Lisboa, capital do barulho

[dropcap]N[/dropcap]a ínfima possibilidade de Lisboa um dia se tornar uma cidade minimamente civilizada, este tempo em que vivemos será lembrado com um travo de repugnância ao falar-se dele e sem pinga de saudade. Embora a massificação do turismo tenha tido o condão de estimular a reabilitação de muitos edifícios devolutos em Lisboa (e com isso os sectores muito específicos da construção e hotelaria), diria que foi das pouquíssimas coisas boas que o turismo trouxe. Não lhe subjaz no entanto qualquer intenção benemérita: uma cidade com tanta afluência turística vê-se obrigada a aproveitar todo o espaço disponível se quer incrementar as vendas dos típicos patos de borracha ou dos milenares pastéis de bacalhau com queijo da serra. No fundo, a reabilitação imobiliária é apenas uma externalidade positiva, um efeito colateral do turismo, algo que as empresas do sector dispensariam de bom grado se outra forma de garantir o mesmo lucro houvesse.

De resto, a albufeirização em curso tem sido pródiga a produzir efeitos negativos: escassos transportes públicos sobrelotados (os nativos ainda levaram algum tempo a aceitar o confisco turístico do eléctrico 28), subida olímpica dos valores das rendas, multiplicação descontrolada dos alojamentos locais, descaracterização progressiva da cidade, dos seus bairros, extinção lenta mas inexorável de um modo de vida incapaz de sobreviver sem aqueles que nele participavam, implosão gradual do comércio de proximidade, substituído por lojas de bugigangas inúteis e botecos gourmet nos quais se comercializa uma banalidade sobreadjectivada a preço de estrela Michelin, lixo, confusão e barulho. Muito barulho.

Lisboa nunca foi generosa para com os seus no que diz respeito à permissividade com que lida com o ruído produzido, nomeadamente o nocturno. Quando não o estimula directamente, mediante a organização ou promoção de eventos, autoriza-o com a emissão de licenças. Em Junho, então, é freestyle. São os santos, as barraquinhas de farturas com colunas do tamanho de barris de cerveja a debitarem um medley dos peitos da cabritinha e da garagem da vizinha em loop, os gritos ébrios na rua às tantas da manhã e os múltiplos transportes que levam esta gente dos sítios onde se embebedam para os sítios onde dormem. Quem se pode legitimamente queixar quando em doze meses de sono possível só um lhe é perturbado?

Há pouco tempo foi criado um grupo público de discussão no Facebook, chamado Menos barulho em Lisboa, no qual os seus participantes escrevem sobre a poluição sonora que, muito por via do crescimento exponencial do turismo, tem retirado tranquilidade às suas vidas. São relatos de ruído caucionado ou estimulado pelas autoridades que deviam proteger aqueles cuja ecologia vital se encontra ameaçada das mais diversas formas. Percebe-se a natureza displicente do fenómeno: a Câmara, como uma loja da Bershka, quer dar a impressão de que a cidade está sempre em festa, e quando não é ela própria a promover as mais diversas aberrações sonoras – a última delas um barco junto à Ribeira das Naus a debitar um tecno de after de má memória a tarde toda de um domingo – faz vista grossa a quem ultrapassa os limites em vigor. The show must go on.

E é disso que se trata, de limites. E é nisso que esta gestão municipal tem sido péssima. Em entrando dinheiro, tudo o resto sofre de um efeito de desfoco ou de desvalorização de importância. A vida das pessoas, de Lisboa e dos seus habitantes, está indexada a uma dimensão apenas: a forma como podem não perturbar a ordenha da vaca leiteira em que a cidade se converteu.

 

14 Jun 2019

Liberdade

[dropcap]D[/dropcap]estino e fado são palavras muito antigas. O sítio onde se vai parar. A vida que foi predita. Se assim é, haverá margem de manobra para a escolha? Schelling diz o que Heidegger repete: deixar-se actuar pela liberdade. Ser livre é possível se temos um destino e um fado? Se temos uma destinação e uma predição como é possível escolher. Quantas vezes escolhemos na vida? Temos grandes superfícies para escolher o que queremos? Não queremos já antes de escolher? Podemos escolher vidas diferentes? Podemos fazer que o que não queríamos que acontecesse não tivesse acontecido? Podemos fazer acontecer aquilo que queríamos que tivesse acontecido?

Lembro-me de, quando a sul, em Agosto, via uma estrela cadente. Pedia-se um desejo. Eu sei o que pedia. O mesmo se passava, quando soavam as doze badaladas na passagem do ano.

Engolíamos doze passas e pedíamos um desejo. Eu sabia o que pedia. Pedir significa que não temos escolha. Gostaríamos de ter o que não temos ou ser quem não somos. Ainda. Há grandes escolhas na vida que estão feitas para nós. Assim, não as escolhemos: mãe e pai, família, país, época do ano em que nascemos, amigos que encontramos, gostos, desportos se for caso disso e livros que é o caso. Sem ler não há viver. Mas como se fazem as pequenas escolhas? Como é possível escolher? Sobretudo, quando podemos perder e dizer não ou não dizer sim? Lembro-me muito bem de como, infante, não queria estar no próprio corpo nem fazer o que me diziam para fazer ou então só viver a vida que viviam para mim. Como ser livre? E como ter uma ânsia de liberdade? O que é ser livre se somos obrigados a ser livres?

Querer uma coisa implica trabalho. Os gregos achavam que se queríamos alguma coisa ela não viria sem trabalho. Hércules e Jasão ou Perseu, o meu herói de sempre, sabiam disso. Para libertar uma mãe, um País, ou alguém ou até só o próprio. Ser livre é também livrar-se de qualquer coisa ou do alguém que não gostamos de ser. Como nos libertamos para nós próprios? Como pode o rei Édipo não se cegar, depois de partilhar a cama com a sua mãe e matar o seu pai? Como podemos nós não ser quem nós somos, quando não queremos ser os próprios? Os próprios são os outros que somos. Temos um apego a nós e não queríamos ser outros. Contudo, a vida pode ser outra, diferente, um mega gato que não quer e nós não somos donos de nada.

Quando aparece um amor, é uma escolha? É a possibilidade de ser livre? Primeiro, há a beleza, que tanto queremos ter por perto. Depois, a liberdade política, deixar e querer ser livre, fazer livre.

Depois, talvez a morte, quando não temos escolha. Mas a vida é para a escolha. Tanto que morrer pode ser opção. Ficar livre de si para sempre. Ou assim Hamlet pensa. Ser ou não ser, não ser é ser ainda do lado de cá da vida.

O acto criativo por mais mínimo que seja é o que liberta. A gentileza liberta. A amabilidade liberta. Mas um poema alinhado ou então uma canção que se diz a medo também liberta. Um beijo liberta. Um livro lido ou ensaiado liberta. E passamos a vida inteira a ser o que os outros querem que sejamos ou então só nós para nós.

Muda de vida! Como se pode mudar de vida? Só numa escolha complexa. Não é intelectual. É prática. É ser a fazer. Quem não faz o que é não compreende o que é para ser. Quem não compreende não explica. E queremos que tudo seja diferente ou que tudo seja exactamente como é e tem sido até agora. Que escolha? Como escolher quando não se pode escolher? Só escolhemos quando não podemos ser o que somos ou não queremos ter o que temos?

Há uma ânsia de liberdade que é uma ânsia de amor. A verdade há-de nos libertar. A verdade revela-se. Ser outro, ser diferente, ser de outra maneira consigo e com os outros. O mundo é outro quando o amor se revela. Uma estrela dançante ou cintilante ou atirada para o céu, quando todos os outros estão aí connosco e saem de cena ou entram em cena.

Como gostaria de compor um poema, quando o poema vem e pede para ser escrito. Como eu gostaria de compor uma canção no trânsito quando pede para ser cantada. Como eu gostaria de ensaiar um pensamento quando ele se forma tão consistente à espera de ser pensado e dito.

Ou só ter uma rapariga. Falar com ela à beira mar, mesmo quando é inverno, entrar pelas águas frias da Fonte da Telha. Falaríamos dos nossos pais e lutas e futuro. Escolher é ter futuro. Não. Escolher é fazer o futuro. É tão bom não estar só e não ser só. E ver alguém que connosco é livre.

Ser livre é também ser feito livre. Ser livre é libertar. Como o combatente que não mata para matar mas para libertar pessoas. O amor, a verdade, são os elementos da escolha. Sem escolher não somos. Não há igualdade de oportunidades. Há uma talvez. E escolher faz de nós quem somos. Somos o que escolhemos.

E se for em nome do amor, então, fomos!

14 Jun 2019

Crepúsculos

[dropcap]S[/dropcap]erá da idade ou dos tempos, ou do adquirido entendimento que ela me repassou deles – o que sucede é cada vez gostar mais de menos coisas.

Por um fenómeno de paralaxe, a quem rebola no encalço das sazonalidades e suas centrifugações há-de parecer isto um horizonte que se estreita. Descreiam-se disso, que não sois falcões atentos, antes avezitas atordoadas e voláteis; é garimpo, ó estrábicos, e mais enxerguem que de tanto descer à mina se alcança o privilégio de esgravatar um filão incessante em ceder pepitas de fino quilate, que nem um par de vidas chegaria para esgotá-lo. Há quem chame a isso “cultura”, mas é palavra (e conceito) falaz e corroída como nenhuma outra.

Numa dessas noites não menos trivial do que outras, aconteceu tropeçar televisivamente no mal enterrado “The Sun Also Rises.”

O filme passou ao largo dos êxitos e referências de 1957 e foi sumamente desconsiderado pela história e até da melhor crítica. Vale contudo a pena reparar em certas obras falhadas, sobretudo nas que resultam aquém da sua ambição. Esse hiato entre o que pretendiam e o que lograram deixa à mostra a sua mecânica e a sua dinâmica. Se além disso a opulência dos meios de que dispuseram mais não segregou do que lugares-comuns (é sabido que quanto maior o investimento, menor o risco que se deseja correr), tanta vulnerabilidade acaba por fazer de “The Sun Also Rises” o exemplo indiscreto e desprevenido da declinante Hollywood dos anos 50.

Vai o filme andando e nós percebendo que a realização foi endossada a Henry King, garante de uma cómoda competência industrial, isenta das então larvares lérias do autorismo (dele caberiam num clip do Youtbe os highlights de toda uma carreira). Por todo o lado o que se vê é a mãozinha de Darryl Zanuck o omnipotente faraó dos estúdios da Fox – ”Don’t say yes until I finish talking” – e por esta altura a parear com Jack Warner como o último moicano do modus operandi da Hollywood dos bons velhos tempos.

Não deixa de ser delicioso o aroma falsandé de “The Sun Also Rises”, a crença cega no velho e relho jeito de encher o olho com todo o luxo que o dinheiro pode dar e de almejar caução artística por via da nobre literatura. (Se os aprendizes de hoje pusessem os olhos nestes fiascos talvez não debitassem tantos iguais…)

Hemingway, tão tolo quanto tonto em coisas do cinema, odiou o filme pelas razões erradas. Achou que traía a letra do romance sem entender que só avacalhada e revolvida da literatura surtem bons filmes. Nisto o cinema é implacável como tão bem o demonstrou “To Have and Have Not”, belamente deturpado o original de Hemingway pelo argumento de Faulkner e pela câmara de Howard Hawks.

Mas o mais perturbante, e perturbadoramente esplêndido, de “The Sun Also Rises” é o elenco. O filme é um invulgar exercício de crueldade. Falhos de direcção Tyrone Power e Mel Ferrer, caras de pau, aborrecem por se levarem demasiado a sério. Mas Errol Flynn e Ava Gardner apoderam-se das personagens como o diabo de uma alma, e expõem despudoradamente a sua decadência.
Intumescido e balofo, degradado pelo alcoolismo, Flynn abandona-se ao papel de um bêbado com a desinibição e o sarcasmo de quem já nada espera dos filmes e nada tem neles a provar. Vê-lo aqui é divertido e aterrador ao mesmo tempo. O seu último plano do filme encerra todas as premonições de uma morte iminente: põe os olhos em alvo para o infinito e é tão patético quanto a pose de pé estribado para que o graxa lhe dê lustro aos sapatos. Ele lá sabia que dali a dois anos, com 50 de idade, desceria à cova.

O guião pedia a Ava Gardner que em determinada cena seduzisse o imberbe toureiro. Numa época em que às mulheres se exigia o recalcamento de uma Doris Day, o que ela nos proporciona é o devasso espectáculo de si mesma. Gardner solta uma descarga de feromonas sem qualquer fingimento, executa um assédio de pantera liberto do véu da representação. Duvida-se que não seja autêntico o susto exibido por Tyrone Power, reduzido nessa cena à função de pau-de-cabeleira.

Se pelo artificio “The Sun Also Rises” queria dizer umas coisas importantes, das que os filmes gostam de proclamar quando se põem em pontas, pelos seus defeitos ele acaba por nos revelar outras coisas bem mais interessantes. Não há glória nem regalia nisto, apenas mais realidade.

14 Jun 2019

Quando me pus a semear lebres

[dropcap]C[/dropcap]omeço a crónica de hoje com o depoimento de Inácio Crespim, antigo acarretador de São Romão (Vila Viçosa), entrevistado nos anos de 1994-1995 por Luís Silva para um livro que foi publicado em Maio do ano passado, intitulado ‘Os Moinhos e os moleiros do rio Guadiana’*.

“O meu pai nunca abalava do moinho, só estando doente é que não dormia lá.” (…) “Tinha uma tarimba lá dentro do moinho” (…) “era ali a tarimba, era ali que ele dormia e encantado da vida. A cama era uma esteira de buinho [com] uma manta ali em cima da esteira. Em ouvindo o chocalho, lá se levantava para encher a moega. Enchia, punha a argola do chocalho na cegonha e, depois, ficava descansado até que se acabasse aquele trigo na moega”.

A vida dos seareiros, moleiros, farineiros, atafoneiros e acarretadores (ou maquilões) é hoje totalmente desconhecida. A ignorância avança ao lado dos cultos do saber. Eram vidas muito duras e particularmente solitárias. Antes de a indústria da moagem se ter desenvolvido, era dentro dos moinhos que o cereal se moía, produzindo-se a farinha que é essencial para o pão. A água dos rios era a fonte de energia e o resto equivalia a um intenso episódio braçal, claustrofóbico, quase místico.

Em 1786, três anos antes da revolução francesa, um “Código de Posturas” publicado em Mourão dava conta das restrições a que a actividade dos moleiros (e dos atafoneiros) estava sujeita:

“Os moleiros e atafoneiros serão examinados com juramento de fazerem verdade, e os moleiros e atafoneiros tomarão também juramento de fazerem verdade e ninguém poderá ver moleiro em moinho ou acenha, ou atafona sua… nem terão suas molheres nas ditas moendas, nem ainda em taes fazendas que tragão arrendadas, nem terão cão, nem galinhas, nem porco, nem cavalgadura sua nas ditas moendas, nem ao redor dellas, nem em suas casas. E terão gato ou gata para os ratos, e terão alqueire de.., meio alqueire de pão, e maquieiro e meio maquieiro e tudo aferido e affillado pello aferidor do Concelho nos primeiros oito dias de Janeiro e Julho de cada anno, de que tirarão sequestro, e terão sempre panais postos nas moendas e… de farinhas, e nas moendas andarão descalços, e no principio de cada anno darão fiança sob pena de pagarem por qualquer desttas couzas não cumpridas quinhentos reis e sob a mesma pena não comprarão vinho aos vinhateiros que forem aos moinhos, e nelles não venderão trigo nem farinha a pessoa alguma com pena de mil reis, e salvo emprazadores e senhorios dos moinhos, que tomem conhecimento do tal trigo e farinha que venderem, e duitamente do seu ganho”.

É curioso como esta actividade estava sob juramento. Além do carácter votivo, não havia direito à sexualidade, ao vinho e à companhia de animais. Os gatos eram a excepção, o que se ficava a dever às exigências de higiene (onde se incluía, também, o uso de panos sobre a moenda – ou pedra mó – e a obrigação de não usar calçado). A fiscalização e a vigilância externas incidiam nas medidas a usar, na proibição de venda directa (a não ser com conhecimento dos donos dos moinhos) e ainda na caução a que os moleiros estavam obrigados (e cujos montantes eram subtraídos em caso de incumprimento).

É difícil encontrar nos dias de hoje um contrato de trabalho com estas condições, a começar logo pelo juramento. No entanto, o triângulo aqui presente – baseado no cariz solitário da actividade, nas imposições de ‘higiene’ (que definiam o meio) e na vigilância externa – não é assim tão estranho às patologias, passe a metáfora, da vida contemporânea.

Pensemos no modo como o mundo em rede, aparentemente um esteio de partilhas, é sobretudo um mundo solitário que se move ao jeito de um vaivém impessoal entre a perdição do olhar e os ecrãs tecnológicos. Trata-se de uma patologia a que ninguém consegue deixar de aderir (e até com a devida pulsão eufórica).

Pensemos, por outro lado, na correcção que visa codificar a nossa vida através de regras rígidas (a maior parte não escritas) que liofilizam e ‘veganizam’ a higiene e o meio em que vivemos: nada de fumo, nada de gorduras, nada de touradas, nada de tabernas manhosas que dispensem as asaes.

Trata-se de uma patologia a que o ‘mainstream’ tende a aderir com o apego das antigas ‘grandes causas’ (hoje parte das novas arqueologias).

Pensemos, por fim, no modo como a tecnologia nos vigia e nos espia, tema, aliás, de uma das últimas crónicas aqui publicadas (“Lavadeiras, privacidade e ameaças”**). Trata-se de uma patologia que tudo e todos tendem a fingir que não existe.

Não estamos assim tão longe de Mourão dos idos 1786. As clausuras do nosso tempo pós-Orwell caracterizam-se (vistas de cima com a ajuda de um drone) por uma correria paradoxal: os passeios enchem-se de multidões a correrem desenfreadamente sem saberem bem porquê e para onde.

De tal modo assim é que, como dizia o antigo acarretador Inácio Crespim, ninguém parece ficar “descansado até que se acabe todo o trigo na moega”. Só que, hoje em dia, o trigo é imaterial e, quer o pão, quer os hamburguers já completos (e higiénicos até à medula), aparecem nas nossas mesas fresquinhos, como se tivessem acabado de sair da árvore do quintal. Eu, ao pé da minha, até costumo semear lebres – para não ter que as matar com uma boa estocada – e depois misturo-lhes alho, cebola, louro, alecrim, cravinho, chouriço (com muito sangue), nabo, 6 dl de vinho da Pêra-manca e, claro está, um belo arroz carolino, pois o integral – disse-me o senhor Crespim – faz mal às artroses.

Bons feriados!


*Silva, Luís,  ‘Os Moinhos e os moleiros do rio Guadiana – Uma visão antropológica’. Colibri, 2018, Lisboa. [Em linha]. (s/d). Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/50442/1/Livro_completo.pdf [Consult. 07-06-2019].
**Carmelo, Luís, ‘Lavadeiras,  privacidade e ameaças’ em Hoje Macau. 23/05/2019. [Em linha]. (23-05-2019. Disponível em https://hojemacau.com.mo/2019/05/23/lavadeiras-privacidade-e-ameacas/ [Consult. 07-06-2019].

13 Jun 2019

Quarentena: uma narrativa

[dropcap]N[/dropcap]ascidos a bordo de um navio
em quarentena, ao fim de uns anos
engolfa-nos a ausência,
ansiamos um abraço de sangue.

A raros se concedeu – presumo
que a suborno – soltura.

O navio ficou ao largo
por um período a prumo,
que não cessa de indeterminar-se
e aí a língua é o algeroz
de onde pingam a esperança
e o alfabeto do inferno.

Divisamos de longe as luzes
da cidade, adivinhando até ao sabugo
os seus perfumes, a desabrida
floração dos cometas
no peito das raparigas,

o rasto de anfetaminas com que
os rapazes metem a terceira
e repelem os mortos.
Enquanto na nossa cabine
ou no desabrigado convés
tudo se repete, unânime, caliginoso.

Dás conta, já não batem os sinos
na cidade! Emudece a via
láctea nos salmos
que tingem o WhatsApp?

No dia da boda uma borboleta,
das que migra, transatlântica,
veio ressacar ao corrimão
do tombadilho e depois alumiou
as bordas da piscina
com a sua valsa imatura.
Tudo quanto vislumbrámos
das flores da costa.

Ocorre o amor
entre os convalescentes?
Tudo indica que o homem é capaz
de amar no próprio inferno,

embora a solidão na proa
não deixe de lembrar-nos
que nunca mergulharemos
duas vezes no mesmo vento.

Ancorados ao largo da alegria,
de quarentena,
o capcioso brinde final
destinar-te-á um breve
toque de clarim,
antes de amortalhado
numa bandeira o teu cadáver
ir lancetar o mar.

Mataste o tempo,
lendo a Oresteia e conviveste
com as deambulações de Ulisses,
também ele tardio e como tu
enleado nos novelos
da idade que ensimesma,
e já reconheces na enlanguescida
inteligência do antigo amante
de Circe o declinar da tua.

Estaria tudo bem se não visses
que os teus filhos
também nasceram a bordo
e como se lhes emaranha nas veias
uma bilha de gás e uma cabeça
de fósforo. Aí revoltas-te!
Apontas o canhão da proa e
inflamas o horizonte
com a tua veia derramada.

Alba. O barrete realça,
não esconde a cabeça de cachalote
do marinheiro que subiu à gávea.
Padeceriam igualmente os anjos
desse peso transbordante,
acima do pescoço rútilo?

Um veleiro airosamente descalço
adeja ao largo.

No rádio passam Zappa,
conduzido por Boulez
– tudo se desloca nos meridianos
aquosos. A quem devemos
a quarentena do planeta?

É tão escasso o pensamento,
nestas anfractuosas tonelagens
de ferro, que nos serve de guarida
contra o íngreme
entenebrecimento, contra
a cegarrega que nos atou,

é fugaz, mas dactilografa estrelas
à superfície das águas,
lépida doma dos néones,
e aí intuímos:
cada palavra é uma ilha
e procura arquipélago.

Saberá o urso que hiberna?
Não tem clímax a noite,
só tem ápice na queda.
A noite é o seixo que rola
no leito da tua vida; rola
para a foz ou para a nascente?

Alarma-te o enigma
do teu corpo e da tua sombra
bifurcarem na língua da cobra.
Como traduzir a inconciliável
corrente que os aparta
em amuos incandescentes,
não obstante partilharem
o que tolda no copo de gim?

Solução para o dilema: talvez
em terra, mas, entretanto, retido
em quarentena, apesar
de desconheceres a combustão
antropofágica da doença,
a dúvida que não cala encapela-te
os páramos do sangue.

A inocência é que te tramou,
enredou-te nas ramagens
da noite – embora na orla
das escotilhas já a luz da alba
se ice, vagarosa, e a algazarra
das cores se adiante, esta outra

luz é mais um alinhavo
frágil na bainha da mesma
e idêntica noite que te
ofusca, espectral.

Contudo, por décadas
a fio de quarentena
encrespada nos gargalos,
pode lá a escassez encaixar-se
nas tuas linhas de sombra:

basta ouvirmos o latido
de um cão na costa
e restituímos a pedra que sonha
à tepidez da mão que enxagua
a sua matéria exausta.

Transpira o navio contra
a quarentena, ondula.
Lês na fornalha de Dante
os glóbulos brancos do teu nome.
Quanto tempo demora o limbo
a fazer-nos compreender
que desenhar as letras
não nos emenda a escuridão?

Tanto que vejo, sem
adivinhar o quanto ensejo
no que vejo.
De quarentena, a vida
de nós não se aproxima
nem para a despedida.
Embora tudo indique
que o homem seja capaz
de amar no próprio inferno.

08/06/2018

13 Jun 2019

Relicário de sonhos I

[dropcap]H[/dropcap]á alguns anos a esta parte, enquanto lhe contava um sonho, dos muitos que tenho, ou melhor, dos muitos que recordo, diagnosticou ou melhor, perguntou-me o Rui Zink se eu sabia que era grafomaníaca. Eu não sabia. Nem sabia o que isso era. Mas o Priberam explicou que era uma necessidade patológica de escrever ou de fazer registos gráficos, o hábito de escrever ou de registar graficamente muitas coisas. Poderia dizer que nunca mais fui a mesma mas mentir é feio. Continuei a sonhar e a registar os meus sonhos, e até os sonhos que amigos tiveram comigo, como o faço com os diálogos e peripécias que me acontecem, apenas agora exibindo esta condição incurável como uma curiosidade exótica. Não é muito melhor do que ter um transtorno obsessivo-compulsivo? Eu acho que sim. Mas na verdade, não poderia isto, também, ser considerado como tal? Adiante. A poucos dias do seu aniversário, deixo aqui uma pequena colecção, sem grande organização, análise ou interpretação, clínica ou mística, a este querido amigo e antigo professor meu (que não tem memória dos seus e estará, provavelmente, grato por isso) de alguns sonhos dos últimos anos. Há pessoas mesmo estranhas, não há?

2019

Sonhei que andava a mudar plantas mas, apesar de ter bastante à disposição, constantemente me enganava e colocava cacau em pó em vez de terra nos vasos.

2018

Sonhei que Jesus Cristo me visitava. Era um sonho agradável. Dizia-me o dia da minha morte, mas não do mês ou do ano. Em seguida, tive um sonho muito violento, mas acalmava-me dizendo: não é hoje que eu vou morrer.

2017

A noite passada sonhei que me ofereciam um trabalho de fim de semana como domadora/treinadora de elefantes e a formação consistia em passar tempo com o elefante mas sobretudo via lá no horário yoga yoga yoga yoga.

2016

Sonhei com sonhos.

Esta noite sonhei que o meu romance estava terminado.

Sonhei que ia passar o verão a Hong Kong. Mas antes estava nas traseiras do prédio dos meus pais a andar de bicicleta. E tinha um saco de viagem que não queria perder, então pensei, vou andar de bicicleta à volta do saco. Nas notícias falavam de um fugitivo.

Outra noite sonhei que uma mãe e seu filho queriam ir para minha casa; tinham chaves e tudo, convencidos de que lhes pertencia. Recebia ainda um grupo de Masai em casa, e a minha tia. Discutimos e eu estava preocupada porque não sabia como acomodar tantas visitas inesperadas. E tinha de pensar nas minhas colegas de casa. Só que a minha casa não era a actual. Era a casa de uma ex-amiga minha.

Sonhei que estava a vir de onde costumo lanchar às vezes no trabalho mas agora de repente, a meio do caminho, estava grávida, já em estado avançado, e conseguia ver o meu bebé através da barriga e da roupa, como se fosse transparente de algum modo. Sorria para mim.

2015

(Depois de ser operada ao estômago) Sonhei que me via a comer comida normal antes de tempo e ficava com medo de morrer. Tentava avisar-me a mim mesma para parar, mas era como se estivesse a pairar no tecto e não me ouvia. Uma visão do horror. Cheia de medo que me rebentasse o estômago.

Sonhei que tinha cancro. Era um sonho muito atribulado. Eu sabia que tinha porque os meus médicos queriam reunir-se comigo e um deles deixou a noiva no altar à espera para ir à reunião.

Por algum motivo tinham de me amputar as duas pernas. Eu ia lá para a o fazerem, e quando a médica começava a preparar tudo eu dizia que não queria e que não conseguia lidar com aquilo. E percebia que também não tinha dito a ninguém, porque me imaginava a aparecer em casa dos meus pais, era o dia do aniversário do meu pai,, e a cara da minha mãe ao ver-me com próteses.

Sonhei que havia uma pessoas que queriam encomendar rissóis e croquetes à minha mãe. Mas era só uma desculpa para nos fazerem mal. A minha mãe não estava em casa e eu e mais pessoas (?) fazíamos de tudo para afastá-las. Só sei que, quando finalmente mandei mensagem à minha mãe a avisar, de repente a vi a caminho, mas estava careca. Entretanto um miúdo e uma miúda que eu sabia fazerem parte do tal grupo vieram ter comigo, agora sim só comigo, e conversámos muito mas eu continuava sem querer confiar neles. Que sonho parvo. A parte dos miúdos, contudo, era pesada, intensa. Não me lembro da conversa, apenas da sensação. Eventualmente a minha mãe chegava a casa. Não me lembro de mais nada.

Sonhei que a minha mãe nunca mais se levantava e o meu pai queria dar-lhe umas prendas. Ele estava sentado à mesa, cabisbaixo. Havia coisas para ela mas também havia um helicóptero dourado, enorme. Ele dava uma boneca que andava e falava à minha irmã. No sonho eu via a minha irmã no escuro, sentada na cama, com a boneca gigante ao lado, do tamanho dela. Apesar de o helicóptero estar lá e ser parecido com um que tive, eu percebia que nada daquilo era para mim. E então ficava muito magoada e ia embora para a Finlândia durante três meses, que passaram em segundos, e depois voltava para dizer que me ia embora novamente por mais tempo e usava um mestrado como desculpa.

13 Jun 2019

Sui generis

[dropcap]Q[/dropcap]uando viu o Sidónio nu à sua frente ficou sem jeito e sem capacidade de reacção. Estava farto de ver homens naquele estado, isso não era o problema, bastava olhar-se ao espelho ou ir ao balneário do ginásio, mas assim naquele registo tão íntimo, pronto-a-comer, nunca tinha acontecido. Deixava-o desconfortável. Esta sua decisão de se tornar homossexual ainda não era cem-por-cento consensual dentro de si, tinha ainda as suas dúvidas. Nem todos os seus genes tinham aprovado essas regras em uníssono, por isso caminhava um pouco a medo, em terreno desprovido de qualquer cor. Não, não era nenhum arco-íris, por enquanto. Sempre gostara de mulheres e, apesar de estar a entrar nos cinquentas, era um homem sexualmente bastante activo. Esteve casado duas vezes, a última quase dez anos, com muitas aventuras nos entretantos, mas chegara a altura de sair do armário, como se costuma dizer. Bom, ele nunca tinha estado a viver numa prateleira, tinha a certeza disso, sempre fizera tudo às claras, não tinha nada a esconder. Mas a heterossexualidade também não fazia o seu género, no sentido em que gostava de dar um passo à frente. Era um experimentalista e apetecia-lhe mudar de ares.

A primeira coisa que disse ao Sidónio foi: “vai devagar”. Era um comprimido dos grandes que tinha de engolir. Lembrava-se de quando tinha de tomar coisas assim quando era miúdo. Deitava tudo cá para fora e a sua mãe ficava com os cabelos em pé e gritava com ele. Mas aquele espécime não o atraía minimamente, tinha um ar a dar para o abichanado que o irritava. Sempre o irritou, para ser sincero. Por diversas vezes, em pensamento, tinha troçado um pouco dele, apesar de naquela figura se apresentar com um corpo tonificado e com uma cara laroca. Tratava-se bem, o Sidónio. E até era um gajo porreiro, mas era para ir beber uns copos e apanhar uma grande tosga, não era para estar com o pila dele na boca.

Mas tinha de ser e a ideia até tinha sido sua. Trabalhavam juntos há muitos anos e sempre teve um à-vontade extremo com o Sidónio para falar das coisas, vá-se lá saber porquê. Era um facilitador. E quando começaram a trocar ideias sobre o assunto, de como ele não se importava de experimentar “aquilo”, o colega ficou logo de antenas no ar e mostrou-se híper interessado, convencendo-o de que gostaria de ser a cobaia. Até chegarem a esta situação embaraçosa, não demorou muito tempo. Duas semanas?

Agora, era preciso relaxar e ultrapassar de uma vez por todas o complexo que se tinha atravessado à sua frente, senão não ia conseguir cumprir os seus objectivos. Dantes, quando precisava de se abstrair pensava em matrículas de automóveis. Estava sem recursos. Precisava de uma mão divina. À medida que o Sidónio fazia tenções de o acarinhar ele afastava-se compulsivamente. Dizia: “espera!”, enquanto colocava uma musiquinha a tocar, na esperança de que aquilo ajudasse, criando um ambiente mais propício, não diria ao romance, mas whatever. Queria era ver-se livre daquela situação e prosseguir com a sua vida.

Ele que não era nada esquisito com a comida, comia tudo o que lhe pusessem no prato e gostava sempre de se lançar de estômago alegre para gastronomias desconhecidas. E se as mulheres, de quem ele tanto gostava, o faziam com tanta facilidade, não havia de ser ele que iria agora voltar para trás e desistir. Mas havia ainda a outra parte, o factor essencial para que a contenda desse certo, entre as suas pernas parecia existir uma letargia completa. “49-BO-13”. Na casa-de-banho tinha usado um lubrificante adequado, para não estar a interromper nada mais à frente, o que ainda iria ser pior, e achava que estava preparado, que não ia custar. Já tinha beijado amigos em noites de bebedeira e ali tinha pensado em todos os pormenores, mas estava demasiado tenso, era preciso libertar-se daquele torpor, fosse de que maneira fosse. Então achou que se desse um beijo ao Sidónio, daqueles à antiga, imaginando-se inebriado com uma lufada de vento, talvez tudo se resolvesse. Sim, era isso que iria fazer. Iria abraçá-lo e beijá-lo com estrondo.

Depois logo se veria.

O que aconteceu, em concreto, não sabemos. O que é certo é que deu o grande salto em frente e com naturalidade enfrentou sem encerros a sua nova condição perante a sociedade. Do modo como os colegas de trabalho o entreolharam nas semanas seguintes, só confirmava que o seu outro eu já não era segredo. Mas ele gostava disso. Gostava da assumpção.

Encontramo-lo tempos mais tarde, já com o coração a bater a um ritmo semi-descontrolado. Começara a namorar com um homem, ou era o que ele achava, que aquilo era uma relação à séria. De início, estava confiante que tinha finalmente encontrado o seu primeiro namorado, extremando ainda mais a corda para a sua vida passada. Mas a história tinha outros contornos e revela-se aqui num excerto roubado do seu diário.

“Quando conheci o Eddy ele não me contou a verdade, não me disse que afinal não era bem assim. Conhecemo-nos numa noite, num festival de cinema. Ele fazia parte de uma equipa de produção de um documentário premiado, um documentário sobre a extinção do género, e a partir daí fomos falando quase todos os dias. Até que noutra noite mais acalorada, sem câmaras pelo meio, nos envolvemos de modo íntimo. Aconteceu tudo muito rápido. Bem que lhe meti logo a mão entre as pernas, mas ele afastou-me, dizendo que ainda não. Queria primeiro aguçar-me o apetite, pensei. E quando passámos ao acto em si – já não aguentávamos mais! – baixou as calças e virou-se de costas para mim. Tínhamos trocado beijos clamorosos, ficámos agarrados como duas tomadas, em curto circuito, com as nossas línguas derretidas uma na outra. Tudo corria bem. Todo o meu ser efervescia de paixão. Finalmente, estava com os dois pés no caminho que tinha começado a traçar com o palerma do Sidónio. Mas quanto a esse caso, nem me quero lembrar desse momento, aquilo foi um suplício.

Nunca tive qualquer dúvida quanto ao Eddy. Vira-o de tronco nu e, apesar de profusamente depilado, é uma mania que não pratico, tinha um bonito peito de homem. Seja lá o que isso quer dizer. Eu sei lá, pelo menos foi o que supus. A minha ideia nunca tinha puxado para o outro lado. Quando se vê uma coisa não se vê a outra e o toldo tapa o horizonte por completo. Mesmo depois de ele engolir o auge do meu prazer e continuarmos com aquilo noite fora, eu gritava: ‘Eddy! Eddy!’ E abraçava-o, como se não houvesse mais mundo.

Mas não demorou muito até descobrir a realidade, de que afinal o rapaz por quem me tinha apaixonado era afinal uma mulher. Raios! Não havia como evitá-lo, fiquei estupefacto e chorei. O que me tinha levado a gostar de homens tinha sido uma vontade imensa de experimentalismo e ao dar esse passo queria aprofundar a minha nova postura, assumindo-a. Na verdade, passei a ter uma atracção genuína por pessoas do mesmo sexo, e só por elas, achava eu. Limitava-me a saborear aquela fruta tropical. Agora, parece que me egasguei. Terá sido o caroço? Quando conheci o Eddy, era indiscutível de que ele era um homem. Nem foi tema de que alguma vez tenhamos falado, a dúvida, era tudo claro como a água. Mas a extinção do género tinha ganho um prémio, esse tinha sido o nosso ponto de encontro, e quando deparei com aquilo, não soube como reagir. Uma pessoa ama o indivíduo, para além da inscrição do género, seja ela qual for? O que é isto da sexualidade e do corpo que nos calhou? Depois de tanto esforço, eu não podia andar com uma mulher, ia contra os meus novos desígnios. Ai, Sidónio, eu vi logo que isto não podia dar certo.

Mas eu adoro o Eddy. É uma paixão sem fim, como nunca tinha sentido. E quero passar a vida nos braços dele – dela! – para sempre. E se descobrirem, depois de tanto vergar a corda, que afinal eu não sou homossexual? Também o que me havia de calhar na rifa, o Monsieur Butterfly. Não sei o que pensar, mas também não me interessa saber. Dê por onde der, mesmo sem arco-íris, sigo em frente.”

Ficamos descansados, não há cenas dos próximos capítulos.

13 Jun 2019

Morte e beleza

[dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1811 um jovem francês, à beira de completar o seu vigésimo oitavo aniversário, realizava um sonho: visitar Florença e ver as grandes obras de arte e monumentos que a cidade alberga. O seu nome era Henri Beyle, um autor de biografias musicais de segunda ordem e que mal chegavam para lhe garantir a sobrevivência. Mas naquela cidade Beyle não queria saber da sua pobreza. Em frente à Basílica de Santa Croce hesita, num misto de pausa solene e tontura. Ali estavam (e estão) os túmulos de Miguel Ângelo, Maquiavel e Galileu.

Ali estiveram homens como Petrarca, Dante ou Boccacio, outros ilustres toscanos. Beyle sente a grandeza do que vê, e sente-a de uma forma física, quase opressiva. Consegue que uma freira lhe abra a capela de Niccolini e pára, no final do transepto esquerdo. Várias figuras e frescos de uma extrema beleza decoram o espaço relativamente pequeno da capela. Beyle senta-se com a cabeça recostada de modo a admirar o tecto. Está esmagado pelo belo. E então, à saída de Santa Croce, sucumbe: «(…) fui atacado por uma intensa palpitação do coração…A nascente da vida tinha secado em mim e caminhava em constante pavor de cair». Chega quase a desmaiar.

Seis anos depois deste incidente Beyle deu-nos o relato do que aconteceu no livro Roma, Nápoles e Florença , já assinado com o pseudónimo que o iria imortalizar na literatura: Stendhal. Mas o seu nom de plume também seria associado a uma condição psicossomática devido ao episódio que descreveu. Em 1979 uma psiquiatra italiana, Graziella Magherini, depois de observar um padrão de sintomas em mais de cem turistas que visitaram os monumentos de Florença, cunhou o termo por que se conhece esta condição: a síndrome de Stendhal. Embora a comunidade médica ainda esteja a debater se estes sintomas são merecedores de validação científica, a verdade é que os guias turísticos da cidade de Florença já alertam os visitantes para essa possibilidade; e, por outro lado, os funcionários dos monumentos estão já preparados para lidarem com turistas que desmaiam ao contemplar o David de Miguel Ângelo ou as centenas de obras de arte que a Galeria Uffizi possui.

Não posso, com inteira sinceridade, dizer que alguma vez tenha sofrido da síndrome de Stendhal. Mas lembro-me de alguns episódios em que a contemplação da extrema beleza me afectou fisicamente: a saída da estação de comboios de Veneza, entre canais, depois de uma longa viagem desde Paris; estar perante A Ronda da Noite de Rembrandt no Rijksmuseum de Amesterdão, em que mal contive as lágrimas; ou passear sem destino por Roma e deparar com uma escultura monumental de Bernini.

Mesmo em Lisboa ainda por vezes me consigo comover num qualquer recanto, ou ao olhar o Tejo ao final do dia. É um misto de emoção e gratidão por poder viver nesta cidade que amo com todas as minhas forças. Mas infelizmente receio que o perigo de estar sujeito à síndrome de Stendhal esteja em Lisboa cada vez mais erradicado. No rio, durante o dia, barcos com ecrãs gigantes passeiam anunciando aos gritos um qualquer evento. No centro histórico da cidade é impossível ter outra emoção que não seja a claustrofobia e o desejo urgente de solidão. E a descaracterização continua: ainda há menos de uma semana descobri que uma das artérias mais antigas e bonitas de Lisboa – a rua dos Bacalhoeiros – ostenta agora hostels para todos os gostos e uma espécie de loja circense onde se vendem latas de feijão.

Eu sei que o tema não é novo, leitores. Mas estou cansado e triste, tenho de desabafar. Quero que quem venha visitar a minha cidade possa sucumbir à extrema beleza que ela possui. Quero – exijo! – o regresso urgente da possibilidade da síndrome de Stendhal em Lisboa. É uma questão de saúde pública.

12 Jun 2019

O desenho dos dias

Horta Seca, Lisboa, 30 Maio

 

[dropcap]A[/dropcap] parceria que se ergueu pavilhão nefelibata na Feira do Livro desenterrou-me nostalgias, como se preciso fosse por estes dias negros e amargos. O Carlos [Morais José] achou por bem fazermos edição especial toda dedicada ao tema fugidio e fascinante, «nuvens», que vogam sempre no plural, já que cada uma por si só muda a cada instante. A saudade que me rasgou não foi tanto a do jornalismo assim vagamente, mas a dos fechos de edição. Acontece magia naquelas horas, pois o caos instalado grita-nos a cada momento «impossível», mas a golpes de vontade as peças vão-se encaixando de modo a fazer luz, isto é, tinta sobre papel. Por vezes, até sentido e beleza se alcança. E fechei revistas e jornais ainda antes do computador simplificar, onde tudo era mais lento. Mas dobrávamos o tempo. Assentámos o essencial nos colaboradores da casa e chamámos Carlos [Fiolhais], o cientista, e o João [Queiroz], o pintor, para conversar. Percebemos por aqui que a água dança nos céus para que a nuvem aconteça, que é colecção de pequenas coisas, ou melhor, que nelas se espelham um sem número de outras coisas.

Ouvimos garantir que a luz pesa, que na pintura o essencial é perceber as fronteiras dos objectos, que as nuvens podem absorver o real. A conversa tombou, às tantas, para um suave combate entre ciência e arte, mas não houve feridos. O Carlos [Fiolhais] teve depois de nos deixar, mas continuámos a três, sendo que essa continuação merecia também gravação. Quem sabe se a memória nos assistirá? Não estávamos sós, percebemos pouco depois. A mymosa tem destas surpresas.

Casa do Juiz, Bencanta, 31 Maio

Saltada a Coimbra, em contexto profissional específico, para ouvir [Álvaro] Laborinho Lúcio discorrer brilhantemente sobre a mais recente e possante recolha de micro-contos do Carlos [Querido], estes todos dedicados a morder os calcanhares da ceifeira. Como de costume, o Sal [Nunkachov] trouxe para a capa um corpo, que não anuncia fins. Além disso, contribuiu com um apêndice de múltiplas interpretações destes ambientes, nem por isso soturnos. A morte está bastante viva, afinal. Pode ser que a palavra nos defenda um pouco, talvez possamos escolher o modo de partir, por exemplo, virando árvore, como em «Tília». «Um dia sonhou-se árvore. Tronco ereto, copa frondosa, folhas perfumadas e caducas. Tília. Enverdeceu. Dum pequeno corte no rosto quase escanhoado brota um líquido pastoso, espesso, escuro. Seiva. É do fígado, desdramatizam os amigos. Diagnóstico precipitado. Eles sabem lá, os amigos. A icterícia é amarela. Não faz os cabelos crescerem verdes, em tufo, espigados, horizontais, a oferecerem aos pés doridos uma sombra circular e refrescante. (…) Por detrás da casa, no fim de um caminho de terra batida, espera-o um bosque com outras tílias. É para lá que se dirige. Escava com os pés até os sentir raízes. Abre os braços em cruz, virado para o nascente onde há-de irromper o sol.

Depois, sobe-os suavemente até que se unam as pontas dos dedos, no desenho quase perfeito de um pentágono que projeta para poente, para o mar, a sombra de uma copa à procura da eternidade a que aspiram todas as árvores.»

Casa da Cultura, Setúbal, 30 Junho

Pouco depois das 00h00, manda a «tradição» de cinco anos, demos por aberta a edição da Festa da Ilustração, em plena rotina. Desta, abriu-se muito espaço para o desenho de humor, não apenas por via do trabalho da convidada contemporânea, a Cristina [Sampaio], mas também pela homenagem a Tignous, um dos mártires do massacre do Charlie Hebdo. O título desta crónica foi também o título de uma exposição da Cristina na Bedeteca de Lisboa, em 2001. Fui reler o que então escrevi e comecei por me surpreender com um rasgado elogio ao jornal, enquanto objecto e lugar de encontro dos tempos todos. Faltou apenas chamar-lhe nuvem… Não me revejo hoje em nenhuma das publicações nacionais, mas para o caso pouco importa. Os desenhos da Cristina perderam fundo, foram-se simplificando, mas o essencial da sua força mantém-se, com forte ligação às narrativas da actualidade, assentando o agudo comentário na dança entre a linha e a transparência, mastigando os corpos. No final, estamos nós. Pessoas e laçadas na corda do tempo.

(Algures na página está a ilustração feita para a Festa). E cito, lá do início do século. «Nós. Ou os bonecos nas mãos de um destino que joga aos dados no bar do cruzamento. Espreitamos com prazer nas transparências que nos espelham. A Cristina Sampaio é uma produtora de ambiguidades. Tem um olhar quase infantil e por isso cheio de perversão. Os seus desenhos, traços leves, mas pesados, surgem-nos claros e imbuídos de texto, sem serem nem caricatura nem cartoon e bastante mais do que meras ilustrações. Dizem, sem querer, que somos acrobatas de borracha, a pedalar sobre um elástico esticado, meros bonecos pintados à mão, a apanhar vento e chuva, às vezes sol, na montra do tempo.»

Lapso, Setúbal, 1 Junho

Não tinha voltado ao passado, quando procurei falar do presente, os mais de oitenta participantes que compõem um rosto à Ilustração Portuguesa, desta feita acolhida em novo e arriscado espaço, a Lapso, galeria-livraria na baixa da cidade. (Que seja augúrio de sorte!) Para o melhor ou pior, continua pujante, entre nós, esta disciplina, tanto mais que nem todos aqui estão representados, por uma razão ou outra. Vejo estrelas. «Soubera eu desenhar e desnecessário se tornava este esforço de procurar a metáfora que cosa estes pedaços soltos de nós, de nós aqui nestes dias adversos e confusos, mas também palpitantes de alegrias e possibilidades. Não chegámos ainda à centena de participantes, mas aproximámo-nos como nunca. As imagens, essas, desmultiplicaram-se e são mais que muitas, umas soltas, outras resultando da mesma encomenda, propondo olhar distendido sobre aquele assunto, próximo da actualidade ou inserido em narrativa, resultado de projecto mais pessoal, com fulgor poético ou comentando isto e aquilo. Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.”

12 Jun 2019

O que a tristeza inventa

[dropcap]R[/dropcap]afa tinha pouco mais de vinte anos e destacava-se na Rua Augusta, em São Paulo, pelo modo requintado e antigo como se vestia. Não parecia ser deste tempo. Conhecia-a no BH – padaria que fica na esquina das ruas Augusta e Luiz Coelho –, no momento em que interrompeu a leitura do seu livro para pedir mais uma cerveja ao empregado e, a mim, que estava na mesa ao lado, fogo. Passei-lhe o isqueiro e, ao dizer “nada”, depois do seu agradecimento, denunciei a minha portugalidade e despertei-lhe de imediato a curiosidade. Falou do pai, que era um português da Madeira, que veio para cá no início dos anos 70 por causa da guerra do ultramar. E perguntou muitas outras coisas, que têm a ver com a ideia que os brasileiros fazem de Portugal. O que mais temos, todos nós, são ideias sobre o que não sabemos, e Rafa apesar de antiga não era diferente.

Perguntei-lhe o que estava a ler. “Um livro de poemas de Paulo Leminsky. Você conhece?” Tinha conhecido recentemente. Falou-me do poeta e de Curitiba, cidade que eu nessa altura ainda não conhecia. Rafa queria ir à capital do Paraná, pois tinha a convicção de que aquela terra tinha de ter algo estranho, como se houvesse uma relação de causa e efeito entre a cidade e Leminsky, entre o que ele fora e o que escrevera. “Sei que a cidade não faz isso a todos, mas acredito que há alguma coisa naquela cidade que toca o íntimo do tornar-se Leminsky. E recitou o final do poema “Buscando o sentido”: “(…) Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. / Tirando isso, não tem sentido.”

Não demorou muito mais nessa noite, mas disse-me que gostaria de voltar a falar comigo, que vinha ao BH todas as noites. Raramente dormia, tinha insónias terríveis. Por isso, passava muitas horas naquela padaria, que estava aberta toda a noite e onde podia estar sossegada ou falar com pessoas. “Em casa a insónia é uma insónia, aqui parece outra coisa. Já não é não conseguir dormir é estar a fazer o que não devia. E isso tem muito mais piada.” E saiu com um sorriso.

Dois ou três dias depois voltámos a encontrar-nos. Ao fim de algumas cervejas e conversas várias, perguntou-me se queria ir com ela uma semana para Curitiba, à descoberta do que naquela cidade tinha sido responsável por Leminsky ter sido Leminsky. Sorri-lhe, pensei um pouco e citei o poema “Não discuto”:

não discuto
com destino
o que pintar
eu assino

Ela sorriu também e pedimos mais uminha, a que se seguiu outrinha e outrinha até seguirmos para o seu apartamento. No dia seguinte, partiríamos.

Acabei por adormecer sem que Rafa sentisse sono. Quando acordei, já depois do meio-dia, Rafa estava na sala, vestida no seu modo usual. Sorriu, disse bom djia e perguntou se eu queria tomar o café da manhã. “Só café, por favor.” Esquentou-o, perguntou se punha açúcar, e serviu-me uma xícara. Ficámos um pouco em silêncio, que aproveitou para pôr música num aparelho qualquer.

Um velho samba de Adoniran Barbosa, “Saudosa Maloca”, de que tínhamos falado na noite passada, entre tantos sambas e músicas de jazz. Depois dos primeiros versos, escuta-se, naquele modo único de Adoniran usar a língua portuguesa: “(…) Mas um dia, nem quero me lembrá / Veio os homis c’as ferramentas / O dono mandô derrubá / Peguemos tudo as nossas coisas / E fumos pro meio da rua / Apreciar a demolição / Que tristeza que eu sentia / Cada táuba que caía Doía no coração (…)” Gosto muito deste samba, acabei por dizer. Quando viu que tinha terminado de beber perguntou-me: “vamos para Curitiba?” Respondi-lhe que não podia, que pensei que fosse uma brincadeira, que a noite tinha sido luminosa, mas não podia viajar. Sorriu e disse: “Fica tranquilo! Eu sabia que você não iria a Curitiba.” Antes de sair, disse-me que gostava muito de mim e que sentia muita dor pela minha tristeza. Fiquei um pouco atónito. E Rafa, qual sibila, remata: “A expressão maior da tristeza não é a vida não ser como queríamos, mas nós não sermos como gostaríamos de ser, ainda que não se saiba o que seria ser o que gostaríamos e pensemos que seja semelhante a estar com fome e não ter o que comer ou estar derramado numa cama de hospital com uma doença terminal e querer viver. Talvez tenha de viajar até sua terra para compreender essa tristeza.”

Nunca mais a vi. Hoje, sempre que penso nela, e se tudo aquilo foi mesmo real, vejo-me muitas vezes a pensar que a minha tristeza deve ter que ver com o lugar de onde vim e não de mim. Rafa lembra-me isso e um poema do Leminsky, “Incenso fosse música”:

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

O que nos leva além, caro poeta, é a tristeza. E não é preciso pensarmos em algo tão filosófico como um desconhecido “eu”, ou na estafada metáfora de Nietzsche do ir além de nós mesmos.

Pensemos em algo muito mais concreto: o que foi que fez os portugueses inventarem o Brasil? E o que foi que trouxe os imigrantes da Europa longínqua, da Polónia e da Itália, para povoarem este país? A alegria é que não foi, de certeza.

11 Jun 2019

Poulenc: meio monge, meio mau rapaz

[dropcap]O[/dropcap] compositor Francis Jean Marcel Poulenc foi membro de um grupo notório de jovens compositores franceses que ficaram conhecidos como “Les Six”, formado por Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Darius Milhaud, e Germaine Tailleferre, que visava romper com as influências do formalismo germânico e do impressionismo francês, e empregar um estilo directo e simples na sua própria música. De longe o mais bem sucedido dos seis, Poulenc é autor de obras que abarcam a maior parte dos géneros musicais, incluindo canção, música de câmara, oratório, ópera, música de bailado e música orquestral.

Poulenc aprendeu piano com a sua mãe e começou a compor aos 7 anos de idade. Aos 15 anos começou a estudar com o pianista espanhol Ricardo Viñes, que encorajou a sua ambição de compositor e o apresentou a Erik Satie, Alfredo Casella, Georges Auric, entre outros. Em 1917, aos 18 anos de idade, a sua Rapsodie Nègre deu-lhe uma proeminência notável em Paris, como um dos compositores encorajados por Erik Satie e Jean Cocteau, que os designava como “Les Nouveaux Jeunes” (Os novos jovens). Apesar dos estudos com Ricardo Viñes, os seus conhecimentos técnicos eram escassos. Poulenc nunca frequentou o Conservatório, pelo que em 1920 decide estudar harmonia com Charles Koechlin, mas nunca estudou contraponto nem orquestração. Os seus conhecimentos de forma eram intuitivos.

A vida de Poulenc foi de constante luta interna. Tendo nascido e sido educado na religião católica, o compositor debatia-se com a conciliação dos seus desejos sexuais pouco ortodoxos à luz das suas convicções religiosas. Alguns autores consideram mesmo que Poulenc foi o primeiro compositor abertamente gay, embora Poulenc tenha mantido relações sentimentais e físicas com mulheres e tenha sido pai de uma filha, Marie-Ange. A sua primeira relação afectiva importante foi com o pintor Richard Chanlaire e, em 1926, Poulenc conhece o barítono Pierre Bernac, com o qual estabelece uma forte relação afectiva, e para quem compõe um grande número de melodias.

Alguns autores indicam que esta relação tinha carácter sexual, embora a correspondência entre os dois, já publicada, sugira fortemente que não. A partir de 1935 e até à sua morte, em 1963, acompanha Bernac ao piano em recitais de música francesa por todo o mundo. Pierre Bernac é considerado “a musa” de Poulenc.

A música de Poulenc, eclética e ao mesmo tempo pessoal, é essencialmente diatónica e melodiosa, embelezada com dissonâncias do século XX. Tem talento, elegância, profundidade de sentimento e um doce-amargo que são derivados da sua personalidade alegre e simultaneamente melancólica. Embora Poulenc se considerasse principalmente um compositor de música religiosa, de facto, o seu primeiro trabalho sacro só surgiria em 1936, após a sua reaproximação ao catolicismo, na sequência da morte acidental do seu grande amigo Pierre-Octave Ferroud, conjugada com uma peregrinação ao famoso Santuário de Rocamadour, em 1935.

O seu primeiro trabalho coral de grande escala, o Stabat Mater, surgiu apenas em 1950 e o Gloria, uma das suas obras mais célebres, em 1959, apenas quatro anos antes da sua morte. Ambos empregam as mesmas forças – coro, soprano solo e grande orquestra – e ambos desfrutaram de aclamação imediata e mantiveram-se, desde então, favoritos firmes junto dos artistas e do público.

O Gloria, FP 177 foi composto entre Maio e Dezembro de 1959, para soprano solista, grande orquestra e coro, por encomenda da Koussevitzky Music Foundation em honra dos seus recentemente falecidos fundadores, o maestro e contrabaixista Serge Koussevitzky, director musical da Orquestra Sinfónica de Boston entre 1924 e 1949, e a sua esposa Natalie. A obra foi estreada no dia 21 de Janeiro de 1961 em Boston, pela Orquestra Sinfónica de Boston dirigida por Charles Munch, sendo solista a soprano Adele Addison. A primeira gravação, para a EMI, foi também efectuada em 1961, dirigida por Georges Prêtre, sob a supervisão do compositor, com Rosana Carteri como solista. O sentido de humor de Poulenc e o amor pela vida brilham através de toda a música da obra, independentemente de quão solene o texto possa ser. O estilo muito distintivo de Poulenc assenta principalmente em fortes contrastes musicais. A harmonia move-se entre a dissonância Stravinskiana e luxuriantes e sensuais progressões de acordes; um vigoroso contraponto em frases bem articuladas e angulares alterna com uma escrita melódica lírica; a dinâmica passa frequentemente de um silencioso piano a um enfático forte, no espaço de um ou dois compassos. Poulenc usa habilmente esta palete musical colorida para expressar uma vasta gama de emoções, de serenidade lírica a um regozijo descarado.

 

Sugestão de audição da obra:
Francis Poulenc: Gloria, FP 177
Susan Gritton, soprano, The Choir of Trinity College Cambridge, Britten Sinfonia, Stephen Layton – Hyperion, 2008

11 Jun 2019

Ser português

[dropcap]H[/dropcap]oje, dia de Portugal gostaria de dar existência ao estar português de quem consegue englobar versus os globalizadores que, saídos das modernas escolas europeia usam apenas o pensar anglo-saxónico como forma de ser, fazendo-se como centro e só a si se vêem. Heraclito versus Demócrito.

A pena que trago em mim devo-a à demissão no momento em que obrigaram os professores a dar as aulas, sem lhes permitir que estas pudessem acontecer e por isso a formatação da juventude num formal pensamento concreto, sem a abstracção do espaço a possibilitar ao Ser realizar-se pela harmonia no estar. Isto ocorreu em Portugal, nas Escolas de formação dos professores nos finais dos anos 80 do último século do II milénio. Apenas interessava ensinar o saber fazer sem des-cobrir o lugar do estar. Por tudo isto deixei de leccionar, teriam esses estudantes hoje os seus quarenta e tantos anos e são dessa estirpe os actuais ocupantes dos lugares de chefia na maioria das instituições portuguesas. Educados com uma realidade Absoluta apenas para o mercado de trabalho, não lhes foi dado o espaço do espírito do estar fora da materialidade e assim, apenas pelo valor do material e suas relações fazem a existência. Para terem de provar e a maximizada glória de serem reconhecidos, foram-lhes entregues os lugares do poder, tratando os seus semelhantes como escravos, como eles o são.

Homens sem espírito

Não foi bonito como o actual cônsul tratou a idosa comunidade portuguesa de Macau.
Para revelar o afastamento e a pouca importância que dá aos antigos portugueses residentes em Macau, ou melhor, o desconhecimento que tem sobre essa população, o cônsul com os seus quarenta e muitos anos de idade, resolveu mostrar a sua modernidade e ao contrário do que sempre aconteceu para a recepção na Residência Consular no evento relativo ao 10 de Junho, apenas permite aí entrar quem de forma electrónica se inscrever. Justificação: esta é uma alteração que se prende com a necessidade de se adoptarem práticas mais condizentes com o século XXI.

Ora aqui está a razão da atitude [pouco simpática e educada] do cônsul português de Macau à saída do Clube Militar, de olhando para um grupo de portugueses aí reunidos, virar a cara sem sequer esboçar um qualquer sinal de cumprimento. Nós já vivemos no primeiro século do III milénio e o cônsul está ainda num espaço de uma continuidade do passado e por isso não nos viu, pois ocupamos distintos lugares de existência. Creio ser isso que distingue os antigos portugueses residentes de Macau do último século do II milénio, dos reinóis que, após a passagem da administração portuguesa para a chinesa, a Macau chegaram adejados e envergando aventais trazendo o fito de nos venderem o ópio da sua Absoluta civilização.

Chegaram para ensinar a saloíce de quem traz as verdades com que culturalmente foram educados e assim vestidos, vêm investidos na presunção da importância das suas autoridades estatutárias. Nesse bullying nos tratam como foram tratados e ensinados a observar pelo semelhante destroem tudo o que à volta deles é diferente, sem atenção ao outro pois educados pela competição sem espaço para o que os contradiz, não o entendem, logo não existe.

Os portugueses devem a existência ainda de Macau [para além dos maquistas] aos que em meados do século XX chegaram sobretudo como militares e aqui se quedaram casando e constituindo família, permitindo a continuidade da comunidade portuguesa. Devido à sua actual idade não fazem uso das novas tecnologias e assim, não puderam escolher os conteúdos da TDM, nem podem agora assistir na casa consular à festa do 10 de Junho, restrita à nova geração de reinóis para aqui enviada com o intuito de explicar o caos, com que lhes arquitectaram a sua existência, aos que reconhecem haver ordem no Universo. Com direitos individuais, pois crêem ser os últimos a sair da mesa do banquete, ainda não perceberam que se assim for têm autofágica-mente de se comer a si próprios, quando acabada a comida para o qual servirão os que à sua volta se encontram.

Choro mascarado de riso

Na máscara do desenho que envolve este palco do teatro da vida aqui narrado, revemos o atomista Demócrito e o seu riso mascarado de quântico Heraclito choro. A arte representa a mentira mais verdadeira que a própria verdade e por isso Pessoa nos dá a dor como fingida dor que é dor que deveras sente. Mas actualmente já não se sente, pois não se está, apenas se É; ser com uma autoridade estatutária, sem trazer a Natural e a do Saber, que vem subvertida com as Verdades apreendidas de Escola.

VER traz pelo espelho o reflectido ЯЭVЄR.

Com o Demócrito riso mascarado de Heraclito choro pretendemos demonstrar que, choramos por entender haver uma mão que desmancha para não nos apercebermos do caminho, já sem o movimento de representação para construir a realidade, mas temerariamente rimos dos retratos com que nos vamos agrilhoando como Ser Humano; ainda Vivo?

Se esse movimento expansivo nas faces, rir de contente não me é permitido pois só um tolo se ri ao deitar fora as jóias herdadas dos seus antepassados, contraindo a face percorro as rugas do tempo que leva o choro a ver as memórias a perderem-se. Por falta de atenção, ao caminhar construímos as imagens mentais alicerçadas em retratos, fragmentos sem representação que tomamos como Verdades. E por essas jóias perdidas recebemos joio. A palha com que enchemos o nosso templo.

Em realidades ligadas ao formal de uma cartesiana ciência, não se realiza o momento de mutação do Presente, yin complemento yang, movimento reflectido que respira na harmonia do Universo, abrangência do Espaço por onde Espinosa [a ser pisado] nos trouxe as emoções do caminhar e Einstein complementou com os três módulos da relatividade das mutações.
Esgravatamos cientificamente até ao nano, quando as proporções estão desde a Antiguidade representadas na geometria sagrada das Pirâmides.

Caminhar para abrir à mente as portas do espelho pela reflexão e não pela projecção e por isso o mar para Portugal. Há necessidade de rever o conceito de civilização na Ocidental mentalidade, que velha niilista não deixa passar à idade do idoso. Vive actualmente centrada em si mesma como adulta ilha e não consegue reflectir-se continental-mente pelo outro.

Vemos os que trabalham por Portugal a serem dizimados e governados pelos que comprados pelo joio pretendem que este país entre pelo multi-nacional e não pelo Universo da idade, de quem pelas diferentes civilizações se encontra na gramática do sagrado estar divino. E daí o riso de quem ao chorar pela tragédia encara a ironia da comédia na figura que está a representar pelo tanto rir que o choro lhe provoca, e realiza o que resta da memória pelos restos dos alimentos nas bordas da boca, confins da História, vislumbradas pelas emoções do viver: as linhas com que desenhamos o auto-retrato.

Pela vibração do som falado, explicado na realidade da acção, desapertamos o nó górdio.

10 Jun 2019

E o que é a normalidade?

[dropcap]P[/dropcap]erceber no nosso tempo onde começa e acaba o território da normalidade é como separar o vinho da água num mesmo copo. Nem sempre foi assim. O. Niccoli relembrou que, em finais do quattrocento e no século seguinte, a palavra “segno” – não confundir com signo, nas suas variadíssimas acepções – traduzia a ideia de tudo aquilo que escapava ao “curso natural das coisas”. O “segno” definia, pois, a fronteira entre o que se impunha como normalidade e o vasto reino das coisas desavindas e seguramente condenáveis.

O diabo, as metamorfoses inexplicáveis, as excrescências da natureza, uma parte significativa das práticas sexuais, os textos (hoje ditos) seculares, os monstros que habitariam a periferia do planeta, os eventos não catalogáveis, os animais fabulosos que respiravam nos relatos de Preste João ou no imaginário trágico-marítimo integravam, cada um a seu modo, esse negro e nefasto mundo do “segno”.

No entanto, para que o “segno” pudesse tornar-se reconhecível, era necessária a existência de uma ordem bem definida que permitisse distinguir o seu mundo de trevas do mundo caracterizado como normal. Sem esse crivo, as bruxarias, os textos proféticos considerados anómalos, as apostasias, os símbolos dissociados da tradição, as heresias e outros “horrores” jamais teriam sido perseguidos.

Curiosamente, o mundo utópico e o mundo ideológico, que irromperam um e outro – com experiências e naturezas diversas – no século XIX, acabaram por trazer consigo, nas geografias do ocidente cristão, a antiga marca das civilizações escatológicas. Só que, em vez de paraíso, convocaram a ideia de um igualitarismo terreno, do mesmo modo que a natureza racional do dogma substituiu o “Livro” divino e a luta “por um mundo melhor” passou a encarnar os exigentes preceitos da antiga fé.

Nesta nova geometria, o “segno” adquiriu outras formas e soube adequar-se ao modo estanque com que a modernidade se passou a organizar, na medida em que as mais variadas esferas de actividade se autonomizaram a partir do final do século XVIII (fosse a esfera jurídica, científica, estética, mediática, ética, constitucional, social, clínica, etc. etc.). Em todas estas esferas, a racionalidade moderna instituiu contrastes férreos entre a normalidade e a não-normalidade.

Pode mesmo dizer-se que a antiga tradição do “segno” acabou por persistir, mas agora tornando-se numa peça de polémica e arremesso em pleno espaço público.

Em cada uma das áreas da sociabilidade moderna, os contrários passaram a digladiar-se com alguma violência, tentando definir do outro lado o campo do “segno” (foi assim nos sistemas políticos, nas modalidades jurídicas, na sucessão vertiginosa de vanguardas artísticas, no debate científico, etc., etc.). Esta sistemática metodologia de oposições trouxe o “segno” para dentro da vida social, libertando-o da sua génese divina, cujas finalidades escapariam à compreensão humana (era esta a explicação de Santo Agostinho para a existência de monstros).

Deste modo, quer no mundo cristão pré-moderno, quer no mundo (cristão) moderno, ainda que com matizes diversas, a separação entre a ordem do “segno” e a ordem do “não-segno” foi preservada. Uma tal continuidade impediu a banalização de valores e de apologias entre visões que sempre se haviam digladiado. Ora o que mudou abruptamente no Ocidente, no final do século XX e no início do século XXI, foi precisamente este aspecto.

A grande mudança dos últimos trinta e poucos anos ficou a dever-se a dois factos: por um lado, a diluição e perda de eficácia (e até de sentido) das grandes referências pesadas e doutrinais de carácter ideológico e similares (o fenómeno atravessou domínios muito distintos e não se circunscreveu apenas ao esboroar da guerra-fria) e, por outro lado, a entrada em cena de uma globalização hipertecnológica associada a um nova morfologia de espaço público aberto, livre e não regulável (ou de difícil regulação).

A nossa era, cada vez mais policentrada, tem-se vindo a revelar através de um apagar gradual dessa fronteira que sempre havia distinguido o “segno” do “não-segno”. Para o bem ou para o mal, uma relativização galopante invadiu todos os debates contemporâneos. Mais: a separação entre “segno” e “não-segno” não só adquiriu novos sentidos como deixou de ser uma questão (ou um problema), da mesma maneira que a superação da divisão clássica entre real e ficcional começou a ser baptizada sob o desígnio da hiper-realidade.

Os efeitos desta transição meteórica estão ainda por determinar. Sem uma distância face ao presente é difícil avaliá-los. Todavia há aspectos que se destacam a olhos vistos, tais como a banalização do mal, as várias faces do hiperterrorismo, as manipulações genéticas ou as pesquisas que nos estão a conduzir ao pós-humano.

A correctness tem sido uma das fugas para a frente que as nossas sociedades inventaram para suprir os muitos vazios de sentido em que vamos vivendo. Fora da arena da correcção, tudo, ou quase tudo parece sair da sua órbita: veja-se o mandato Trump, veja-se a linguagem de Bolsonaro, vejam-se os impactos do Brexit, veja-se a vacuidade doutrinal dos nacionalismos europeus, veja-se o modo como a questão climática é globalmente negligenciada (seremos dez mil milhões de pessoas no final do presente século). Fernando Pessoa ou, se se preferir, Ricardo Reis, parece ter compreendido tudo isto muito antes: “Basta-me que me baste, e o resto gire/ Na órbita prevista, em que até os deuses/ Giram, sois centros servos/ De um movimento externo.”


Niccoli, Ottavia. Prophecy and People in Renaissance Italy. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1990, p. 31. Tít. orig. Profeti e Popolo nell’Italia del Renascimento. Roma; Bari: GIUS, Laterza & Figli SPA, 1987.
Pessoa, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.

6 Jun 2019

Eu, os polacos e a Mona Lisa

[dropcap]É[/dropcap] a terceira vez que mando um aluno ler A Casa Tomada, de Julio Cortázar, e que depois me surpreendo a dar uma interpretação do conto diferente em relação à que havia desenvolvido anteriormente. Isto acontece por não ser muito sistematizado e, em vez de fichas, ter as notas de leitura espalhadas por cadernos, os quais depois dá um trabalhão localizar.

Por isso, em vez de repetir as fórmulas, abordo de novo o texto, medindo-lhe o pulso.
Agrada-me o que me surgiu agora: os dois irmãos agem não como proprietários, mas como locatários das suas próprias memórias. E essa relação heterónoma com a vida é-lhes de tal forma confortável que, em vendo-se expulsos por invasores invisíveis e achando-se fora do portão da moradia, têm a delicadeza de fechar o portão para prevenir o risco dos novos proprietários serem assaltados. Passou simplesmente o tempo daquelas memórias serem suas. Contra o assombro dos leitores, eles não sofrem com o que lhes aconteceu porque talvez dentro de casa apenas estivessem em êxodo.

A nível macro, evidentemente que Cortázar fala do colonialismo das mentes, numa altura em que a Argentina vivia fascinada pelo imperialismo americano.

Também se pode ler o conto – e já o trabalhei com alunos, nesse sentido – como metáfora da situação moçambicana, representando os dois irmãos a alienada elite política moçambicana, que entrega o território e as matérias-primas do país ao saque alheio (e, porque não-dito, invisível), em nome do brando esquecimento que traz a alguns a espuma das coisas materiais.

A literatura tem esta capacidade camaleónica de, enquanto forma singular, poder ser lida por lentes universais.

Teria curiosidade em saber como Gombrowicz leu este conto, o polaco que viveu 23 anos exilado na Argentina e que facilmente aqui encontraria ressonâncias para o seu país invadido pelos soviéticos.

Vem-me esta deriva na banheira, onde me entretenho a ler um livro divertido que o insuspeito Edgar Pera dedicou a Hollywood, e onde resgato a deliciosa história do roubo do cadáver de Chaplin por dois polacos famélicos que depois não conseguiram obter nenhum resgate, porque a viúva foi tesa, e além de ter dito que o marido haveria de divertir-se com a situação propôs, “querem ficar com o cadáver, fiquem!”. Depois dos ladrões terem baixado de um milhão e picos para os cem mil euros, a viúva aceitou, no fito de lhes estender uma armadilha. Apanhados na ratoeira, foram perdoados e lá confessaram onde se encontrava o cadáver, enterrado num campo de milho. Oona O’Neill, a viúva, achou tão bonito o local que teve pena de ter de trasladar dali o cadáver, mas o proprietário foi intransigente. Contudo, até este, passado o tumulto, assinalou o ocorrido com uma tabuleta, onde se lê: “Aqui repousou Charlie Chaplin, Brevemente!”.

Outro roubo caricato, sendo história menos conhecida, é a de um pobre emigrante em Paris que tomou como objecto de furto a Mona Lisa. Foi em Agosto de 1911. O quadro era tão pouco visitado, no Louvre, que o ladrão teve tempo para o tirar da parede e enfiá-lo num saco a tiracolo, saindo do museu pela porta da frente. E depois enviou a notificação para o resgate. Só que esse roubo, nesse mesmo país que, até aí, não ligava peva ao retrato de Leonardo, desencadeou uma histeria nacionalista, no agitado clima político-social da época, já prenhe do que se transpiraria na I Guerra Mundial; o roubo motivaria manifestações concorridíssimas, vários quadros de teatro de revista, um sem número de capas e dossiers em revistas e jornais, e de repente, aquilo que era do domínio dos especialistas tornou-se público. Inclusive, para recuperar a perda, as actrizes de variedades mais conhecidas do momento e as cantoras de ópera posaram de Mona Lisa para as revistas ilustradas, penteadas como ela e com roupas mais ou menos similares. E o pobre do ladrão, que guardava o quadro debaixo da cama e viu a escala assimétrica que as coisas adquiriam, compreendeu que seria linchado se fosse apanhado e então reverteu a coisa e empreendeu num acto altruísta: devolveu o quadro, três anos depois.

E assim a Mona Lisa ganhou um estatuto que não tinha.

Estava até agora mesmo absolutamente convencido, e por isso contei a história, que o roubo tinha sido da autoria de um polaco. Armei-me de escrúpulos e fui verificar: afinal não, foi vilania de italiano. Mas tenho fé de que com origem polaca, não há outra hipótese.

Voltemos aos polacos, que estão na minha vida desde que os cinemas de Lisboa começaram a passar os filmes de Wadja e, sobretudo, de Walerian Borowczyk, cujos Contos Imorais e O Monstro, me deram a volta à cabeça. Mais tarde veio o maldito Poborsky, aviar Portugal, num campeonato da Europa, e uma miúda que eu desejava muito cortou-me as vazas, sentenciando que, se eu havia trocado um encontro amoroso com ela pelas vistas desse jogo (de má memória), nenhum outro encontro amoroso haveria de acontecer. E não aconteceu. Juro-vos: gostava muito mais dela que de Poborsky, mesmo quando se tornou a alegria dos benfiquistas.

Pela mesma altura, partilhei uma casa com um escritor surrealista, o Virgílio Martinho, e durante pelo menos um mês alimentámos uma rábula com polacos como protagonistas, uma louca fantasia sobre um polaco que tinha um mapa do tesouro no sovaco esquerdo. E a pedal das cervejas imaginávamos o que lhe acontecia numa pensão de menina no Cais do Sodré.

E, bem aviados, na cervejaria, líamos em voz alta o Testament, de Dominique le Roux, um longo e extraordinário livro-entrevista com Gombrowicz, que me levaria à leitura sistematizada da sua obra.

Depois chegaram os restantes poetas, sobretudo o Czeslaw Milosz, o Zbigniew Herbert, o Tadeusz Rózewicz e o Adam Zagajewski – grandes! O Milosz, uma vez escreveu este verso: «Que longe está a voz humana da mudez dos poemas!». É o que vos digo, os polacos, na poesia, são foda!

6 Jun 2019

Trapezista temporária

O MEU CORPO
Este é o meu corpo,
mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.
Gisela Casimiro in Erosão (Urutau, 2018)

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando escrevi este poema, O meu corpo, estava muito longe de imaginar que um dia estaria em palco, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, pendurada numa barra, qual Cristo crucificado. Este poema vem de longe, de um lugar de memória permanente.

Agora que o espectáculo terminou posso, aos poucos, começar a descer do trapézio e a olhá-lo, como fazia em palco mas, agora, sem deixar de fazer a inevitável analogia ao meu percurso de vida. Abril marca que foi há quatro anos que me submeti a uma cirurgia bariátrica, um sleeve gástrico, em que nos retiram 80% do estômago, que depois volta a crescer mas nunca a retomar o seu tamanho original. Apesar de tornar-se mais sensível, também passa do modo avestruz para algo mais evoluído e inteligente: tudo o que não pertence ali, não fica muito tempo. Fossem os nossos cérebros e corações tão capazes de reagir com a mesma rapidez e parcialidade. Talvez seja uma questão de sobrevivência, talvez o estômago seja mais difícil de enganar ou mais eficiente em matéria de autoprotecção. Talvez o amor-próprio seja um super poder que é despoletado por situações extremas. Outro poema meu, 2015, confessa: “O que perdi em estômago, ganhei em coração.” Que é como quem diz, no caminho para voltar a reconhecer-me, ou talvez para conhecer-me de uma vez por todas, aprendi a respeitar o outro e a colocar-me no lugar dele, e apenas posso esperar que tantas provações me tenham tornado um grama melhor que seja enquanto pessoa.

Há a versão de Hamburgo, em que os meus papéis são desempenhados por uma moça robusta e loira. Como ela, levo o cálice para o palco. Como ela, carrego uma bandeira branca. Faço piadas com outra colega, agora uma nova amiga, cabelo escuro e pele alva, cuja antecessora era, também, loira. Com ela partilho o trapézio, momento em que a cor invade o palco por momentos, pois praticamente tudo é branco neste cenário. Não pergunto a quem me escolheu porque é que o fez, mas sinto essa graça e esse peso, mais do que o meu, a comover-me. Há muitos contrastes, uma capa vermelha e uma azul. Uma criança-esqueleto e um autocarro que invade o palco em altura de terrível e lamentável tragédia na Madeira e da agora menos relevante, face a isso, falta de combustível. Há as línguas portuguesa, italiana, francesa, alemã e há o silêncio e a dedicatória da estreia a Notre Dame, onde infelizmente nunca fui. Há um entendimento, harmonia e caos, orquestra e coro, técnicos e produtores. Há uma árvore, já destinada ao abate, e os seus ramos cortados no momento. Há quem lhe leve flores, à árvore, num dos mais bonitos quadros vivos que já vi. As folhas atenuam os cheiros dos químicos usados neste laboratório improvisado, pois que nada foi deixado ao acaso, desde o amoníaco à electrólise. Há uma pedra que se racha, e que outro dia ficou com um formato de coração partido. Há aqui tanto que me comove que anda ali estou, incapaz de falar noutro tempo que não o presente, ou de ouvir outra música que não a que me tem acompanhado nos últimos meses mas sobretudo nas últimas semanas. Há uma obra inspirada na religião que é a minha, e que é imperfeita como eu, mas da qual não consigo desvincular-me, por acreditar demasiado em algo que é como eu, e maior que eu, tal como eu também sou capaz de ser, sobretudo quando me faço mais e mais pequena e me lembro de que servir é o mais importante. Contar histórias seria inútil se não servisse ninguém. Uma religião é obsoleta se não se alicerçar no amor, e o amor não tem fronteiras, ou passa a ser outra coisa.

Nos corredores, nos bastidores, cronometra-se o tempo que cada um resiste e fazem-se ajustes, enquanto se abusa do pó de magnésio nas mãos, para horror da produção, e se observa os colegas, um de cada vez, alguns dedicados inteiramente a este momento e outros com mais funções. Mas quase toda a gente gostaria de fazer também esta parte. Há quem venha precavido com ligaduras ou pensos, há quem descaia a cabeça para a esquerda e quem o faça para a direita.

Há homens e mulheres, há outra criança. A mim, observam e parabenizam muitas vezes: “És quem aguenta mais tempo”, ou “Tens um ar tão natural”, ou “A mulher do trapézio”. Rio e respondo que a minha vida me preparou para este momento; que não sei como isto aconteceu, e é verdade; que a minha hérnia inguinal, operada em 2017, e que ultimamente tem voltado a chatear-me, não acha muita graça. No dia da estreia, também o meu estômago não parece querer colaborar, e passo horas agoniada. Há quem vá correr uma ou duas vezes por dia durante os ensaios mas que não consiga deixar de pensar em bolos, mesmo se traz uma caixa gigante com cenouras cruas para ir petiscando. Há quem se conheça pela primeira vez e quem já se tenha cruzado neste e noutros palcos. Respirações conscientes e profundas, yoga aproveitando que existe um tapete de luta no cenário, alongamentos e uma panóplia de pequenos exercícios e rituais de preparação. Há ainda quem leia ou durma e quem não consiga estar calado ou afastar-se do telemóvel por muito tempo, ou de um cigarro. No Capítulo XVI, Crucificação, podemos ler: “O peso do corpo dos condenados à crucificação provocava a morte por asfixia. (…) O condenado mantinha-se plenamente consciente até ao momento da morte.” A Paixão segundo São Mateus, de Bach, dirigida por Romeo Castellucci, inclui, ainda, no libreto, o peso, nome, idade e altura dos figurantes a quem foi pedido que suportassem o peso do seu corpo o máximo de tempo que conseguissem. Nenhum de nós, figurantes, fala em palco, não fosse esta uma ópera, a primeira a que assisti na vida, e da qual tive ainda a honra de fazer parte. Falam os nossos gestos, os nossos olhares e as nossas pálpebras fechadas. Falam os braços que tremem por vezes ou as mãos que ajustamos. Falam o baloiçar dos nossos corpos suspensos, e a posição das nossas pernas. Falam os nossos pensamentos, ou o que quer que nos ajude a permanecer por cá. Há quem deteste que lhe perguntem a idade. Eu detesto que me perguntem ou tentem adivinhar o peso, mesmo se na verdade me dão menos peso (e idade, vá, afinal sou negra) do que o que tenho. Eu já tive orgulho do meu peso e já tive vergonha do meu peso. Mas agora sei que consigo suportá-lo, seja ele qual for, e até vê-lo exposto assim, impresso: os 70 kg que tinha e que me ficavam tão bem mas ocultavam o peso equivalente a uma pessoa em escuridão, peso esse que foi passando tão para fora de mim que deixei de poder ignorá-lo, ao chegar aos 133 kg certa vez.

Há o Joel, que sobreviveu a uma hipotermia no mar, perdido que esteve durante cinco horas. Tinha ido surfar. Há o Carlos, que se viu de pernas presas debaixo de um tractor; consciente durante todo o tempo do acidente, que forçou a amputação de ambas, agora usa próteses. Há a entrada leve e cómica do Joel nos agradecimentos e o sorriso e as brincadeiras constantes do Carlos. O nosso peso, interior ou exterior, parece muito pouco, perante a coragem e a alegria de ambos. O amor à vida de ambos, penso, numa semana em que ouvi de alguém próximo que queria muito morrer.

Diz o libreto: 78kg – Gisela Casimiro, 34 anos, 172 cm. Trapezista temporária no palco, permanente fora dele. Ainda com muitos pesos para deixar cair. Ainda tendo de me lembrar de respirar, ao fim de todos estes anos. Olá, eu sou a Gisela. Muito gosto em conhecer-vos. Talvez possamos conversar quando eu recuperar os sentidos, o equilíbrio e a voz.

6 Jun 2019

Clube dos apreciadores de nuvens

[dropcap]A[/dropcap]ssim, amigos: mais um dia em que escrevo, buscando pequenas redenções ou dragões do meu tamanho que possa combater. Mas não está fácil. A temperatura do ar ronda os 34ºC, o que para este escriba é o primeiro passo para o transformar num serial killer de renome; e como se isso não bastasse – e nunca basta -, um olhar rápido pelos jornais confirma que o céu límpido que vejo daqui alberga coisas bem mais negras: “Enfermeiro condenado a quatro anos de prisão por abusar de menor”, “Homem mata filho em Pombal com arma branca”, textos sobre corrupção sortida, calamidades a la carte, casos de abuso de poder e, claro, a continuação sem fim de todos os conflitos bélicos que sempre foram e serão irresolúveis.

Dirá o leitor: “Está certo. Mas há maneiras de escapar à humanidade, a começar por aceitar tudo o que é humanidade”. O leitor tem razão e foi isso que fiz. Daí que me tenha lembrado de uma notícia de que fui informado há algum tempo e que na altura achei improvável. Fui à procura e eis a boa nova: existe. É verdade. É fulcral. É útil. É um descanso, poesia, suspiro de alívio. Trata-se de um clube dedicado exclusivamente à contemplação de nuvens. É, não é? É.

Tratar as coisas pelos nomes: a Cloud Appreciation Society (cloudappreciationsociety.org) tem origem na Inglaterra mas tem membros de todo o mundo. O seu objectivo é auto-explicativo: ver nuvens, distingui-las, falar e escrever sobre elas. Assim de repente não consigo lembrar-me de nada que junte tão perfeitamente o espírito dos Românticos do século XIX com a tecnologia dos nossos dias. É como se Keats estivesse online.

Vale a pena passear pelo seu manifesto. Logo na alínea inicial está a declaração de intenções: “Acreditamos que as nuvens são injustamente mal tratadas e que a vida seria muitíssimo mais pobre sem elas”. Mas há mais: «Procuramos lembrar às pessoas que as nuvens são expressões do estado de espírito da atmosfera e podem ser lidas da mesma forma que o rosto de alguém”. E num toque mais realista: “ Acreditamos que as nuvens são para sonhadores e a sua contemplação faz bem à alma. Na verdade, todos os que interpretarem as formas que observam pouparão muito dinheiro em contas de psicanalista” [a tradução é minha].

Acho isto lindo, francamente. É verdade que, na melhor tradição grouchomarxista, nunca poderia juntar-me em boa consciência a este clube, sobretudo se me aceitassem. Estou demasiado contaminado pelo cepticismo para isso. A minha ideia de andar nas nuvens tem mais a ver com o cair delas, como Machado de Assis: “Antes cair das nuvens do que de um terceiro andar”. Só que esta actividade inútil e contemplativa encanta-me. É a vitória do otium, a actividade mais nobre que na minha opinião um ser humano pode almejar. E quem a procura nestes dias tem para mim estatuto de herói.

Por isso, amigos, não hesitem. Se acharem por bem inscrevam-se neste clube. Eu, de certa forma, sempre lá estive: as nuvens, pela sua beleza e efemeridade, podem ser comparadas com a vida, uma vida que corra bem, o mais belo dos memento mori. E é dessa forma que não me importo de andar com a cabeça nas nuvens.

5 Jun 2019

Nuvens passageiras ou nem por isso

Egas Moniz, Lisboa, 14 Maio

 

[dropcap]C[/dropcap]onheço quem leve a velha da gadanha para o ginásio. Uns, mais leitores que outros, levam a morte pela mão para os lugares da vida, da sua vida: a mesa, o miradouro, a tela, o desenho de humor, um jogo de futebol. Não a vencerão, sabem disso, ainda assim dão-lhe pancadas nas costas, empurrões cúmplices com o ombro, contam-lhe anedotas, o que muito a irrita por causa do riso comum, ela que padece de humores frios, dá-se bem no cemitério solene, dos que soerguem a tristeza em mármore. Quando a bruta aparece no hospital, atazanando, pedem-lhe por favor que vá fumar enquanto decorre a neurocirurgia. Ela obedece, distraindo-se, por instantes, do xadrez. Levantemos os braços e celebremos. Esta partida fica empatada.

Santos-o-velho, Lisboa, 20 Maio

Estava para ali no velório, a imaginar o que diria de cada um dos que entravam e saíam, o Manuel de Brito (1950-2019), praticante da aguda arte do sarcasmo e da má-língua. Aliás, há uns anos que o fazia, anonimamente e na versão moderada de comentário humorístico, nas páginas do Correio da Manhã. Interessar-me-á sempre mais a sua faceta de editor na Contexto, onde criou catálogo importante, e desigual por experimentar, mas que revelou Al Berto, os volumes fundamentais de Rubem Fonseca ou de Albert Cohen – no caso, com a sua cúmplice, Joana Morais Varela, na tradução –, além de, isto na ficção nacional, autores como Fernanda Botelho, Nuno Júdice, ou mais «fáceis», que nem a Rita Ferro. Como tantos, o impacto deste seu legado está por avaliar. Recordo conversas quase sempre agrestes, resgatadas apenas pelo riso, e conservarei a mais recente que me deu a ver outro rosto em homem intransigente. Saravá, Manuel.

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 21 Maio

Ainda antes de partirmos, e o plural faz-se com o mano António [de Castro Caeiro], aconteceu na Horta Seca um daqueles momentos que (quase) me fazem acreditar estarmos vivos: alguém ajuda um infante a escalar o português escolar de hoje, enquanto uns esculpem projecto de sombra e luz, e a Isabel [Amaral] tenta deslindar o quebra-cabeças que acaba sendo Feira do Livro. Cada um para seu lado, acreditando. Corremos depois para o cozido à portuguesa, regado de mil maneiras distintas, celebrando logo à mesa a dita poesia. Acontece bastas vezes, para desatino dos cultores do fel. E voltámos a apressar-nos para o escuro do palco. O [José] Anjos tocou enquanto o mano-anfitrião, Henrique [Manuel Bento Fialho], ia entrando nas profundezas de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça». Leitura crítica já a tinha feito antes, no inestimável «Antologia do Esquecimento», classificando-o até, em fórmula que desgosto, como «um dos mais estimulantes livros de poesia portuguesa contemporânea dos últimos 20 anos», mas agora era texto que se soltava como os aromas do jardim da Céu e do Carlos [Querido].

«Creio numa poesia que ande nua sem sentir vergonha por isso, que mergulhe nas águas do Lete para nadar contra a corrente. Poesia que… se não “recupera o ímpeto / do espanto”, pelo menos revigora-se nesse sentido. Que é feito do espanto, da inocência com que olhávamos para as coisas descobrindo-lhes respiração própria, única, singular? Os mortos revelam-nos a condição, a fotografia aponta-nos o passado à cabeça, mas à poesia pode convir o ânimo de uma vida que não se resuma a contar pelos dedos quantos anos passaram. Entendendo a queda, o poeta mergulha a pique no delírio inquieto das imagens, remove do corpo impurezas e aceita o mistério, nele já não opera a lógica do pecado, porque ao mastigar os frutos não sente vergonha, desnuda-se, oferece-se tal qual é, ri, chora, recorda, faz emergir nas palavras o tempo recalcado, desperta a morte do sono silencioso do esquecimento. Há quem nisto veja desespero, arte fundida pela técnica, logro, mas eu vejo fome de viver, vontade de provar todos os frutos proibidos e fazer valer o tempo da espera, vejo essa tão aterradora circunstância de ser-se livre, já não como anjo, ainda não como besta, simplesmente como homem.»

Sobraram simplesmente leituras, por vezes emocionantes (disponíveis na rede apesar das nossas vontades, mas que fazer?), do próprio poeta e convidados. E depois os comentários de uma sala cheia, a fazer acreditar que se pode despertar do sono silencioso do esquecimento.

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Partilhamos a banca, na Feira do Livro, com a Livros no Meio. Ora muito por causa da poesia, mas também por se configurar como metáfora (voadora) da relação de Portugal com a China, ou o Oriente e a tradição, de modo mais genérico, escolhemos a nuvem. Pedimos ao Rui [Rasquinho], grande mestre no assunto, dos muitos lados dos vários continentes, para lhe costurar vestimenta. Fê-lo em tons justos de azul e branco (Propomos exemplar algures na página).

Horta Seca, Lisboa, 27 Maio

Parêntesis para questão curiosa que merecia mais tempo. Edições da abysmo surgiram à venda nas «lojas» de saldos que infestam as estações (de Metro e outras). Não sabendo quem autorizou ou de onde são oriundos esses fundos (de armazém, mas dilectos), questionámos a empresa que as revende, sem sombra de culpa. Uma primeira resposta, tintada pela mentira («foi só este exemplar e veio num lote», tendo nós conhecimento de muitos outros títulos), afirma ter «adquirido junto dos seus parceiros». E «prontos», mais não seria preciso. Mas vai ser, que quero saber que parceiros são esses, se foram roubados da distribuidora ou de uma qualquer outra proveniência, suspeita à partida nestas quantidades. Estes saldos em permanência, até podem surgir atraentes para o leitor comum, mas, a prazo, envenenam o trabalho do editor. O preço não pode ser o essencial neste ofício.

Feira do Livro, Lisboa, 29 Maio

A organizadora-mor inventou um desvio para quem se inscreveu por primeira vez. Somos o pavilhão E15 (devia-nos ter calhado o E13…), mesmo na fronteira dos corredores que sobem e descem. Achámos, por isso, que faria sentido acrescentar o logo abysmo desenhado pelo André [da Loba] e acrescentámo-lo a uma das paredes laterais. Nem quero saber da exacta razão, não ficou onde devia por interpretação das orientações, dos ventos, do baixo e do cima. Pousou em lugar incómodo uma gralha chamada dobradiça. Deram-se mais detalhes desgraçados, quando queríamos a perfeição e a leveza da nuvem. Razão tinha Li Bai: «Dormindo, as brancas nuvens são teu leito. / Se acordas, brancas nuvens são teu lar.»

Desconsolado, consigo puxar o renitente Carlos [Morais José] para um dos lugares que definem a cidade. Podia ser bordel, mas falo de alfarrábio. O Bernardo [Trindade] mostrou, com as mãos a subir a descer das estantes, que os melhores navios vão sendo de papel (pergaminho, por excepção). Houve ainda mais delicatessen, das que vencem tempo e a geografia.

5 Jun 2019

A primeira expedição musical à psicodélica

[dropcap]O[/dropcap] compositor francês Louis-Hector Berlioz, cujos 150 anos da morte se assinalam este ano, foi uma figura paradigmática do Romantismo, pois a sua vida novelesca e apaixonada e a sua ânsia de independência reflectem-se numa música ousada que não admite regras nem convenções e que se destaca, sobretudo, pela importância dada ao timbre orquestral e à inspiração extramusical e literária. Em conjunto com o compositor húngaro Franz Liszt, Berlioz foi um dos principais impulsionadores da chamada música programática.

Filho de um reputado médico de Grenoble, foi precisamente o seu pai quem lhe transmitiu o amor pela música. A seu conselho, o jovem Hector aprendeu a tocar flauta e guitarra e a compor pequenas peças para diferentes conjuntos. No entanto, não era a música a carreira a que o destinava o seu progenitor; e assim, em 1821 Berlioz mudou-se para Paris para seguir os estudos de medicina na universidade. Não os concluiu; fascinado pelas óperas e concertos que podiam escutar-se na capital, o futuro músico depressa abandonou a carreira médica para seguir a musical, contra a vontade familiar. Gluck, primeiro, e Carl Maria von Weber e Beethoven, depois, converteram-se nos seus modelos musicais mais admirados, enquanto Shakespeare e Goethe o eram no campo literário.

Admitido no Conservatório de Paris em 1825, foi discípulo de Jean François Lesneur e Anton Reicha e conseguiu, após várias tentativas fracassadas, ganhar o prestigiado “Prix de Rome”, que essa instituição concedia anualmente. O ano de 1830 viu nascer a obra que o consagrou como um dos compositores mais originais do seu tempo: a Symphonie fantastique, cujo subtítulo é Épisode de la vie d’un artiste (Episódio da vida de um artista). Página de inspiração autobiográfica, fruto da sua paixão não correspondida pela actriz irlandesa Harriet Smithson, nela se encontram todos os traços do estilo de Berlioz, desde o seu magistral conhecimento da orquestra à sua predilecção pelos extremos, a superação da forma sinfónica tradicional e a subordinação a uma ideia extramusical.

A orquestra, sobretudo, converte-se na grande protagonista da obra: uma orquestra de uma riqueza extrema, cheia tanto de surpreendentes achados tímbricos como de combinações sonoras inovadoras, que em trabalhos posteriores o músico amplificou e refinou ainda mais, e que encontraram no seu Tratado de Instrumentação e Orquestração a sua mais bem sucedida composição teórica. Foi tal o êxito conseguido pela Sinfonia fantástica (estreada apenas seis anos depois da Nona Sinfonia de Beethoven) que imediatamente se considerou o seu autor à mesma altura que Beethoven, comparação exagerada mas que ilustra a perfeição e a originalidade da proposta de Berlioz, numa época em que muitas das inovações do músico de Bona ainda não haviam sido assimiladas pelo público e pela crítica.

A Sinfonia fantástica, Episódio da vida de um artista, em cinco partes, Op. 14, a primeira sinfonia de Hector Berlioz, foi composta no ano de 1830 e apresentada no dia 5 de Dezembro desse ano no Conservatório de Paris, sob a batuta do maestro François-Antoine Habeneck. Esta apresentação difere da versão que conhecemos hoje, uma vez que Berlioz reviu o trabalho durante anos e só veio a republicá-lo em 1845. A Sinfonia foi dedicada ao Imperador de Todas as Rússias, o Czar Nicolau l.

É o trabalho mais conhecido de Berlioz e foi criado por inspiração da sua paixão pela actriz irlandesa Harriet Smithson, após vê-la representar o papel de Ofélia na peça Hamlet, de Shakespeare, em 1827, e também pela leitura de Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. Refira-se que Berlioz, após muita insistência, viria a casar com a actriz em 1833. A obra é um marco na música francesa, pois inaugura o sinfonismo na França. Berlioz quebra a estrutura formal da sinfonia, formada por quatro andamentos, quando a apresenta com um andamento a mais. Redigiu um roteiro, publicado em 1831, em que indicava o que o protagonista imaginava em cada andamento da obra. Para o autor, o artista, sob efeito do ópio, tem alucinações e estas são traduzidas em cinco situações indicadas através dos cinco andamentos, intitulados Devaneios e Paixões, Um Baile, Cena Campestre, Marcha para o Cadafalso e Sonho de uma Noite de Sabá.

O eminente compositor e maestro americano Leonard Bernstein, já falecido, descreveu a sinfonia como a primeira expedição musical à psicodélica devido à sua natureza alucinatória e sonhadora, e porque a história sugere que Berlioz compôs pelo menos uma parte da obra sob a influência de ópio.

Alguns dias antes da estreia da Sinfonia fantástica, surgiu na imprensa um texto do próprio Berlioz, descrevendo o ‘plano do drama musical’ que também estaria impresso no programa de concerto: um jovem músico de grande sensibilidade e cheio de emoção, profundamente desesperado por causa de um amor não retribuído, envenenou-se com ópio. A droga não é forte o suficiente para matá-lo, mas induz um sono profundo com sonhos estranhos. As suas sensações, emoções e lembranças, filtradas por um cérebro febril, transformam-se em imagens e ideias musicais. A própria amada transforma-se, para ele, numa melodia, um tema recorrente (a ‘ideia fixa’) que o persegue constantemente.

 

Sugestão de audição da obra:

Hector Berlioz, Symphonie Fantastique, Op. 14
The Philadelphia Orchestra, Riccardo Muti – EMI, 1985

4 Jun 2019

O Lugar Certo

[dropcap]Q[/dropcap]uando me mudei para Florianópolis conheci uma mulher excêntrica, italiana, que vivia ali na ilha há alguns anos e falava muito bem português. Numa das vezes em que jantei em sua casa, tive a oportunidade de lhe perguntar a razão que a levou a deixar o seu país, mudar-se para a ilha e comprar aquela casa. Bianca perguntou-me se alguma vez tinha visto o filme de Frank Capra, Platinum Blonde (1931) [Loura Platinada]. Disse-lhe que não me lembrava de o ter visto, aliás o único filme que me lembrava de Capra era o It’s A Wonderful Life (1946), que em Portugal teve a tradução de Do Céu Cai Uma Estrela e no Brasil A Felicidade Não Se Compra.

Bianca resolveu então contar-me a parte do filme que lhe importava: “O filme conta a história de um jornalista pobre, Mr. Smith, que casa por amor com uma mulher de uma família muito rica e tradicional. Quase no final do filme há um diálogo entre o mordomo da casa e Mr. Smith. Este último pergunta ao outro o que é que ele faz quando não está a servir. Ao que o mordomo responde que passa o tempo. Passa o tempo como? Com as mãos. Faz um gesto e exemplifica: ajeita uma moldura, dá um toque num livro, toca num candeeiro, assopra-lhe, etc. Mr. Smith pergunta ao mordomo se qualquer um pode fazer isso, ao que ele responde peremptoriamente que não. Porquê, pergunta Mr. Smith? E o mordomo diz: há pessoas que passam o tempo naturalmente, mas há pessoas que nunca o vão conseguir fazer. Mr. Smith insiste e pergunta se há pessoas que nunca saberão como passar o tempo? O mordomo responde que sim. Mr. Smith diz que isso é uma tragédia. O mordomo concorda. Quando Mr. Smith pergunta acerca de si mesmo, se o mordomo acha que ele irá conseguir passar o tempo, se conseguir concentrar-se muito e puser toda a sua alma nessa tarefa, o mordomo sorri e responde que não, que Mr. Smith nunca conseguiria fazê-lo. Como Mr. Smith quer compreender a razão que o leva a dizer isso, o mordomo responde que para passar o tempo a mente tem de estar liberta, que uma pessoa com problemas nunca poderá passar o tempo. Por exemplo, diz, um peixe pode passar o tempo na água, mas não na terra, porque estaria fora do lugar. Uma águia pode passar o tempo sobrevoando as montanhas, mas não numa jaula, porque estaria inquieta e infeliz. E termina por dizer, que Mr. Smith é uma águia numa jaula. Nesse momento, percebi como se tudo ficasse claro e a vida fizesse sentido, que fora do nosso ambiente não se consegue passar o tempo. O tempo passa, fazemo-lo passar ou ele passa naturalmente por nós, se não há alteração no nosso dia-a-dia, se não temos problemas adicionais ou se o ambiente à nossa volta nos é familiar. Caso contrário, o tempo estanca. Este estancamento do tempo, este não passar, tem a ver com “sentir-se fora do lugar” ou “estar fora do lugar”. O tempo passa ou não passa quando alguém está no lugar certo ou, pelo menos, não está num lugar errado. Os seres humanos, a despeito da sua enorme capacidade de adaptação, pertencem a ambientes, tal como os animais. Há humanos que não pertencem ao campo, por exemplo, e sentir-se-iam muito mal a viver no campo. Outros, pelo contrário, sentir-se-iam muito mal a viver na cidade. Para estas pessoas, em lugares trocados, o tempo não passa. Este tempo a não passar quer dizer que o tempo se faz sentir pesado, cada minuto custa muito, como quem está numa fila de espera. Mas uma pessoa que pertença à cidade, se viver no campo vai sentir a sua vida como que numa fila de espera. Os seus dias são vividos como se estivesse numa fila de espera sem fim. Pois nunca irão chamar o seu nome ou o seu número, a despeito da longa espera. Só a morte o irá chamar. Quando vi esse filme, em Roma, na televisão em minha casa, percebi de imediato que não podia deixar o lugar onde vou viver a minha vida ao acaso ou ser displicente acerca disso. Fora do lugar onde devemos ser, o tempo não passa. E se o tempo não passa, a nossa pena neste planeta custa muito mais a suportar. Também é verdade, que podemos nunca encontrar o lugar certo, mas se o encontramos devemos lutar para permanecer nele. Já tinha estado em Floripa uma vez antes, e era a memória mais feliz de toda a minha vida. Lembro-me de quando cá estive, nessa altura, dizer para mim mesma que aqui seria feliz. Mas não fiz nada acerca disso, voltei para Roma e continuei fora do lugar. Depois dessa noite do filme, vendi tudo e mudei-me para cá. Não quis que a minha vida fosse a de um peixe fora de água. Talvez você esteja a pensar que o normal seria o meu lugar ser em Roma e não aqui. Mas o nosso lugar, de cada um, é um mistério que temos de resolver. Ou não. Eu tive a sorte de resolver o mistério do lugar onde o meu tempo passa.” Fiquei a olhar para ela, agradecido pela história, e sorri. Quando voltei para casa a pé, pelo campo, com o escuro do céu povoado de milhares de estrelas, junto com o meu cão, olhei bem para ele. Depois de ter esperado por mim várias horas, o Alf estava feliz como se tivesse encontrado o seu lugar certo para viver. Só que o lugar certo dele era eu, que nunca tive lugar certo.

4 Jun 2019

Solipsismo

[dropcap]N[/dropcap]o tempo presente graduamos áreas vastas de condições que já foram amplamente debatidas quando este ser que hoje somos não existia em grande quantidade a um ritmo comum. Somos muitos, somos mais, somos tantos que nem sabemos para que serve tanta vida em vagas deambulatórias para todos os lados, e que numa visão mais aturada se parece a muitas outras nas circunstâncias em que estamos a ser.

Mas, e pensando melhor, o que somos entre tantos, entretanto, entre muitos e nós – que nós – somos um, e cada um é tão uno como nós, entre todos somos talvez uma violenta abstração. –

Sim, como bem viu Almada Negreiros, todas as soluções para mudar o mundo ao tempo em que nascemos já estavam tomadas, e cada um tem a sua esfera de razão inabalável para o desmentir, e o que acontece é que vivemos essa experiência como única – egoísmo pragmático – assim atirando o nosso eu para o palco das ideias redentoras, ficando quase sempre um vazio imenso ao redor que não é mais que a maravilha da projecção de pensadores, assim fornecido, para testar a pertinência das conclusões.

Sem focar a matéria filosófica inerente ao tema, há no entanto literariamente um princípio assaz solipsista na vertente poesia, sempre que mencionamos eu lírico versus eu poético, o autor. Ou seja, o poeta que escreve não é o que escreve a “coisa” de si, o recurso que o possibilita fazer não é a natureza do autor, e essa transformação em coisa outra torna um fazedor num bem-fazente de tais coisas amadas que ele apenas para os outros tem autoria mas nenhuma autoridade acerca da sua construção.

Quem faz se está fazendo pelo processo lírico inventado, e pode ser que nasça nele um ser novo, renascido, fruto da complementaridade desse exercício que sempre requer coragem pois que nada sabemos do que vem por aí talhado no grau da imaginação, e se se vai fazer dela a realidade única do centro de uma vida. Se para trás deixarmos o eu poético, é porque éramos poetas antes mesmo de começar.

A vida espreita a sua oportunidade para se tornar centro robusto, e quando aí chegados a nossa posição assenta na demonstração que mais nada de superior ou inferior importa. Porém ( e aqui se esbate de novo o tema) criar não é o mesmo que imaginar que o que não queremos não é ou não existe, pois que passando a ser a inventividade plataforma para outras realidades, o fazedor tem uma maior responsabilidade face ao elemento com que se debate. «Se penso, logo existo» posso mesmo assim não ser responsável por nada saber daquilo que os outros são: posso dizer: – sou um eremita – mas o mundo está cheio deles que pensam a solidão como reforma antecipada ao acto perigoso de viver e, no fundo, estamos todos reduzidos à circunstância individual de existir sem que tenhamos em muitas das vezes criado o tal movimento que vai para locais que não podemos ponderar.

Há verbas, isso nos faz solipsistas tamanhos que não conseguimos mais sair da continuada esfera de as contar, estar reduzido à contagem, sós nos labirintos das contas, mas também há verbos, que os verbos saem do solipsismo ambiental quando não arrancam para mais uma manifesta aragem de um eu encurralado. – Fazer, fazer, fazer… não importa o quê, onde, e a que preço, fazer o quê? – Contar a nossa história ímpar, tão única! Um reflexo gratuito se abate por todos os lados como um plasma irreflectido e a Criatura esqueceu-se do Criador, e sem que suspeite ficou louca e só no meio do martírio da sua galvanizadora manobra. Quando por momentos nos olhamos, queremos ver-nos nos outros como se fossem feitos para nos saciar do que somos, em grande parte já temos um plano para sermos, e uma predefinição daquilo que os outros são que nos atira para graus de solidão tamanha que julgamos que fizeram ou disseram aquilo que pensámos ter querido apenas escutar; no fundo, nem nunca olhámos para ninguém, ao acontecer, é cada vez mais por um ângulo esmagador que há-de fazer do outro um não existente. O que não queremos não existe. Mas o que queremos também muitas vezes não existe, de modo que o nada nos assola como um refúgio jamais imaginado.

Em muitos aspectos estamos perto da vertente dos tiranos e também da esquizofrenia que leva a generalizar os factos extra nós como violentas celebrações de vontades alheias, e, o tempo, essa medida estranha aos laboriosos de uma condição demarcada, parece fugir mais que qualquer outra coisa que tenham, mas não se lhes assiste propriamente um destino que implique uma fonte constante de suave satisfação. Falta isto, esta delicadeza que tem o infinito e a crença na vida como uma terna presença em que não se pode tocar. Bloqueio sem firmeza gera espectros. E se temos de lidar com a nossa verdade como centro indiscutível, sejamos mais céleres no combate à memória daquilo que não queremos lembrar. Que mesmo assim, nos havemos de lembrar por fim. Que seja então para agradecer o mal que nos fizeram que soube produzir algum sincero bem.

Para os que possuem o ónus da prova da sua existência, não adulterar os factos «que para ser grande, sê inteiro» e que ainda muitos não cabem dentro de si.

4 Jun 2019

Diogo Coutinho Docem assassinado

[dropcap]E[/dropcap]screver sobre a estadia em Macau do Governador Diogo Coutinho Docem é um exercício bastante difícil devido às confusões dos historiadores sobre a personagem aqui assassinada, assim como os intervenientes e as suas razões. D. Diogo viera para a Ásia com o seu pai Francisco Coutinho Docem, que fora nomeado Governador de Macau a 24 de Maio de 1634 com a promessa verbal do Rei Filipe III de ser Vice-rei da Índia se desempenhasse bem o cargo.

Partiram a 13 de Abril de 1635 na armada que trazia para a Índia o Vice-Rei Pedro da Silva (1635-39) e chegaram a Goa a 8 de Dezembro. Aí, D. Francisco cedeu o cargo a Domingos da Câmara de Noronha, que a 29 de Abril 1636 rumou para Macau onde aportou em Agosto, ficando a governar até 1638, substituindo o irmão Manuel, Governador de Macau de 1631 a 1636.

Já D. Francisco Coutinho Docem morreu a 2 de Junho de 1636 num combate naval nocturno contra os holandeses no porto de Malaca. D. Diogo, que o acompanhava nessa altura, ficou Capitão da Fortaleza de Malaca de 1636 a 1639, mas incompatibilizou-se com Luís de Sousa Chichorro, que à data exercia o cargo de comandante naval de Malaca e como tal lhe estava subordinado. O diferendo provocou a morte a 70 portugueses e deixou Malaca ainda mais vulnerável, que cairia nas mãos dos holandeses a 14 de Janeiro de 1641, sendo Chichorro na altura e desde 1640 Capitão da Fortaleza. Diogo Docem em 1640 vai transferido para Negapatão no Sri Lanca, donde socorreu Colombo com mantimentos, então também ameaçada pela armada holandesa. Após a queda de Malaca, Docem foi preso em Goa onde aguardou pelo veredicto do Rei sobre a sua culpabilidade nas desavenças, sendo em 1643 libertado por não haver provas concretas e nada se deve ter apurado pois em 1646 foi D. Diogo nomeado pelo Vice-Rei D. Filipe Mascarenhas para o cargo de governador de Macau, na altura com grandes e difíceis problemas para resolver e nada apetecível pois não dava grandes proveitos.

Dos antecedentes

Ainda antes da chegada da Dinastia Qing à China, já Macau se encontrava numa posição extremamente difícil. Deixara de poder contar com os lucros fabulosos auferidos do comércio com o Japão, pois os portugueses tinham daí sido expulsos definitivamente por um édito publicado em 1639. Os navios da Companhia Britânica das Índias Orientais apareciam no porto de Macau para adquirirem os produtos chineses, sendo a nau London a primeira a chegar em 1635 fretada pelo Vice-rei da Índia para carregar artilharia da fundação de Bocarro. Com a conquista de Malaca, o estreito com o nome da cidade passou a estar controlado pelos holandeses, impedindo aos barcos vindos de Goa a entrada no Oceano Pacífico, pois dominavam também desde 1602 o Estreito de Sunda. A Macau restava o comércio com Macassar e as ilhas de Timor, Solor e Flores.

O Rei Filipe III banira em 1634 o comércio entre Macau e Manila, mas este continuou até 1642, quando de facto terminou devido à Restauração da Independência de Portugal em relação a Espanha iniciada a 1 de Dezembro de 1640. Macau apenas dela soube oficialmente a 31 de Maio de 1642 por António Fialho Ferreira, que viera de Lisboa à Cidade do Nome de Deus para o anunciar em nome do novo rei. Como durante todo o período filipino, a praça de Macau tivera sempre hasteada a bandeira portuguesa, foi em 1642 conferido à cidade o título de “Não Há Outra Mais Leal”. O então Governador de Macau D. Sebastião Lobo da Silveira (1638-1644), apesar de endividado pela falta de viagens ao Japão e a viver de empréstimos feitos pelos moradores, para a “aclamação de D. João IV fizera enormes despesas e para se compensar, lançou mão dos soldos do presídio, que montavam a 1200 patacas mensais. Os soldados, vendo-se sem dinheiro, abandonaram os seus postos, deixando indefesas as fortalezas e revoltaram-se”, segundo o padre Manuel Teixeira.

Outros problemas ocorridos durante a governação de Sebastião Lobo da Silveira, nomeado pelo Rei Filipe IV de Espanha, foram resolvidos pelo seu sucessor Luís de Carvalho e Sousa, indicado em 1643 Governador de Macau da confiança de D. João IV (1640-56), mas só aqui tomou posse do cargo em Agosto de 1645.

Governador assassinado

Na frota que levava ao Japão o Embaixador Gonçalo de Siqueira de Sousa veio D. Diogo Coutinho Docem como Governador de Macau. Partiram de Goa a 30 de Abril de 1646 e em Malaca, por estar já em vigor uma trégua, pagaram aos holandeses direitos de 200 patacas por cada galeão, aportando em Macau a 24 de Junho. Desembarcou no dia seguinte D. Diogo, tomando então posse do Governo.

A cidade vivia em verdadeiro estado de guerra civil. Em Outubro de 1646, “os soldados, com soldo em atraso, envolveram-se em desordem com os donos das lojas chinesas. O mandarim de Chinsam mandou fechar as Portas do Cerco, impedindo a vinda das provisões e veio a Macau exigir satisfações; . Pouco depois, veio uma chinesa a vender comestíveis a Macau e os soldados roubaram-lhos, usando de violência. Com estas desordens por falta de pagamentos e penúria da cidade, se pôs alguma artilharia em venda”, segundo o Padre Manuel Teixeira, que refere ter em Novembro D. Diogo Coutinho solicitado “a ajuda da frota chinesa, pois Macau via-se cercado de piratas que faziam encarecer os mantimentos; quando se queria proceder contra eles, logo tirava o entendimento aos moradores, para não concordarem nem efectuarem nada de bom em sua defesa. Só confiava no auxílio de Deus e do Rei; pedindo a D. Filipe Mascarenhas que enviasse uma frota com dinheiro para 500 homens, sendo necessário em Macau um presídio pelo menos de 300. De 480 portugueses casados que havia antes, faltava a terça parte; ficaram apenas 160 homens, tendo os homens saído para outras partes, levados pela fome; a terça parte dos que restavam eram velhos e incapazes para as armas. Sem armada não se podia defender Macau. A cidade via-se rodeada de inimigos; piratas no mar, holandeses sobre ela e os espanhóis de Manila. D. Diogo (…) queixava-se ainda dos jesuítas, conhecidos por suas traças, quando entendiam que eram .” Já C. R. Boxer refere, “Parece que a guarnição se amotinou contra ele e contra o Senado, por terem os soldos em atraso. Os soldados tomaram o Forte da Guia, afixaram proclamações sediciosas nas portas das igrejas e apontaram os canhões para o Leal Senado. Os cidadãos, por seu turno, tomaram armas, assaltaram o Palácio do Governo e fizeram em postas o malogrado capitão-geral, que encontraram escondido debaixo da escada.”

Deu-se isto nos finais de 1647 e os amotinados, que reagiram violentamente contra a ordem de prisão, eram Jacinto Guterres, Lourenço Meneses Cordeiro, António da Costa Benúchio, João da Costa Benúchio e Diogo Vaz Bavaro.

Foi este o único assassinato em toda a história de Macau perpetrado por portugueses na pessoa dum governador.

3 Jun 2019

A Pegada de Sísifo A Foz em Delta, de Manuel Gusmão

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos quero falar de atrito e gravidade. Porque se de mecânica vive a literatura, que dizer da poesia, essa tão desajeitada engenhoca da linguagem. Pois ouvide e aprendei sobre a física e os mecanismos da linguagem que se regem por medidas outras, mais labirínticas e intricadas que as leis naturais. Que dizeis? Lembrais, contrafeito, que o meu compromisso é confidenciar-te poemas e poetas e não prelecções avulsas de uma ciência mal sabida? Pois não digais tal, meu sempre certíssimo secretário. A poesia não é só da ordem das letras! É, sim, mecânica pura movendo a engrenagem do mundo e suas linguagens; e para bem compreendermos um poema, sua dinâmica, a sua velocidade e aceleração rumo à razão, às ideias, ao coração, à emoção, há que descobrir a fórmula que se sustenta o movimento.

Falo-vos do livro de Manuel Gusmão, «A Foz em Delta», título, ele mesmo, metáfora de poesia: a torrente do rio que antes de alcançar o mar se propaga em percursos múltiplos, rasgando a terra em diferentes sulcos, inventado caminhos, descobrindo-lhes sinuosidades itinerantes. A foz em delta é bem o paradigma de uma particular resistência à passagem de água, que se embrenha na terra, antes ainda de mergulhar no oceano, criando pequenas ilhas, areais instáveis, resistindo, por porfia, ao deslize das águas. Ouvide, pois, secretário, aprendendo: «A corrente do rio arrasta consigo a terra que as raízes das árvores têm presa. O rio continua avançando e traz para o meio da foz pequenas ilhas terrestres. Ergue à altura de uma copa de pinheiro manso as imagens dessas ilhas incompletas.»

A resistência do falar poético nasce desta simbiose improvável entre terra firme e a força das águas. Nem uma nem outra se vencem: mantém-se um vínculo inusitado, em que água e terra se penetram. Assim é a poesia a desaguar no mundo; mas tal como a terra se distingue dos dedos de rio «arrepanhando as águas», também o poema e a ideologia, a poesia e pensamento político, a poesia e mundo; interpenetrando-se, sempre, nunca se confundindo.

Sim, meu tão certo e caro secretário, por isso vos falava do atrito, da resistência. Tantas forças no mundo, conjugando-se para encalhar no poema, abrandá-lo; mas o poema reage, firme e provoca atrito também ao mundo, e atrasa, sim, por pouco que seja o seu movimento. Tal como o atrito, a gravidade. Que dizeis, meu secretário? Que uma pedra caindo pouca influência de atracção tem sobre a terra. Pois sim, não mata, nem mossa causa. Mas alguma coisa há-de moer. E isto que vos digo, o diz magistralmente o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, num gesto de um só verso, que vale toda uma poética : « O mundo supõe a poesia para se poder dizer». E, imediatamente, antes, já o poeta explicara essa espécie de atrito, força que poesia exerce face ao mundo. Vinde cá, e aprendei, meu secretário: «A poesia é uma palavra tão carregada de sentido que vibra/ dar outra vez o nome às coisas/ dar outro nome às coisas mostra-as/ a uma luz e segundo uma música diferente.». Onde ides? Continuai, pois, a ler. É com os mestres que se aprende. Reparai que «este dar nome às coisas/faz parte da nossa experiência sensível. «A terra é azul como uma laranja». [Paul Eluard]»

A poesia será um modo de criar atrito no mundo, ao mesmo tempo que este exerce também uma força no poema; jogo de esforço e resistência que um e outro se oferecem; o rio a fuçar a terra, rasgando-a em delta, portanto, antes ainda de atingir o mar. O discurso poético, todo ele, desdobra-se como esse discurso de resistência, de per se, e isto independentemente da lógica e da verbalização directamente política, literalmente militante («o comunismo que vem connosco/e para além de nós recomeça») que este livro assume, a moer (rebentando-a tão só aparentemente) a distinção entre poesia e ideologia. Aliás, Foz em Delta acaba por ser (e isso implica uma fundamentação teórica que lhe está implícita, aduzindo-lhe, uma outra noção de atrito, que é a resistência à leitura, pelo confronto desta obra com os livros de poesia anteriores de Manuel Gusmão e o seu ensaísmo) um enraizamento na memória: a memória histórica, que não deixa de ser pessoal (com a convocação da luta de classes; os poemas dedicados a Álvaro Cunhal, um deles «Elogio da terceira coisa», mas também uma historicidade íntima , com o poemas dedicado ao pai e toda uma secção dedicada às filhas e netas. A poesia, vá por que caminhos for, desague na foz, por que ramificações, transforma-se, sobretudo (e também por isso resistência) em memória, assente na consciência histórica; e pouco importa o quão longe se vai no reconhecimento concreto, político, pessoal ou biográfico, quando a palavra instaurada no discurso poético é aquela «carregada do sentido que vibra» , que renomeia as coisas. O mundo, repitamo-lo em sincronia, meu secretário e não o esqueçamos mais, supõe «a poesia para se poder dizer». Por isso, Foz em Delta é poesia e ensaio, em simultâneo, reflexão e desfocamento poético, que coloca mais uma pedra na engrenagem da poesia, e reduzindo, sempre, com a sua força de resistência, atrito, a velocidade do mundo que avança selvagem, capitalista, acelerando.

Numa das secções do livro intitulada «Definição de um Território» (o da poesia, meu tão certo secretário?), há um conjunto de parágrafos, subordinados, exactamente, ao título «poesia e resistência». Aí se lê:

«A poesia pode ser uma forma de resistência. Pode sê-lo. Sempre, por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais. Hoje em alguns dos lugares em que a história da modernidade de longa duração continua a vir e a inscrever-se nos tempos, alguma poesia continua a resistir. Ela resiste à quantidade de barbárie em que cada tempo insiste. (…) Dizer que a poesia resiste é afirmar que ela é uma específica resistência à sua completa apropriação pela mente ou pelo espírito. […] . Como forma de vida, a poesia é um fazer e um acontecimento de linguagem que a tem por palco, co-move os sentidos e o corpo & alma dos cidadãos, mobiliza, atravessa e convoca o conhecimento, a ética, e a estética.».

Também por isto, os poemas, estes que se exibem como lastro ideológico, político, partidário e militante até, e expressamente, é resistência, sim, uma força de atrito, que influi na cinética do mundo, abrandando-o, mas não, nunca, ideologia, que, a poesia desfoca a linguagem com que aponta, no entanto ao mundo: «A fonte fria/na manhã clara/é de qualquer modo/o foco de luz/que te chega aos olhos.» Diz Silvina Rodrigues Lopes num artigo dedicado a «poesia e ideologia» do livro «Literatura, Defesa do Atrito» (pois é claro, meu tão certo secretário, bem vos dizia, ao início, que as leis da mecânica e da física são, pois, próprias da poesia) que «a nossa vontade de domínio segrega o desejo de plenitude e com ele a ideologia que retira às palavras o seu enigma: transforma a verdade e o desejo que a habita em vontade de verdade, força reactiva ao serviço de uma ordem, uma asfixia. Sem a poesia, que salvaguarda o enigma ao oferecer-se como um gesto ou acto necessário (…) as palavras estariam gastas. Não haveria como responder.»

Pois, é verdade, meu tão certo secretário, a linguagem, bem o sabemos, nós dois, é, para o homem, a única unidade de medida do mundo; e poesia é o que impede a erosão das palavras, à possibilidade de renomear o mundo, pondo-o em movimento. Assim, faz-se em simultâneo atrito e caminho, resistência e impulso: é, ao mesmo tempo, a pedra às costas de Sísifo, a montanha que ele repetidamente percorre e, até, o próprio Sísifo, ele mesmo. Repetidamente, deixando a sua pegada no caminho.

Manuel Gusmão, A Foz em Delta, Lisboa, Edições Avante, 2018

3 Jun 2019

Para o Diogo Calado

[dropcap]É[/dropcap] do fundo dos tempos que vem a relação do ser humano com a luta. A palavra “agonia” dizia o lugar onde as pessoas se reuniam para assistir às competições entre atletas pela disputa de um prémio. Hoje, a palavra está reservada para o derradeiro combate que se trava contra a morte. As competições desportivas entre os gregos eram uma disputa mortalmente séria. Lutava-se pelo título, mas, sobretudo, pelo prestígio, porque os atletas, os competidores, representavam uma casa, uma família, um estado. Competir era ter a possibilidade de inscrever o seu nome no livro dos vivos. É sobreviver, de alguma maneira, à lei da morte. A morte em combate é o ideal orientador da disputa e o gatilho da violência máxima. Embora haja apenas relatos de quatro mortes em combate desde o ano 550 até 110 a.C., a própria lei ateniense reconhecia morte em combate como não intencional e, portanto, involuntária. Não admitia abertura de processo nem, por isso, condenação e castigo. Dito isto, ninguém se apresentava para disputar uma competição sem estar absolutamente bem preparado.

Todos os rapazes nascidos livres tinham algum tipo de treinador: um pai, um irmão ou um estranho, seja contratado por um dos pais ou compartilhado com os outros no ginásio. Além disso, nenhum rapaz, por mais aristocrata que fosse, poderia disputar a competição pan-helénica em boxe, luta, ou o pancrácio, sem uma preparação competente. E longa. Não eram poupados gastos para se poder ter o melhor treino possível.

Mas é como laboratório da vida que importa tentar perceber o que estava em disputa num combate. Demos a palavra a Platão:

“Se fôssemos boxeurs, deveríamos ter estado a aprender a combater, muitos dias antes do combate e a trabalhar no duro, praticando em mimetismo todos aqueles métodos que pretendemos empregar no dia em que estaremos a lutar pela vitória, e imitando a coisa a sério da melhor maneira possível: assim, deveríamos usar luvas acolchoadas em vez de luvas usadas no ringue, para obter a melhor prática possível a dar golpes e a evitá-los; e se por acaso não tivermos companheiros de treino, […] se alguma vez estivéssemos num deserto, e sem companheiros de treino, não poderíamos recorrer à luta de sombra do tipo mais literal, contra nós mesmos? Ou o que mais adequadamente se deveria chamar à prática da postura do pugilista?” (Platão. Leges 830a).

Píndaro, o grande poeta lírico grego, entretece com cada descrição do que objectivamente se passa num combate um saber sentencial. A “moral da história” pode ser folclore nacional ou a forma mais ou menos popular com que sobrevem um pensamento. É da profundidade abissal da vida que se projecta a própria compreensão de um sentido para o combate. Não é um sentido óbvio, mas faz vibrar quem se encontra no ringue, quem assiste ao combate, quem lê sobre ele.

Nada, nunca, é apenas o que acontece no momento em que a prova tem lugar. O dia do combate é a cabeça de um cometa que traz atrás de si a cauda de dias e dias, meses e anos, até décadas de preparação. E joga-se a vitória ou a derrota. Joga-se um modo de vida, aquilo com o qual alguém se relacionará para sempre depois de ter acontecido. Pode ter repercussões para a vida inteira, podemos ficar presos de derrotas e de vitórias. Também podemos não fazer nada de vitórias passadas e as derrotas poderão estar à nossa espera na hora da nossa morte.

Tal como na vida, a preparação é ao mesmo tempo que a disputa. Na citação conhecida de Samuel Butler: “a vida é como executar um solo de violino em público, aprendendo a tocar o instrumento ao mesmo tempo que se toca”. Tal como o passo de Platão, a preparação é feita com vista à antecipação de todos os cenários possíveis, da esquiva ao contra-ataque, de todos os golpes que se possam desferir, trabalhados isoladamente e em encadeamento. Procura-se antecipar as acções possíveis do combatente do outro canto. Todo o treino, dieta, descanso tem em vista a disputa. A disputa tem em vista a vitória. Um combate não é um acto isolado. Quantos combates pode um combatente disputar na sua carreira? Quantos terá perdido. Ali, um dos grandes, para alguns o maior boxeur do século XX, perdeu cinco dos seus 61 combates. Parece impensável que os grandes combatentes não tenham permanecido invictos. Mas, na verdade, se o ringue for como a vida, é provável que coisas improváveis aconteçam e que numa saraivada de golpes ou num só, inesperado, as luzes se apaguem, e acordemos sem ter acompanhado a nossa própria queda. Aprende-se com a possibilidade da derrota, como se aprende com a derrota. Uma derrota é um desfecho de um combate, como a vitória, se excluirmos o empate. A derrota não existe para qualquer um. Só quem disputa a vitória pode perder. Só quem disputa a vida pode viver. Os gregos não achavam que tínhamos um lugar garantido na vida. Só alguns o poderão encontrar.

“Só um homem que sabe o que é ser derrotado pode atingir o fundo da sua alma e erguer-se com um grama extra de poder capaz de o fazer vencer quando o combate está empatado.” (Ali)

1 Jun 2019

A Grande Dama do Chá

Por Fernando Sobral

 

[dropcap]O[/dropcap] escritório de Marina Kaplan no “Bambu Vermelho” era pequeno e despojado, mas acolhedor. Por detrás da cadeira onde ela se sentava, estava, em cima de um móvel de madeira maciça, uma estatueta de jade verde de um guerreiro chinês. A seu lado, uma fotografia de uma família que, devido à forma como estava vestida, deveria ser russa. Memória do passado que ela não queria esquecer. Ao lado de Marina, também sentado, estava Ezequiel de Campos. O seu sorriso era o de um sedutor. Os seus olhos azulados combinavam com o cabelo branco penteado para trás. Garantia segurança e, num advogado, isso era tudo. Entre a orelha esquerda e o pescoço via-se uma cicatriz. E ele parecia ter o prazer raro de a acariciar, de vez em quando, como uma velha ferida que nunca sarara. Talvez a acariciasse só para marcar distâncias.

Ou para mostrar a sua inacessibilidade. Quando Cândido chegou ao “Bambu Vermelho”, Ezequiel fez-lhe um sinal e disse-lhe:

– Bebes um vodka connosco?

Cândido sorriu e seguiu-o até à pequena sala onde Marina tinha o seu escritório. Cândido conhecera-o numa das noites que passara ali, há uns meses. Já então andava com Marina Kaplan.

– Continuas a tocar, Cândido?
– É a minha vida. Não sei fazer muito mais coisas.
– Sabes, não queres é sair do teu conforto. Temos de saber o que queremos. Eu sei que não gosto de jazz. É uma música que nos faz sentir quem ninguém ama ninguém.
– Pelo contrário, aproxima as pessoas, faz com que dancem perto uns dos outros.
– É exactamente por isso. As pessoas tocam-se, têm desejos. Concretizam-se. Mas evitam amar-se.

Dá muito trabalho.

Marina olhou para os dois. Não sabia se Ezequiel falava a sério. Nunca se sabia, porque era indecifrável a sua voz pausada. Dizia-se que Ezequiel era o homem melhor informado de Macau.

Ou, pelo menos, ele fazia com que todos acreditassem nisso. Cândido disse:

– És um homem muito informado sobre o que se passa em Macau.
– Enganas-te. Aqui ninguém sabe nada sobre ninguém. Apesar de todos acharem que sim.

O que Ezequiel queria dizer é que só ele sabia quase tudo sobre todos. Cândido bebeu um trago de vodka, que era de excelente qualidade.

– Como consegues arranjar este vodka, Marina?
– A Rússia não desapareceu. E há quem continue a saber fazer vodka. Os bolcheviques também o bebem. Às vezes, demais. Por isso não é proibido.

Dizendo isto, Marina agarrou no seu copo, elevou-o e levou-o aos lábios, bebendo tudo de um golo. E, depois, atirou o copo contra a parede, estilhaçando-o.

– O vodka é fogo. Faz com que ardam as nossas veias.

Cândido sorriu. Ezequiel ficou a olhar para a quantidade de vodka que ainda tinha no copo, mas não fez tenção de bebê-lo. Disse apenas:

– O fogo enerva-me. Há demasiado à nossa volta. Prefiro a prudência. Também deverias aprender isso, Cândido. Para que a nossa vida seja longa, e agradável, é conveniente sermos prudentes, não achas?

Ezequiel falava sobretudo para Marina. Cândido encolheu os ombros. Uma vidente dissera-lhe, um dia, que a sua linha da vida era longa. Morreria velho. Por isso poderia cometer todos os riscos.

Ezequiel pareceu adivinhar os pensamentos do músico, mas não deu muita importância a isso.

– Sabes o que é a prudência, Cândido?

Cândido assentiu. Respondeu:

– Acho que sim. Vivemos tempos perigosos. A guerra cerca-nos. Mas podemos evitá-la, não te parece? Mesmo que ela exista, podemos fingir que ela não existe.

– Diz-me, o que é que é que achas que conduz um homem para a guerra?
– Sei lá. A ignorância? A estupidez?
– Tudo isso e outra coisa, a imprudência. Porque é que os portugueses sobrevivem há quase 500 anos em Macau? Porque são prudentes. Sabem as suas forças e as suas fraquezas. Moldam-se.

Estão bem com todos. Que interessa agora estar ao lado dos japoneses ou dos ingleses? Um ganhará, outro perderá no fim. E esse não se adivinha. Ainda é mais difícil saber quem dos senhores da guerra chineses vencerá. Por isso há que ser pragmático. Macau é um porto de abrigo para todos. Sempre fomos comerciantes. Temos de colaborar com todos. Sabemos que isso é bom para nós e para os nossos interesses.

Cândido ouvia-o, mas olhava sobretudo para Marina. Continuava bela e insinuante. Ezequiel não era o seu único amante em Macau, pressentia. Ezequiel, indiferente ao olhar que Cândido e Marina trocavam, voltou a falar:

– Mantém os olhos sempre atentos, desconfia de tudo e, de preferência, evita morrer. O grande general Sun Tzu dizia que a mais preciosa faculdade dos reis era a manipulação divina dos cordéis, que consistia em pôr em funcionamento um serviço secreto. É preciso antever as jogadas dos outros. Porque a mesma mão que faz, também desfaz. Não podemos pensar que Macau está imune ao que se passa à volta. O paraíso tem sido, muitas vezes, destruído. Sempre pela mesma coisa, a guerra.

– O mundo é o nosso grande inimigo. Em tudo.

Ezequiel riu.

– Será. Mas se todos dominassem as leis da sedução como faz a Marina, este seria um mundo melhor.

Marina sorriu e beijou a face de Ezequiel. Este passou-lhe a mão pelo braço e depois voltou a fitar Cândido. Nesse momento bateram na porta do escritório. Jin Shixin entrou e aproximou-se devagar. Conhecia Ezequiel, através de Marina. Usava um clássico vestido chinês, o Cheongsam, justo, que lhe alongava a silhueta. Vestia-o sem calças por baixo, o que lhe dava um ar ainda mais sensual. Jin sabia usá-lo, porque era um vestido que obrigava a gestos bem cuidadosos. Rodeou a mesa e foi colocar-se, de pé, por detrás da cadeira onde estava sentada Marina. Sorriu para Cândido.

– Voltamos a encontrarmo-nos.
– Em melhores circunstâncias.
– É verdade.

Nem a face de Ezequiel nem a de Marina revelaram surpresa. Sabiam, claramente, o que se passara.

– De que falavam?

Cândido disse:

– Da guerra e de Macau.
– Então falavam da sobrevivência.

Marina sussurrou:

– Disso mesmo. Para sobreviver, às vezes, é preciso saborear as cinzas deixadas pelo fogo.
Jin Shixin não disse nada. Fixou o olhar em Cândido. Ela era uma mulher que sabia ler os homens sem deixar que a lessem. Sabia seduzir e só era seduzida quando isso lhe interessava. Mas a forma como olhava para Cândido revelava que ainda tinha dúvidas sobre ele. Ela disse então:

– Macau é a cidade dos amores impossíveis. Durante séculos atraiu comerciantes e padres em busca de ópio e de almas. Não se pode contentar todos para sempre.

– Tal como agora é impossível contentar japoneses e chineses, não é verdade?

Jin retorquiu:

– Não coloque os ocidentais fora da guerra.

Quando elevava a voz, Jin ficava com um ar elegante e altivo. Demasiado tentador. Ezequiel disse, apaziguador:

– Se tivermos um jardim e só lá estiverem plantadas rosas não será tão bonito como se lá tivermos flores diferentes. Em Macau e na Ásia se só tivermos uma cultura ou uma religião perde-se a diversidade. E a beleza.

Jin suspirou e respondeu:

– Isso é no mundo ideal. Não num tempo de guerra, onde todas as flores são destruídas.

1 Jun 2019