a tudo isso acresce o carinho do saber titular e a grande energia amorosa da criação que dá a cada ser o nascituro de si mesmo.

Ó almas dos meus assassinados! Matai-me!
Queimai-me! Como um extenuado Miguel Ângelo
Eu esculpi na vida; mas a beleza, Senhor, sempre a servi
Com o ventre, os joelhos, as mãos rosadas de emoção.

17 Jun 2019

A dama do chá

[dropcap]O[/dropcap] Inferno não existe. Não é preciso. A vida é que é uma longa agonia. O velho padre Afonso dos Reis dissera isso a Cândido Vilaça, quando este tentara confessar-se pela primeira vez. E pela última. O padre, depois de ter percorrido o Extremo-Oriente tentando converter todas as almas possíveis, também parecia desiludido e cansado. Cândido tinha um saxofone para poder respirar. Ao padre restava a fé. Afonso dos Reis nunca voltaria às sua Beira-Alta portuguesa. Ficaria ali, na poeira que um dia quisera transformar no caminho para o paraíso.
Cândido Vilaça lembrou-se do padre quando saiu da casa de pasto “O Alvoroço” e sentiu o choque sufocante do calor. Ao contrário dos chineses, que comiam peixe frito ou arroz com galinha, pedira cogumelos em molho de caranguejo. Isto enquanto bebia várias cervejas. Agora voltava a deparar-se com o inferno do calor. Ajeitou o chapéu e começou a percorrer a rua que o levava até à loja de Jin Shixin, na Avenida Almeida Ribeiro. Sorriu ao lembrar-se das palavras do padre:

– Deus está interessado na Terra tal como no Céu. Na luz do Céu como na de uma vela, nos discípulos como nos anjos. Ou nos diabos. No ordinário e comum, como na santidade.

Às vezes duvidava, mas quem era ele para questionar o que era muito mais complicado do que tocar saxofone ou pôr as pessoas a dançar? Viu riquexós, mas decidiu continuar a caminhar ao sol, como se quisesse expiar ali todos os seus pecados. Até chegar à loja não deveria conseguir esse intento. Por ele passaram chineses com caixas de bambu ao ombro, gente pobre, sem nada, que apenas procurava sobreviver. Nisso, não eram tão diferentes dos portugueses. As mulheres portuguesas, sempre solitárias, caminhavam de guarda-sol para se protegerem do calor e da luz.

Vinham de diferentes locais, para a missa ou para a confissão, que as esperava numa das muitas igrejas de Macau. Sentiu, por vezes, o odor do ópio, enquanto se afastava dos cães e galinhas que percorriam a rua em busca de comida.

Continuou a caminhar calmamente até ao “Jardim Celestial”, a loja de chá de Jin. Quando chegou, ficou do outro lado da rua, à sombra. Perto estava um chinês magro, vestido com uma cabaia de ganga, que olhava fixamente para a porta da loja, enquanto conversava com um homem mais velho, vestido com um fato de linho. Quando este levantou a cara, reparou que era japonês. Disse qualquer coisa e afastou-se. Então o chinês voltou-se para Cândido. Este não deixou de se surpreender. Apesar do cabelo curto, de rapaz, a face dele traía-o. Era uma rapariga, ainda jovem, que o fulminou com o olhar. Como se ele estivesse ali a mais. O português sentiu-se intimidado.

Antes dela se virar e começar a andar até outro ponto da rua, Cândido percebeu: a rapariga não era chinesa. Era japonesa. Deixou passar uns minutos, mas quando atravessou a avenida não viu sinal da japonesa. Entrou e deparou-se com Wen Xiao. Este inquiriu-o com o olhar, sem dizer nada. Cândido disse apenas:

– Venho falar com a menina Jin Shixin. Depois decido se levo chá.

Wen Xiao olhou para ele com desdém. Mas, quando ia responder, surgiu Jin. Sorriu e disse:

– O senhor Cândido pode entrar. É um amigo.

O chinês não pareceu convencido, mas desviou-se e deixou Cândido caminhar até junto de Jin e depois segui-la para uma pequena sala interior. Ela sentou-se num pequeno banco e fez-lhe sinal para ele se sentar noutro, que estava perto.

– Quer um chá?
– Para já não.
– Qual é o motivo da sua visita, então?
– Mera cortesia. Estava aqui perto e decidi vir comprar chá. Dizem que aqui é possível encontrar o melhor que há em Macau.

Ela sorriu, mas os seus olhos estavam alerta. Cândido disse então:

– Talvez por isso tem clientes japoneses. Ou terá brevemente.
– Porquê?
– Um, ou melhor, uma japonesa que parece um rapaz, estava aqui defronte a espiar. E outro estava a conversar com ela, mas fugiu assim que me viu.

O olhar dela não revelou nenhum pânico.

– Eu sei que eles estão ali.
– Acredito. Mas, depois do que aconteceu nas Ruínas de São Paulo, e do que agora vi à entrada, pergunto-me: o que querem os japoneses de si? Claramente estão em choque.
– Ainda não percebeu, Cândido. É ingénuo?
– Às vezes sou. Por isso é que preciso que me expliquem o que não entendo. Macau é uma terra pacata.
– Só na superfície. A guerra está aqui. E separa-nos, chineses e japoneses. Sabe o que eles fizeram em Xangai, não?

Cândido fechou os olhos, como se não quisesse recordar-se.

– Então sabe o que nós combatemos aqui, em Macau. Só os portugueses não repararam na rede de espiões que eles aqui têm, tal como em Hong Kong, na Malásia ou em Batávia. E seguem-me.

Tal como eu os sigo a eles.

– E quem são eles?
– Um, conheceste nas Ruínas de São Paulo. Chama-se Toshio Nomura, e tem uma empresa de importação e exportação, no Largo do Leal Senado. Viveu muito tempo no Brasil e fala português.

Depois há outros que vagueiam entre Macau, Hong Kong e Xangai. E há alguns portugueses, que lhes dão informações importantes.

– Portugueses?
– Alguns sim. Não te espantes, Cândido. Face ao dinheiro, todos têm fraquezas. Um deles é o teu amigo Prazeres da Costa. Era ele que estava com o Nomura, caso não tenhas percebido.
Cândido sondou os olhos de Jin. Ela não mentia. Mesmo que não dissesse toda a verdade.
– O perigo nem sempre está nos recifes, muitas vezes está no mar aberto. À vista de todos. A guerra não é um jogo de mahjong. E está agora a desenrolar-se nas ruas de Macau. E tu, sem o quereres, fazes parte dela. Deixaste de poder esconder-te na sombra, à espera que a tempestade acalme. Que lados vais escolher? Ou, simplesmente, vais tentar fingir que nada é contigo?
Cândido percebeu. De nada lhe valia agora dizer que era português. Ou músico. Ou que só queria a paz. Os japoneses já o tinham colocado ao lado dos chineses de Jin. Levantou-se devagar e a chinesa fez o mesmo. Aproximaram-se e, quase sem querer, Cândido beijou a face de Jin. Esta não se afastou, como se o esperasse. E quisesse. Ficaram durante alguns segundos a olhar um para o outro, sem saber o que fazer. E Cândido voltou a beijá-la, agora nos lábios. Quando se afastaram, ele virou-se e saiu. Quando chegou à rua inspirou o ar pesado. O calor não pareceu ser tão infernal. Viu a rapariga japonesa que tinha voltado para o lugar onde reparara nela pela primeira vez. E, sem saber porquê, relembrou algumas palavras do padre Afonso dos Reis.

– Sabes, Cândido, os homens residem num mundo que não governam. São os imortais, os deuses, que velam por nós. Foram eles que deram forma ao mundo. Os homens não conheciam a morte, mas quando se encerraram no seu círculo, começaram a morrer. O Céu é agora o refúgio dos imortais, os deuses que, como os gregos acreditavam, vivem no Olimpo. A Terra foi legada aos homens que envelhecem e morrem. E o Inferno é o abrigo dos que já morreram. Por isso importa viver e estar do lado da verdade. Para que um dia possamos perceber a razão dos imortais.

14 Jun 2019