O carro à frente dos bois

[dropcap]H[/dropcap]oje, é o grande acontecimento, mais um pouco e esquecia-me. O senhor padre avisou que tinha de ser neste dia, ainda procurámos adiar, não estávamos preparados. Temos medo. Eu e os meus primos não vamos à escola, temos dificuldade em fixar o que nos dizem. Até as rezas que a minha mãe me ensina ficam sempre pelo princípio. Que posso fazer? Não me lembro. Não sou boa para teatros. E fico ali a dizer a cantilena que nunca mais acaba. Depois fico com fome. Com um formigueiro nos pés. E distraio-me. A barriguinha a fazer gluglu.

A minha mãe e o padre Faustino insistem, contam-me histórias, que veio um senhor à terra, e eu pergunto se é a nossa terra de Aljustrel e o que veio cá fazer. Se vai voltar. Ela a perder a paciência. Grita-me! Gosto sempre de visitas. É bom ver caras novas. Às vezes, trazem-nos rebuçados e colam-se aos dentes. E ralha-me. Diz-me: presta atenção, Lúcia! Está calor e imagino, quando me contam estes mexericos, o que estará a acontecer lá fora e que fazem os meus comparsas; podíamos estar a brincar no arneiro e a beber água fresquinha. No pátio grande da nossa casa há cinco figueiras, depois há umas escaditas até onde fica o poço, onde há macieiras, pereiras, cerejeiras e mais. No Verão, com a canícula, fico muito transpirada e só me apetece saltar para cima de uma árvore. Escorregamos por ali abaixo e deixamo-nos estar sentados no muro, que não é de pedra miúda, a roer caroços até à última. Em certos dias, quando é tempo disso, ficamos todos a esmigalhar o milho no meio da eira. Mas à noite, a querer dormir, a minha mãe não deixa de me ler o livro da Missão. À candeia.

A Jacinta e o Francisco são mais novos. Também não aprenderam. E por isso, demoram mais a ouvir o senhor padre, como se pelo meio, entre a boca de um e os ouvidos dos meninos, existisse uma grande cova, com uma charca e tudo, cheia de passarocos a chapinhar, no meio do olival, onde os homens se põem a arrancar ramos nos troncos junto ao chão, eu digo-lhes para não fazerem isso, que as cabras gostam de os comer. Os meus primos também devem querer mais estar a brincar do que estar ali. Mas o padre Faustino diz que é importante. Foi como se fez em França. E não precisamos de nos preocupar. Por via das coisas, é melhor dizer que o Francisco é mouco, assim não vai explicar nada. Não te esqueças que tu és mouco! Mas tem de se lembrar do que vê. Eles preparam tudo. Têm uma marioneta ainda mais baixa do que a Jacinta, onde puseram uns fuminhos e uns pirilampos, que se acende e começa a brilhar, com um vestidinho branco debruado a ouro e uns brincos amarelos. Um balão que voa. Se bem que lá fora – eu já disse ao senhor padre – não se deve notar muito e devíamos fazer as coisas mais no lusque-fusque, quando as pessoas estão a voltar para casa, dos campos. Mas ele teima, que tem de ser assim. Quando o Sol está no pico.

Hoje não era preciso grande coisa, repetiu. Depois, quando me perguntassem, teria de contar todo o preparo, que uma senhora cheia de luz se tinha assomado ao cimo daquele arbusto e falado connosco, os três. Não me posso esquecer das palavras. Que os homens tinham de se portar bem e rezar muito, senão o mundo ia acabar. Como castigo. Que durante seis meses ia aparecer ali, no mesmo dia do mês, mais ou menos à mesma hora. Pode ser que das próximas vezes seja mais para o anoitecer, se o padre Faustino deixar. É melhor! E para construir uma capelita naquele lugar e lojas para vender aquelas bonequinhas, de vários tamanhos e feitios, e uns cartõezinhos com as rezas, para as pessoas não se esquecerem. O terço, chiça! E velas, muitas velas. Para a noitinha? Mas o senhor padre não me respondeu. E mais tarde poderiam fazer ali uma grande praça, onde os carentes podiam chegar a arrastar-se com os joelhos todos esfolados, ou em camionetas da carreira, para cumprir promessas, acreditando que a senhora ia fazer milagres. Curar as doenças, pagar as dívidas, fazer com que os filhos tivessem boas notas. A uns sim a outros não. E todas as guerras iam acabar nesse mesmo dia, para os militares retornarem aos seus lares. Espero que não nos façam voltar à escola. Aquela terra iria ser tão grande que não ia caber dentro do monte. Que até lhe iam pôr outro nome com mais letras. Não me lembro bem qual, tenho de perguntar ao senhor padre. Na brasa das ideias, ouvi Maria do Rosário, não sei se era por causa disso.

Lúcia, presta atenção. Reza! – berra a minha mãe. Eu com a cabeça a ferver. Pai nosso que estais no céu. O pai está no céu, mãe? Não tinha ido à taberna do senhor Silva? Tenho fome, mãe! A candeia a fazer sombras na parede. São as alminhas, confirma, temos de as resgatar. E diz-me que não é o senhor Silva, nem o meu pai. Que é o Senhor que está no Céu, com letra grande, e junta as mãos para cima, o filho da Santíssima, também com S. Mas àquela hora já não enxergo, só penso no que vamos comer: umas batatinhas e umas couves, que a nossa terra dá sempre muito. Quando o Sol perde a última pontinha de luz, a minha mãe a pôr mais petróleo na lamparina – Lúcia? – e eu já a sonhar. A degolar rifões: em Fátima nada nos lembra Maria, é tudo negócio, pura idolatria.

Tanto que ali ia mudar. Era melhor os meus primos findarem mais cedo, porque não eram de confiança e podiam dar com a língua nos dentes. Isto disse outro homem, todo vestido de escuro como a cruz da igreja, a falar com o senhor padre. Que não lhes iam cortar os gasganetes, mas tinham de ver. Facilitava. Pensa nisso, Faustino! Foi o que ouvi quando voltei atrás para buscar a sacola, ali esquecida, porque tinha de ir fazer um mandado à minha mãe e não podia chegar de mãos a abanar senão ela batia-me. E a mais crescida vai dentro, disse ainda. Eu a sair porta fora.

Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão.

Arranjado foi, à hora da merenda já íamos a caminho da carrasqueira. Não me podia esquecer de aviar o recado. Vou depois da aparição, assim se chama. Os meus primos estavam esmorecidos a dizer que não queriam ir, que era melhor o gado pastar na serra, que ali não há erva da boa. Mas convenci-os, as cabras podiam comer algumas folhas da tal azinheira, já foi cortada e voltou a nascer. Eles que não prestaram atenção ao que o padre Faustino disse a seguir à missa. Se não rezam vão ficar de castigo na catequese. Castigados pela virgem. Não sei ler, mas sei que é com v de vitória.

O meu pai diz que sou uma intrujona, mas vou ser a artista principal e já decorei as minhas falas. Se não me alembrar também não será muito custoso, há-de-me aparecer alguma coisa à frente dos olhos. Falo no demónio, que é sempre coisa ruim, ou se estiver trovoada posso dizer que é uma batalha nos céus. Onde devem estar o senhor Silva e o meu pai. E o meu irmão Manuel que já foi às sortes e talvez vá para a guerra. A menos que os pirilampos façam mesmo o que dizem, dá-me para acreditar. Rogai por nós pecadores, cochicha a Jacinta, a rodar o seu colar entre as mãos. É o que devemos orar quando lá chegarmos. Ajoelhando.

O dia estava como o pêlo de uma ovelha tosquiada, começámos a correr porque vinha aí uma chuvinha e era melhor despachar aquilo não fosse a senhora molhar-se. Íamos só ver, para nos avezarmos ao lugar. Ficava ali perto, ainda no fosso do olival; a arvorezinha tinha uma fita num dos ramos, era fácil de ver.

Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão. Desde que me tornei pastora, já lá vão três anos, fico a tratar do gado o dia todo, pelos montes afora, a saltitar. Mas naquele dia, com os amanhos, pegámos tarde. Sou boazinha. E digo à minha mãe que não pequei, que tenho sono. Isso é uma reza? – desperta o Francisco, que só é surdo para o que tem de ser. Orações, sacrifícios, a graça do Senhor. Que está muito ofendido, sentencia a minha mãe. Que será que queriam dizer com o vou dentro? Dentro de onde? De uma raposa a passar, não é. E continuamos.

Como se chama aquele homem que morreu na cruz? Esqueço-me sempre. Será pão o que ela me pediu? Uma pouca de sal? Os panos para oferecer ao sacristão? Decoro outras coisas, mas nomes não é comigo. O senhor padre não gosta que esteja sempre a tratá-lo por vossemecê. Padre Faustino, caramba! Será o pavio para o candil? O Francisco sabe, diz que se chama Cristiano. Mouco, o filho da santíssima sua mãe. É Domingo, os pais foram à vila, só a venda do chinês está aberta. Se isto fosse a sério, gostava de perguntar à senhora pela Maria das Neves e pela Amélia, que se findaram no Inverno. Também terão ido no balão?

Anda, chegámos! – avisa a minha prima, olho para ela como se já tivesse partido. Podes começar.

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