Eliete e o Facebook

[dropcap]O[/dropcap] Facebook é cada vez mais – a par do Google – um dos motores do Zeitgeist em que vivemos. Podemos ser contra – por diversas razões – ou a favor – por outras tantas e, às vezes, até por razões coincidentes com as que outros são contra –, mas não lhe podemos ser indiferentes. Escrevo isto a propósito do último romance da Dulce Maria Cardoso, o fantástico Eliete, um entretecido de múltiplas camadas de sentido que vão, com enorme subtileza e um ritmo magistralmente gerido, compondo aquilo que Virginia Woolf não desdenharia chamar “o grande rosto da vida”, declinação central do conceito de “moments of being” que funciona como ponto arquimédico de toda a sua obra.

Muito do romance vai ao osso da dicotomia fundamental da nossa época: a identidade real e a identidade digital. E Dulce insiste, e bem, na radical mudança que as redes sociais em sentido lato – nomeadamente o Facebook e o Tinder – têm vindo a operar na nossa vida. Mas não é um romance-diagnóstico. Está demasiado perto da realidade que procura dirimir e está sobretudo na charneira de uma mudança muito mais vasta do que a que lhe é possível abraçar. Eliete vê bocados da criatura movendo-se, percebe-lhe as pegadas, os efeitos nos sítios por onde passa, aquilo que arrasta consigo e aquilo que deixa para trás. E não se lhe pode pedir mais: a criatura está longe de ter chegado ao destino. Mas estas mudanças na organização da identidade e das suas hierarquias Eliete expõe-nas magistralmente, sobretudo quando incide sobre a decisiva inversão da hierarquia de importância das identidades reais e virtuais. O que doravante importa (apresentar aos outros) é uma cuidada construção da identidade virtual, sendo essa construção muito mais simples de fazer e de manter porque a estrutura própria do virtual é a do enquadramento fotográfico: ao contrário da realidade, cuja estrutura de fluxo impede obviamente a captação fragmentária, o virtual funciona – pelo menos por ora – mediante instantes meticulosamente escolhidos pelo portador dessa identidade. Às múltiplas perspectivas alheias incidindo impiedosamente sobre o sujeito, próprias do real, contrapõe-se uma generosa curadoria mono-ocular: é o sujeito que dita a sequência de perspectivas pela qual os outros acedem à sua vida. Enquadra, filtra, contextualiza, reconfigura.

E Eliete é o retrato deste processo em curso, preocupada com os likes ou os comentários de desconhecidas às fotos do marido, Jorge, zangada com os laços inautênticos que marido e filha exibem numa fotografia de conjunto, inquieta com a quantidade de likes e outros emojis recebidos numa foto na qual tem o cuidado de aprimorar digitalmente as pernas. E ao Facebook segue-se o Tinder e a neutralização progressiva da angústia a que corresponde a dissociação cada vez maior entre a identidade real e a identidade virtual.

Vistas as coisas de uma perspectiva aérea, parece não estarmos a falar de muito: uma mulher na meia-idade, a consciência clara desse processo, o desinteresse sexual do marido, o desinteresse total das filhas, a demência da avó, as múltiplas formas de perda e as poucas redenções possíveis.

Mas Eliete tem a rara virtude de transformar o quotidiano áspero e o sonho comezinho, passíveis em mãos menos seguras de provocar unicamente um longo e monótono bocejo, numa cartografia precisa de um modo de vida cuja disposição naturalmente caótica era refractária à sua compreensão – como todos os modos de vida. E às vezes é só isso que os grandes romancistas fazem: aclaram, organizam, mapeiam.

1 Jun 2019

A rosa selvagem

«Con cua nằm yên trên thớt
Không biết khi nào con dao sẽ rơi.»*

“[dropcap]V[/dropcap]iemos ver se estavas intacto”, foi o que disseram, enquanto um deles colocava as mãos nos meus ombros, como se quisesse cravar-me no chão. “Saber como evoluíste. Quem és”. No limiar do milésimo avaliavam a minha robustez, mas também a minha cognição. Quase que não tive tempo para falar, nem sabia o que dizer, o resultado da minha existência não tinha sido para além do satisfatório. Mas eles tomavam-me apenas como um exemplar, não me queriam apontar valor menos comensurável. A ideia nunca terá sido fazer de mim um líder, nem a espinha dorsal de um povo. Deixaram-me estar. Hoje, sei que em situações de apuro, não foram muitas, me deram a mão. Mas ao longo dos anos, não se intrometeram na minha vida e deixaram-me ao deus dará.

Se não fosse comigo, se estivesse a falar de outra pessoa, seria fácil colocar este assunto no papel sem indignar o próximo. Sempre que o faço, ouço logo uma série de palavrões para que pare de inventar, porque o que digo não corresponde à verdade. “Lá estás tu!”, é a expressão que usam. Ninguém tem de acreditar. Cada um vive na sua psicosfera, maios ou menos amedrontados pelos seus temores. E daí não se sai. Cada um com o seu mambo. Apesar do limite difuso, considero que é melhor pôr a cabeça fora da toca e ficar sujeito aos temporais, aventurando-nos pela brecha que encontrarmos, ou na graça de uma linha invisível, do que ficar quietinho receosos do desconhecido. Por isso, vou continuar a contá-lo. Saltou o fim primeiro. Não faltarão mais intermissões.

Preciso de me socorrer da Internet para reportar o dia certo em que ocorreu. A relevância em saber o dia, a hora ou o mês é menor. A importância de determinada ocorrência tem sempre uma condição redutora quando amarrada à memória. Vale o que vale. Tivesse ocorrido uma catástrofe natural ou um jogo de futebol, teria sido mais notado. Seja como for, não sou capaz de contá-lo de maneira a que faça sentido. Nunca soube.

Tinha 18 anos e saía do Cinema Condes, em Lisboa, onde acabara de ver o filme ‘Platoon’ com o meu avô. O último filme que vi com ele. Enaltecido pelos Óscares, tinha estreado há pouco em todo o país. Ele queria ver a História a acontecer, crua e imbecil, o comportamento humano, a voracidade dos americanos, perdidos e sem freio, a reacção vietcongue, a crueldade do campo, das famílias indefesas e de como, no meio de toda aquela iguaria, era retratado o comunismo. Eu quis ir porque gostava do realizador no seu fato de argumentista e porque era o filme mais badalado da altura, um filme duro. Oliver Stone realizava o seu primeiro grande projecto cinematográfico. Duas horas cheias de carnificina e explosões no escuro, era o que nos esperava.

Qualquer filme sobre a Guerra do Vietname tinha como termo de comparação ‘The Deer Hunter’ – não sei se ainda tem – que tinha visto anos antes no prolongamento de uma noite de passagem de ano. Em Portugal intitulou-se ‘O Caçador’. Um filme interminável, que nunca termina na nossa cabeça, com as suas frentes, a guerra e a paz, e nada pelo meio. O sangue-frio que preludia a luta desumana com uma caçada ao veado; concluída na paz podre do regresso à vida mundana, deixando o espírito em fervura para sempre. Só há uma vida quando alguém se vê acolhido numa guerra. Esgotam-se, uma coisa na outra. Não há espaço para mais. Quem sobra, fica apenas com o corpo como contento. Um dos caçadores era John Savage, ídolo de miúdo. Entrava também no enredo sobre a guerra civil em El Salvador, filmado por Stone no ano anterior. Savage interpretava aí um fotojornalista destemido que acaba por morrer sob fogo cruzado, agarrado à sua câmara. “You got to get close to get the truth. You got too close you die.”

Embora tentassem, no Platoon os actores não eram tão carismáticos como no Caçador; ali era mais a acção, a câmara em cima das personagens, a correr a seu lado, sem complacência, como mais um companheiro de batalha, ou a face do inimigo. A virtude de estar vivo perante o sacrifício de uma luta que não era a deles, em nome de um ideal de pátria, que se escondia debaixo das unhas, sem significado aparente. “We didn’t fight the enemy, we fought ourselves… and the enemy was in us!”, confessava o protagonista destroçado. Não eram os bravos do pelotão, epíteto que se colou ao rótulo da versão portuguesa, eles tentavam apenas safar a pele, levando o corpo como salvação ao regressar a casa. Ou o que restasse dele. A morte crua em todo o alcance da razão. A câmara a transportar os corpos trucidados para dentro dos choppers Huey, que se avantajavam para permanecer incólumes no ar. Tudo isso às escuras no Cinema Condes, que já tinha sido cave para sociedades secretas onde, entre meninas e conspirações contra a pátria, se cozinharam outros vietnames. Sob o olhar vesgo das hordas de cinéfilos locais, o Condes seria tomado pelos americanos mais tarde. Não há nota de que algum helicóptero o tivesse acudido.

Se no Caçador, a hipertrofia mental era simbolizada por Robert De Niro como alicerce para uma exacerbada tragédia fílmica; no hiper-realismo caricatural de Oliver Stone, originalmente escrito a pensar em Jim Morrison como o herói, o apogeu e queda revelam-se com a morte de Willem Dafoe, o messias do Vietname, que não teve tempo para ser pregado à cruz. Em ambos, a linha para a realidade é delicada e a tensão é glorificante. Actores que se transformam em máquinas de guerra sem discórdia. O sargento De Niro, o mais bravo da matilha, a usar balas reais na rodagem na famosa cena da roleta russa. Não esquecer a banda sonora, que nos ficou também a circundar as sinetas da emoção. Avô e neto. Cada um para seu lado, em tempos de vida diferentes, em conhecimento díspar. O bíblico Dafoe de braços no ar, num ressalvar dos céus para a Quinta Sinfonia de Mahler, que não o era, mas que tanto fazia, porque a conhecíamos melhor, num pequeno adágio que já tinha surgido no ‘Homem Elefante’, erigido no início dessa mesma década por David Lynch e em mais uns quantos filmes. Eu sei, o Valério Romão, colega de carteira e de apelido, diz sempre que me perco. É verdade. Aqui, os pregos da memória colam-se com cuspo.

Samuel Barber, um génio que aos dois anos já dedilhava as teclas de um piano e aos seis era a coqueluche dos saraus familiares, escreveu, aos 26 anos, o adágio mais triste que as cordas podem fustigar. Um tormento. Em Lynch, picotado ao definhar de Joseph Merrick; em Stone, à firmeza de Charlie Sheen de nunca voltar para casa. A obra expressa a coragem do compositor para sair do seu covil, ostentando na arte o verdadeiro sentir. Misantrópico. “No doubt many wonderful souls have shrunk and refused to put their real emotions into art for others to know”. A transcendência confessional do seu talento traduzida em absoluta tristeza por não ousar análoga veracidade no batalhão familiar. Perde-se o corpo fica a alma.

Mas não foi o filme que importou nesse dia. Nem o facto de conversar com o meu avô sobre ele. que não sobreviveu à sua traiçoeira guerra, “the smell of napalm in the morning”, meses depois. Foi, sim, o chamamento que se lhe seguiu. A verificação do estatuto. O último check-out, que se prolongou num longa metragem, até ao dia em que escrevo.

Já os tinha notado quando fui à casa-de-banho no Condes. Fizeram-me sinal, era inconfundível. Não eram seres com antenas ou luzinhas a brilhar no olhar, nem vinham vestidos de negro, era gente comum. Pessoas banais: arrumadores de carros, vendedores de fruta, rapariguinhas perfumadas de lanterna no escuro do cinema. Passavam despercebidos, mas existiam para recolocar as linhas do espaço; para que o desenho que tinham elaborado, em recorrentes abduções infantis, não sofresse quebras. Seguindo o argumento de que todos fazíamos parte.

Viver é sofrer, dizem os veteranos do Vietname. Somos como o caranguejo que aguarda o cair da faca. Sobrevive-se encontrando sentido no sofrimento, uma luta de mentiras e propaganda levada pelos tecnocratas e fazedores de armas. Todos os homens são criados iguais. Acreditamos no mesmo. Vida, liberdade e busca da felicidade. Espírito aberto. Tudo se passou enquanto o meu avô fumava o seu último cigarro. Ficara tudo como estava. “Quem eram aqueles?”, terá pensado sem perguntar, antes de entrarmos num “carro de praça”, como ele chamava aos táxis. Achou que não seria importante. Não lhe disse que os bravos do seu pelotão tinham perdido a guerra. Quem haveria de supor que o desfecho seria esse? A luta é sempre desigual. Não faz sentido. Não é preciso ser maior de idade para chegar a essa conclusão.


* «O caranguejo fica quieto na tábua de cortar. Sem saber quando a faca vai cair.»

Escrito por um soldado vietcongue desmoralizado, após a sangrenta batalha de Ia Drang, em 1965; lugar onde o Vietname não é Norte nem Sul, mas apenas terreno perdido em mata densa e traiçoeira.

30 Mai 2019

De Eva para Lillith

[dropcap]I[/dropcap]sto anda tudo ligado, sendo, o mais das vezes, em rede, por contágio ou intoxicação voluntária, que a criatividade se insemina. Leio a sinopse de Um Homem é Um Homem de Brecht e percebo de imediato a fonte do Nicanor Parra para escrever o seu poema Um Homem. Tal como é nítida a sombra da faca de Macbeth em Faca Só Lâmina de Guimarães Rosa.
E talvez isso até não aconteça somente por refração ou influência, mas pelo que Benjamin insinua sobre BB e as autorreferências nos seus textos: «A relação que ele mantém com a sua história é igual à do professor de ballet com a aluna: o primeiro objectivo é flexionar as articulações dela até ao limite impossível».

Quando se lê numa atitude que não seja reverencial mas como quem participa num banho de ideias e formas, acontece que a boa sugestão do poema não nos pareça ser explorada a contento (a bailarina foi preguiçosa e as suas flexões não desenharam todas as figuras que lhe eram possíveis) e então assinalamos, anotamos a sugestão de uma emenda à parte ou fazemos uma variante, tornando-se esse poema matéria-prima para um delito.

Gostava de um dia ter a insolência para publicar um volume com os “poemas emendados” que guardo na gaveta, de vários poetas (no meu blogue, Raposas a Sul, expus um dos crimes que cometi: em Fortunata critica: Beirão no aeroporto).

Foi uma magnífica escola de poesia, esse manejo das facas do açougueiro; arroubos de uma montagem muito godardiana.

Nunca compreendi a atitude passiva, basbaque, diante de um poema. Uma coisa é a humildade e o reconhecimento dos nossos limites, outra o que nos é lícito fazer em privado para melhorar e expandir o estro que parcamente nos coube e aí o diálogo interpelativo com os textos dos ancestrais que escolhemos pode dar bons resultados e mais depressa, por saturação, escreveremos contra aquela orbe, afastando a influência. É como no luto, ultrapassa-se atravessando-o, com a dor e a irracionalidade necessárias. Tratemos a fascinação como um luto que temos de atravessar.

Quando cheguei a Moçambique, a erosão – humana, urbana e ambiental – que se me deparou era tão descomunal que tive vergonha pela frivolidade de noventa por cento das guerrinhas entre os meus amigos literatos, entre as diversas gerações ou capelas, mesquinhos dramas burgueses (e estendo a coisa aos que se julgam marginais e independentes), e durante algum tempo, face àquele choque da realidade, suspeitei do autárquico regime das metáforas. Deixei de conseguir ler Char ou Gamoneda. Do primeiro, só uma biografia que mostrava a dignidade do seu percurso de vida me recuperou o poeta; quanto a Gamoneda só o voltei a apreciar quando, após um jejum de cinco anos, me consenti voltar às metáforas.

Um dia numa aula abri a Poesia Toda do Herberto e li um poema aos alunos. Sangraram aquelas orelhas contra a espinhosa – sem referências mínimas para o desfrute e a beleza que, para mim, ali se engendrava; iluminando-se-me então que a beleza é algo que floresce na apropriação de um contexto -, e, simultaneamente, vi o aparato de que o poema se servia para camuflar que resvalava para uma vácua dimensão abstracta (- daí que, contra alguns, tenha gostado tanto do concreto para o qual guinou o Herberto, nos últimos livros). E a aula saiu dos eixos, usei de tesoura e cola e mudei o poema do Herberto, ou enxuguei-o em catorze versos. Telefonei-lhe para contar como lhe assassinara a vaidade, mas atendeu-me a dona Olga e de rajada perguntou sarcástica: “Então Cabrita, como vão essas pretas?”, o que me inibiu a tesão de mijo.

De outra vez, fiz crime de lesa-majestade ao emendar publicamente um poema de Craveirinha, um dos que mais gosto mas falho na chave final. Chama-se Exíguas Palavras: «Posso jurar que a solidão me tacteia. / Uma a uma esvaziando-se no rígido vazio / exíguas são as palavras que me ocorrem. / Rimas de livros fitam-me indulgentes. / Desde Camões ao Eça passando por Tolstoi / são-me vãs as respostas que contêm. // Um sobressalto interrompe-me a escrita. / Na maneira yankee de chamar deve ser o Hemingway. // Jamais estaremos socraticamente sós. Há sempre em nós um Chaplin. / Não são os grãos de areia um por um que povoam os desertos?// O que há de eterno não sou eu que tenho de o consumar. // É irritante o farfalho do vento nas persianas. / Mahatma Gandhi só sucede para os lados da Índia. // Não fumo. Volutas de cigarro são meu anacronismo. / Nem me faz sua volúpia a mínima gota de álcool. // Chateado levanto-me. Pressuroso. // Na torradeira as torradas estão a queimar-se.» Um homem faz contas à vida, às suas ilusões e precaridade das palavras, inexoravelmente sozinho com os seus modelos esfiapados pela realidade e que até os seus vícios vê declinar. Sobra-lhe apenas o riso com que a realidade num golpe brusco (maldita torradeira) se apodera do desanimo. Este poema é a branda ilustração de um ditado judaico que reza: “o homem pensa, Deus ri”, e no seu conseguimento é quase perfeito.

Mas não desisto de ser um leitor activo, e para mal dos meus pecados sempre li assim os versos finais: «Chateado levanto-me. Pressuroso. / Na torradeira as palavras estão a queimar-se.» Convençam-me de que não é o que falta ao poema.

O poema é, não raro, um caminho entre uma cidade e outra e é para ser transitado e intervencionado até que ambas as urbes cresçam intempestivas e num imprevisto sentido, e não a senhora púdica que não pode ser tocada.

Daí que escreva tudo de jacto e às vezes exponha esse precipitado no Facebook para me divertir, mas só o dou por acabado anos depois, estando a virgem convertida numa senhora muito dada à brincadeira. De Eva para Lillith, eis o caminho do poema.

30 Mai 2019

“Dá-lhe jindungo!”

[dropcap]C[/dropcap]ais do Sodré e as filas sempre longas para tudo. Entro, valido o novo e mágico passe social, o tal que, dizem, dá acesso a mais “leite, tabaco e drogas”. Deve ser o “Batido de atum para toda a gente!” deste século. Carris, eléctrico 15. Outro dia vinha, na sua versão moderna, silenciosa e bem menos charmosa, cheio de maratonistas femininas, t-shirt rosa a publicitar o evento. Era domingo e nem uma noiva de ares ucranianos faltou, bonita e sorridente, vestido branco em cascata. Não a esquecerei tão cedo, como não esqueço a velhota que, certa vez, no comboio, me falou da sua carreira de actriz, e mostrou fotos analógicas que, desconfio, trazia sempre consigo, como se fossem os seus verdadeiros documentos de identificação. Nelas, encontrei Gérard Depardieu composto, mais magro; foi no tempo em que ainda não trocara a França pela Rússia nem a nossa admiração pelos seus escândalos.

Este à minha beira é angolano, como o sotaque denuncia. Terá uns sessenta anos de pele clara e pouco tocada pelo tempo. Rapidamente lhe sinto o bafo a álcool, mas não me levanto, o carro vai cheio. Da última vez, num autocarro, fi-lo. Depois, observei a passageira seguinte enfiar tanto quanto pôde do rosto na gola da camisola (o inverno protege os audazes), ficando assim curvada o resto da viagem. Seria bom que tivéssemos como comunicar telepaticamente, nós passageiros incautos, numa espécie de Shining: atenção que esse esteve a beber desde manhã; olha que essa ainda não tomou banho esta semana. O verão, por sua vez, expõe todos. Ele vai proferindo pequenos insultos contra o que entende ser canalha irrompendo eléctrico adentro, e pergunto-me se é por desinteresse ou pena que nenhum dos visados o agride ou lhe responde. Mais rápido, já está, é passar, temos de ir embora!

Ele olha-me, pausa, as mãos hesitam, cheias de histórias. Fala. Desculpa, eu não reparei que estavas aqui. Lá se foi a minha boa sorte, olá radar de estranhos. Então agora podemos conversar.

És uma mulher bonita e interessante. Como é que vocês escrevem tão rápido? Eu não consigo… Isso. Dá-lhe jindungo, dá no jindungo! Saberá ele que voltei agora de Maputo? Grita, rosna, ri, ressona. Do álcool ou da apneia, quem sabe. Certo é que lhe vemos o pescoço tombar para trás a cada cinco minutos. Num momento está aqui e é a única voz que se ouve, no seguinte… bem, é o único ressonar que se ouve. Acorda ao fim de segundos, continuando o discurso de onde o interrompeu, como se tivéssemos sido nós e não ele a fechar os olhos. A mulher à minha frente continua a lançar-me olhares e sorrisos solidários. Eu tenho cada vez mais dificuldade em não rir, e evito olhar muito para ele.

Olha aquele a piscar-te o olho, estás a ver? Ele é paquistanês, tem um restaurante ali em baixo. Eu conheço-o. Está cheio de dinheiro. Ele é um bom partido para ti (eis um pretendente que também é casamenteiro). Dinheiro eu não tenho muito, eu sou assim-assim. Humm. Esse rapaz, esse tem qualquer coisa na mochila. Cuidado. Abriu, fechou… Este (o 15) agora só pára em Alcântara. Se eu fosse esse rapaz (o motorista) só parava em Algés. Ressona, ronca bem alto, acordado apenas pelos solavancos do eléctrico, em cujo percurso encontro simetrias com o seu discurso. Se ele deixasse aqui a mochila com a bomba… Olha eu então é que estava lixado, que era o primeiro a receber… a bomba. Bom. Ba. Bom-ba. Booomba. A palavra brinca-lhe perigosamente na fala. Eu, ele, espera aí… eu, ele, aquele, tu também um bocadinho (eu, obrigada, meu caro senhor, não quereria ficar de fora de tal acontecimento) e aquele jovem. A minha cara séria desfaz-se. É impossível não rir. Era bomba. Bom-ba. Boooom-ba. Íamos cantar Elton John lá para os anjinhos (deve estar a pensar em Candle in the wind, mas eu sugeriria Someone saved my life tonight). Mas pelo menos deixavas-me o casaco de pele. O alvo agora é um rapaz que vai em pé e o olha, preparando-se para sair na próxima paragem. Estava a brincar, gosto desse casaco. Deixavas-me o casaco de pele. E se eu deixasse a bomba E o casaco de pele? Pergunta o rapaz. Explodimos os três a rir. Só nós, não a bomba. Não sobrava nada, responde o homem. A malta brinca mas prestem atenção, temos de estar sempre atentos. Uma vez no metro entrou um gajo com um saco que fazia tic tac tic tac, as duas pessoas que estavam à minha frente fugiram logo e eu disse: pronto, se fui, fui-me. Mas o gajo agarrou o saco, levantou-se e saiu na paragem a seguir. Olha, não rezei. Disse apenas, se tiver de explodir, explodiu. Era uma vez eu. Paciência. Já não te conhecia. Deixei o carro em Algés e ainda tenho de ir para Cascais. Estou sozinho num T5. E chego a casa e, olha, fico a ver televisão. Se a bomba explodisse, eu não estava cá, tu não me conhecias, eu não te conhecia. É verdade (reitero, pensando em como a vida poderia ter-me poupado pelo menos ao seu hálito a lembrar uma das míticas personangens de Tieta do Agreste). Suspira novamente. Dá-lhe jindungo! Repete o seu mantra. Ressona novamente e de repente, como um pequeno motor. A porta abre, o eléctrico guina. Não pára, sempre a andar! Acelera, comanda ele, o motorista absorto no caminho, em silêncio.

Já vais sair? Já vais embora? Vou. Já não o vejo, mal o ouço, mas ele continua. Gingando e profetizando na noite.

30 Mai 2019

Odisseia nos espaços

[dropcap]R[/dropcap]evi ‘2001: Odisseia no Espaço’ há não muito tempo. A contracenar com a proto-lenda dos hominídeos, uma nave dirige-se para a estação espacial que Kubrick imaginou com a forma de uma dupla roda giratória. A banda sonora que acompanha a parte inicial da saga cósmica, a famosa valsa ‘Danúbio Azul’ de Johann Strauss II, suscitou-me profunda arrelia há quatro décadas e, desta vez, a coisa não passou de uma enigmática compaixão. À pulsão inicial (renhida) sucedeu uma quase insípida indiferença. E, no entanto, a fita era a mesma e a música replicava na perfeição a melodia estreada no carnaval de 1867 em Viena. Sou eu que hoje sou um outro.

Esta experiência de degustação existencial não é inédita. A música é uma excelente anfitriã para estes saltos no escuro, mas as cidades (ou os microcosmos) que já habitámos também o são. A ‘minha Évora’, a ‘minha Tomar’, a ‘minha Amesterdão’, o ‘meu Campo de Ourique’, para dar só alguns exemplos, são territórios que não existem para mais ninguém. São-me exclusivos e eu não saberia traduzi-los para uma outra pessoa. Trata-se de atmosferas (fóricas) que têm tornado permeável o meu face a face com o planeta (a nossa vida tem a sua ‘Route 66’ que se deixa ramificar por uma ilimitada rede de capilares).

Poder-se-ia dizer que estamos sempre em queda gravitacional, tendo como referência diversos centros, a maior parte deles instáveis, imprevisíveis. Mas essa queda vive em estado de perdição nos dois sentidos que a palavra oferece (as palavras são oferendas): seja na acepção de perda, seja na acepção do fascínio. Daí que a degustação de experiências passadas, que parecem domesticadas, não passe de puro funambulismo. Na verdade, caminhamos sempre em cima de uma estreita corda entre terraços de arranha-céus como o de Babel e a vulnerabilidade à vertigem e sobretudo ao desconhecido (com a idade, passa-se a dar ao desconhecimento um deslumbre especial) é ruidosa, no sentido de um sinal que é aleatório. E confirmamos então, se não o havíamos já feito antes por mera euforia, que tudo é intimamente transitório e que a perenidade (ou a eternidade) não passa de uma bela ideia dos humanos. Apenas isso.

Nas inúmeras teses sobre o tema (que alimentam a atracção por aquilo que não somos e que desejaríamos ser), há uma teoria dos estóicos que me agrada especialmente. Para essa corrente que habitou o Mediterrâneo durante quase meio milénio, dos idos de Zenão de Chipre a Marco Aurélio ou a Séneca, há dois princípios que constituem o cosmos: um activo, o “logos” ou “fogo inteligente” (a razão que estrutura o mundo), e um outro passivo que corresponde à matéria inerte (terra e água). Os elementos activos (fogo e ar) combinam-se para produzir a “pneuma”, ou força vital, que atravessa e sustém todos os corpos do universo, através de um duplo movimento: para dentro, unificando-os, e para fora, conferindo-lhes as qualidades. A pneuma, ou respiração universal, é, pois, uma espécie de escudo invisível e perene (isto é: que preserva e que se preserva eternamente).

Revelada a paixão estóica, devo referir que, para me aperceber de diferenças (o ‘Danúbio Azul’ escolhido por Kubrick é um óptimo exemplo), é preciso que se pise terra firme. Por outro lado, são as diferenças entre tudo o que se desencadeia diante de nós que nos permitem atribuir sentido à vida e ao que nela acontece. Se tudo se propagasse igual a si próprio e fora do tempo – seria assim a eternidade – não haveria sentido, nem necessidade de terra firme para colocar o corpo de pé e nele sentir a imprevista comoção suscitada por ‘2001: Odisseia no Espaço’.

A ‘terra firme’ a que metaforicamente me refiro deverá, de alguma maneira, corresponder à “pneuma” dos estóicos. Sem esse escudo, ou sem essa âncora que nos permite focar e objectivar os diversos passos do mundo, gravitaríamos sem consciência fosse do que fosse, tal como um protozoário unicelular cuja utopia maior passaria por poder tornar-se visível a olho nu, num futuro muito, muito longínquo (cumprindo, para novíssimos patamares, a famosa profecia dos “15 minutos de fama” de Andy Warhol).

30 Mai 2019

A apoteose do concerto grosso

Os Concerti Grossi, Op. 6, HWV 319-330 (ou Doze Grandes Concertos), de Georg Friedrich Händel, compostos para um trio concertino de dois violinos e violoncelo e uma orquestra de cordas ripieno em quatro partes com cravo continuo, contam-se entre os melhores exemplos no género concerto grosso barroco. Em grande parte compostos de material novo, foram publicados pela primeira vez em Londres por John Walsh em 1739, e tornaram-se, na segunda edição de 1741, a Opus 6 de Händel. Têm como modelo os antigos concerti da chiesa e os concerti grossi da camera de Arcangelo Corelli, em vez do concerto veneziano de três andamentos posterior de Antonio Vivaldi, tanto do agrado de Johann Sebastian Bach. Apesar do modelo convencional, Händel incorporou nos andamentos destes concertos toda a gama dos seus estilos composicionais, incluindo sonatas trio, árias operáticas, aberturas francesas, sinfonias italianas, árias, fugas, temas e variações e uma variedade de danças.

Devido às mudanças nos gostos populares londrinos, a temporada de 1737 foi desastrosa para a empresa de Händel, a segunda Royal Academy of Music, que naquela época administrava sozinho, e também para a sua companhia rival, a Opera of the Nobility. No final da temporada, Händel sofreu um colapso físico e mental, que resultou na paralisia dos dedos de uma mão. Persuadido por amigos, acabaria por ir para as termas de Aix-la-Chapelle (Aachen), onde experimentaria uma recuperação completa. Doravante, com excepção das óperas Giove in Argo, HWV A14 (1739), Imeneo, HWV 41 (1740) e Deidamia, HWV 42 (1741), Händel abandonaria a ópera italiana em favor do oratório inglês, um novo género musical por cuja criação foi grandemente responsável. O ano de 1739 assistiu à primeira apresentação do seu grande oratório Saul, HWV 53, da cantata Ode para o Dia de Santa Cecília, HWV 76, segundo um poema do poeta inglês John Dryden, e do renascimento da sua ópera pastoral ou serenata inglesa Acis e Galatea, HWV 49. No ano anterior, tinha produzido o oratório bíblico Israel no Egipto e em 1740 compôs L’Allegro, il Penseroso ed il Moderato, HWV 55, uma ode pastoral baseada na poesia de John Milton.

Händel compôs os Doze Grandes Concertos para a temporada de 1739-1740 do teatro The Lincoln’s Inn Fields, situado na Portugal Street em Londres, para serem executados nos intervalos dos seus oratórios, como um recurso para atrair público. Após o sucesso dos seus concertos para órgão Op. 4, o seu editor John Walsh encorajou-o a compor um novo conjunto de concertos para compra por assinatura sob uma Licença Real adquirida especialmente. Havia pouco mais de 100 inscritos, incluindo membros da família real, amigos, patronos, compositores, organistas e administradores de teatros. Walsh vendeu com sucesso a sua própria edição de 1715 dos célebres doze Concerti grossi, Op. 6, de Corelli, publicados pela primeira vez postumamente em Amesterdão, em 1714. A escolha posterior do mesmo número de opus para a segunda edição de 1741, o número de concertos e a forma musical não podem ter sido inteiramente acidentais, pois Händel, nos seus primeiros anos em Roma, havia encontrado e caído sob a influência de Corelli e da escola italiana. Os doze concertos foram produzidos num espaço de cinco semanas entre o final de Setembro e Outubro de 1739.
A composição dos Concerti grossi, Op. 6, tendo em conta o curto período de tempo sem precedentes da sua composição, de apenas pouco mais de um mês, parece ter sido um esforço consciente de Händel para produzir um conjunto de “obras-primas” orquestrais em homenagem aos sempre populares 12 Concerti Grossi, Op,. 6 de Corelli, bem como um registo duradouro das suas habilidades composicionais. Apesar da convencionalidade do modelo corelliano, os concertos são extremamente diversos e em parte experimentais, tirando proveito de todos os géneros musicais possíveis e influenciados por formas musicais de toda a Europa.

 

Sugestão de audição da obra:
G. F. Händel, Concerti grossi, Op, 6 Nos. 1-4
The English Concert, Trevor Pinnock – DG Archiv Produktion, 1984</strong

29 Mai 2019

O farol da barra

[dropcap]A[/dropcap]migos, deixem que vos fale hoje de pequenos anacronismos que resistem. E se o conseguem é porque são reservas perenes de humanidade, lugares onde estamos entregues a nós mesmos na companhia de estranhos. Deixem que vos fale de um lugar tão ideal quanto próximo, tão remoto quanto quotidiano, tão necessário como desapercebido. Deixem que vos fale da cumplicidade solitária dos balcões de bares ou de cervejaria – da barra, como é conhecido entre os iniciados.

Lugar para partilha ou meditação solitária, para conversas com estranhos que provavelmente nunca teríamos com os que temos por mais próximos. A barra, até pela sua disposição física, é um lugar igualitário: todos valemos o mesmo, todos estamos sentados ao lado de quem calhar, todos somos da mesma altura.

Eu pratico há muito a barra e sempre que posso encontro lá refúgio. Convém que seja num lugar onde sejamos reconhecidos, porque a conversa e o silêncio são dessa forma facilitados. É que também há isto na barra: a possibilidade do silêncio, algo que se está a tornar raro e precioso nos dias de hoje. Não falo do silêncio de quem conversa com ecrãs e outros telemóveis: isso não é silêncio, é isolamento voluntário e perigoso. Não, é aquele silêncio de quem está entregue a si próprio e o único eco que ouve vem dentro de si.

Mesmo quem não pratique a barra sabe do que falo porque a nossa cultura está cheia de referências sobre esses santuários, algumas mais românticas do que outras. Os quadros de Hopper, Humphrey Bogart em Casablanca a ser surpreendido ao balcão por um amor que julgava perdido, as canções de abandono de Sinatra… E aqui, como sempre, tenho que parar perante o maior profeta deste estilo de vida: vejam a capa de um dos seus melhores e mais tristes discos: No One Cares, álbum de 1959 dedicado aos que perderam e ainda estão à espera. Nela vemos o homem vestido com uma improvável gabardina branca, sentado sozinho ao balcão e olhando com tristeza para um copo vazio. Atrás dele, quase como se fosse por troça, vários casais dançam sorridentes. Disquinho duro, este, e recomendável que esteja fora do alcance das crianças.

Mas distraí-me, ajudem-me. Falava desta noção solitária do amor que se perdeu e que ainda se espera ao balcão. Outro grande campeão destes que perdem foi Lupicínio Rodrigues, cantor in excelsis da dor de corno. Os seus sambas simples e com vocabulário elementar dizem mais desta maleita do que alguns romances contemporâneos. E ainda por cima foi quem cunhou originalmente a expressão “dor de cotovelo”: não amigos, não se trata de inveja – a dor de cotovelo tem origem na posição prolongada dos braços em cima da barra enquanto alguém se lembra do amor que foi embora e planeia vinganças atrozes sobre quem o levou.

Mas a barra não vive apenas de perdas e tristezas: vive da alegria das cumplicidades efémeras, dos que entregam tudo no momento e para o momento. Não há exigências de maior nessas alturas.

Nem sequer a bebida é factor necessário (embora no meu caso seja sempre bem-vinda); o que interessa é a conversa, a deriva dos dias, sem necessidade de grandes pensamentos ou aforismos rebuscados. Tive a sorte de ter grandes companheiros de barra (lembro o poeta José Agostinho Baptista ou o grande Eduardo Guerra Carneiro), uns mais cultos do que outros, uns ilustres e outros anónimos. O que fazia (e faz) a magia desses encontros é a comunhão espontânea e sem compromisso. Falamos com o outro, aprendemos com o outro, ouvimos histórias, rimos, desassossegamos. Não é de espantar que um dos mais conhecidos praticantes desta modalidade – o realizador Fernando Lopes – me tenha um dia confessado na barra de um dos mais conhecidos restaurantes de Lisboa e seu poiso costumeiro: «Quando eu morrer gostava que o meu nome ficasse aqui gravado nesta cadeira».

Gosto deste lugar onde nos podemos desaguar. E constato com alegria que, a pouco e pouco, as mulheres reclamam o seu direito à barra que estupidamente lhes foi vedado pela pressão social.

Que assim continue. São precisos lugares onde possamos exercer as nossas solidões sem complexos, por mais felizmente precárias que essas solidões possam ser.

29 Mai 2019

Imagens passando

Mymosa, Lisboa, 13 Maio

 

[dropcap]P[/dropcap]arece Primavera, mas os dias não sabem a projecto. E, no entanto, ei-los que aportam a este cais poroso e desabrido, instável. Clássico e original à vez, este de que falo sem o nomear, deixa-me entusiasmado. Enlevado, até. Uma obra completa das radicais, com tanto por descobrir, ainda incómoda e desafiante, um pensamento de fio de navalha. Cheira-me que surgirá novo abysmo escrito pela mão de autor redivivo. E na conversa lhana que lhe dá sequência, Deus aflora, a querer suscitar outros fôlegos, sempre adiados. A tristeza recolhe-se por umas horas e deixo-me tombar na noite. Sem consolo.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Maio

São uma mão, as vezes que me sento a apresentar, pouco antes, a Festa de Ilustração. Custa-me cada vez mais subir o degrau daquele palco. Este ano, dá-se atenção redobrada ao humor desenhado, com a Cristina [Sampaio] no papel de convidada, e um olhar sobre o famigerado Tignous, um dos tombados do «Charlie Hebdo», modesta homenagem quando os tempos mandam sinais de que a liberdade não foi, nem será, conquista definitiva. Os medos entranham-se. O autor clássico, Manuel Lapa, não escapará das leituras proto-censórias que procuram a todo o custo reescrever a História, antes mesmo de a entender, no conforto dos gabinetes das academias. Assim se incomodem a ir espreitar a exposição, desta vez prolongada Verão adentro, antes de começar o digladiar das bandeiras. Do muito para ver e ler e até ouvir, mal ficaria não destacar a sempiterna «Ilustração Portuguesa», mai-las suas centenas de imagens. «Reúnem-se aqui apenas por coincidirem no ano que passou? Ou algum nexo, um estilo, uma cor as pode reunir? São estrelas solitárias a comporem uma constelação. Mais do que iluminar a noite escura, brilham para nos mostrar de que somos feitos: poeira de luz. Muitas destas imagens fortes continuam a voar sob o radar da atenção. Quantos de nós se deitam de costas a mirar o firmamento? Não perdem, por isso, a capacidade de nos atrair. Pela dança estética das formas, pelo que dizem ou mostram, por parecerem pedaços partidos de espelho. Parte de nós encontra-se aqui, estilhaçada. Vale muito a pena perdermo-nos à nossa procura.»

Casa da Música, Óbidos, 16 Maio

Por um triz não me vejo obrigado a deixar Lisboa sem o livro, que chega segundos antes da minha boleia se fazer à estrada. Óbidos recebe-nos chuvosa e fria. Acabo a montagem mesmo em cima da abertura do Latitudes, que mistura «Literatura e Viajantes». Demoro-me sempre mais do que devia nas imagens deste «Atrito», do André [Carrilho]. Viajo da maneira mais confortável, através dos olhos e das palavras dos outros. Não será o mesmo, mas quantos conheço que se fartam de andar pelo mundo estragando tanto para trazerem tão pouco? Não se aplica a regra a este andarilho, que anuncia parar com tais aguarelas nascidas no sítio em que o tocam. Não me canso de o sublinhar, acompanhadas depois por textos saborosíssimos. Quase não tive tempo de lamber a cria, a nossa primeira em off set digital, mas estou satisfeito, com a velocidade de produção, claro, mas sobretudo com o resultado vívido, que me permite multiplicar as horas vendo a alma de Macau, espelhada nos emaranhados de linhas ou nos cruzamentos de luz e velocidade (algures na página). Vou ali dar uma saltada a Shenzhen.

«A China moderna ultrapassa todas as expectativas e ri-se das nossas ideias preconcebidas. Quer que a conheçamos, e gentilmente nos estende a mão para uma viagem guiada. Uma viagem que é também o pretexto para conhecer visitantes e os mundos de onde vêm, do outro lado da muralha. Mundos que, à falta de melhor, estão representados nos mitos dos filmes de Hollywood e das grandes obras literárias. Ou, ainda melhor, estão ali ao lado num parque de diversões, espraiado debaixo da minha varanda de hotel.

O Windows of the World é a última etapa da estadia, obrigatória, e não desilude. É um gigantesco campo de percepção distorcida e, obviamente, diz tanto do Ocidente aos chineses que o visitam, como revela aos visitantes estrangeiros a ficção que a China tem do resto do mundo. (…) Mais adiante outra pequena ilha aloja o Capitólio de Washington, completa com uma multidão em miniatura que a visita e tira fotos. E eu tiro fotos também às miniaturas de turistas que tiram fotos às réplicas de monumentos americanos transplantados de uma fantasia chinesa. Mais adiante estão as Pirâmides do Egipto, mesmo ao lado da Esfinge de Gizé, e o respeito que lhes é dado é evidente, pela área desafogada que ocupam, à laia de deserto. Faz sentido, uma vez que provavelmente são as atracções cujos originais mais poderiam rivalizar com o que a civilização chinesa produziu ao longo de cinco séculos. (…) Acabamos o último dia em Shenzhen a rir das representações que a China faz do que vê à distância e que só podem ser em miniatura. E levamos connosco a suspeita de que o Império do Meio poderá um dia meter o Ocidente no bolso.»

Casa Saramago, Óbidos, 17 Maio

Não foi à primeira, como se o poeta se quisesse ficar pelo traço desenhado com as palavras do Carlos [Morais José], que tentou substituir o projector em panne. Um dia depois, lá se conseguiu ver «Pe San Le – O Poeta de Macau», da Rosa [Coutinho Cabral], com sucessivas aproximações a Pessanha através das reflexões e da omnipresença do Carlos, no papel de entendido e dilecto apaixonado. «Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!…» São hipnóticos os longos travellings que vão sugerindo uma Macau de outros tempos, ainda que fixada no âmbar dos gestos de hoje.

Livraria Santiago, Óbidos, 17 Maio
Não foram muitos os que ouviram o José Luiz [Tavares] dissertar acerca do lugar em que se encontra, entre línguas, a portuguesa, que maneja como poucos, e o crioulo materno. Temo que esteja condenado a esta ponte sobre um nada tão substancial, que percorreu agora em insuspeitadas direcções com estes fados, litanias, toadas, lengalengas e sarabandas, algumas que nos entram carne dentro. Ou dela partem. (Bem que tentámos preservar uns quantos mais afoitos, mas a guilhotina, não só não o permitiu como acabou atraindo a atenção para o que se queria recatado.) Nem a «Arder A Vida Inteira» se livra o poeta da sua sombra maior: Camões.

Artes e Letras, Óbidos, 18 Maio
Continua chuvosa a manhã, pelo que postámos as velhas carcaças, a do Luís [Gomes] e a deste vosso criado, nos famosíssimos cadeirões de contemplar prateleiras jamais virgens. Não sem antes dar saltada a uma África gravada há muito no olhar de exploradores holandeses, papel que se desfaz, volume que fala. Folgo em ver assentar esta irrequieta livraria, pejada de memórias vivas, finalmente protegida por muradas.

Casa Saramago, Óbidos, 18 Maio
É de vida feito, este «Anastasis», percurso sinuoso do Carlos [Morais José] por entre ruínas e textos, ajaezado agora com capa vítima da espontaneidade do traço livre do Rui [Garrido]. O copo que se derruba quer apenas dizer que a conversa está a meio. Há ainda a última história, pensamento que se esconde no verso, um reconhecimento por fazer. A poesia que aqui se apresenta de peito feito, desafiante, diz de quem preza tanto a casa que não consegue parar de partir.

29 Mai 2019

O bacalhau não existe

[dropcap]C[/dropcap]onheci a Camila em Sampa, no bairro dos Jardins, num jantar em casa de uma amiga comum. Começámos a conversar depois de um dos convivas, artista plástico, acabar de dizer que sem se fazer nada não se consegue fazer coisa nenhuma. Aquela estafada ladainha do ócio criativo. Camila disfarçou o sorriso e, ao reparar que me dei conta disso, pediu-me desculpa, sem que pudesse entender a razão. Devo ter ficado com ar de perplexidade, pois sentiu-se na obrigação de me explicar que se desculpara porque é de mau tom rir-se da humanidade próxima, ainda para mais num jantar com tantos amigos. Confesso que não tinha argumentos nem a favor nem contra. Camila era uma mulher nos seus trintas, magra e alta, descendente de libaneses, e disse-me que ganhava a vida a tratar pessoas. Quase a despropósito, acrescentou que, se achava de mau tom rir-se dos outros, a qualidade que mais apreciava num homem era a capacidade de rir de si mesmo. Brindei a isso! A conversa decorreu à volta do que eu estava a achar de São Paulo e do Brasil. Perguntei-lhe se conhecia o Líbano, ao que respondeu que não, mas tinha intenções de o fazer em breve. E continuamos a falar de viagens, passadas e futuras. As estafadas conversa de circunstância, como o ócio criativo.

Quando viu o gosto com que comia o ceviche que tinha sido servido, perguntou-me qual era o prato que melhor representava Portugal. Respondi que talvez fosse injusto destacar um prato, até porque onde a nossa culinária se expressa com mais originalidade é na doçaria. Mas Camila insistiu: “Por exemplo, quando pensamos no Peru pensamos em ceviche; em Espanha, na paella; qual o prato que as pessoas pensam quando pensam em Portugal?” Apesar de ser uma resposta manca, decidi-me pelo bacalhau, pois segundo consta temos mais de cem modos de confeccioná-lo. Camila permaneceu em silêncio. Resolvi improvisar e dizer-lhe que não deixava de ser curioso que o prato nacional fosse algo que não tínhamos no nosso próprio país. Fazer com que o nosso prato principal derivasse de uma espécie de peixe que íamos capturar a milhares de quilómetros de Portugal, dizia muito do povo que somos. Camila riu com gosto, tocou-me com familiaridade no braço e disse: “E você sabe que o bacalhau não existe, não sabe?” Fiquei atordoado e demorei um pouco a vir ao de cima: Como assim, não existe? Sorrindo, Camila explicou: “O bacalhau é um modo de preparar inúmeras espécies de peixes; não há um peixe que se chame bacalhau. Há várias espécies de peixes que se pescam, se preparam de igual modo e chegam à mesa com o nome de bacalhau. Na Amazónia também temos uma espécie com a qual se prepara bacalhau: o pirarucu.”

Poderia ter dito que só algumas dessas espécies são consideradas bacalhau, pelos portugueses, mas seria indiferente. Enquanto enchia de novo os nossos copos, oiço-a propor um brinde: “Aos portugueses, que fizeram do que não existe o seu prato principal!” Brindei com ela e acrescentei: é a nossa especialidade! Entre elas, a invenção de um país que não existia, o Brasil. Ao que Camila anuiu: “Sim, antes dos portugueses aqui chegarem, o que existia eram várias tribos espalhadas por um vasto território. Provavelmente sem os portugueses este vasto território iria tornar-se inúmeros países, como o que aconteceu no resto da América Latina.” Exactamente, Camila.

Quando os outros povos imigraram para cá, já os portugueses tinham inventado o que não existia. No fundo, o Brasil é uma espécie de bacalhau. Agora foi a vez dela rir e de eu fazer um brinde aos bacalhaus que não existem. Entre ela e eu, ficou tudo em águas de bacalhau, como se não existíssemos.

28 Mai 2019

Cantigas de Santa Maria

[dropcap]M[/dropcap]aio é aquele tempo que sabe a jogral pelo instante da gesta em flor que nos coloca nos cursos de água destes Cantares. Desfolhamos os de Amigo, tão nossos, tão primaveris, e sentimos uma alegria nova, um sentido de chão e cheiro a bailias, de amores, noites fecundas, e descemos até àquela Idade Média que nada tem das ditas trevas. Não devemos nomear assim tempo algum, pois que a todos subjaz a negritude, porém, nem todos nos dão esta forma sedutora. Mais treva do que a dos operários da primeira Revolução Industrial é difícil imaginar, sem recurso aos nichos da flora natural, nem aos campos em flor, morrendo jovens sem nunca ver o sol nos casebres das cidades onde jamais uma flor cresceu. E a Segunda Guerra? Jamais se vira também treva igual. As Primaveras não nasceram nesses anos, suplantadas que foram pelos gases da combustão dos cadáveres, e foi em Maio que findou.

Recuemos pois até ao título polémico «La grand clarté du Moyen Âge», que terá o seu zénite em pleno século XIII, onde se desfolham todas as artes e se unem diferenças mais tarde dissonantes. E é a Afonso X, o Sábio, a quem são atribuídas as Cantigas de Santa Maria desta época remota quem nos prende agora como os sonhos, avô de Dinis, tetravô de D.Pedro I, foi esse rei mecenas que quase poderíamos apelidar de rei da Península Ibérica nesse tempo de reconquistas e cujo extraordinário mérito foi o saber rodear-se de colaboradores muçulmanos, judeus e cristãos, uma forma laboral muito medieva, que só fez proporcionar a chegada deste legado.

Em galaico-português, a estrutura recobre várias temáticas para duas vertentes, a profana e a religiosa, a religiosa é predominante, reunida em quatrocentos poemas e transforma-se assim o rei no trovador mariânico. Escutado amiúde ao som de sinos, é nas noites de Maio que refulgem ainda em nós em ritmos de encantar, e quando despertos destes momentos, todos os sons ao redor nos parecem toscos, tristes, sem aquela infinita humidade cristalina; são os efeitos de uma trança muito bem orquestrada nas três religiões, e se os vários recitativos não são bem entendidos sabemos ouvir neles todas as emanações litúrgicas em seus sons.

Não raro estas Cantigas produzem pequenos milagres vibratórios como “a frescura de asa” que atribuímos sempre à manifestação, dado que as cantigas de milagre são mais expressivas que as de louvor na chamada proporção de nove para um, os milagres não são laudatórios, e em súmula sincrética e sintética, quase equivalem aos “haikus”. O narrador está na primeira pessoa e nada interfere nesta harmonia tão estranha para quem dela padece. Sempre a intertextualidade Bíblica será aqui uma menção honrosa com predomínio para o Velho Testamento, que os tradutores de Toledo, na sua maioria judeus, foram o elo imprescindível para a compilação de tais Cantigas, bem como a influência provençal tão presente e manifesta.

O bestiário da obra é um elemento de verosimilhança elementar na sua estrutura, assim como uma antiga flauta de Pã ou uma harpa de Orpheu encantasse os animais que sujeitos a melodias belas tivessem o ajuste anatómico a uma celebração, esta interação é por si um elemento de extrema delicadeza dado não excluir as criaturas, e foi a elas que por este tempo um outro foi composto «O Cântico das Criaturas», de Francisco de Assis.

O culto da Virgem é o tema dos trovadores que misturando lendas antigas, folclore e outros elementos contribuíram para uma enorme riqueza expressiva havendo em toda esta época a prática das romarias onde os romeiros edificaram os seus altares nas terras onde ainda hoje continuam presença viva estas tradições. As ermidas onde geralmente se tinham dado aparições foram por séculos lugares abençoados e ainda se mantêm transversais aos roteiros das viagens; o reportório de D. Afonso X é considerado o mais rico em termos de milagres narrados e daí a imensa disposição onírica dos cantares que envolve a soberania da manifesta presença a quem humildemente até um rei agradece com devoção e lealdade. A Dama. Ela está sempre presente ajudando um homem a livrar-se da sua natureza primária e dando-lhe o ensejo e a coragem de ser leal nas lutas que trava. É um tempo mariânico com toda a beleza que tal dote transporta, havendo a referência ao leite para testemunhar a divina substância da maternidade onde um seio é elevado a altar, outro dos elementos poéticos deste régio trovador.

E Maio aparece cantado e metaforicamente composto na «Rosa das Rosas» ….Rosa das rosas e Flor das flores Dona das donas “Senhor das senhores” e talvez um género híbrido apareça tomando o Paço de amores pelo pacto entre a Senhora e o monarca. A língua oral encontra-se aqui, a um tempo em que a escrita era reservada, e talvez seja esta a prestação mais humano destes Cantares. A língua é materna se fecundada por poetas. Foram glosadas as três línguas poéticas de então entre os trovadores, o galaico-português, a provençal e o toscano, e por louvor a D. Afonso, em terras distantes, era na língua em que este escrevia que firmavam os seus versos. Uma melodia que convém lembrar.

28 Mai 2019

Zheng Zhilong colabora com Macau

[dropcap]C[/dropcap]om a chegada da Dinastia Qing ao trono da China, Macau apoiou militarmente as forças de resistência Ming, mas em Beijing, junto ao manchu Imperador Chunzhi, tinha os jesuítas, pertencentes ao Padroado português, como um forte aliado a interceder por ela.

Tal facto permitiu aos portugueses a manutenção de Macau, servindo para manter aberto ao exterior o comércio da China, pois este estava controlado pelos piratas, pretendentes a restaurar a deposta Dinastia Ming, que varriam toda a costa chinesa. Era o caso de Zheng Sen (1624-83), nascido no Japão em 1624 de mãe japonesa e conhecido pelos europeus por Koxinga. O seu pai, Zheng Zhilong (1604-61) nascido a 16 de Abril de 1604 era natural de Nanan, Quanzhou em Fujian e com 18 anos veio para Macau onde foi convertido e baptizado católico com o nome de Nicolau Gaspar, apesar de nos Arquivos de Macau aparecer Gaspar Nicolau. Reconhecendo o bom dinheiro que se fazia no comercializar, Nicolau regressou a Fujian e colocou-se ao serviço de Li Han, um rico comerciante chinês com negócios no Japão, China e Taiwan. No Japão juntou-se a uma japonesa de apelido Tagawa e dessa relação nasceram o filho Zheng Sen (nome que em 1645 mudou para Zheng Chenggong) e a filha Úrsula de Vargas.

Em 1624 os holandeses tomaram o Sul de Taiwan e Iquan, nome dado por estes a Zheng Zhilong, por saber português, na altura a língua do trato, foi aí colocado pelo seu chefe como intérprete a trabalhar na Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC). Para Taiwan mudou os seus negócios e juntou-se ao pirata Yan Siqi quando a VOC começou a colocar fora da ilha quem lhe fazia frente. Os holandeses tentaram ainda usá-lo para lutar contra os espanhóis em Manila, mas ele em 1625 abandonou o trabalho de tradutor após a morte do seu chefe Li Han. Em Agosto desse mesmo ano herdou os navios e a riqueza deste e assim engrossando o grupo, tornou-o independente e fundou o Shi Ba Zhi. Dotado de grande coragem e ambicionando mais riquezas, o temido pirata comandava 400 juncos, passando a só reconhecer o nome de Zheng Zhilong. Para base usou Taiwan entre 1626 e 1628 de onde atacava as costas de Guangdong e Fujian, colocando aí grandes problemas à dinastia Ming. “Engrossada a sua armada acabaria por controlar todo o comércio estrangeiro da China, hábil intermédio, os seus interesses findariam por servir igualmente os nossos e os dos outros estrangeiros, desde os espanhóis das Filipinas aos holandeses da Batávia”, segundo Almerindo Lessa. Apenas roubava e raptava governantes e ricos negociantes, mas tratava bem o resto da população, ajudando mesmo os mais carenciados, levando as pessoas a acreditarem mais nele do que no Governo Ming.

Em fins de 1627 a frota contava já com mais de mil barcos, tendo-se apoderado de Amoy (mais tarde chamada Xiamen) de onde dominava a costa desde o Changjiang (Rio Longo, ou Yangtzé) a Zhujiang (Rio da Pérola). Com um mar infestado de piratas, o Imperador Chongzhen (1628-44) percebendo a força naval de Zhilong, não tendo como combatê-la, resolveu em 1628 nomeá-lo mandarim, tornando-o general comandante da frota imperial na costa de Fujian. Ficou com a função de limpar os mares de outros piratas, o que aceitou, estabelecendo em Amoy o quartel-general.

Quando no Japão em 1639 os cristãos portugueses foram expulsos, a sua filha aí nascida e baptizada, com eles fugiu para Macau e ao saber de tal, Zheng Zhilong enviou recado aos portugueses para lha mandarem. Mas estes não atenderam às pretensões e nem mesmo as terríveis ameaças lançadas sobre cercar Macau com a sua esquadra demoveram os portugueses da decisão. Em Macau, Úrsula de Vargas casou-se em 1642 com o macaense António Rodrigues, filho de Manuel Belo, e foram depois todos viver para Anhai (Amoy) muito devido à grande fome que grassava em Macau e aos distúrbios provocados pelas decisões do capitão da cidade, D. Sebastião Lobo da Silveira, que levaram à revolta dos habitantes divididos quanto à prisão dos espanhóis.

Na cidade de Anhai, o mandarim Zheng Zhilong tinha uma companhia de 300 soldados negros, cristãos com suas mulheres e filhos que recolheu de Macau e outras partes, sendo capitão um negro de bom talento e razão chamado Luís de Matos e uma vez por ano contavam com a vinda do jesuíta Pedro Canavari para tratar das coisas do espírito.

A 12 de Julho de 1644, numa assembleia do Senado os comerciantes de Macau desesperados sem cabedais, pois estavam há anos impedidos de ir ao Japão vender as suas mercadorias, aproveitaram as fazendas que desde 1641 tinham armazenadas a degradar-se e resolveram confiá-las a Zheng Zhilong, para este corsário amigo as ir vender no Japão. Assim foram transportadas para Nagasáqui à consignação as fazendas dos macaenses, voltando a prata a entrar em Macau, repetindo-se a viagem no ano seguinte. Gonçalo Mesquitela refere, “O contrato feito com os macaenses para esta ida ao Japão, foi cobrando os fretes a estes. Deus foi servido que a nau foi e voltou, tão rica que prosperou Macau em grande parte. A viagem repetiu-se nos anos seguintes e sempre com bons resultados. Iquan cumpriu sempre a sua parte nos contratos, mantendo-se temido corsário e poderoso aliado dos macaenses.”

Quando a nómada Dinastia Ming do Sul se deslocou para Fujian em 1645, Zheng Zhilong, em conjunto com Huang Daozhou, ajudou Zhu Yujian, o Príncipe de Tang, a tornar-se o Imperador Long Wu. Mas no Verão de 1646, o exército Qing atacou e Zheng Zhilong rendeu-se. Long Wu refugiou-se em Tingzhou, onde a 6 de Outubro foi capturado e executado.

Os manchus compraram com um cargo Zheng Zhilong e “para se livrar da sua formidável frota, os manchus lisonjearam-no com a promessa de o tornarem rei de Foquien (Fujian) e Kung-tung (Guangdong). A sua ambição, no entanto era maior: Ching Chi Lung aspirava ao trono dos Mings, o que significava passar por cima dos próprios manchus. Mas, em vez de os suplantar em astúcia, foi ele próprio ludibriado, tendo sido atraído a Pequim onde o imperador manchu o mandou atirar numa masmorra”, segundo Montalto de Jesus. O Padre Manuel Teixeira adita, ter seguido com ele Manuel Belo, pai de António Rodrigues, que aí ficou dois anos, mas refere ter sido Zhilong “preso traiçoeiramente pelos manchus em Amoy. Os escravos opuseram tenaz resistência, sendo mortos uns cem no combate e os restantes colocaram-se ao serviço dos manchus em Cantão, onde muito se distinguiram no cerco de 1647.”

Levado a ferros para Beijing com a família, onde o mantiveram preso, procuraram atrair o filho, Zheng Chenggong, que recusou abandonar os Ming e com outros que o seguiram do grupo do pai desde 1646 governava as costas de Fujian. Este, derrotado no estuário do Rio Yangtzé em 1659, voltou a Fujian e à frente de 25 mil pessoas partiu para Taiwan, onde após um cerco de nove meses tomou em Abril de 1661 a ilha aos holandeses.
Zheng Zhilong foi morto em Beijing em 1661 ou 1662.

27 Mai 2019

Uma campanha triste

[dropcap]A[/dropcap] campanha eleitoral que hoje termina foi a pior de sempre.

Nela se esparramaram as inanidades do costume, as manhas de sempre, o sacramental bacalhau a pataco, as picardias reles, o estafado espavento, tudo conforme ao figurino de propaganda em vigor desde o paleolítico da política portuguesa. Um cidadão que leia “Uma eleição perdida,” escrito em 1888 pelo Conde de Ficalho, estarrecerá com a atualidade da simpática e curial novela.

Ora se os tempos vão mudando, se os problemas e as carências de hoje não são os de ontem, e se as iniciativas políticas vão ficando milimetricamente na mesma, isto quer dizer que estão cada vez piores. Ninguém se admire, portanto, que os cidadãos “votem com os pés”, ou seja, que se abstenham maciçamente.

Mas quem terá convencido ou como se convenceram os directórios partidários que semelhante sortido de canastrões poderia sequer estimular o eleitor quanto mais imbuí-lo de um módico de confiança no seu voto?

Sucede que a disposição do eleitor é de interesse nulo para tais directórios, meramente movidos por contas intestinas na escolha dos candidatos. Para as Europas é remetido quem faça algum estorvo aos negócios correntes da política nacional, usualmente por se ter conotado com os anteriores mandantes do aparelho partidário. As vantagens da sinecura tornam o exílio dourado.

De tão formatadas e sonâmbulas as campanhas eleitorais converteram-se numa paródia da política.

Havendo alguma vantagem nesse corso carnavalesco será o de dividir os candidatos entre os tontos que ainda acreditam naquilo e os sonsos que fingem acreditar. Outra ainda será a de tirar a justa medida do atraso da corporação política nacional em comparação com as práticas eleitorais das democracias mais avançadas. Nestas, por via de uma exaustiva e apurada recolha e análise de dados os candidatos sabem perfeitamente a que portas hão-de bater e o que dizer em cada momento e lugar. Por cá a informação resume-se a sondagens mal-amanhadas e convenientes a de quem as encomendou. E depois fala-se de “progresso”, “inovação” e “futuro.”

Mas uma campanha à portuguesa não tem como objectivo o contacto com a população, que é trazida à colação para a fazer de “povo”, ou seja, de figurante. As campanhas concebem-se como encenações fornecidas à chusma de jornalistas que “andam na estrada” na cauda dos candidatos, na esperança de que deles se destilem “apontamentos de reportagem” capazes de atraírem a atenção do espectador, perdão eleitor.

Como que embaraçados por participarem no embuste alguns jornalistas empenham-se em dignificar a sua serventia confundindo imparcialidade com cinismo. Perante o espectáculo que lhes é proporcionado, em vez relevarem alguma substância política que pudessem compilar, recolhem umas anedotas de preferência grotescas. Entram então em cena as vendedeiras desbocadas, os desdentados a resmungarem parvoíces, os queixumes das velhinhas, os rurais brutos e sem filtro portanto autênticos. E assim se fixa e constrói a imagem mediática de um suposto Portugal profundo, um país que visto de relance mostra-se pitoresco e espontâneo, contudo repugnante e inabitável pela burguesia urbana.

Há nisto tudo um fundo de tragédia. Parte dos intervenientes têm consciência de quão decadente e degradante é a farsa em que se meteram e estão inteirados da desilusão e da repulsa que os cidadãos lhe devotam. Contudo a peça está montada para que não seja possível desempenhá-la de outra maneira. Tudo corre para um trágico desenlace.

24 Mai 2019

A grande dama do chá

Por Fernando Sobral

 

[dropcap]O[/dropcap] silêncio era total. Até os cães que guardavam a casa estavam deitados à porta a dormitar, indolentes. Conheciam Jin Shixin e, por isso, ela conseguiu aproximar-se silenciosamente do homem que estava sentado numa cadeira de bambu, virada para a praia de Cheoc Van. Este, sem se voltar, disse:

– Podes aproximar-te, doce Jin. Vem sentar-te a meu lado.

Esperava-a. Indicou uma cadeira vazia que estava ao lado de uma pequena mesa circular e virada também para o mar. Ela assim fez. Ele não olhou para ela. Continuou a fitar o mar através duns óculos escuros redondos. Vestia um fato de linho claro e, de vez em quando, abanava-se com um pequeno leque. Mas nem isso afugentava o calor. Sentado, Du Yuesheng, parecia ainda mais pequeno. A sua voz era um sussurro:

– Houve uma noite como esta em que estava a olhar para o rio Huangpu, em Xangai, e as águas estavam tão calmas como agora. Pareciam antecipar uma tempestade, daquelas que surgem sem aviso. Foi então que senti vontade de saltar do junco e caminhar sobre as águas. Sabia que era possível. Que estava a viver um sonho real.

O chinês olhou para Jin e sorriu.

– Porque não o fiz? Não sei. Ainda hoje acredito que só um pirata consegue caminhar sobre as águas. A morte não nos inquieta. Apenas mostra que somos insignificantes. Somos uma gota neste rio que nunca para. Um dia evaporamo-nos. Desaparecemos debaixo das águas. Não devemos ter medo: esse é o nosso mundo sólido. Foi então que percebi que nunca poderei morrer em terra. Não me sinto seguro aqui.

Jin acenou com a cabeça, complacente. Du olhou para o céu e continuou, no seu cantonês que Jin percebia, como se estivesse a falar sozinho:

-Sabes, Jin, o medo é como uma corrente de água. Não há nada de errado nisso, enquanto deixarem a água correr. Pelo contrário o ódio é como a água estagnada. Causa doenças.

A lua surgiu por detrás duma nuvem e reflectia-se agora no mar calmo. Apesar do ar continuar quente em Macau sabia-se que o prazer estava na sombra, na frescura, na solidão, na noite. O sol e o calor representavam a violência extrema. Du Yuesheng, outrora o homem que, com o seu Bando Verde, dominava Xangai, resignara-se à fuga, depois do confronto das tropas chinesas e japonesas na ponte Marco Polo, em Julho e das bombas que tinham rebentado junto à Nanjing Road em Agosto. Fora para Hong Kong, onde todos o julgavam agora. Mas, como alguém que conhecia como poucos o mundo das sombras e das traições, viera secretamente para Macau. Aqui estava em segurança, porque em Hong Kong os japoneses procuravam-no. Os seus olhos continuaram fixos no mar que o atraía. Lá, todos os homens tentam equilibrar-se. E sobreviver. As águas lavam o passado dos homens. E, em terra, este permanece sólido, incapaz de se dissolver. O mar cala os seus segredos. Em terra eles ecoam para sempre, como pesadelos. Só o nevoeiro une a terra e o mar, escondendo tudo, dissera-lhe T. V. Soong, o cunhado de Chiang Kai-shek. Agora acreditava nele. A lua nova estava no auge e a luminosidade era fraca. Nessas noites os peixes concentravam-se no fundo do mar. Por isso não se via um único barco de pesca daqueles que costumavam passar ao largo das areias da ilha de Coloane.

Jin reparava, agora, no olhar cansado do chinês. Típico de quem não dormia há muito.

– Que me contas, Jin?
– Temos problemas.
– Disseram-me que tiveste uma noite atribulada. E que ficaste ferida.
– De raspão. Nada de grave que o possa incomodar, senhor.
– Nem a ti?
– Nem a mim.
– Excelente. Foram os japoneses?
– Tenho a certeza, mestre Du. Eles estão por perto.

Du Yuesheng agarrou no copo de limonada que estava na mesa e levou-o aos lábios.

– Achas que está na altura de sair de Macau? Sabes qual é o meu destino final?
-Não.
– É melhor que não o saibas.

Mas Jin sabia. O chinês tinha um destino: a ilha Formosa. Dois morcegos passaram defronte deles, em busca de comida. Du Yuesheng disse:

– Vais ter sorte, Jin. É um sinal.
– O senhor também a terá.

Du deu uma pequena gargalhada:

– Eu não tenho tempo para usar a sorte.

A sua voz era como uma melodia triste. Durante minutos continuaram os dois muito calados a sentir a força da lua.

– É verdade. Houve mesmo um momento em que acreditei que poderia caminhar sobre as águas. Deslizar nelas. Acabei por acreditar na minha própria lenda. O meu junco era uma fortaleza que nunca iria ao fundo. Voava sob as águas.

A voz do chinês, de repente, tornou-se quase sombria. Como se toda a vida tivesse sido sugada dela. Era um Du Yuesheng diferente daquele que Jin conhecera em Xangai em clubes nocturnos como o Hengshe ou o Ciro’s, que fechavam às seis da manhã, e onde se cruzavam comerciantes, financeiros, pessoas dos cinemas, das discotecas e dos hotéis. E também polícias deferentes aos caprichos de Du. E onde as chinesas, com os seus vestidos de seda, e as russas, com os vestidos de noite muito decotados, e os seus olhos que pareciam violetas na Primavera, dançavam com os homens que procuravam o prazer desconhecido. Ali as raparigas bebiam cidra que aparecia como champanhe nas contas. E esses homens pagavam, sem protestar. A Nanking Road com os seus edifícios iluminados de 20 andares mostrava que Xangai não era um inferno. Era o céu no topo do céu, como alguém dissera. Du voltou a falar:

– Confias no português que te tratou?

Surpreendida pela pergunta, Jin teve de esperar alguns segundos antes de responder, algo que Du percebeu.

– Não confio em muita gente. E nele, não.
– É melhor assim. Mesmo que te tenha tratado. Mas pode ser-nos útil. Não está ao serviço dos japoneses.

Du era pragmático. Dividia assim os seres humanos. Os que estavam do seu lado eram pessoas. Os outros eram úteis ou inúteis.

– Não podemos permitir-nos gostar das pessoas. O coração é o traidor que temos mais próximo de nós.
– Não tenho paixões, mestre Du. Vi homens com que dormi a morrer de forma natural. E outros com buracos de balas. Ou mortos com uma navalha. Nada me dói.

Jin sentiu que Du Yuesheng estava cansado. Talvez fosse a última vez que o via. Ele disse:

– O desejo de saber tem sido o fim de muitos homens. Talvez o seja para quem me procura.

Olhou finalmente para Jin e não escondeu a tristeza:

– Continuas encantadora como sempre, doce Jin. Sei que velarás pelos meus interesses. Guarda o que é valioso para o nosso futuro. Um dia mo entregarás. E lembra-te: não há piedade para os vencidos. Aqueles que foram nossos companheiros em velhas batalhas não a terão por nós se estiverem do outro lado das águas. Por isso, tem cuidado.

24 Mai 2019

Miúdos especiais

[dropcap]O[/dropcap] meu filho Guilherme é autista. Autistas e autismos há muitos. É provavelmente a primeira coisa que me ocorre e digo quando falo com alguém acerca de autismo.

Embora a compreensão social da condição seja francamente melhor do que há 20 anos, ainda estamos algo reféns do modelo Rain man caricatural do autismo. Mesmo os profissionais de saúde têm pontos de vista muito pouco esclarecidos sobre o que é o autismo e como este se manifesta, partilhando não raras vezes a opinião infundada de que a carência de certas capacidades deve corresponder, numa proporção inversa, uma espécie de maximização das restantes competências ou mesmo a existência de competências tão metafísicas como indetectáveis. Na realidade, o autismo é muito menos romântico do que aquilo que aparenta ser no imaginário social. Quase tudo se faz de modo diferente no autismo. No caso do Guilherme, diria que tudo, desde ter a preocupação de deixar um copo limpo perto da torneira da cozinha para que ele não beba de um copo sujo como tirar um dente.

E é pelo dente que chegamos ao assunto desta crónica. O Guilherme tem um dente do siso ocluso com tendência para inflamar e infectar. Tem de ser extraído. O que implica uma anestesia geral (não há como persuadir um autista não verbal de que a dor pela qual está a passar é na verdade inevitável e o melhor para ele; aliás, esqueçam: não há como convencê-lo a estar de boca aberta uma hora ou mais enquanto desconhecidos de bata lhe escarafuncham os dentes). Tivemos portanto uma consulta de anestesiologia pré-operatória na semana passada – com duas horas de atraso sobre a hora marcada, o que não deixa de confirmar aquilo que penso sobre o SNS: bom para urgências de vida ou morte e doenças muito graves, mau para quase tudo o resto – na qual a médica, para além de passar aborrecidamente os olhos pelas análises ao sangue do Guilherme – “excelente nível de plaquetas, por aqui não vamos ter problemas” – não se coibiu de tecer alguns comentários acerca do quanto desconhecemos do autismo, não se refreando no entanto de ter imensas certezas acerca do quão especiais os autistas são.

A modorra de parte a parte foi apenas interrompida pelo esgar de surpresa da médica ao olhar para a radiografia torácica do Guilherme: “você sabia que o seu filho tem dextrocardia?” Uma pessoa nunca sabe muito bem responder a uma pergunta de que desconhece os termos enunciados. Que não, respondi, que nem sequer sabia a que corresponde o termo dextrocardia. A senhora lá me explicou numa vagareza de quem se dirige a pessoas com algum atraso que o coração do Guilherme estava ao contrário, e eu tão surpreso como admirado perguntei-lhe se tal era comum, se causava alguma complicação, ou se pelo contrário era apenas uma anomalia anatómica sem grande relevância. Que era assaz raro, garantiu-me, que na carreira dela de trinta anos só tinha visto dois casos, sendo o meu filho o segundo, e que em princípio nada de preocupante adviria da situação, mas que tínhamos de fazer exames suplementares, sublinhava, até para termos a certeza de que não se tratava de um erro do técnico de radiologia.

Eu fui para casa a pensar na dextrocardia, e consultando o Google percebi tratar-se de uma condição não tão inócua quanto me tinha sido descrita pela médica. Falei com a mãe do Guilherme, que entre reuniões recebeu a notícia como se de uma notificação de multa de estacionamento se tratasse. Mais tarde, quando conseguimos quinze minutos para falar com calma, ela entre perguntas e planos de usar o seguro de saúde dele para apressar exames e consultas, desfaz-se numa risada: “ele estava de frente quando tiraram a radiografia quando devia estar de costas, devia ter tirado de costas mas como ficava com a cara esborrachada contra a parede não aguentou e tiveram de tirar de frente…” Eu acompanhei-a na risada, claro, não sem me perguntar como era possível não existir uma anotação no exame em que se referisse esse facto. O meu filho, esse, mesmo sem dextrocardia continua a ser muito especial.

24 Mai 2019

A linguagem I

Noite de inverno
Georg Trakl

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela
Tocam, longamente, os sinos.
A mesa está pronta para muitos,
E a casa está bem arrumada.

Alguns chegam à porta,
Pelos caminhos sombrios da peregrinação.
Dourada floresce a árvore das bênçãos,
O suco fresco que vem da terra.

Caminhantes entram em silêncio.
O limiar petrifica a dor.
Aí, num clarão puro, reluzem
Pão e vinho sobre a mesa.

Ao comentar este poema de Trakl num ensaio, a Linguagem (Die Sprache), Heidegger faz a aproximação em várias frentes ao significado da linguagem poética de Trakl. A poesia usa a língua mas não para designar factos. Mesmo os factos têm sentido. Há uma diferença entre dizer que as temperaturas serão baixas e cairá neve numa noite de inverno, e o chamamento da noite de inverno. Há uma diferença entre o conteúdo de um boletim meteorológico e a vivência, a experiência que se faz da noite de inverno. A poesia chama à palavra. “Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade.” O chamamento convoca. Mas para onde? Pergunta H.? Para nos levar até ao longe ou trazer o longínquo até nós. Este lugar, onde o que é chamado permanece ainda, existe, não enquanto presença, mas “na sua ausência.” O lugar do longe não é espacial. Não é uma casa particular, numa localidade de uma região. Não é também o lugar do tempo unilinear do passado. Pode até dar-se o caso de nunca termos vivido uma noite de Inverno debaixo de neve. Este aí é multidimensional e não tem necessariamente referente.

As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são nem fácil nem imediatamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é uma mera expressão de factos reais e objectivos, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes. Existe como condição de possibilidade de transformação da própria realidade. A realidade dos factos existe apenas, depois de se haver neutralizado todo o potencial de significados. O facto como facto ocorre sempre já num acontecimento de sentido. Há, por isso, significado. Não, factos.
A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos.
A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos fora da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro.

24 Mai 2019

Difícil de compreender

[dropcap]U[/dropcap]ma das coisas mais difíceis de compreender é o talento. Com apenas 13 anos de idade, e sem nunca ter tocado nenhum instrumento ou ter músicos na família – o pai não distinguia o som de uma guitarra do de um órgão –, em apenas um mês de contacto com uma guitarra eléctrica, Gastão (Gas) tocava vários standards da música rock. Ao fim de seis meses tocava numa banda com uma acuidade impressionante. Saltava o muro da casa dele para a minha e passava horas a tocar no estúdio. Em um ano tocava guitarra melhor do que eu hei-de tocar em várias vidas. Atentava em detalhes que escapam à maioria, distinguia sons num disco que poucos conseguiam. O pai não só não punha obstáculos, como ainda estimulava, comprando-lhe o melhor material possível, pois felizmente o dinheiro não era um problema naquela casa. Ao Gas só lhe interessava o rock, mais nada. Por vezes, aparecia-me em casa e tocava um tema de jazz que tinha ouvido na rádio ou visto num vídeo, ou ainda um samba no violão, mas era apenas uma forma de mostrar-me que podia tocar outros estilos musicais, se quisesse. E podia.

Fui vê-lo tocar apenas duas vezes num bar: o seu primeiro show, pois era um marco na sua vida e ele fazia questão que eu fosse assistir; e depois, passados dois anos de ter iniciado a sua relação com a guitarra, quando inaugurava a sua banda de originais. As músicas eram todas compostas em parceria com o vocalista. A melodia da voz e as letras eram do Maurício (o Mau) e os arranjos dele. Tinham ambos 15 anos, estudavam juntos no mesmo liceu e, aliado ao enorme talento que tinham, viam o futuro mais brilhante que a luz de um verão de Floripa. Quando sai de Florianópolis, faltava-lhe um ano para acabar o liceu. No final iria para Boston, estudar guitarra e composição em Berklee, seguindo os passos dos seus ídolos, a banda Dream Theater. E assim foi, soube-o depois. Há um ano vi no youtube um vídeo dele, onde tocava jazz com o guitarrista e compositor Matthew Stevens, que foi durante algum tempo o maestro de Christian Scott e de Esperanza Spalding. Fiquei surpreso, mas não tanto. Já vi muitos guitarristas, ao crescerem, mudarem do rock para o jazz.

Mas se o talento é uma das coisas mais difíceis de compreender, a razão porque acontece a uns e não a outros, e como se desenvolve de forma tão perfeita como uma flor a despontar, outra também muito difícil de compreender é o mau tempo que se abate sobre o humano, em forma de depressão e de más decisões. Na semana passada soube por um amigo comum que o Gas se tinha suicidado, com 24 anos acabados de fazer. Desde que o conheci nunca teve falta de dinheiro, nem de futuro, nem de amor. Provavelmente do que sempre teve falta foi dele mesmo, e a juventude e o rock de algum modo foram escondendo essa falta. O Mau, que continua a cantar, numa banda em Sampa, ao lamentar a morte do amigo publicamente, escreveu no mural do Facebook: Deus dá e Deus tira. Ou isso ou outra coisa qualquer, desde que seja incompreensível, como fazer um filho, escrever um livro, compor uma música… Gas viveu 12 anos, desde o dia em que pôs as mãos nas seis cordas da guitarra até ao dia em que as pôs na corda onde pendurou a vida.

23 Mai 2019

É sempre a primeira vez

[dropcap]A[/dropcap]s palavras vinham esparsas. Mas ele sabia que era uma espécie de amor, aquilo que sentia, um amor pelas coisas boas, e aguardava a transmissão. Sabia ainda que não havia rede e que nada o iria sustentar na queda, se ela existisse. As palavras chegavam sem sentido. Avulsas. “Circo”. Ele teria ouvido: “Vem ter ao circo”. Vindo assim, sem convicção, num fragor que despontara de parte nenhuma. Quem? Como? Quando? Porquê? Nada. Não havia esclarecimento. O fio terminava ali. Sem novelo.

Na sua cabeça só havia campo. Lugar vago. Livre. Uma configuração não alinhada com planície, mas sob a forma de colinas que se desenvolviam sem feição e sem regras. Como se dentro delas o respirar da terra, para cima e para baixo, as tivesse deixado assim, desviadas da sua existência. Desmanchadas, esquecidas, tumorais. Com vegetação disforme a preencher o demorado espaço. Alguns arbustos, árvores sem fruto e sementes que não se agarravam ao chão, que ficavam ali, sem enleio. Forma solta de pensar. Na expectativa de que a imagem das colinas se desvanecesse e que daí surgisse a vastidão e a solução para a soma dos seus infortúnios. A planura.

“Circo!”

Não um substantivo, mas um verbo. Eu circo, tu circas. Por baixo, matéria oca. Vazio. Indefinição. A terra seca. Um quase silêncio. O seu corpo em tumulto, cheio de sede de metamorfismo e clarividência, a aguardar as ordens da transmissão. As palavras que não vinham. E isso, sabia-o, era o prenúncio de coisas más, de tudo aquilo que não queria repetir. O seu corpo feito em colina, ali deixado, sem gema, sem força para suportar o passado que se avistava. Não era a queda, nem o circo, que temia, mas a sombra já vivida da desilusão.

Nem era à retaguarda que o torcer do relógio aludia, porque os instantes prosseguiam bem aconchegados na sua torrente, desaguando oportunidades que sem transigência era necessário ocupar. A hora e a sua ponta, apinhadas de resíduos de outras cronografias, a demandar recomposição. O estridente refrão. Uma nova cena. Claquete! A luz da alvorada a repetir-se, inscrevendo histórias similares com o corpo embutido como protagonista. Dia após dia. Uma narrativa desconhecida para viver. Sobre o que iria versar o novo enredo, seria sobre uma pequenina aldeia no campo? Era preciso transpor o despertar para alcançar a feição da nova presença. A vã promessa de um vocábulo ao acordar. O foco. Luzes! A dor faminta de existência que brotava sem ser notada. Retirava pronomes. Retirava preposições. Retirava-se.

Não se é gente, não há valor, nesta obediência. Na ordem da escrita. O génio não raia. Tudo é invisibilidade. Tanto e nada disso importa. Agora. Aqui. Depois. É sempre a primeira vez. Inicia-se amanhã? O pretenso texto, a pretensa crónica?

Hoje. Agora. Aqui. Este momento rigoroso que não existe e que não chega a ser abordado. É uma ocasião que descende de outra, que leva a um inexperto enlace, onde o tempo se dilata. Decorria o intervalo passado e já se sucede uma nova reticência. Um tempo de ninguém. Demarcações verbais. Ele circa.

A intermitência onde nada acontece. Alguma coisa desliza e se incrementa. Um braço que aperta. Uma noite. Será já dia? Fecha-se uma porta, abre-se outra. Vozes que reclamam. Vento que passa. Leva os sussurros de um momento para o outro. Os odores, os nervos, os gritos. De um flanco, nada, porque tudo se foi. Do outro, igual, porque ainda nada surgiu. Não há vez na derradeira obscuridade que antecede a palavra inicial, que se espera límpida. O primeiro passo, na mão que avança. Pede-se que integre uma frase, para que mais à frente nutra um sentido. Algures. Algures muito mais à frente. Acolá.

Não se é gente, não há valor, nesta obediência. Na ordem da escrita. O génio não raia. Tudo é invisibilidade. Tanto e nada disso importa. Agora. Aqui. Depois. É sempre a primeira vez. Inicia-se amanhã? O pretenso texto, a pretensa crónica? Um homem assente na fachada do seu desentendimento. Uma coluna dórica. Com uma tragédia grega a esmoer-se por dentro. De mãos largas, a desenhar a linha do momento preciso, contra as regras do que já se afixou. O friso, a arquitrave, o capitel. Desastres. Veículos de pernas para o ar. Aí sabe-se que vai existir uma história para contar, uma história das boas. E no outro dia, mais uma. No espaço. O momento da alvorada repete-se. Além.

E uma espécie de amor.

Ele. Ainda a aguardar a transmissão, ponderava em contínuo sobre o “Circo” e o seu entendimento. Quem lhe terá dito, de onde terá surgido a alusão? Colava memórias que inventassem itinerários. Subterfúgios isolados. Talvez se tratasse de um monólogo. Uma cena desconexa num enredo de curta duração. A criação de um plano. Uma cama ao fundo da sala. Seria um quarto, seria o fim da noite? Um candeeiro de pé alto. Um tapete. Roupa espalhada no chão. Colinas. As sementes que se desprenderam e recomeçaram a raiar descendência. A querer apontar para o génio. Para o sabor do ânimo. “Vem!”, disseram-lhe. Os dedos visíveis. O ar que passa.

Lembra-se de coisas para contar, sobre os homens que viu. Figuras desagregadas, perdidas do seu domínio. Árvores que jamais darão fruto. Mas nada disso terá importância que se faça notar. Ou fome de dor. Não quis ir, ao circo, é o único elemento que reconhece. A solitária certeza que considera. O indefeso NÓS. Nós não circamos. E aqui vai. A história de um fim sem princípio e sem novelo, que na inocência da manhã trará outra realidade. Outro mundo. Um novo sol. Outra vinda. Que continua por contar. Para que possa dizer e indicar o sentido do caminho por percorrer. O famigerado termo. Em exclamação. Quantos são? Quantos se alinham? Quantos gritam?

Numa espécie de amor, o silêncio impera. O amor pelas coisas boas. Dissipado. As colinas não deram lugar à planície. Em seu lugar, surgiu a cidade. Onde se circa. A queda que levanta a palavra que não cai. Nem o remoer da urbe se ouve lá fora. Nem as frestas de outra vida. Apenas a resposta muda, sem boca, sem corpo. Sem gente. Nada mais do que um papel. E uma caneta. Até aqui.

A noite cai. Levanta-se o dia. O dia exacto.

  BANDA SONORA 

23 Mai 2019

Dina Pedro da Dinamite Team

[dropcap]Q[/dropcap]uem sobe a um ringue, tem as maiores expectativas, a da vitória. Um ringue é um laboratório vivo da vida. Quando um dos meus sobe ao ringue, eu só penso na sua vitória, por ele, pela minha Mestra, pela sua família e seus amigos. Quando alguém sobe a um ringue para combater só tem um pensamento na sua cabeça, a vitória. Se eu pudesse, fazia que só os meus ganhassem, mas há o combatente do outro canto, também tem a sua disciplina, a sua treinadora, a sua família e os seus amigos. Se eu pudesse, só os meus ganhariam. Não se pode entender mal o que eu digo. Não aposto por dinheiro.

Aposto o que os meus apostam. A vida toda. A vida toda não é a preparação para um combate.

Tenho assistido a meses que se estendem por anos.

Quando vemos um combatente treinar, só podemos acreditar nele, na sua técnica, na sua dieta, no seu sono, no seu treino. Nem nos passa pela cabeça que são corajosos. Parece que não sofrem nem com o treino, nem com a dieta. Muito menos, parece que sofrem com a dor física. E a dor física é de toda a espécie. Não é só a aceleração, não é só as horas sem descansarem bem até regressarem ao treino. É a dor que é tão aguda que só a adrelina a sufoca. Não é que não haja dor ao sofrer um golpe. Até pode parecer que se sofre, mas é mais a consciência de se ter perdido.

Não há dor. Há outra coisa. A compreensão de que o corpo apagou. E se não apagou, a mente já não vai buscar nada ao corpo. Podemos achar, quem vê de fora, que há violência. Violência há com armas e haveria se um fosse treinado e o outro combatente não.

Temos dois combatentes que não lutam um contra o outro, mas um com o outro. Se tudo tiver sido como mandam as regras, treinaram. Estão um para o outro. Mas eu tenho os meus e os outros terão os deles.

Eu pensava que os meus não perdiam.

Mas como não? Todos nós perdemos algures, em algum tempo na vida, com quem merecemos perder e com quem não merecemos perder. No knock down vai-se abaixo. Há contagens. O combatente ergue-se.

O que achamos nós que lhe passa pela cabeça? Não é perda. Quer-se erguer, quer ficar de pé, mostrar as luvas ao árbitro, mostrar que está apto a continuar. E quer continuar. Não, não pensa na dor, não pensa na família, não pensa na treinadora, não pensa em si. Sim: pensa em tudo, em todas as pessoas que o levaram ao ringue. Alguém no canto diz-lhe para respirar, para fazer a contagem: um, dois, três, quatro, cinco, seis, aos sete tenta levantar-se e levanta-se. Podemos pensar que fica ali, queremos que fique ali, porque somos a mãe ou o pai ou a namorada ou o namorado.

Mas a nossa treinadora diz coisas incompreensíveis para o público e para o outro canto. Diz qualquer coisa simples como: respira, levanta a guarda, bate com a perna esquerda no lado de dentro da direita, fica com a guarda alta.

O segundo round ecoa. Depois das miúdas anunciarem outro round. Ninguém vê como são belas. Não há sexo dentro de um ringue. Há a disputa da vitória. Há a liberdade para se disputar a vitória. Há a competência que quer a vitória, porque se é livre. O que se quer é a liberdade. Ninguém consegue perceber um combatente se não compreender que quer ser livre.

A vitória é a liberdade. A dor não existe. Existe depois, se calhar. Mas os combatentes querem a vitória porque decidiram ser livres. Pode ser um sonho de infância, mas nunca é um sonho negativo. Nunca ninguém ganha por raiva.

Só se ganha por… amor. Um combate é um acto de amor.

E tu vais ao tapete. É a segunda contagem. E levantas-te. Um, dois, três, quatro, cinco, seis… E lembras-te do que te disse a tua treinadora. Levanta-te com tempo. Toma o teu tempo.

E lá está outra vez o teu oponente. Pode parecer maior do que tu, mas tu não queres que nada acabe. Não tens tempo, agora, para que o combate acabe, queres que continue a eternidade, porque tu sabes que tens a técnica, a coragem.

E vais de novo ao tapete. O árbitro dá-te a terceira contagem.

Não foste ao tapete de qualquer maneira.

Do outro lado, comemoram a vitória.

E tu bates palmas ao teu oponente.
A vida é celebrada.

Lembras-te de todas as vezes que venceste. Sobretudo, uma vez mais, lembras-te do que pensaste quando perdeste da última vez.

“Segunda, quando tiver lambido as feridas do meu corpo e, sobretudo, as da minha alma, regresso aos treinos.”

E os treinos são no local sagrado, onde vais voltar a perder peso, fazer dieta, treinar.

E a tua treinadora diz-te: “acredito absolutamente em ti, querida, querido”.

23 Mai 2019

Profissão de fé

[dropcap]”A[/dropcap]os cento e dez anos de idade, cada ponto, cada linha que eu traçar vibrará de vida», previa o pintor japonês Hokusai no posfácio às suas Cem Vistas do Monte Fugi, e tenho para mim que ele tinha razão.

A obsessão da juventude, um dos efeitos que as obras de Mozart e Rimbaud imprimiram no sulco do modernismo, contaminou a sociedade de massas, impulso que depois o cinema converteria em “identificação com a luxúria de ser novo”. O rock e a contracultura consolidaram o mito da (eterna) juventude a que foi emprestado até um cunho fáustico; a hipótese de fazer “um pacto satânico”, em troca de um sucesso rápido, levanta como promessa saltar-se sobre várias etapas da vida, a longa duração a que a experiência obrigaria.

Hoje, os resultados desta «pressa em arder» são o mais das vezes frívolos, embora continue a haver quem logre grandes conseguimentos numa curta existência e, no domínio do rock, bastar-nos-ia a Amy Winehouse. Na generalidade, passa-se o contrário. A grande liberdade dos últimos Picassos ou de Rembrandt, o solto negrume de Goya na Casa do Surdo, os últimos quartetos de Beethoven, a qualidade de presença dos últimos desenhos de Hokusai, a qualidade iniludível dos últimos livros de Vicente Aleixandre, Mario Luzi, Seifert ou de Armando Silva Carvalho, a insofismável grandeza dos últimos vinte anos da carreira de Saramago. convidam-nos a encarar a idade como um delta que vai alargando o seu caudal (a isso exige a sua maior sedimentação) e não como uma espera em cujas ramagens se esgarçam os pássaros do outono. Em todos estes casos, quanto mais velhos mais jovens.

Tudo o que assinei até aos 38 anos, livros, argumentos de filmes, artigos, vogava ainda na lassidão imatura de quem crê pertencer a um circo imputrescível, tendo o nosso trapézio uma barra de ouro. Tolices. Retirei tudo da tábua bibliográfica.

É só pelo desapego que nos apercebemos que, na arte, não é a cola que faz a colagem. Esta é uma ilusão de todas as gerações. Outra: a que a expressividade tem de ter brilho. Com a idade começamos a almejar os “poucos recursos” do Harpo Marx, a inteligência da sua mudez. Menos palavras, mais densidade.

Afinal, não é tanto a literatura que interessa como descobrir que janelas abre a palavra para outro tipo de realidade; da mesma forma, o que nos transforma não é o que fazemos com o tempo (qualquer nababo endinheirado encontrará formas de despender o seu tempo) mas o indefinível movimento de dilatar o tempo. A poesia, a pintura, convocam a realidade, i. é, podem, num acto de reversão, exercer uma influência sobre o real, são operativas. Conta Simon Leys: «um cavalo dos estábulos imperiais de que Han Gan tinha sido encarregado de fazer o retrato pôs-se a coxear depois do artista se ter esquecido de pintar um dos seus cascos».

O bordado, o ronrom da literatura, não fica fora da agenda (estamos viciados nela) mas começa a atrair-nos os seus intervalos, onde, com sorte, desatamos a desempalhá-la. Pelo motivo que registou Bachelard: «A poesia é um dos destinos da palavra». Daí que a poesia seja imorredoura enquanto houver linguagem. Minimizar a poesia, querer reduzi-la à irrelevância, expõe na palavra a sua sombra em carne viva; só a poesia cura a palavra da funcionalidade e lhe dá ventilação. Sem a poesia, a palavra é um quarto carcomido pelo bolor, onde não chega a luz. A palavra tende a fossilizar, a poesia age como o emoliente que restitui a mobilidade às suas articulações. E, a ser sério, cada poeta será sobretudo «um investigador em poesia», mais do que uma personalidade poética.

O essencial, de facto, foi dito por Hokusai:

«Desenhava desde a idade dos seis anos toda a espécie de coisas, e a partir dos cinquenta os meus trabalhos foram frequentemente publicados. Mas até aos setenta anos eu não fiz nada que mereça verdadeiramente atenção. Não foi senão com setenta e três anos que comecei a compreender um pouco do crescimento das plantas e das árvores, a estrutura dos pássaros, dos animais, dos insectos e dos peixes. Aos oitenta anos, espero ter progredido nesta via e aos noventa poder penetrar até ao princípio latente das coisas, de maneira que aos cem anos tenha atingido na minha arte um nível maravilhoso. Aos cento e dez anos, cada ponto, cada linha que eu traçar vibrará de vida».

Na véspera dos oitenta anos, quando Hokusai desenhava uma mosca, no fundo só usava os dizeres da natureza – imitava. E pedia que o destino lhe desse mais dez anos para conseguir incubar na mosca o voo. Ou seja: toda a vida Hokusai desconfiou do seu primeiro esquisso. Mesmo já tendo direito a ele, pediu dez anos mais.

O traço justo ou a palavra justa, como lembra Júlio Pomar (e quando é que os poetas começarão a reivindicar este tremendo escritor?), não significa a justeza de um decalque mas o que “destapa” na forma um novo tipo de relação, seja a de uma imagem que de repente pulsa (a descolagem da mosca) ou a de uma palavra que desencadeou na frase uma corrente de ar.
Isto só se adquire depois de décadas a praticar, não é dado: é conquistado. Pior, durante o nosso trajecto de criadores, ensina-nos Matisse: «as regras, todos os ensinamentos colhidos no Louvre (da arte ou da vida), estão para o pintor como os flutuadores para o hidroavião: durante o voo a inutilidade deles é nula». Todavia, será vão querer ensinar ou transmitir isto – é preciso aprender para depois desaprender e essa experiência é indelegável, sendo isso que faz de cada uma um valor único.

Entretanto, di-lo o poeta sírio Adonis, o vento lê a rosas que o perfume escreveu.

23 Mai 2019

Grada e a linguagem inventada

“To speak…means above all to assume a culture, to support the weight of a civilization.”
— Frantz Fanon

 

[dropcap]D[/dropcap]a Gulbenkian vou para a Graça. De Sophia de Mello Breyner para Grada Kilomba, também ela presente na Gulbenkian, que acaba de adquirir a sua instalação em torno de Eco e Narciso. Não é um mau momento para estar viva. Sou contemporânea de ambas, afinal. Quando descobri a poesia, a única mulher que lia era Sophia, e assim foi durante o que parece ter durado muito tempo.

Tenho tempo e faz frio. Escolho o restaurante indiano de que toda a gente gosta e, assim que me sento, vejo-a passar para atender um telefonema. Chamo suavemente o seu nome, incrédula, digo olá e recebo um sorriso. Escolho água, uma chamuça de frango e o camarão com amendoim (não tivesse eu acabado de voltar de Moçambique). Um casal senta-se e assiste ao meu ritual distraído de repetir vezes sem conta a dose de um saboroso piripiri que, quando muito, me faz cócegas.

Fazem do espaço que sobra na minha mesa e na cadeira em frente à minha, seu. São simpáticos. O empregado traz-me um segundo copo, que não pedi, como se eu fosse partilhar da garrafa de vinho do casal. Respondo a mails, a mensagens, revejo notas. Alguém me faz uma festa no braço e diz: Até já. É ela, de novo, sorriso franco e bonito e as tranças grossas e compridas, o colar tornado pulseira longa, um permanente apontamento amarelo no pulso. É como se já a conhecesse, e certamente que nos reconhecemos.

Uma sala ora em silêncio ora em êxtase e comunhão. Uma sala cheia, com igual ou maior número de pessoas do lado de fora, em lamento. Filas que se vão formando para entrar e comprar o livro.

Para ouvir, mas começamos por ver. Assistimos ao vídeo da performance “Plantation Memories”, agora “Memórias da Plantação – Episódios Quotidianos de Racismo” (Orfeu Negro). A apresentação desta tradução de um livro escrito em inglês e só agora, ao fim de dez anos, traduzido para português, está a cargo da socióloga Cristina Roldão.

A língua portuguesa é uma língua muito colonial e muito patriarcal, e o nosso discurso de que é a língua mais bela, mais doce, idem. A violência de uma língua: quem pode e quem não pode representar a identidade humana. A língua define quem é humano e quem não é. Eu queria viver e trabalhar num espaço que me permitisse ser eu e reinventar uma linguagem que permitisse expressar-me. Eu fui a única estudante negra durante seis anos, mas acho que ninguém mais se apercebeu de que não havia jovens negros na universidade. Depois, fui a única professora negra, e dei aulas em duas universidades ao mesmo tempo, em Berlim, o que seria impossível em Portugal.

Senti que o livro foi a minha primeira linguagem, onde aprendi a escrever como eu sou e reinventar uma língua onde eu posso ser eu. O racismo trabalha com o ilógico, com o irracional, faz uma associação de imagens que, não o sendo, se tornam reais através dela.

Não há comoção no discurso de Grada (psicanalista, filósofa, autora, performer, mulher, negra, não necessariamente por esta ordem, não necessariamente só isto) se não para falar de um dos seus ídolos, Frantz Fanon, ou recordar os seus tempos de sprinter no Sporting, quando residia nas periferias negras de Lisboa, na linha de Sintra.

Quando se dá voz ao público, Solange Salvaterra Pinto fala dos muitos corpos negros na sala, sobretudo femininos, e de outros tantos em Portugal e de como são os que mais se vêem nos primeiros e nos últimos autocarros de cada dia, mas que parecem não existir nesse intervalo, não estão nas ruas mas escondidos, quem sabe nos hotéis e nos restaurantes (assombrados assim por vivos, penso); no fundo, se já não do autocarro, ainda dos lugares da frente da sociedade. E recordo-me de uma outra Solange (Knowles) e do seu tema “Weary”: I’m going look for my body yeah / I’ll be back real soon. Os corpos podem existir enquanto invisíveis, começa por responder Kilomba, portuguesa com origens em São Tomé e Príncipe e Angola, a esta observação retórica, que termina com um pedido de resposta ao problema da invisibilidade e da distribuição de papéis, que a mesma admite não saber resolver. Volto por momentos à Gulbenkian e ao Colóquio Internacional sobre Sophia. No primeiro dia, o escritor moçambicano Amosse Mucavele foi o único negro. Hoje sou eu, penso. Volto a Sophia e aos seus versos evocativos de transparência e de luz, de cor.

Eles (o público maioritariamente branco e da meia-idade para a frente) nunca viram tantos corpos negros a ocuparem a Gulbenkian, a narrarem, a definirem a sua própria narrativa, a serem os sujeitos e não os objectos da sua própria história. Esse é o meu papel enquanto artista, é criar o momento em que o activismo, a arte e a literatura começam a transformar a sociedade. Se passámos da negação da negação (Sartre), teremos chegado à segregação da segregação? Das muitas manifestações, eventos literários, seminários a que vou, este terá sido o momento de maior presença negra. Silêncio e riso, anuir de cabeça, alívio. Não há espaço branco nem caixa negra e sim um novo lugar, reinventado, elástico, móvel, seguro. A DJ Yen Sung abre a pista com outro tema marcante de Knowles, “Don’t touch my hair”, mas é ainda “Weary” que ouço: Be leery bout your place in the world / You’re feeling like you’re chasing the world / You’re leaving not a trace in the world / But you’re facing the world / I’m going look for my glory yeah / I’ll be back real soon. (…) But you know that a king is only a man / With flesh and bones he bleeds just like you do / He said “where does that leave you” / And do you belong? I do I do.

Grada parece ter escapado à maldição de Eco, não tivesse sido ela a primeira e a última a falar esta noite. O livro sai em Junho no Brasil. Livro, mulheres e noite incrível. E a presença que importa, a daqueles para e sobre quem este livro foi escrito. Agora é ler, reflectir e continuar o nosso trabalho, que é como quem diz, a nossa vida na sua forma mais inteira.

23 Mai 2019

Lavadeiras, privacidade e ameaças

[dropcap]P[/dropcap]or ter vivido em tempos particularmente conturbados, John Locke defendeu, no segundo ‘Tratado sobre o Governo Civil’, escrito em 1689 depois de ter regressado da Holanda a Inglaterra, que “o grande e principal fim de os homens se unirem em sociedade” (…) “é a preservação da propriedade privada”. Esta concepção de propriedade, independentemente de se aplicar a bens naturais, a instituições políticas ou a noções morais, reflecte a ideia de que a subjectividade humana é criadora e que é ela, por isso mesmo, que está na base de todos os valores (económicos, políticos, conceptuais, etc.). Apesar de outros antecedentes, esta declaração marca o início simbólico do ‘culto’ moderno da privacidade no Ocidente.

Este salto para os afãs da privacidade nunca foi linear. Em certas comunidades e bairros, a ‘sala de estar’ continuou a ser a rua. Filmes tão diversos como ‘Lisboa’ de Ray Milland (1956), ‘Canção de Lisboa’ de José Cottinelli Telmo (1933) ou ‘Amarcord’ (1973) e ‘La Strada’ (1954) de Fellini comprovam-no à saciedade. Foi Z. Bauman quem defendeu que uma comunidade não necessita de definir uma dada identidade, pois ela brota dos eflúvios que se encontram em permanência nos espaços de vizinhança. Nos bairros populares, de onde hoje em dia se está brutalmente a expulsar a memória de gerações e gerações, à custa da gula dos senhorios e do alojamento local, os remansos da vida privada sempre foram metafísica sem grande sentido.

Houve outras dimensões em que a vida moderna não deixou de provocar alergias severas aos quesitos da privacidade. Dando continuidade à ‘vida como mero trânsito’ (era essa a expressão dos místicos medievais), os monges do nosso tempo – muitos deles amantes de um cândido ‘offshore’ nas ilhas Caimão ou nas Bermudas – sempre insistiram na pertença a um deus e não a si mesmos, enquanto, noutros dogmas e catecismos, a apropriação colectiva já fez furores de multidão; nunca me sai da cabeça aquele momento do filme ‘Torrebela’ (1977), realizado por Thomas Harlan, em que um dos guias da revolução explica a um pobre proletário que a enxada deveria pertencer, a partir daquela gloriosa hora, ao povo e não apenas a ele.

À parte estes extravios aos pântanos da ‘normalidade’, é óbvio que a privacidade também teve – e tem – os seus comprimentos de onda. O mundo de cultura católica tende a ser muito mais confessional do que aquilo que acontece nas sociedades de matriz protestante. A individualização nos universos calvinistas contrasta com a roda viva dos cafés latinos onde tudo se desabafa, desoprime e muitas vezes inquina. Um bom português está sempre prestes a confessar aos amigos um impropério ou um crime. Um bom holandês prefere sofrer e monologar ao ‘seu deus’, de modo directo e sem mediações tramadas. Na realidade, o sentido de privacidade no norte da Europa nada tem que ver com a airada ‘opera buffa’ do sul. Locke deverá ter-se apercebido desta vicissitude, quando se demorou por Montpellier, década e meia antes de ter escrito os dois famosos ‘Tratados sobre o Governo Civil’.

Nos nossos tempos, muitas são as polémicas em torno da longa tradição da cultura da privacidade. Uma delas teve a sua origem na recente mediatização da violência doméstica, facto que contribuiu para que fossem transpostos – e bem – para o domínio público os crimes levados a cabo em atmosferas privadas (remando contra a antiga névoa proverbial que incitava a orações, tais como “Entre marido e mulher não se mete a colher”). Mas a mais temerária das polémicas é a que opõe a sociedade digital às imaginárias quietudes do nosso mundo. São conhecidas as denúncias dos sistemas 5G oriundos da China como são conhecidas práticas do tipo Cambridge Analytica (empresa que usou indevidamente dados de utilizadores do Facebook, tendo exposto quase 90 milhões de pessoas). Além disso, todos sabemos que basta ter um smartphone para que os nossos passos possam ser seguidos nos antípodas do planeta.

Miguel Pupo Correia escreveu há algumas semanas[1] sobre estes temas e sublinhou o facto de muitas das chamadas TV “inteligentes” – com o consentimento involuntário dos utilizadores (dando luz verde aos “termos e condições”) – recorrerem a tecnologias que capturam os sons à sua volta, para além de recolherem informação sobre os hábitos de visualização[2]. No momento em que estou a escrever esta crónica, é bem possível que alguém esteja a “atacar” a câmara do meu computador e a filmar-me, sem que disso eu me aperceba. Por estas e por outras, o autor chegou a defender a existência de dispositivos mecânicos simples (“um interruptor físico” que possa ser ligado “sem ajuda de software”[3]) e até de legislação que os conseguisse generalizar de modo a “garantir mais segurança”[4].

Locke percebeu no seu tempo a importância da salvaguarda da subjectividade e da privacidade. Os discursos sobre estes temas ‘construíram-nos’ ao longo do promissor limbo da era moderna. De repente, tudo ameaça esvair-se, vazar. Tal como as lavadeiras, que Joyce inventou em Finnegans Wake, deitavam fora a água suja da roupa que lavavam nas margens do rio Liffey. Mas é a ameaça, e não tanto o que se perde, que faz o nosso tempo. O que já foi o peso do pecado noutras eras, é hoje o peso quase apocalíptico de nos limitarmos a estar aqui de pé a olhar para a janela. Ou a olhar para o nada.



[1]Pupo Correia, Miguel. Os Big Brothers que se seguem em Público (06/05/19; 07/05/19 – 17h37)
https://www.publico.pt/2019/05/06/tecnologia/analise/big-brothers-seguem-1871532
[2] https://www.buzzfeednews.com/article/nicolenguyen/here-arethe-privacy-settings-you-shouldlook-at-if-you-have (06/05/19; 07/05/19 – 17h41)
[3] https://larrysanger. org/2019/04/vendors-must-startadding-physical-on-oè-switches-todevices-that-can-spy-on-us/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h50)
[4] https://puri.sm/learn/ hardware-kill-switches/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h56)

23 Mai 2019

Ainda não acabei

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Maio

[dropcap]T[/dropcap]rouxe-o comigo do lançamento d’ A Imortal da Graça, que as livrarias cobram-me sempre portagem. Por coincidência, as governam as boas vidas, vi depois anunciada a tradução deste «Sabrina», de um desconhecido Nick Drnaso (ed. Granta). Aliás, o meu desconhecimento do que se vai fazendo hoje na banda desenhada alastra, tristeza tão minha, como nódoa de petróleo. Esta notável novela gráfica, na linhagem do minimalismo de Chris Ware, diz-nos do presente andando sobre vidro partido. Com golpes narrativos de certeira subtileza, entramos de mansinho na vida das personagens, sem muito aprofundar, uma quase banalidade, todavia poética. As solidões só na aparência se tocam, limitam-se a conviver. Apesar do drama. A vida faz-se toda presa nas redes, sendo a opinião dos outros, talvez próximos, apenas mais um fio.

Somos fantasmas, figuras de papel à mercê de vandalismos vários: recortes, recomposições, rasgões, furos, amarrotamentos. Apenas brincadeiras. Apenas para que meter cada figurinha, nós, mas desatados, na fábula infantilóide de determinada perspectiva de mundo. Perturbador, com dose de intensidade e mistério que fere. Tive, algures, crónica onde defendia que os livros só nos tocam se lidos no momento exacto. Eis um caso.

Horta Seca, Lisboa, 4 Maio

Andávamos para o fazer há meses. Coincidindo com momento que pedia serenidade, recebemos o Mû [Mbana] para dedilhar cordas que prendem destinos. Convocou a Sandra [Martins] e o José [Anjos], além de outros amigos, que com ele cantaram, disseram, tocaram. Acolher um pedaço da Guiné-Bissau nesta casa invoca raízes e tempos que me parecem de outras vidas, não sendo, vejo agora. Nada tocando, para amarga e íntima tristeza, navego estas frustres articulações separadas por vírgulas. Por vezes, a busca de mudança significa meter as mãos na terra. Toquei em África raízes impressionantes. Sentia-lhes uma pulsação que logo rimava com coração e pulmão e o resto do corpo que lhes obedece, às vezes. A voz de Mû desenhada com os dedos nas cordas constrói centro, um nó de origens e tempos e histórias e vertigens, entretecendo tapete de possibilidades que são de transcendência. Estamos p’ra aqui em busca do rasgo no quotidiano, que permita a entrada da luz, que abra a própria luz e feche o seu núcleo em âmbar, em raiz de cola. Desatentos, custa-nos perceber que os diamantes estão onde menos o esperamos. Hoje, na horta seca, estendeu-se um chão possível.

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio

A dedicatória deste «Vida Nova» (ed. Turbina) contém os desejos de uma vida boa. Entre nova e boa, hesito. Melhorou qualquer coisa ouvindo este regressado Manel [Cruz], que não é apenas álbum, mas excelso volume de capa branca e amiga do toque, com título desalinhado e com corte. Sinais que se prolongam em série de pinturas do artista, letras inscritas em texturas ricas e variadas, sortido fino da ruína. (Exemplo algures na página). Este lugar faz-se de tessituras sem fim, ligando a letra à pele, o verso ao som, a crueza ao ritmo. Acresce a pujança das canções, feridas e irónicas, cansadas apesar de enérgicas, quase todas grito. Melancólico? O manifesto começa em tom confessional, o artista à procura de gesto que o traga ao momento, contra o tempo e a favor da infância, homem de novo a inventar-se em outra vida. Pode haver outro tema?

O cabaret de fim de século, adolescente como tudo o que renasce, abre a porta para deixar entrar corrente de ar de inteligência e ironia. E perda, como convém. Sento-me. «Eu desta vez vou conseguir/ Desta vez vou largar/ Eu não estou farto, eu cansei-me/ De que apenas parece/ Eu não sei se eu sou forte/ Só que tenho este grito/ Não contem comigo». Oiço uma e outra vez. E outra, sem pensar muito no nó dos sentidos. Vou ali passar as mãos nas paredes, em certa casa de Sintra, longe, tão longe, no tempo. «Desta vez eu desisto// De lutar contra a merda/ Eu sou feito de perda/ É mais do que um desabafo/ É uma voz que desperta/ Um consolo de abutre/ No direito à vivência/ Do pacote completo/

Não lamento palavras/ São o meu alimento». Lamento muito. Muito, mas. «Porque não pões um fim nessa vida sofrida?/ A resposta tem graça/ É que eu adoro esta vida!» esta vida sofrida tem graça. «Ainda não acabei!/ Vamos embora chorar, vamos embora sorrir/ Vamos embora sair, vamos embora ficar/ Vamos embora cair, vamos embora voltar/ Vamos embora ou não, são tudo coisas do chão».

Horta Seca, Lisboa, 9 Maio

Despois de «Anastasis», lanço, em breve, «Anastática». Pura coincidência, juro, fácil de comprovar nos longos atrasos a que me submeto. Imagino agora a confusão que fará na distribuidora, nas livrarias, nos incautos. Pelo inusitado dos vocábulos, arranhando a incompreensão dos poucos que não sabem googlar, e pelo inesperado dos que, visitando dicionários e memórias, descobrirão modos de renascer. Assim saiba eu ler o que ambos contêm de explosivo saber, sentido, sonho.

Horta Seca, Lisboa, 12 Maio

Em pleno caos e desatino, estou à mesa com Tóssan, o dos desenhos, sim, mas sobretudo o das palavras. Estou p’ra ver em papel o que, por enquanto, só brilha nos ecrãs: visões e revisões de três generosos volumes em caixa, casa de acolher uma daquelas obras que tendem a viajar sob os radares. E noto: «Desengane-se quem espere encontrar apenas motivo de riso. Anda por aqui «um algeiroz sofrendo da telha», a morte apresentando-se nas suas vestes de tédio, o tempo a discorrer, um olhar parado, perdido na linha de um qualquer horizonte. Estamos em pleno território do nonsense, esta ideia de que na arrumação dos dias, algo se desalinha. Algo animal que despenteia, até os dentes do pente. A máquina que nos faz avançar outra não é se não o trocadilho, esse modo de tornar elástica a língua, de a atirar a paisagens outras, de fornecer uma interpretação diversa. Está mais transparente nos poemas, ainda que os contos também se deixem contaminar por este olhar penetrante que entra nas palavras para nelas descobrir outras por pura convivência, com a conivência dos sons, mais o que perdura de uns nos outros.»

Se aqui o absurdo vira refrigério, ali somos parados por um verso, uma agudeza lógica, uma quase melancolia. «É no tempo que passa/ que recordamos o tempo que passa./ E é neste encontro que vamos/ criar saudade do reencontro.// A fome come o homem/ a ambição também o come/ como um abraço optimista/ a repetir o nome./ É como fazer as coisas/ sem as ter feito/ de emoção a emoção/ caminha no presente/ mas o futuro é solidão.» Na solidão do meu presente, procuro a custo devorar a fome que me come.

22 Mai 2019

A verdadeira rede

[dropcap]O[/dropcap]s bons hábitos são para ser mantidos. Infelizmente nesta altura este aparente truísmo tende a ser mais valorizado na promoção de exercício físico para uma “vida saudável” do que no que diz respeito às relações humanas e aos múltiplos aspectos em que interagimos uns com os outros.

Existe um bom hábito de que me orgulho de ter e sobretudo de o conseguir manter. Trata-se de poder contar com vários interlocutores (amigos, conhecidos) cuja opinião sobre variadíssimas matérias me merece confiança. É uma declinação adulta da troca de cromos: mostramos uns aos outros coisas que potencialmente achamos que o outro poderá gostar. Como esta actividade exige reciprocidade, toda a gente fica ganhar. E eis a raridade nestes tempos entrincheirados: muitas vezes discordamos e argumentamos, não para termos razão mas apenas para dizermos o que pensamos e dessa forma prestarmos um elogio a quem nos anunciou o que discutimos.

Este ritual tomou formas diversas aos longos dos anos: primeiro em reuniões adolescentes, com discos ou livros a serem exuberantemente dissecados com a palermice e a paixão da juventude; depois em conversas mais restritas, jantares, almoços, coisas de crescidos; e agora, de forma mais abrangente e imediata, graças à internet e às redes sociais.

Sim: nem tudo que a social media faz é mau. A sua função matricial – a partilha de informação – cumpre-se da melhor maneira quando alguém nos chama a atenção no momento. A função de argumentação é que já não corre tão bem; mas isso advém também deste clima e já são outros quinhentos.

Por isso resolvi fazer de vós interlocutores disto que vos quero mostrar. Melhor: de partilhar o conhecimento de alguém que na minha modesta opinião vale a pena. Chama-se David Brooks, tem vários livros publicados e nesta altura é colunista no New York Times. Uma pesquisa simples dir-vos-á que Brooks é um conservador da linha Edmund Burke (e da sua derivação americana, Alexander Hamilton), um homem de centro-direita excomungado pelos Republicanos pelas suas posições anti-Trump ou pró –casamento entre pessoas do mesmo sexo (coisa que qualquer conservador que se preze defende sem problemas em qualquer lado menos num país onde a direita religiosa tem um peso antigo e forte).

Mas apesar de me identificar com a família política de Brooks não é por isso que aqui o trago: é pelo que escreve, pelo que defende e que vai além da política. As suas colunas no NYT falam de valores, de comportamentos éticos: lealdade, moderação. São, neste tempo de radicalismos fáceis, beneficamente subversivas. Brooks fala de comunidade – abrangente, diversa – por oposição a tribo – exclusivista, beligerante. É um royceano: adjectivo que criei agora e que vem do filósofo americano Josiah Royce que cunhou uma expressão mais tarde utilizada por Martin Luther King, Jr – “the beloved community”, uma comunidade onde os opositores políticos reconhecem e honram a lealdade dos seus antagonistas às causas que defendem e sobre essa base as discutem.

Se isto parece distante aos valores propalados pela ortodoxia em que vivemos é porque é. Se puderem, um conselho: da mesma forma que um amigo me chamou a atenção para um podcast de uma entrevista de David Brooks assim eu o faço perante os que me lêem. Trata-se de uma espantosa conversa com Ezra Klein (“The Ezra Klein Show”) a partir do último livro de Brooks, The Second Mountain: The Quest For A Moral Life, um livro mais biográfico e escrito durante o seu annus horribilis, 2013, em que perdeu muito. A dada altura confessa: “Sobrepus o tempo às pessoas”. E di-lo não de uma forma salvífica ou de auto-ajuda: apenas uma constatação de que houve ali uma altura em que foi menos humano.

Se alguém for conhecer o que este homem pensa e escreve, mesmo que mais tarde vá discordar dele, já fico feliz. Porque acredito – acredito mesmo – que esta partilha simples, apaixonada e aberta de conhecimento é que continua a ser a verdadeira rede.

22 Mai 2019

A canção de amor de Serse

“Ombra mai fù”, a ária de abertura da ópera Serse, do compositor alemão naturalizado britânico Georg Friderich Händel, tornou-se uma das suas peças mais conhecidas após ter sido redescoberta e apresentada em 1924, quase 200 anos depois, no Festival Händel em Göttingen, na Alemanha.

Serse (ou Xerxes), HWV 40 é uma ópera em três actos composta e apresentada pela primeira vez em Londres no ano de 1738, cujo libreto foi adaptado por autor desconhecido de um libreto de Silvio Stampiglia (1664-1725) para uma ópera homónima (na verdade, Xerse) de Giovanni Bononcini (1670-1747), apresentada em Roma em 1694. O texto de Stampiglia, por sua vez, é uma adaptação do libreto de Nicolò Minato (1627?-1698), utilizado por Francesco Cavalli (1602-1676), discípulo de Claudio Monteverdi (1567-1643), na sua versão de Xerse de 1654.

Händel dedicou-se à composição de Serse logo após ter completado a ópera Faramondo, HWV 39, em 24 de Dezembro de 1737, tendo descansado somente durante o Natal. A partitura foi concluída em 14 de Fevereiro de 1738. Uma primeira apresentação em forma de concerto teve lugar no dia 28 de Março, mas a estreia no Haymarket de Londres só se deu a 15 de Abril. A obra não foi bem recebida na época, tendo havido nada mais do que cinco apresentações, a última no dia 2 de Maio.

A história passa-se por volta de 450 A.C., durante as Guerras Médicas entre a Pérsia e as cidades gregas. O personagem central é baseado livremente no imperador persa Serse I, o qual se prepara para construir uma ponte sobre o Helesponto, ligando a Anatólia à Europa para que seus exércitos marchem sobre as cidades da Grécia.

Originalmente composta para ser cantada por um castrato (e cantada em representações modernas por um contra-tenor, uma contralto ou uma meio-soprano), a ária “Ombra mai fù” tem sido frequentemente arranjada para outros tipos de voz e instrumentos, incluindo órgão solo, piano solo, violino e piano, e agrupamentos de cordas, muitas vezes sob o título “Largo de Serse”, embora o andamento original esteja marcado larghetto. Na ópera, a ária é precedida por um pequeno recitativo accompagnato de 9 compassos, que introduz a cena (“Frondi tenere e belle”).

A ária em si também é curta, consistindo em 52 compassos e durando tipicamente entre 3 e 4 minutos. É cantada pelo personagem principal, Serse I da Pérsia, e ao contrário do que se espera de um déspota e tirano, Serse, logo na primeira ária da ópera, numa atitude contemplativa e reflexiva, louva a beleza da sombra do seu amado platanus orientalis.

Frondi tenere e belle
del mio platano amato
per voi risplenda il fato.
Tuoni, lampi, e procelle
non v’oltraggino mai la cara pace,
né giunga a profanarvi austro rapace.

Ombra mai fu
di vegetabile,
cara ed amabile,
soave più.

Ramos frágeis e belos
do meu plátano amado,
deixem que o destino vos sorria.
Que os trovões, relâmpagos e tempestades
nunca perturbem a vossa querida paz,
nem os ventos que sopram vos profanem.

Nunca houve sombra
de qualquer planta
mais querida e adorável
ou mais suave.

Alguns autores sugerem que Serse é uma ópera muito pouco convencional para a época e que rompeu com os parâmetros da opera seria estabelecidos por compositores que utilizavam, por exemplo, libretos escritos a partir de textos de Metastasio (1698-1782). Não se sabe se Händel quis promover conscientemente um retorno aos padrões operáticos do final do século XVII, dada a proximidade com a obra de Giovanni Bononcini, ou se desejou simplesmente emprestar maior flexibilidade ao modelo da opera seria em uso, o qual, talvez, já estivesse a gerar um certo cansaço no público londrino. No entanto, o público pode ter ficado confuso com a natureza inovadora do trabalho. Ao contrário das suas outras óperas de Londres, Händel incluiu elementos cómicos (da opera buffa) em Serse. Embora tal fosse típico das obras venezianas do século XVII, como o cenário original do libreto de Cavalli, na década de 1730 era esperado que uma opera seria fosse totalmente séria, sem misturar tragédia e comédia ou personagens de classe alta e baixa. Outro aspecto incomum de Serse é o número de árias curtas, de uma parte, quando uma opera seria típica do tempo de Händel era quase inteiramente composta por longas árias da capo em três partes. É provável que HÄndel tenha sido influenciado, tanto no que diz respeito à comédia quanto à ausência de árias da capo, pelo sucesso em Londres de óperas balada como A Ópera do Mendigo e O Dragão de Wantley, ambas de John Frederick Lampe.

Essa espécie de retorno ao século XVII é vista hoje como uma característica intrigante da ópera, uma vez que, de certa forma, ela também aponta para o final do século XVIII e para Mozart com o seu dramma giocoso. Para muitos é a mais Mozartiana das óperas de Händel, mas não há como saber se Mozart conheceu a obra de Händel. De todo o modo, a afinidade entre os compositores não é propriamente musical. Os seus vínculos referem-se à afinidade criativa e a aspectos dramáticos que nos oferecem uma comédia sofisticada mas que se aproxima da tragédia. Nesse sentido, como nas óperas da maturidade de Mozart, e especialmente Don Giovanni (1787), o personagem Elviro empresta à trama o seu toque cómico, que tem paralelos com Leporello, enquanto o personagem principal, Serse, expõe faces múltiplas da personalidade de um tirano que não aceita que existam obstáculos para os seus desejos, como, até certo ponto, o próprio Don Giovanni.

Sugestão de audição da obra:
Andreas Scholl, countertenor
G. F. Händel, Ombra mai fù: Arias from Giulio Cesare, Admeto, Radamisto, Rodelinda, Serse, Alcina
Akademie für Alte Musik Berlin – harmonia mundi s.a., 1999

21 Mai 2019