Os cavaleiros do amor

Todos os pretextos são bons para lembrar autores tão escondidos como Sampaio Bruno, não pela matéria do entendimento (uma vez que o tempo actual não é condizente com a matéria tratada) mas por serem necessários e urgentes no combate ao pensamento único interpretado por milhares de vozes.

Falta tempo ao nosso tempo, e o tempo que sobra não tem tempo para aquilo que não foque temporariamente a raiz dos problemas comuns, que por acaso são cada vez mais incomuns, na medida em que se nos apresentam como irresolúveis. Mas há um tempo em que nada fala mais alto que os saberes não revelados – revelar – voltar a velar. Processos dialécticos de ínfima construção se abatem neste nosso real, e quando já cansados do asfalto das superfícies teremos então de entrar numa zona de «Encoberto» ou as muitas vozes plenas de justo raciocínio e objetividade podem enlouquecer-nos, ou fazer de um ser um parasita que se esforça para tirar de si o que de si mesmo desconhece.

Sampaio Bruno, de seu nome José Pereira de Sampaio, é considerado o fundador da Filosofia Portuguesa. A sua origem maçónica, a sua filiação republicana foram factores determinantes para a construção da sua moral cívica. Redactor do Manifesto Republicano do malogrado 31 de Janeiro de 1891, onde em conjunto com Antero de Quental também elabora os estatutos da Liga Patriótica do Norte, Sampaio Bruno é sem dúvida uma incontornável personalidade a quem o exílio em Paris fragilizou. O desvio dos princípios racionalistas da sua juventude destronam-se subitamente, ou não tanto, talvez até gradualmente, e Bruno ensimesmado, incansável, desiludido com a República, solitário e de saber tamanho, torna-se um esotérico, uma natureza religiosa, estruturando elementos que faltavam para a construção de uma Filosofia (independentemente do complexo conceito que neste caso convém ter em atenção). Os múltiplos aspectos de que se reveste talvez não sejam consentâneos com a Filosofia em si, mas a Ibéria reescreve um seu modelo filosófico onde esta voz foi importante para deixar abertas as portas deste diálogo.

É claro que Fernando Pessoa o seguiu e consultou durante toda a sua vida, chegando mesmo a enviar-lhe o primeiro original de «Orpheu» e, acaso os mistérios falem, nem as datas aqui devem ficar por contar: Sampaio Bruno nasceu no dia em que Pessoa morreu. Os Cavaleiros do Amor, o livro que se intitula também – Plano de um livro a fazer – é uma obra complexa e apaixonante, intrigante, talvez demasiado onírica e pejada de conhecimentos que necessitam um caminhar constante nos trilhos de outros saberes, mas é neste mês de Abril que ele ergue o seu dom de manifestação e cariz profético. Nas nossas vidas, vimo-los e saudámo-los, aconteceu esse belo acaso sem que soubéssemos que estava anunciado, e quem são e ao que vêm estes Cavaleiros?

Numa contemplação esotérica de enunciação remota eles são os Capitães de Abril e a sua mensagem é esta na voz do autor: os tais libertos libertadores, libertando-se a si, libertando os seus irmãos da espécie, contribuem para a libertação universal. É uma mensagem colectiva que ganhou na marcha o efeito sonhado. São as aspectos arquetípicos que possibilitaram a manifestação.

E é por isso que os ângulos de um acontecimento não se esgotam nos seus reais efeitos, pode-se festejar a forma rara deste anunciado por prismas outros e continuar a Festa muito para além do seu artefacto. Creio mesmo que faltou uma abordagem diferente desta etapa da vida portuguesa, e isso iria reflectir-se da pior maneira. Que seja Sampaio Bruno, o grande «Encoberto», a desvendar a marcha, talvez nem queira agora dizer nada pois que ela fala por si na fonte das coisas imperecíveis. E quando cansados do trilho das sociedades nos preparamos para andar à roda de nós mesmos no ciclo fechado que nos atavia de mortes póstumas pelo festejar rotativo de algo por interpretar, seria bom conhecer melhor os nossos Cavaleiros do Amor. Nada é de facto mais parecido; nem faltou a juventude, a beleza, o arrojo, e um Maia lembrando as festas da Primavera, as «Maias», os «Maias» … os Maios.

No entender de tudo isto e indo à essência pura do registo que aqui nos traz, e sabendo-o, ao autor, um conhecedor de todas as Ordens e um seu herdeiro, diz assim: «Todavia, – quero ter a coragem de dizê-lo, consoante ainda rapaz me atrevi a dizê-lo a meu próprio pai -, em regra, e como princípio geral superior, não simpatizo com associações secretas, e não simpatizo com associações secretas porque é força da sua essência que elas façam prevalecer sobre a ideia da justiça para todos, a ideia da protecção para alguns; e, assim, sacrificam o direito profano à iniquidade do iniciado, com cuja causa o laço da misteriosa solidariedade se aperta. »

Ficam assim os efeitos germinais que de longe vêm para um tempo comum agora aqui, e que olha para onde? Endogâmico, incapaz de estabelecer contacto com a frustrante derrocada da sua liberdade, conspirando por deficiência para o aniquilamento de si mesmo, pode no entanto abrir ainda todas as portas que Abril abriu! Tudo o que está escondido é protegido por um anjo que incólume andará por entre as gentes. É tempo de o encontrar.

21 Mai 2019

Escritos ântumos, postumamente

[dropcap]M[/dropcap]as… onde ides? Assim tão lampeiro, ligeiro, com esse riso solto e casquinado, de quem segue adiante, sem lançar, para trás, sequer um olhar de remorsa despedida. Pois, vinde cá, meu tão certo secretário, de que foges? É do bico da pena, das cócegas inquietas, que te escusas, zombeteiro? Mas se já nem é com a pena que vos escrevo. E disso, sim, na verdade tenho pena. Vá, ouvide só, este manso martelar, sincopado, do computador: há tanto que perdesteis a pena leve do voar.

Cansado de ser leito de lágrimas, com que os poetas sempre a pena desafogam os queixumes, querendo deixar cair as penas do lamentos, contornais a enfastiada pena do escrever e arriba, galgando, pondes-te à fresca, em busca de penas com que voar. Tendes razão! Quem não preferiria planar para outros mundos, em que nascer é cousa chocalheira e não o trânsito funéreo da materna sepultura para o surdo destino das sem razões. Sendo assim, vinde, meu secretário: vinde sem medos, que, de uma penada te tiro as penas: hoje acolhereis José Sesisnando, poeta da leveza, cujo pensamento sempre sobe aos mais altos lugares; escritor avesso a pesos e lamentos.

José Sesinando Palla e Carmo, José Sesinando, só, para os leitores cúmplices de humores de galhardia, é um autor, poeta, brincador de línguas, o que lhe quiserdes chamar. É um escritor capaz de depenar a língua, a crítica, a própria linguagem e seus sentidos, para nosso gaúdio, que ali ficamos a admirar o ridículo do bicho, assim, a nu. Garanto-vos que, se penas houverdes, desta vez, será somente a pena não vos ser mostrado tudo o que esta «Obra Perfeitamente Incompleta», ora publicada pela «Tinta da China», na colecção humorística de Ricardo Araújo Pereira, com edição de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, responsável pelo prefácio, que bem faz jus ao livro.

No livro reúne-se a já esgotadíssima «Obra Ântuma», publicada, em 1986, pela «Edições Europa-América» e duas edições de autor: uma com 50 versões do «Soneto já Antigo», de Fernando Pessoa, e outra, composta por 65 variações sobre o poema «Autopsicografia». Nesta secção, aliás, o poeta passa a ser, à vez, um «roedor», um «pecador», um «pescador», um «cobertor», tão só um «senhor», ou um «péssimo actor», uma «estação», um «sabão» ou um «irmão», ou mesmo um malabarista, quando o pastiche vai além da sonoridade e ganha a liberdade acrobática que Sesinando lhe que quer emprestar.

A editora e, ainda bem, comete na edição a prudência da antítese, quase da paraprosdokian, bem explicada por Barros Baptista, no prefácio: E, assim, podemos louvar à «Tinta da China», finalmente, a publicação póstuma da obra ântuma de Sesinando.

O livro, no seu conjunto, é um completo tratado de humor. A primeira parte, «Prolegómenos», inclui uma «Nótula de Abertura», do próprio Sesinando, «Pallavras Prévias», desta feita, da responsabilidade de José Palla e Carmo, além de uma «Advertência» e um «Prefácio», de Archimbaldo Th. Leonardes e a Leonardes Júnior, respectivamente. Este último, aliás, é bastante elucidativo quanto às qualidades de Sesinando: «Serei breve, mas indeciso. José Sesinando parece-me constituir um daqueles raríssimos casos, em Portugal, de autêntico génio.», remetendo de seguida para uma nota de rodapé corroborando a informação prestada: «Cf. Saraiva (não nos recordamos qual deles), O Génio em Portugal, desde as Origens até ao Século XII, Lisboa, sem data, p.9 e última.»

A segunda parte da «Obra Ântuma», «O texto: Prosa» dá conta de verdadeiros tratados reflexivos sobre coisa nenhuma, mas em que se descasca a língua mesmo até ao caroço. Leia-se parte da «erudita comunicação», intitulada «To ser or not to estar», para se compreender, como na medula de um povo, está a sua própria língua:

«[…] Com efeito, como nem toda a gente – muito pelo contrário- consegue ser, os outros devem contentar-se com estar. Nisto (…), a língua portuguesa serve bem o nosso condicionalismo, já que nas outras linguagens — tais a teutónica, angla e a franca – o mesmo verso exprime as duas situações.

Disso decorre que, nessas outras nações, quem está é, e quem é está. Quando alguém bate à porta, a pergunta que vem do interior soa-lhe não «Quem é?», mas sim «Quem está?». Ao telefone, não se pergunta estupidamente: «Está?» (ou «Está lá»); diz-se: «É?» (ou «É lá?», ou ainda, com inflexão caucionante, «Eh, lá».

Por sua vez( e diga-se entre parênteses que estas investigações histórico-linguísticas são apaixonantes – e podemos dizê-lo sem qualquer pejo entre parênteses, já que não é por isso que nos caem os parênteses na lama), o uso do «É lá» em vez do está lá» motivou que, em vez da palavra e do conceito de raiz portuguesa estalagem ( está-lá-gem, que por sua vez era a contracção de está- lá-gente), se fala nessas outras áreas idiomáticas de elagem ( é-la-gem ou he-lá-gem, de é-la-gem, de é-lá-gem ou eh-lá, gente!). Nessas outras paragens, portanto, o estalajadeiro, ou melhor, o eladeiro, vai para a porta saudar as gentes passantes para as angariar como hóspedes; não vai estalá-las, como entre nós, mas sim éla-las – em francês héler, em inglês to hail, em alemão heilen, em brasileiro alô.»

A «Obra Ântuma», além da prosa inclui outra secção, «Texto: Poesia», com poemas «inexperimentais», poéticas pastiches ou de desfrute jubiloso, jogos, esquemas, «palavras escruzadas». Não, meu certo secretário, não são escusadas nunca, que, como diz Abel Barros Baptista, no prefácio que introduz o livro: o leitor daqui «pode colher a lição máxima e muito compensadora, ao aprender que a razão fundamental para compor escritos assim é a própria e também fundamental possibilidade de compor escritos assim: trata-se muito radicalmente de um exercício de liberdade.» A paródia com a língua é, então, uma necessidade, uma inevitabilidade, porque, lá está, a poesia e as suas palavras põem-se a jeito e toda a gente vê que estavam mesmo a pedi-las.

Entre estas duas secções, existe um «interfácio», porque afinal esta obra é de poesia, de prosa, mas também, de teoria literária, crítica, análise linguística e textual, e mais o que se quiser que a língua consiga prever e conter, porque não há uso da linguagem que não esteja à partida armadilhado. De seguida, completa-se a obra com um posfácio e variadíssimos «A-Nexos», com testes, entrevistas, notas, opiniões da crítica, que constituem um relevante e fundamental paratexto, em torno da escrita de Sesinando e da complexidade da sua obra. Neste ponto fundamental, fica o leitor a saber algo sobre os «ascendentes literários portugueses de José Sesinando»: «Quanto a influências portuguesas, são visíveis as de Almada, Castelo Branco, Chaves.», além de considerações críticas acerca da sua obra: ««Cadência fortemente sugestiva, encadeamento complexo das imagens, autêntico sortilégio verbal, riqueza expressiva reveladora de uma vincada personalidade de creador — nada disso, infelizmente, se encontra na obra de José Sesinando.»» Resumindo, se queremos saber o que é a crítica, a poesia, a literatura e as tretas que as letras nos pregam, é ler, de lápis na mão, os escritos que nos deixou Sesinando e o seu heterónimo José Palla e Carmo ou vice versa.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Vindes agradecer-me por não depositar aqui as consabidas e costumeiras penas do lamento? Que te sentis já com as penas do voar, pelos trechos de José Sesinando que vos fui confiando? Mas, que cenho é esse carregado com que me olhais? Que preferíeis que só aqui tivesse só alinhavado citações, sem que me pusesse eu, também, tão sem graça, com piscadelas de olho à chalaça e ao trocadilho. Olha, que quereis que vos diga… Pois temos pena.

José Sesinando, Obra Perfeitamente Incompleta, Lisboa, Tinta da China, 2018</strong
20 Mai 2019

Lotaria do Senado para a Santa Casa

[dropcap]A[/dropcap] primeira estadia de Camilo Pessanha em Macau ocorre de 10 de Abril de 1894 a 22 de Junho de 1896 e à sua chegada os rendimentos da lotaria da Santa Casa da Misericórdia são já uma sombra dos auferidos até um ano antes. Agora paupérrimos, começa o jogo da lotaria a acumular prejuízos. Nesse mês é reduzido o número de bilhetes que de seis mil passam para três mil e quinhentos, apesar do preço do bilhete ter aumentado de $1 para $2 patacas e mesmo assim, quase mil bilhetes ficaram por vender e nesses, poucos e pequenos prémios saíram à Santa Casa, com um residual valor de $475. A sorte não está com a S. C. da Misericórdia e a 9 de Agosto de 1895 é a sua lotaria suspensa a título temporário, pois já não dá lucro.

No dia da chegada a Macau de Pessanha, ocorrera a seguinte história relatada no jornal O Independente de 14 de Abril: “É sabido por todos que o Sr. José Maria de Castro Basto é encarregado da venda de bilhetes da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia, recebendo por este trabalho $60 mensais. O Sr. Basto, quer por autorização da Mesa, quer por vontade própria, vendia bilhetes a crédito com garantia ou sem ela. Vendeu a crédito, ou à consignação a um mainato que vivia na povoação de S. Lázaro por nome José Paulo Ly centenas de bilhetes sem outra garantia pela segurança do pagamento além do selo da sua loja de lavagem de roupa, negócio mainato, ficando desta forma o credor sendo fiador de si mesmo, pois nem o prédio em que esta loja está estabelecida é propriedade do tal Ly. A 9 do corrente o débito do mainato já excedia a $1500; à falta de meios para saldar esta conta e querendo continuar no seu jogo de comprar os bilhetes a $1.()0 [creio ser $1.50], para os vender a $1.70, lançou mão deste meio: “. O processo foi instaurado contra José Paulo Ly, que ficou recolhido na cadeia pública.

No dia seguinte, 11 de Abril, o Secretário da Santa Casa da Misericórdia colocou um anúncio a dizer que não eram cobrados 15% aos prémios da lotaria, como em boato se propagara pela cidade, pois todos os prémios se pagam neste Cartório à apresentação dos bilhetes, sem o mais pequeno desconto.

O Echo Macaense de 18 de Abril, com o título Atenção refere, “Com relação ao artigo que apareceu no último número do Independente acerca da conta de José Paulo Ly e do encarregado da lotaria da Santa Casa da Misericórdia, o Sr. José M. de Castro Basto, fomos por este informados que os factos narrados no Independente não são exactos e que o seu proceder está em harmonia com as instruções dadas pelo Sr. Provedor suplente, Artur Tamagnini Barbosa”.

Carta Régia

A Santa Casa da Misericórdia foi fundada por D. Leonor em 1498 e em Macau estabelecida no ano de 1569 por D. Belchior Carneiro, Bispo do Japão e da China.

A SCM de Lisboa, por Carta Régia de 18 de Novembro de 1783 criara em Portugal Continental a Lotaria Nacional, concedendo 12% dos lucros aos Hospitais Reais dos Enfermos e dos Expostos, ocorrendo a primeira extracção a 1 de Setembro de 1784 e prolongou-se por 34 dias, com um prémio de 12 mil réis. Em Macau, por Carta Régia de D. João VI, na altura príncipe regente, de 5 de Junho de 1810 foi concedida autorização ao Senado para explorar uma lotaria anual, em benefício das casas de piedade e beneficência. Refere: .

Segundo o Dr. José Caetano Soares, “Nunca o Senado utilizara a mercê, mas por mais de uma vez a cedeu à Misericórdia, o que já em 1833 levaria esta, em representação ao Governador da Índia D. Manuel de Portugal e Castro, a pedir para si a prerrogativa.”

20 Mai 2019

A grande dama do chá

 

[CAPÍTULO ANTERIOR]

 

[dropcap]A[/dropcap] noite tem o poder de silenciar todas as certezas. De dia julga- -se que há remédios para as doenças do mundo e da alma. A noite desmente isso. Nada é certo. A noite permite acordar dos sonhos frágeis. Era isso que sentia Cândido Vilaça, apenas iluminado pela forte luz da lua cheia. Fora isso que o trouxera até às ruínas de S. Paulo. Trazia o seu saxofone e sentou-se nos degraus da enorme escadaria. Levou-o aos lábios e do instrumento saiu um som que parecia lamentar todos os males do universo. Era um gemido arrastado, que nada tinha a ver com o que tocava nos fins-de-tarde dançantes do hotel Riviera. Era algo muito íntimo, vindo das suas entranhas. Doía. Quando se cansou de tocar procurou um declive onde a luz da lua não o atingia e ficou ali, entre as sombras, respirando o ar da noite de Macau. Passados minutos ouviu, não muito longe dele, vozes que falavam em português. Olhou para os dois homens que subiam as escadas defronte das ruínas. Um dos homens tinha um sotaque brasileiro, mas era de outra nacionalidade. O outro tinha uma voz que ele reconhecia, mas não sabia de onde. Falavam de pessoas da sociedade macaense e de acontecimentos futuros, mas Cândido não percebeu o sentido da conversa.

De repente, da penumbra, surgiram quatro vultos, que se aproximaram rapidamente. Os dois homens não se moveram. Pareciam esperar o ataque ou, então, estavam seguros da sua situação. Assim era porque perto deles apareceram meia dúzia de sombras que avançaram para o grupo que surgira primeiro. Depois de uma rápida escaramuça, Cândido percebeu que o primeiro grupo, em inferioridade, debandava. Escondido, não se mexeu, até que, para perto de si, resvalou um corpo que se agachou na sombra e se deixou ficar, sem se mover. De onde estava, pro- tegido pela escuridão, Cândido podia ver a zona da escadaria onde se encontravam os vencedores do breve conflito. Ali continuavam os dois homens que tinham estado a conversar, agora cercados por uma meia dúzia de outros que olhavam em todas as direcções. Um deles disse:

– Fugiram, os cobardes!

O homem de sotaque brasileiro retorquiu:

– Não vale a pena segui-los. Sabemos quem são. Iremos apanhá-los quando quisermos.

Ainda estiveram ali mais alguns minutos. Mas, depois, caminharam em fila até à rua poeirenta que dava para as ruínas. E Cândido deixou de os ver ou de os ouvir. Só depois de ter a certeza de que já não estavam por perto, voltou-se para o corpo, vestido com uma cabaia negra, que estava a seu lado. Quando o tocou, sentiu o braço molhado. Era sangue. Os seus olhos repousaram então na face tapada por um pano negro, onde só se viam os olhos. Não deixou de sorrir, ao reconhecê-la, depois de lhe retirar o pano que tinha a esconder-lhe o rosto e o cabelo:

– Hoje os fantasmas têm nomes e rostos. Ela não respondeu e levou a mão ao braço. Tinha sido ferida pela faca de um dos assaltantes. Para estancar o sangue enrolou à volta da ferida o pano que usara para esconder a cara e deu-lhe um nó.

– Temos de tratar disso, menina Jin Shixin. O olha dela era de raiva. Cândido acendeu um cigarro, para se acalmar.

E, depois, disse-lhe:

– Temos de tratar dessa ferida. Podemos ir até à minha casa. Não é longe.

Assim fizeram. Caminharam devagar até à pequena casa de Cândido. Jin encostou o corpo ao dele e o português sentiu o seu calor. Agradou-lhe. Quando chegaram, ele acendeu uma lanterna e ela sentou-se numa cadeira e estendeu o braço. A ferida não era muito profunda e já deixara de sangrar. Cândido colocou um pouco de vodka na ferida, o que fez Jin gritar e pôs, à sua volta, uma gaze de algodão.

– Agora precisas de descansar. E de ter mais cuidado.

O olhar de Jin era frio. Não disse nada. – Quem são os teus inimigos, menina Jin? Ela olhou, desafiadora, para ele:

– Quem achas que são? Os japoneses.
– Que japoneses?
– O homem que estava no hotel Riviera quando vieste falar comigo. E os seus lacaios portugueses.
– Porque é que falas de lacaios?

Jin deu uma gargalhada, o que lhe serviu para esquecer a dor:

– Todos são lacaios do dinheiro. As pessoas fazem tudo por ele. Sejam japoneses, portugueses ou chineses.

Cândido sorriu. Sacudiu um insecto imaginário da roupa, só para mexer a mão. Depois disse:

– Sabes, Jin, a água contorna todos os obs- táculos. A partir dela podes tentar perceber os portugueses. Serviram-se da água para sair de Portugal e procurar outros horizontes. E aplicam esse princípio à vida. Estão sempre a contornar os obstáculos, em vez de os enfrentarem. Somos assim.

Ela percebeu o que ele estava a pensar. Reparou finalmente no aspecto dele. Cândido Vilaça era alto e tinha um corpo seco. Os olhos castanhos e o cabelo escuro combinavam com a tez morena da pele. Os olhos pareciam afectuosos, mas escondiam uma fúria sempre latente. Ha- via algo de sedutor no português. Disse, condescendente:

– Os portugueses podem ser como a água. E serem sobreviventes de muitos naufrágios. Mas há uma guerra que já não está às portas de Macau. Está cá dentro. Hoje assististe a isso. Podes dizer que não tem nada a ver contigo? Houve um filósofo chinês que disse que: “Quando conheceres quem és, conhecerás o céu”. Sabes o que é a guerra?

Cândido suspirou. Recordou uma história que um macaense, que vivera da pirataria, lhe contara: “os imperadores chineses sempre sonharam subjugar as águas. Nós, os piratas sempre desejámos controlar aqueles que se aventuraram acima das águas. Deixamos o céu para os pássaros. E as águas profundas para os peixes. Cada um deve ocupar o seu lugar”. Ele era músico. Nada sabia de guerras. Cândido virou-se para Jin:

– Portugal foi uma grande potência por- que controlou as veias do mundo, os oceanos. Quando outros o fizeram a sua missão terminou. Em Portugal considera- mos a eternidade e o destino com o mar. É o fim depois do fim.

Bateram à porta. Cândido olhou para Jin, mas esta pareceu estar calma. Agarrou numa faca que tinha escondida na roupa, levantou-se e foi-se colocar ao lado da porta. Depois fez sinal para Cândido per- guntar quem era. Ele assim fez. Do outro lado escutou um sussurro:

– Potapoff.
– Quem?

Jin fez-lhe sinal para ele abrir a porta e o português assim fez. Viu uma face dura com olhos frios e negros. Potapoff deu um passo em frente e Cândido teve de se afastar. Jin apareceu e olhou para o russo. – Estou bem. O português tratou de mim. – Ainda bem. Vamos?

Jin seguiu-o em silêncio. Cândido fi- cou a vê-los caminhar na rua escura. Ela não olhou para trás.

 

[CONTINUAÇÃO]

 

17 Mai 2019

Dilema do dentista culto

[dropcap]N[/dropcap]ão faço teatro para dentistas!” Terá exclamado o mercurial, mas não menos genial Peter Stein.

À frente da companhia teatral berlinense Schaubühne, embora se considerasse um mero primus inter pares, Stein havia cometido o prodígio de harmonizar erudição e kritik (ou seja a discussão dos fundamentos, termo que demonstra cabalmente como a banalização acarreta degradação), de articular o classicismo com a vanguarda e de conjugar insurreição com racionalidade.

Ao capturar as bandeiras até aí brandidas pelos conservadores, resgatando a tradição e a identidade, Stein – assim como outros bravos da sua geração do pós-guerra – logrou o feito admirável de extirpar o mal que pairava sobre a cultura alemã como uma maldição.

De impolutas credencias em virtude da sinceridade e da integridade política da sua obra e cabalmente ratificado nos círculos idóneos Peter Stein estava no caminho certo. Contudo não lhe escapou que as plateias que pressurosamente acorriam ao Schaubühne, quem se encantava e deslumbrava com as suas encenações, quem por estas era persuadido a compenetrar-se no exercício de reflectir sobre a ordem do mundo desde a perspectiva esclarecida e emancipada desbravada pelo seu teatro, que o seu público, enfim, era a burguesia urbana.

Viviam-se os anos 60 e 70. Doutro modo apelidada de classe média esta variante da vetusta burguesia alcançava um trem de vida confortável apenas pelo trabalho, sobretudo na área dos serviços, por conseguinte desligados da produção de mais-valias intensivas exploradas pelo capital, actividade essa que rapidamente se tornou maioritária nas cadeias de produção europeias.

O determinismo das ideologias que não previram esta evolução reprimiu-as de reconhecerem a factualidade da classe média. Isto operou um curto-circuito entre a existência e a consciência.

Ninguém mais do que a classe média detesta a classe média. Por um curioso efeito de negação individual muitos elementos da classe média têm a firme convicção de que na classe média se integram outros que não ele e essoutros é que assimilaram os valores da classe média. Mas dada a recorrência deste fenómeno é viável tomar tal repúdio como um traço distintivo da classe média. Decidida a obliterar a sua própria condição de classe, esta nova burguesia investiu com idêntico e voraz apetite tanto no consumo material como no consumo cultural. Aí estavam os famigerados “dentistas” verberados por Peter Stein, que percebeu bem o dilema.

Num determinado estado de coisas político não é invulgar na história encontrarem-se no seio daqueles que mais dele beneficiam os que mais se lhe opõem. É escusado fazer profissão de fé na dialéctica para assentir que todos os regimes encerram os seus próprios paradoxos. O que será inédito e paradoxal é que esta modalidade chamada de “democracia liberal” não só se congratule, como pareça alimentar-se desse paradoxo.

A classe média que se auto-renega está metida num labirinto fazendo por ignorar que nele vive o devorador Minotauro. Por exemplo, não falta na classe média quem pretenda qualificar-se exibindo repugnância pelo consumo de massas. Mais reitera do que atenua este tique de Maria Antonieta a noção de que semelhante forma de elitismo no consumo em vez de se consignar à proeminência financeira se meça por uma espécie de acumulação de capital moral. Atitude que proporciona quadros burlescos. Como a classe média pretensamente conscienciosa se leva muito a sério ela tende a desperceber que o marketing, esperto como um alho, transforma em paródia os seus preconceitos ciente de que venderá melhor um shampô se o carimbar de “sustentável.”

Ao fim e ao cabo a má-fé ou a alienação assomam como o traço predominante da classe média que se julga culta. Tinha razão Peter Stein – os dentistas são insuportáveis.

17 Mai 2019

Perniola e a sensologia de Marcelo

[dropcap]H[/dropcap]á dez anos, mais concretamente entre Setembro e Novembro de 2009, escrevi no Expresso uma série de textos que analisavam a potencialidade dos líderes políticos para poderem aspirar a ser personagens romanescos. Foram sete os textos, devotados, respectivamente, a Santana Lopes, António Costa, Jerónimo de Sousa, Louçã, Paulo Portas, Manuela Ferreira Leite e Sócrates (ver em rodapé o link*). Marcelo teria, no ano seguinte, um texto que lhe foi dedicado, quando ainda não era claro se se candidataria, ou não, a dirigente máximo do PSD (“Marcelo e a Rodagem do homem invisível”*). Ao contrário dos demais, Marcelo era caracterizado nessa crónica em tons “amenos de baunilha”: “Marcelo é um doce. Um típico doce português, algo conventual. Há anos e anos que respira nas nossas casas. Há anos e anos que sopra a lenta fogueira da nossa labareda política. Há anos e anos que todos lhe auguram o altar maior do poder.”

As duas qualidades viriam a confirmar-se com o tempo: o formato da doçura, embora menos conventual e mais itinerante, e o primeiro lugar no pódio da república. Sendo económico, creio que, hoje em dia, Marcelo é o paladino de um certo Portugal que, por vezes, para o bem ou para o mal, se converte em ‘commedia dell’arte’, libertando-se das aragens garbosas de Soares e do bafo cavaquista de figura de cera. Com uma omnipresença rara, mesmo quando recorre ao silêncio, Marcelo domestica como ninguém o carnaval dos media, aliando-o àquilo que o ensaísta Mario Perniola caracterizou, há década e meia, através do conceito de sensologia, ou seja, cito, a “transformação da ideologia numa nova forma de poder que dá por adquirido o consenso plebiscitário baseado em factores afectivos e sensoriais”.

É óbvio que fazer política no terreno à força de abraços, sorrisos e selfies não teria sido possível na tirania dos mundos de ‘classe contra classe’ (à anos trinta do século XX) ou em limbos governados por títeres ideológicos ou religiosos (infelizmente, muito abundantes no globo). A ‘probabilidade Marcelo’ apenas podia ter acontecido à boleia de um estado de coisas que o ensaísta italiano caracterizou como fundado no “estilo contestativo”. A designação nada tem que ver com as irredutíveis e tradicionais oposições que são próprias da esfera do político. Ela significa antes um conjunto de efeitos de reversibilidade, entre opiniões, decisões e acusações no espaço público, de tal forma que o inimigo de ontem é amigo amanhã e assim sucessivamente, numa lógica acentrada e não de carga dogmática fixa (“o estilo contestativo não é violento, mas apenas pedagógico: ele acredita na infinita maleabilidade do homem.”).

Esta curiosa noção de ‘contestação maleável’ articula o utopismo com o irenismo, o mesmo é dizer que conjuga duas formas de imaginar: por um lado, dá ênfase transitória a situações e a horizontes que se desejariam ideais; por outro lado, dá primazia à descoberta de uma racionalidade capaz de encontrar laços comuns entre apologias diferentes. É por esta razão que a “contestação”, na acepção de Perniola, tem tendência a estender-se “a todos aqueles espaços que lhe estariam tradicionalmente vedados: não só às relações económicas e às de trabalho; mas sobretudo às privadas e às científicas” que se tornarão, portanto, “objecto de crítica radical” (contestar significa essencialmente “abrir um debate público sem fim”, domesticando as rupturas e redescobrindo novos caminhos possíveis). Só neste tipo de encruzilhadas, que configuram o habitat aberto do político e não o da sua anulação (o que ocorre em casos da guerra ou de terrorismo), é que a sensologia poderia dar-se ares tão pró-activos de governação. Marcelo interpreta-a quase na perfeição e, por isso mesmo, navega amiúde, nem sempre, ao sabor da mornidão do seu tempo.

Escrevi “mornidão” na medida em que a sensologia e o chamado “estilo contestativo” favorecem um outro fenómeno do nosso tempo: a “correctness”. Como se sabe, a correcção visa virtualmente a inclusão, mas, ao fazê-lo, tem-se transformado (demasiadas vezes) numa prática hipócrita de dissimulação. Fingir que não existem problemas e dar à linguagem esse tom, quando toda a gente vê que o rei vai literalmente nu, eis no que tem resultado, em muitos casos, a retórica da “correctness”. A sensologia adapta-se a este tipo de prestidigitações, vive delas, recria-se a partir delas. Poderá até afirmar-se que a noção de crise, na sua escala doméstica de disrupção ao mesmo tempo retórica e de prática reversível (como acontece com certas gabardinas) é um dos rostos da sensologia de Perniola. Daí que o convívio entre o que se diz e desdiz (os famosos recuos de opinião à ‘Rio/Cristas’) sejam capacidades nativas destas atmosferas em que perigosamente vivemos, ora agrestes, ora tão férteis em selfies e abraços de terna compaixão.


*Carmelo, Luís. Personagem Romanesco em Expresso. Last Updated: September 28 – November 15, 2009. Disponível aqui [Consul. 27 Abr. 2019].
*Carmelo, Luís. Marcelo e a Rodagem do homem invisível em Expresso. Release Date: March 8, 2010. [Consul. 27 Abr. 2019]< *Perniola, Mario . Contra a comunicação, Teorema, Lisboa, (2004) 2005, pp12 e 52-54.

16 Mai 2019

O ladrão de livros

(10/05/19)

 

[dropcap]E[/dropcap]u só conhecia o sofrimento, o mal revelou-se-me atrás de uma cortina africana. Já o vislumbrara noutras ocasiões, simplesmente não o soube reconhecer. E preciso sermos iniciados para topar no desenho dos indícios um padrão. Pode ser-nos interior, morde como o êxodo de que nos julgáramos apeados. Depende de nós ele tornar-se ou não nativo no território que nos religa aos meandros da alma.

Diz Le Clezio em O Êxtase Material: “a grande beleza religiosa, foi ter acordado para cada um de nós uma alma.” Sim, embora nos advirta François Cheng de que a alma possa ser movida pela perversão, por uma pulsão destrutiva. Todavia, Pierre Emmanuelle dá-nos o antidoto num poema: ” Toi, premier sauvé de Babel, non par vertu singuliere/ mais simplement parce que tu aimes”.

Por vulgar que isto pareça, reconheço que só o amor e o humor cauterizam os dois bordos da ferida. O mal existe, quer implantar os seus grampos na ferida mas é como a clara e a gema: pode ser isolado. Não rebentar a gema é quanto basta para não cedermos ao cinismo.

(12/05/19)

Volto a ler Bloom, O Cânone Ocidental. Um livro a alguns títulos estupendo, que não ganhou uma ruga. Mas parece-me irritantemente exagerada esta afirmação:

“(…) para centenas de milhões de pessoas que não são europeus brancos Shakespeare é um significante para o próprio pathos delas, para o seu próprio sentido de identidade com as personagens que Shakespeare faz cintilar através da sua linguagem. Para essas pessoas, a Universalidade de Shakespeare não é histórica mas fundamental, pois ele põe em palco as vidas de todas elas.”

A afirmação de Bloom é uma expressão do desejo, enganosa. E recorda-me a história de um aluno, numa aula em que eu apresentava Shakespeare. Falei-lhes dos filmes, prometi mostrar-lhes a versão pop do Romeu e Julieta, de Baz Luhrmann, com o DiCaprio; frisei, por fim, que o nome de Shakespeare é o que tem maior número de referências e entradas no Google depois de Deus.

Aqui um aluno levanta a mão para colocar em dúvida a minha estatística. E argumenta: não acredito, em Nampula eu nunca ouvi falar de Shakespeare!

A discussão foi alucinante pois, resumindo, aquilo de que não se ouviu falar em Nampula não pode concretizar-se em Marte. Àquele rapaz faltava a imaginação do bardo, ou as suas toneladas de curiosidade, pois uma coisa está ligada à outra.

Num livro de Vila Matas há um personagem que esteve na Suazilândia e garante: aí nem se produzem nem se vendem livros. Fiquei surpreendido quando li, agora confirmo: também nunca encontrei um livro na Suazilândia, onde o Shakespeare não será igualmente conhecido.

O moço tinha razão numa coisa: pelo menos um terço do planeta nunca terá ouvido falar de Shakespeare e não sofre de ansiedade por causa disso. Lá se vai o pathos para “o caraças”.

O que não me impede de partilhar a opinião de Bloom, Shakespeare é o referente humano incontornável e devia ser leitura obrigatória nas escolas de todo o mundo, pelo menos uma dúzia das suas peças. Quem não soubesse discretear sobre Shakespeare não obteria a licenciatura. Não creio que um país – qualquer – possa desenvolver-se sem celebrar Shakespeare porque, como Bloom advoga, ele inventou metade dos “tiques, manias e afeções” que motivam o humano – até o ciúme. É o meu fanatismo (e o dele)!

Quando era jovem e muito mais pobre do que hoje roubei livros, em livrarias e inclusive em bibliotecas. Uma vez no Seixal a rapariga da biblioteca pediu-me para ficar no lugar dela durante duas horas, pois queria namorar. Anuí logo e os bolsos do meu sobretudo também. Consegui aí a obra completa do Herberto. Do Shakespeare gamei quatro peças. Ela ficou feliz e eu idem. Quem roubasse livros de Shakespeare devia ser eternamente perdoado – primeira regra universal.

Aqueles anjos dos céus de Wim Wenders não se chutavam com “cavalo” mas com Shakespeare.
Ainda assim e, infelizmente, o Bloom não sabe o que diz naquele paragrafo e vê-se que pouco saiu de Nova Iorque.

(14/05/19)

Pepe Guardiola teve a elegância de agradecer ao Liverpool pelo triunfo mais difícil da sua carreira. Foi uma homenagem justíssima – a qualidade chama a qualidade.

A nova geração de escritores moçambicanos está a obrigar a velha guarda a trabalhos suplementares no espaldar para se manter na crista da onda. E, ao contrário de muitos, estão autónomos: criou as suas próprias editoras, os seus circuitos de reconhecimento internacional – não sendo por acaso que alguns dos seus representantes foram finalistas da última edição do Premio Oceanos, criou o seu Festival Literário, o Resiliência, que cumpriu na semana passada a sua terceira edição, com alguns convidados de relevo de Portugal, Brasil, Angola e Guiné. Tudo isto sem a tutela do estado, rompendo com vícios anteriores.

Virão agora “os profetas da anterioridade“ dizer que nada se passou, que os “miúdos” (recurso “desclassificatório”) estão por crescer. O que dói é que os miúdos criaram o seu próprio galinheiro e alguns, mutantes, apresentam quatro patas.

O escândalo da modernidade, para as sociedades tradicionais, também radica no ensinar-nos que, às vezes, são os mais velhos quem têm de estar à altura dos mais novos.
Leio na Erosão, da Gisela Casimiro, que veio ao Resiliência representar a Guiné: “Ele escreveu na areia/ o primeiro poema -/ multiplicado/ até aos nossos dias/ para a alimentação/ dos sensíveis.// Um destino impossível/ de ser sacudido.” Pois, conversas, foi a minha casa comer a açorda de camarão e depois aliou-se à minha mulher e filhas, num motim, a quererem reconduzir “o sensível” às dietas. Crueldades do feminino, já não há casas como antigamente, onde um homem tenha o exclusivo da moela e se jubile com peras ao vinho tinto. Admoestei-a logo: Ah, é assim? Agora só voltas para o ano! E em casa comecei a almoçar e a jantar de escafandro!

16 Mai 2019

Afinal, é melhor retirar o que disse

[dropcap]V[/dropcap]ou confessar: era eu que levava o dinheiro. Davam-me uns pacotes com molhos de notas variadas e pediam-me para entregar a tal pessoa. Não sabia quanto era, mas dava para ver que devia ser uma pipa de massa, que esta gente quando fazia as coisas era a sério, não se punha a brincar aos roubos como os banqueiros, que isso é mais coisa de meninos. Falávamos pelo intercomunicador do prédio. Colocavam a tralha no monta-cargas e eu só tinha de pegar nela. Simples.

O nome do destinatário era inventado, era um código que só funcionava no acto de entrega. Mas eu sabia perfeitamente quem eram. A maioria era gente conhecida dos jornais, que precisava de maquia fresca para alguma necessidade mais urgente. Comprar um cabriolé ou um quadro cheio de pó do Miró, que dedos amigos tinham surripiado de uma colecção esquecida na cave de alguma repartição de finanças. Ou coisa parecida. Podia ser também do Bill Viola, que é um gajo que está sempre em voga. Não perguntava nada, não me intrometia em assuntos alheios e quando metiam conversa, para serem simpáticos, ou porque tinham uma vida de merda e não tinham ninguém para desabafar, eu dizia que sim com a cabeça para acharem que era meio surdo ou que tinha um parafuso a menos, e assim acabava-se logo o diálogo. Que fique igualmente neste registo, que não tenho grande paciência para desabafos. Faço o que tenho a fazer e não há espaço para mais dilações, que o mundo não pára. Corre.

A verdade, é que o dinheiro chegava sempre ao seu destino com rigor de especialista, isso não posso negar. Parecia que tinha nascido para fazer aquilo, pegava com uma mão e entregava com a outra. Assim mesmo, como quem salpica umas cores num papel e faz uma obra de arte. Pensando bem, era melhor do que o Miró, pelo menos não tinha que sujar as mãos com o raio da tinta, que é outra coisa para a qual também não tenho ponta de interesse. E para dar aqueles tons é sempre preciso muitos tubos da Caran d’Ache. Não vamos falar de pintores, por favor.

Bom, não sei se havia algum contabilista para toda aquela abundância, o mais certo era não existir nenhum, mas desde o primeiro dia que me cheirou a trafulhice das grandes. E como correu bem dessa vez, pediram-me mais uma e por aí adiante, até lhe perder a conta. Se me perguntarem, não consigo enunciar quantas foram as causas pelas quais andei a percorrer a avenida. Não apontava nada e tenho a memória fraca, nem uma anedota consigo contar e quando vou para entoar o hino, atrapalho-me. Mas para o resto, é isso, tinha bastante jeito para moço de recados ilícitos. Talvez um dia que precise possa arranjar um emprego nos Correios, é só porem-me à experiência.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu! Não me deu trabalho nenhum. Eu, no metro com um milhão no bolso. O que me ria. Em horas de ponta, muitas vezes com agentes da autoridade que voltavam para casa depois de um longo dia de trabalho, meio desfardados. E eu ali, com o bolo de aniversário na mão. Ou com a consola de jogos última geração. Partida.

Já sei, ninguém me vai acusar porque sou gente miúda e não valho muito no mercado dos bandidos. Não ando para aí a passear-me num rolesroyce ou a ser levado para interrogatórios. Pelo contrário, tenho uma vida discreta, não saio muito e nem uso roupas de marca. É claro, ninguém conhece o meu nome. Mas isso vai mudar, basta escrever umas coisinhas e prolongar a verborreia. Ainda consigo lembrar-me de umas caras e rabiscar uns retratos, daqueles robots como o Miró fazia, cheios de cor e de tinta. Ou então dou com a língua nos dentes e tenho-os aí todos a pedir favores. Que é o que eu sei fazer melhor.

Quanto às verbas, agora, falam por aí que foram milhões. Milhares de milhões. Ninguém sabe ao certo, até podem ter sido, aquilo era muita massa. Acusaram este e aquele, que eram eles que levavam aquela fortuna de um lado para o outro e das mais variadas formas. Mas é mentira. Fui eu!

Por causa de todo o alarido, há uns meses, decidi fazer as coisas à minha maneira. Acabei com os recados de pouca monta. Se por acaso a encomenda era pequena, rejeitava a oferta, deixando de fazer as coisas por tuta e meia. Mas o mais importante: vou arrumar as botas. Fiz contas à vida e foi a decisão que tomei. Que se lixe a fama de ser o maior malandro do bairro. Essas intenções já desbotaram. E na verdade, não tenho fama nenhuma. Mas é desta, foi a última vez. Só mais este servicinho. Não se vai repetir.

Já contei as notas, são dez mil. É o que veio. Não sei bem o que era para fazer com elas. Não apontei, esqueci-me. Dez mil notas de quinhentos é muito dinheiro. Vieram numa caixa de cartão, disfarçadas entre medicamentos para a gripe. Contei-as com redobrada atenção, parece que até lhe estava a tomar o gosto, eu que nunca liguei àquilo. O que fiz foi o seguinte: troquei o conteúdo do embrulho pela comissão que me cabia, que era sempre uma ninharia. Acabam sempre por ser uns forretas, Mas isso acabou, o que ganhava com toda esta história eram apenas umas esmolas. E assim foi, não toquei nos comprimidos para não se perder o volume e porque ainda não tenho dores. Deixei tudo na morada que me indicaram. Um hotel. Foi uma tarefa difícil, é um risco que se corre, eu sei, mas cinco milhões já dá para governar o que sobra dos meus dias. Não é preciso tirar um curso de matemática para perceber isso.

A linha chegou ao fim. Fartei-me. Pensei que podia confiar neles, que não me estavam a enganar, apesar de terem sido sempre bem claros, afirmando com a seriedade que um intercomunicador pode transmitir, de que iam referir o meu nome quando fosse necessário e precisassem de um álibi. Mas não! Até hoje, nada. E leio os jornais todos, dia após dia. Não são eles que me vão agora acusar que os defraudei, com isso não tenho de me preocupar. Dinheiro não lhes falta. Para esses senhores, isto é uma pequeníssima migalha. E ninguém sabe quem sou, não há provas.

Contas. Dificilmente gasto uma nota destas por semana, mas suponhamos que gasto uma. São dez mil semanas. Ora vejam, um ano tem cinquenta e duas, por isso é só fazer as contas. Não estou cá essa vida, nem pouco mais ou menos. É certo que deixo algum aos amigos chegados, companheiros em dificuldades ou com necessidades prementes. Tenho de me lembrar que tenho de o deixar escrito nalgum sítio, pode-me dar um treco de um minuto para o outro e ir desta para melhor, e ninguém vai saber que os meus desejos eram esses. Mais a família, que também precisa. Mas não posso dar muito nas vistas, não vão as pessoas achar que me saiu a taluda. Depois já se sabe como é que é, não me largam, e daí até vir a polícia é um instantinho, levam-me logo para averiguações. Tiram-me aquela fotografia que se vê nas séries de criminologia e venho de lá com os dedos todos pretos. Raio! Por isso, o melhor é não contar a ninguém, que ando nestas andanças. Porque não ando, na realidade, este assunto termina aqui. Quanto ao outro, dos pacotes que entregava sem levantar fervura, também não se vão estar agora a preocupar com questões dessas. Já foi. Ninguém soube, não quiseram dizer que era eu, agora já é tarde para isso. É deixar que os outros sejam acusados e que venham nas parangonas dos jornais, que eles gostam sempre de aparecer, enquanto cruzam as ruas da Baixa nos seus cadilaques.

Portanto: bico calado! E se por ventura alguém ler isto, não vai ser fácil porque vou escondê-lo bem, espero que faça o mesmo.

Já sei, vou guardá-las naquela caixa de sapatos e deixo-a dentro do armário, assim como quem não quer a coisa. Vivo num lugar esquecido, não há de vir aqui ninguém. E assim, como não tenho grandes aflições, vou-me servindo à medida das necessidades, não preciso de mexer uma palha nem de ir aos bancos. Pode ser que um dia, entre um século e o outro, precise de adquirir um telhado novo.

16 Mai 2019

Dos estranhos tributos

[dropcap]C[/dropcap]omo eu gostaria que as angústias do cronista fossem relevantes, leitores! Não são. E mesmo as alegrias levam, tantas vezes merecidamente, tratos de polé. Mas o cronista tem este pequeníssimo poder: o de domesticar as palavras para que elas façam acrobacias sempre que alguém as queira albergar. E é por isso que aqui estou, e é por isso que as minhas irrelevâncias podem ganhar lantejoulas, assim me veja quem me lê.

Isto nem sempre é fácil de explicar nem provavelmente tem de ser explicado. Quem escreve sobre as pequenas coisas que moram nos dias não tem nada a proclamar senão um breve aceno a tudo o que pode estar diante de nós e que não temos tempo ou paciência para ver. Uma memória, um gesto, um sorriso, um valor, um obstáculo: o quotidiano que se pode ver do café – mas que graças a essa possibilidade, é raro ver. Valham-nos então os poetas, os romancistas, todos os coleccionadores de almas. A crónica, quando funciona, é uma espécie de single comparado com os álbuns da grande escrita: breve, de vida efémera mas com sorte com refrão cantável.

A razão deste prólogo teórico – em que arrisco a partilhar esta estranha idiossincrasia francesa de tudo teorizar e que toda a vida combati – tem a ver com, lá está, o quotidiano. Há alguns dias um amigo perguntou como é que eu conseguia “achar” tantas coisas semanalmente. Este achismo, para os mais distraídos, corresponde a ter uma opinião. É uma boa pergunta que não tem uma resposta de sentido único. Aqui, o que “acho” provém do espanto, da perplexidade, da curiosidade. Não é um dogma e muito menos lei: apenas um tipo que se pergunta “mas por que diabo…?”. A ambição, se alguma há, é instalar a dúvida. E com isso deixar tudo em aberto, poder falar. Tenho saudades de poder falar.

De forma que chegámos ao que interessa, o espanto du jour. Conto: numa saída com amigos fui parar a um bar que bem conheço e bem me conhece. Muita gente, a possibilidade rara de nos ouvirmos uns aos outros. A música ambiente estava alta, demasiado alta; mas a casa estava cheia e isso compreende-se. Por terrível deformação profissional detive-me por momentos no que estávamos a ouvir. Reconheci: “Ena, ainda passam Pink Floyd!”, disse divertido e não sendo particular admirador da banda. Logo alguém me cortou cerce: “Não é Pink Floyd. É Brit Floyd”.

Juro que esperei alguns segundos por algo que se parecesse com uma punch line, um sinal de ironia. Nada. A música que ouvia era de facto dos Brit Floyd (e é a última vez que escrevo isto sem me rir), uma banda de tributo dos Pink Floyd (a sério, fiquem comigo) e que replica nota por nota a música do grupo a que prestam “tributo”.

E é aqui que entra a perplexidade: tributo como? Tributo a quem ? E, do ponto de vista de quem os vai ver (os, hum, esses mesmo, ao que parece esgotaram um Coliseu), a que prestam homenagem? A resposta à última pergunta parece-me fácil: a nós próprios e ao que fomos. Compreendo mas maça-me.

O melhor “tributo” que uma banda ou artista poderá ter é ver alguém pegar no seu legado e acrescentar. Sempre terá sido assim na história da música popular e da criação artística em geral. A reprodução pura e dura é uma aldrabice, memória de fancaria. Mas o mercado da saudade é uma armadilha comum: as próprias bandas desdobram-se em reuniões que normalmente não dão em nada, apesar do aforismo do maior iconoclasta do rock, Mark E. Smith dos The Fall:« Se for eu e a tua avozinha nos bongos é The Fall». Não é. Não pode ser.

Num excelente artigo no New York Times (“Reunion Tour! The Band Is Back! Wait, Who Are These Guys?”) Rob Tannenbaum escreve sobre o fenómeno das reuniões de bandas outrora famosas. Muitas vezes, como no caso dos Foreigner (nome enorme do rock FM americano) apenas existe um único membro da formação original – e ninguém sabe e ninguém se importa.

De forma, leitores, que mais uma vez não acho nada. Ou acho: acho que uma das bênçãos dos praticantes de géneros mais juvenis e enérgicos da música popular é saber quando parar. O mesmo é aplicável a nós, portadores de memórias imaculadas. Porque depois pode acontecer como no concerto americano de Peter Hook ( Joy Division, New Order) em que alguém perguntou, referindo-se sem saber a Ian Curtis: “Onde é que está o tipo que morreu?”

Está certo: quando prestamos tributo ao que fomos nós somos quem morreu.

15 Mai 2019

Troco um sonho pela realidade

[dropcap]C[/dropcap]onheci Renato no Rio, no quintal de um amigo comum, numa roda de samba. Renato tinha 23 anos, cursava engenharia informática e estava disposto a dar um ano da sua vida pela oportunidade de fazer parte da bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a famosa verde e rosa. “Engenharia é realidade, meu sonho é o samba!” E tocar tamborim na Mangueira, um Carnaval que fosse, fazia parte desse sonho. Trancou a matrícula na faculdade. Disse aos pais que carioca não nasceu pra paulista. E a mim, nessa noite, disse-me que “foi assim que Jamelão começou, a tocar tamborim na Mangueira”. Nessa altura, eu ainda não conhecia esse famoso sambista. Nascido e criado no Rio, Renato sabia tudo de samba. Sabia, tocava e cantava. Não havia explicação que me desse que não fosse musical. Eu falava de uma canção e ele imediatamente cantava. Se estivesse sem instrumento, era uma colher e um copo, ou uma caixa de fósforo, que serviam para acompanhar a sua voz. Para ele, o samba não era música, era religião, sentido de vida. “Pode-se viver sem quase tudo, mas não se pode viver sem samba.”

O samba de que me falava e cantava era o samba-canção. Gostava de Carnaval por causa da bateria, mas a paixão era aquele samba fora da estação: o Jamelão, o Cartola, o Nelson Cavaquinho, o Noel Rosa. “Se gosta de Chico, tem de ouvir Noel Rosa, cara! Muito do Chico vem do Noel.” De imediato pediu o violão e tocou “Conversa de Botequim”. Foi ali, naquele quintal, que ouvi pela primeira vez Noel Rosa. E, claro, sorri, não só pela beleza da música, da interpretação, mas porque me lembrei de imediato da música do Chico “Meu Caro amigo”. Uma noite, num botequim em Botafogo, fomos ver um grupo de moças a tocarem chorinho. A namorada do Renato, a Flávia, tocava flauta transversal. A meio do show, chamaram Renato para se juntar a elas. Tal como nos comentários à volta, o cara arrasou no cavaquinho. Tocou um brasileirinho pra nenhum Waldir Azevedo botar defeito. Não sabia que o chorinho era outra das suas paixões. Acabara de chegar no Rio e ainda julgava que samba e chorinho podiam ser parentes afastados. Saímos dali e fomos para a Praia Vermelha, junto ao Círculo Militar, para uma das rodas de samba mais famosas do Rio. Renato puxou-me pra junto dele, apontou para o negão que comandava a roda, e disse-me “aquele ali, com mais anos do que se podem contar, vive na Rocinha e tocou com Cartola”. Não tardou para Renato ser convidado a juntar-se a eles, no meio de todos aqueles veteranos do samba. Durante a noite iam chegando músicos, tocando junto e todo mundo dançando. A mulher do negão que tocou com Cartola, comandava uma venda de cachaça, caipirinhas, cerveja e pastéis. O mundo se acabava naquela praia, entre samba, bebida e o corpo a corpo. Saí mais algumas noites com eles, pela Lapa, Botafogo, Praia Vermelha. As noites eram música, cachaça e cerveja. Aprendi mais sobre samba nessas noites do que no resto da minha vida. Meses depois deixei o Rio. Os anos passaram por mim e as cidades também.

Poucos meses antes de voltar para Portugal, em Curitiba, encontrei Flávia num show de chorinho. Fui falar com ela, animado, emocionado. Não se lembrava de mim, até que falei no Renato. Aí, sim, lembrou-se das nossas noites no Rio. Perguntei por ele, pelo Renato. Disse-me que acabaram a relação logo depois. “O Renato? Soube que foi para os States trabalhar numa multi-nacional.” Eu sorri triste e escapou-se-me da boca a expressão da derrota máxima “tornou-se paulista”.

14 Mai 2019

Guerra santa

[dropcap]D[/dropcap]epois de assistirmos incautos à “matança da Páscoa” em vários locais do mundo durante o tempo litúrgico desta, a nossa atenção volta-se também para o efeito do ciclo de terror que julgáramos sanado. A grande noite da História das Guerras Santas, voltou como um tecido híbrido, é certo, todo ele deslocado, mas suficientemente emblemático para não esquecermos o que lhe está subjacente. Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial foi questão que nunca colheu adeptos, o Governo alemão, laico, enaltecido com práticas mágicas que pareceu até retirar-lhe o efeito de culpa, gravitava em torno de uma brutalidade instintiva por onde não passou, talvez, complexas tradições humanas. Ou seja, a atenção para com elas era mínima, o desrespeito absoluto, e todos estavam em Guerra não pelas práticas religiosas, mas por causa da supremacia maníaca de um povo. Até aqui não se nos afigurava nada do género que pudesse de novo fazer reviver a prática já ultrapassada do sangue, a morte tinha então contornos novos, tão novos, que ainda agora nos emudecem, mas eis senão quando, o mais antigo efeito se nos impõe: a guerra sangrenta, as matanças que jorram sangue, as religiões que sangram e fazem sangrar.

Este estado recente das coisas é tão velho que julgáramos já esquecido.

Recordo-me então de René Daumel e da sua «A Guerra Santa», um texto gnóstico, ele que começou por ser um poeta surrealista amigo de Breton e de toda uma herança de vanguarda, escreve este texto com a parcimónia dos que quase renegam a causa primeira, descrevendo áreas absolutamente iluminadas sobre o grau de transcendência de uma revolta (se tal possa ser assim descrito) pois que para alcançar o pleno aspecto da definição poética ele terá necessariamente de visitar o texto sagrado. É portanto avesso ao chamado código literário e às faíscas soporíferas das fantasias de cada um, abeirado na essência primeira, busca o ser, a nossa Humanidade, no vazio silencioso das coisas. É um superlativo anunciador que se intui no extremo de uma condição e que não tem medo das palavras e dos diversos códigos que elas transmitem. Procura a limpidez, austero, é no entanto sensível e raro, contido e forte, quer a brancura de um entendimento;

«Falarei para me chamar a mim à guerra santa. Falarei para denunciar os traidores que eu próprio alimentei. Falarei para que, aquilo que eu disser, envergonhe as minhas ações, até que um dia, uma paz blindada de trovoada reinará nos aposentos do eterno vencedor. E porque empregarei a palavra de guerra, e esta palavra de guerra não passa hoje de um simples ruído que as pessoas instruídas fazem com as suas bocas, porque agora, ao empregá-la, é uma palavra séria e carregada de sentido, saber-se-á que falo a sério e que não são vãos ruídos que faço com a minha boca».

Parece-nos uma demonstração demasiado críptica para um entendimento simples ou uma manifesta indignação por tudo o que sobra de bem estar perante os que a olham sentados nos seus delírios e que insistem em nada entender que os comprometa. Mas estamos talvez bem mais amuralhados do que alguma vez supuséramos. Nós, que não vamos aos Templos, morremos agora por causas desconhecidas às mãos dos motes de poemas fatais?! Em todo o caso são os homens que matam: e que temos nós todos a ver com a poesia? Também já nada. E qual?

Também não sabemos. Entendemos vagamente que os interesses geram revoltas, mas, quem está já interessado em nós? Presumimos que muitos, mas pode não ser assim. Ignorámos todos na nossa marcha vitoriosa de forma vária e há um dia em que um deus ou um demónio, surge para nos falar, e neste caso as respostas ainda não estão prontas porque sem nos darmos conta fomos ficando sem elementos de versificação. Há sempre um lado morto que ressuscita, uma antecâmara fechada que vem pedir resgate, e a nossa culpa continua a ser, nenhuma, pois que os que agora caem em nada contribuíram para tais fins. A expressão contra, é agora arbitrária, Mesquitas, Igrejas, Sinagogas, uma demonstração de insanidade talvez só comparada às invasões de Tito, são atacadas como peça única. Por incrível que nos possa parecer é mais ou menos aqui que estamos, e, o que os últimos séculos lutaram para desviar a rota do sangue, atribuindo novos ciclos de conquistas não menos mortais é certo, aqui, rejuvenesce o espectro da velha “santidade” mote e acção para a chacina. Seja o que for, ninguém está preparado para isto, para um discurso entendível, uma compenetração capaz. – O quê, Deus outra vez? – Talvez. Convém não nos desvincularmos do circuito da Civilização que fomos sendo, não havendo no entanto Civilizações profanas, quanto muito, mais animistas. Ainda a abstracção para nos alongar o espectro da memória e da lembrança, já que no ponto incognoscível ainda arde em nós palavras que dizem ter gerado o Homem, ou caminharemos para uma incomunicação plausível tornando-nos o mais conseguido dos paradoxos.

E ainda diz Daumal: «Das outras guerras não falarei – as que se suportam- não falarei. Fala de sacrifício quem, por motivo nenhum cortaria o dedo mínimo, fala de conhecimento quem, se disfarça perante si próprio, tal como a grande doença é tapar de palavras para não ver».

Muito deixámos de ver por força das «Luzes» e das iluminações a vapor que fez a cegueira avançar como uma conquista que todos tinham de seguir, porém, aqui chegados, é bom lembrar que há aspectos que nos acordam para ver. «Porque num verdadeiro poema as palavras transportam as suas coisas». É duro lembrar. É duro esquecer.

14 Mai 2019

Absurdez

[dropcap]P[/dropcap]or aquela é que ninguém estava espera, a de o mariola sacar da naifa e dar a guardá-la no desprevenindo entrecosto de Samuel, o próprio do Beckett. Havia-lhe saído o sujeito ao caminho certa noite que o escritor vinha por ali com uns amigos; primeiro rogou por umas moedas e depois ofereceu fêmea por uns trocos. Como do nada até ao fim do mundo é questão de se estar para aí virado, o gajo despeitou-se fosse com o descaso fosse com os vagares embriagados de Beckett, e já de caldo entornado usou então da navalha sem aviso. Não tivesse isto sucedido em Janeiro, não envergasse a vítima um sobretudo de boa e pesada fazenda e a lâmina em vez de apenas romper a pleura ter-se-ia afundado livremente até ao coração.

Convalesceu o irlandês no Hospital de Broussais, ao 14º arrondissement, enquanto a ocorrência seguiu os seus trâmites judiciais. No dia do julgamento, com a impassibilidade que a magistratura adora pôr no seu expediente, o polícia de plantão indicou a Beckett que aguardasse à entrada na sala de audiências num banco corrido de madeira onde já o faquista refastelava as nalgas. Não havendo espírito literário sem interrogação ou então por mera curiosidade humana, Beckett indagou-o acerca dos motivos do seu acto. “Je ne sais pas”, retorquiu, encolhendo os ombros com a nonchalance que só os franceses conseguem exibir sem hipocrisia.

Que o tivesse perpetrado assim sem mais nem menos já seria intrigante, mas que um proxeneta se chamasse Prudent, nome de pia baptismal e não alcunha e em cúmulo aposto a um capaz de atalhar à chinada tão vagas razões, eis o que dizem ter sido o catalisador da vocação de Beckett pelo absurdo.

Esta rixa de viela deu-se em 1938. Adensa e atesta a extrema impressão que o lance produziu em Beckett o facto de na sua posterior biografia se contarem outros factos e feitos não menos críticos e decerto bem mais empolgantes, como a sua participação na Resistência Francesa contra o invasor nazi, tendo estado um par de vezes à beira de ser capturado pela Gestapo.

A ideia de absurdo não assoma quando ao nosso entendimento escapa o sentido da natureza ou daquilo a que abreviadamente se chama de realidade. Isso seria apenas da ordem do desconhecimento ou da ignorância. O absurdo acontece quando o incompreensível ofende ou contradiz a regularidade a que as coisas nos haviam habituado, por exemplo a pedestre relação causa-efeito. Contudo, o absurdo não é uma partida pregada pela natureza ou pela realidade, porque ambas não prestam contas a ninguém. Mas mais do que um fenómeno confinado à subjectividade, o absurdo é o transplante do paradoxo para o campo existencial. O seja, o absurdo é um elemento da condição humana.

Como tudo nos pede uma explicação e como, se a isso estivermos deveras decididos, acabaremos sempre por encontra-la, o absurdo depende por inteiro do estado do nosso conhecimento e, sobretudo, no modo como experienciamos esse conhecimento. Ao mais erudito dos sábios medievais seria impossível explicar o que é a electricidade e haverá boas razões para crer que Descartes não ficaria muito convencido se lhe expusessem a física quântica.

“Pensa, porco!” Grita Pozzo. Ao que Lucky, incapaz de pensar se não lhe puserem um chapéu, jorra um magma de palavras criando a ilusão de nele se arrastarem pedregulhos com vaga forma de filosofia, resíduos de conceitos, estilhaços de razão. É pois isto a metafísica – um arrazoado sem conexão fora de si mesmo, pendurado em formas simbólicas sobre nada e acerca de tudo. Um funâmbulo às cegas a discorrer desequilibradamente sobre o que não vê.

Disto pode-se inferir que o conceito de absurdo se nega a si mesmo, ou seja, é ele próprio absurdo. Seria aliás absurdo concluir esta digressão doutra maneira.

10 Mai 2019

A grande dama do chá

 

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[dropcap]M[/dropcap]acau tornara-se um porto de almas perdidas. Sempre o fora, na realidade. Como sempre, desembarcavam ali refugiados, homens e mulheres sem pátria e sem passado, traficantes e bandidos. Mas agora a maioria vinha de Xangai. O caos, dizia-se por esses dias, é o único Deus da verdade. Todos se queriam salvar. Só que cada um encarava a salvação de forma muito própria. Cândido Vilaça entrou naquela casa de ópio e de jogo como quem procurava um local para respirar. Encontrou o sorriso cordial de Marina Kaplan, velha conhecida de Xangai, uma russa de olhos azuis claros e de corpo seco, sempre disposta a partilhar aquilo que considerava ser o amor. Um dia, quando estava demasiado ébrio, ela dissera-lhe:

– Tu és um homem que procuras o que é a vida. Por isso estás sempre em fuga. És um vagabundo encantador.

Nunca esqueceu aqueles palavras. Tiveram noites de amor demasiado quentes, naquela cidade chinesa que convidava ao pecado. Ela tinha vindo para Macau no ano anterior e instalara-se. O “Bambu Vermelho” era agora um local de eleição. Atraentes jovens russas e chinesas faziam as honras da casa a quem gostasse de as ver dançar ou, simplesmente, de ter a sua companhia, depois do jogo. Ou antes de, num reservado, encontrarem os prazeres do ópio. Era o que gostava mais em Macau. Aqui não havia fronteiras entre as pessoas como em Hong Kong. Ninguém estava demasiado perto dos outros para dizer se estavas certo ou errado. À noite, quando a lua iluminava os corpos que tentavam manter-se de pé depois de horas de prazer, o vento polia as cabeças mais despertas. Cândido conseguiu furar entre os corpos e homens e mulheres e atravessar o cortinado de cana de bambu que escondia o interior. Lá dentro a cortina de fumo era espessa.

Precisava sempre de se habituar. Os seus olhos foram-se adaptando e os corpos passaram a ter mais nitidez.

O balcão ficava ao fundo, a toda a largura e a sala do rés-do-chão era formada por pequenos compartimentos tapados com reposteiros com dragões vermelhos e dourados e separados por espaços. As mesas estavam todas ocupadas tal como os compartimentos. No primeiro andar do edifício ficava a sala de jogo e, no segundo, os reservados.

A iluminação não era intensa, nem era para ser. Era fornecida por candeeiros pendurados no tecto e por suportes nas paredes. As raparigas estavam vestidas com trajes tradicionais de bom gosto, subidos até ao pescoço e abertos de lado, sobre as pernas, até quase às coxas. Cheong-sam, chamavam-lhes. O traje deixava adivinhar os corpos, e atraía o olhar dos homens sedentos de álcool e de sexo. Chegou, com dificuldade, ao balcão. Marina Kaplan aproximou-se novamente dele e levou-o até a uma mesa mais recatada. Colocou-lhe a mão no braço e acariciou-o. Ele sorriu, satisfeito. Nunca mais se tinham encontrado num quarto, desde que se tinham voltado a ver em Macau. Mas ele vinha ali, religiosamente, quase todas as noites, depois de ter tocado no hotel Riviera. Olhou à volta, tentando reconhecer alguém. Alguns portugueses conhecia-os como funcionários públicos. Havia muitos chineses que jogavam intensamente. E uns quantos ocidentais, oficiais de barcos ou de empresas de importação. Ali não entravam marinheiros comuns. Na porta não se abriam excepções. Marina queria manter uma clientela selecta, com dinheiro para gastar. Mas agora Cândido pensava noutras coisas:

– Conheces o amigo português de Jin, Marina?

Ela sorriu com a pergunta. Esperava-a:

– Conheço alguns amigos dela. Como era esse que viste?
– Era um homem magro, com ar inteligente, mas dava a impressão de ser mais velho.
– Se é quem penso é um homem que cultiva a descrição. Chama-se Manuel Grainha. É o secretário pessoal do Governador. Pessoa experiente. Conhece tudo e todos.
– Ela sabe cuidar das amizades.
– Sempre soube. Mas, querido Cat, não queiras saber mais do que isto.

Cat era a sua alcunha em Xangai. Gostava de ser tratado assim. Cândido sabia que Jin e Marina eram próximas. Demasiado chegadas. Ninguém sobrevivia sem ligações em Xangai. E em Macau também não. Cândido olhou para Marina. Era uma mulher ainda jovem e bonita, talvez tivesse uns 35 anos, não mais, mas estava repleta de segredos. Poderia ter sido tudo. Uma espia do Bando Verde ou dos nacionalistas ou dos comunistas. Ou ser amante de Du Yuesheng. Ou de um oficial francês que queria saber o que se passava realmente na Concessão Francesa ou na Concessão Internacional. Talvez essa fosse a forma de ela ser livre. Ali em Macau poderá ser espia dos japoneses. Ou não ser nada disso. E ser agora apenas uma sobrevivente.

– Continuas igual, Cat. Eu sei o que te corrói a alma. Já estive na mó de cima. E na de baixo. Na luz e na escuridão. E os dois lugares estão vazios.
– A vida é um jogo viciado.

Ela sorriu:

– O vicio do jogo não é bom para quem não sabe quando parar. Muito dinheiro pode ser ganho ou perdido, muito depressa. O pior é quando se perde a alma.
– Isso acontece aqui muito?
– Mais do que imaginas. O problema é que há quem não saiba que perdeu a alma.
– Qual é a alternativa, Marina? Porque é que um homem honesto não pode ser recompensado por ser honesto?
– A honestidade não tem valor comercial. Já deverias saber. Não se vende nem se troca.

Cândido olhou para Marina. A sua frieza era desconcertante. Já vira tanto na vida que não acreditava em muita coisa. Olhou à volta. Os brancos bebiam demasiado, o suficiente para matar meros mortais, porque tinham pouco para fazer. Torravam dinheiro. Tinham úlceras e as suas mulheres viviam enfadadas. Muitas desejavam regressar a Portugal depressa. Não se adaptavam.

No “Bambu Vermelho” todas as mulheres tentavam limpar os bolsos dos homens até à última pataca ou dólar de Hong Kong. Muitos chineses gostavam de falar das suas amantes russas.

Alguns só queriam sentar-se e falar. Em Xangai se tivesses dinheiro tinhas tudo. Ali não era diferente. Mas não seria assim em todo o lado? Por isso havia tantas prostitutas, jogadores e vendedores de droga. O cheiro do ópio sentia-se em muitas ruas. Como se Xangai e Macau fossem irmãs.

Olhou novamente à volta. Foi então que viu Prazeres da Costa numa mesa de jogo. Recordou as suas palavras:

– Temos de usar o dinheiro. Devemos ser ricos, para lá dos nossos sonhos. O mais importante é ter dinheiro. Será sempre. Até que este mundo desapareça.

Cândido julgara que ele brincava. Mas não. Ele era reservado. Tinha muitos segredos que não dizia. Marina, que seguira o seu olhar, disse-lhe:

– É teu amigo?
– Não sei.
 

[CONTINUAÇÃO]

 

10 Mai 2019

Comédia com bolinha

[dropcap]O[/dropcap] comediante Louis CK vem a Portugal no final de Maio para fazer quatro espectáculos no Maxime Comedy Club. Os bilhetes, apesar de custarem quarenta e cinco euros, esgotaram num ápice. As reacções, essas, não se fizeram esperar.

Para os poucos que não se recordam, em 2017 o New York Times publicou uma reportagem na qual cinco mulheres acusam o comediante de “conduta sexual inapropriada”, a saber e pelo que foi revelado, Louis CK tinha por hábito masturbar-se à frente de mulheres, mas “não sem lhes pedir licença primeiro”, como terá dito o próprio depois de se ver confrontado com as notícias sobre o seu comportamento.

Este é apenas mais um comportamento abusivo recorrente na indústria de entretenimento americana (e julgo que será igualmente assim, em graus variáveis, um pouco por todo o lado).

Durante décadas os menos poderosos (actores e actrizes aspirantes, sobretudo) foram as grandes vítimas destas condutas que resultam, como o próprio CK admite, de um abuso da posição de poder de quem está mais perto do topo ou mais longe do fundo da hierarquia. É um comportamento típico de filho da puta, e estes, infelizmente, não existem somente na indústria de entretenimento. Embora – e felizmente – nem toda a gente tenha sido sexualmente assediada no trabalho, muitos – e atrevo-me a dizer que uma maioria significativa – tiveram chefes ou responsáveis directos que por serem ou se terem tornado filhos da puta profissionais tornaram a vida dos seus subordinados pequenos infernos a troco de nada senão o gozo do (pequeno) poder. Aqueles que tiveram a sorte de por motivos sobrenaturais nunca se terem cruzado com um filho da puta podem ler o Discurso sobre o filho da puta, do Alberto Pimenta, e ficam a saber de que se trata, está lá tudo.

Os escândalos Harvey Weinstein e Kevin Spacey – bem como o movimento Me Too – vieram expor de forma assustadoramente clara o quão sistémicos são o abuso e assédio sexuais. O fenómeno, que nunca foi novo, não merecia a censura social de que é alvo hoje em dia. Como tantos outros: durante décadas era tido como normal um marido “disciplinar” a sua mulher.

Louis CK foi basicamente riscado do mapa da indústria. Foram-lhe cancelados contratos, distribuição de filmes, participações em séries. Confessou-se arrependido, como seria de esperar, e fez uma pequena travessia no deserto, tendo regressado aos palcos em Agosto de 2018. Os quatro espectáculos que prevê realizar em Portugal encontram-se esgotados. Como em quase tudo na vida, a doutrina acerca de Louis CK e do seu regresso à comédia divide-se. Há quem considere que ele está no direito de voltar, quem ache que o seu regresso é prematuro e quem considere que ele nunca mais devia fazer nada.

Estas posições resultam em grande parte de Louis CK não ter feito (aparentemente) nada de ilegal.

Não foi acusado, julgado e condenado. O seu comportamento é moralmente condenável mas não legalmente sancionável. E a única forma que a sociedade tem de punir um comportamento sobre o qual os tribunais não podem opinar é a censura a que pode submeter o trabalho do autor. E esta diferirá naturalmente, em termos de intensidade e duração, de pessoa para pessoa.

Não acho que ninguém merece uma proscrição vitalícia pelos actos cometidos. Mas o regresso de Louis CK ao business as usual tem o seu quê de precipitado. Como de facto estamos no domínio da subjectividade na apreciação e sancionamento dos actos do comediante, parece-me que a presença nos espectáculos de 24 e 25 de Maio diz mais de quem lá vai do que do próprio Louis CK.

10 Mai 2019

Dia da mãe.

[dropcap]T[/dropcap]inham-te deixado no princípio da floresta com um machado e uma ração de sobrevivência. Disseram-me. Tinha perguntado por ti. Tínhamos estado todos juntos num treino antes do Natal, como fazíamos sempre. A tua flexibilidade e plástica deixavam ver como eras.

Tinhas fundado uma empresa. Tu e o teu irmão. Vendias para a Europa toda e para a América. Era uma aplicação de sucesso. Tu e o teu irmão eram três com a vossa mãe.

Combatíamos as lutas nipónicas. Vivias à distância do tempo dos estágios de Karaté. Outrora, Cascais e Lisboa ficavam quase à distância do tempo entre o fim das férias grandes e o seu início. Quando nos encontrávamos, sempre com o Mestre Raul a orientar o estágio e o Mestre Haradá, medíamos forças, sobretudo técnica. Quando éramos miúdos, ficávamos sempre à espera de quem vinha de onde. Nós, os de Lisboa, éramos do Judo Clube. Vocês vinham do Dramático de Cascais. Um Mestre, uma prática, um sentido, no Dojo.

Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Não percebia bem por que razão.

Entretanto, ganhavas cintos negros como quem os merece. E tinhas uma aplicação: tu, o teu irmão, e a tua mãe. Víamo-nos duas vezes por ano. Punhamos à prova técnica, porque a coragem estava garantida. O Karaté era a nossa disciplina. O tempo passava durante décadas, desde que éramos miúdos. Púnhamos tudo em causa. Procurávamos a eficácia. Antes, era a beleza das formas ancestrais. Depois, acháramos que era a eficácia. Os judokas diziam que a eficácia era medida pela projecção. O karaté tinha o controle. Falávamos da tua agricultura e eu da minha filosofia. Um dia encontramo-nos num casamento de um amigo. Tu tinhas a tua aplicação vencedora na empresa da mãe do teu irmão e tua. Vendias por toda a Europa.

Tinhas perdido o pai, mas a nossa prática era o teu mundo. A maneira como punhas o teu mawashi, perna direita e perna esquerda, à altura da cabeça de quem quer que fosse que te defrontava era exímia. Mas nós falávamos do que era a técnica que tínhamos visto e que nos formara. Nós tínhamos sido formados pela técnica, pelo Do, pelo caminho. Tínhamos sido miúdos no Tatami.

Disseram-me que te tinham deixado na floresta com um machado. Tu que eras o grande mago das pernas que batem sem armas. A tua plástica era a coreografia antiga dos velhos mestres que tínhamos visto. Antes mesmo de tudo, havia o que procurávamos. Fomos a tantos estágios e a tantos sítios. Falávas-me da tua mãe. Mãe única que te tinha ficado. O teu pai tinha partido cedo. Dizias que era a tua herança: praticar Karaté. Vinha do Mestre Raul Cerveira. O Mestre era comum.

A tua mãe tinha-vos criado. Sofria de dores agudas de uma e de outra pernas. De manhã, fazias café. O teu irmão vivia com a mulher e tinha filhos. Tu cuidavas da terra e da mãe como quem cuida da mãe. A tua mãe era a terra. Vivias momentos felizes: entre os teus mawashi geri’s, o sucesso da tua empresa, a amizade com todos os que se confrontavam com mãos e pés nus. A tua mãe cuidava de ti como tu cuidavas dela. Às vezes, poucas, falavam do pai, do teu pai e marido dela. Saudades não se sabe bem de quem, porque eras miúdo quando ele partiu. O teu irmão nem se lembra dele. Tem uma ténue imagem dele em ti. Os teus amigos estavam sempre em Karaté Gi. Ele era e foi um grande irmão. Amavas o teu irmão como ele te amava a ti. Eras tu, o mano, a mãe.

A mãe adoeceu. Deixaste de aparecer aos estágios. Não sei se ias treinar. Mas tinha sido uma doença dura e severa. Tu, o mano e a mãe fizeram um pacto. Ficariam juntos sempre até que alguma coisa acontecesse. Estava a acontecer. Os estágios, a agricultura, o mano, tu e mãe ficaram envoltos num todo confuso.

Mãe, perguntavas tu, como estás hoje? Hoje, estou bem. Mãe, perguntavas tu, sempre, como estás. Esperavas que ela te mentisse o melhor possível. A mãe não te enganava. Tu já não querias e não deixavas que te enganasse. Tu, o mano e mãe jantavam pelo menos três vezes por semana, mas eras tu quem estavas com ela, que a levavas às compras. Depois, ajudava-la a subir as escadas, fechavas as portas dos armários e, quando precisavas de trabalhar, fingias que não a ouvias. Às vezes, não eras tão gentil como querias.

Disseram-me que te tinham deixado numa mata, uma floresta espessa. Ficaste com um machado e uma ração para uma semana. Haviam de ir-te buscar. Perguntei por que razão. Disseram-me que não aguentaste a perda.

Toda a tua força da infância e juventude, todos os teus combates, tudo o que tu tinhas aprendido, tinha-te ditado o destino.

Quando viste a tua mãe morrer-te, apertada no vosso abraço, tão apertado que a asfixiariam, se não estivesse já morta – era para a manterem viva — soubeste logo o que fazer.

Quero que me deixem na mata mais virgem que houver. Quero que me dêem as árvores mais nocivas e cheias de vida. Com o meu machado irei sem comer nem dormir desbastar o mundo até criar de novo a minha mãe.

10 Mai 2019

Bertolt Brecht : the teacher

[dropcap]O[/dropcap] dr. Sigmund Freud disse uma vez uma coisa muito estranha: “Não parece ser possível de modo nenhum levar o homem a trocar a sua natureza com a da térmita.” Foi esse um dia feliz para Satã, em virtude do irresponsável optimismo do psicanalista.

Pelo contrário, foi arredado do horizonte político qualquer resquício do projecto iluminista, que visava o princípio de autonomia dos seres humanos, ideia que fermentou as próprias vanguardas artísticas do século xx, e que talvez tenha tido o seu último arauto em Joseph Beuys.

Hoje, talvez só na arte se possa alcançar uma promessa não frustrável de plenitude humana, mas, o que é sintoma da época, de uma forma individualizada que não admite já os movimentos. O que, se reforça a liberdade de alguns, torna patente que os projectos antropológicos se tornaram efabulações vazias e que a crise pode ser endémica.

Gravito na vertigem do vazio e da frustração, talvez por efeito do Congresso da Frelimo onde se demonstrou que – em nome da unidade – os homens avestruzes são e que um país pode afinal ser um Clube do Procrastinador.

O tanto que era preciso clarificar, discutir, esmiuçar, enfiou-se para debaixo do tapete e o carácter unanimista – quando seriam tão úteis as divergências e o debate que trouxesse uma aragem programática, sobretudo depois do desafio dos ciclones – respinga de uma evidência que devia ser tomada como tristeza e não como razão triunfante: não há alternativa à Frelimo.

É feliz o país em que a qualidade existe nas diversas facções que constituem o seu panorama político. Para isso seria preciso uma aposta séria na educação, o único combate. A democracia devia resguardar as suas quotas de esperança e não ser apenas o jogo formal que valida e impõe a grelha de adiamentos das discussões essenciais.

Dei uma palestra sobre Mercados de Arte e Tipologias Culturais. Às duas por três perguntei: “Como é viver num país em que não há validação social ou cultural fora do alinhamento político? Quando os artistas moçambicanos quiserem responder a esta questão talvez comecem a autonomizar-se”. Levantou-se um artista e, desviando-se da minha questão, vociferou contra mim e os mais “resíduos de portugueses” (os brancos) do país (e explicitamente o Mia Couto), num discurso de ódio que ainda se fundamenta na retórica da “mão externa”. Continua a ser dominante uma recusa generalizada pela auto-análise.

Também no Brasil os sinais são acabrunhadores. Os números demonstram que retirar-se a Filosofia e a Sociologia dos programas escolares foi a manobra de diversão para esconder o objectivo mais drástico: a maior talhada nos cortes para a educação deu-se no ensino básico.

Afinal, eles não querem, em vez de vez de filósofos, terem cientistas e engenheiros, não: eles querem ter térmitas. Estamos numa época que se péla por desmentir o dr. Freud.

Vem-me de súbito à cabeça que talvez o que caracterize este princípio do século seja o desenraizamento e a inadequação. E que motivados por estas duas afecções os governos, em vez de resolver os problemas que capricham em se apresentar complexos, tomem por desígnio, pelo contrário, cumprir literalmente o que se lê no poema de Brecht,  A (Dis)solução: «Depois da revolta de 17 de Junho/ Mandou o secretário da Associação de Escritores/ Distribuir panfletos na Stalinallee/ Nos quais se podia ler que o Povo/ Perdera levianamente a confiança do Governo/ E só a poderia reconquistar/ Trabalhando a dobrar. Pois não seria/ Então mais fácil que o Governo/ Dissolvesse o Povo e/ Elegesse outro?»

Querem a prova? Vejam o que se passa nos EUA. Eu não consigo descortinar o que valide a “chispa engenhosa” do “jogo de somas a zero” que o Trump pratica na sua guerra comercial com a China, a não ser com a chave do poema do Brecht. Ora veja-se:

«A fabricante de tratores Deere estima uma inflação de US$ 100 milhões nos seus custos com matérias-primas neste ano, por conta das tarifas de Trump sobre as importações chinesas. A empresa cortou gastos e ampliou preços para proteger seus lucros.

Um relatório de fevereiro do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA apontou que as taxas levaram a aumentos de até 12% nos preços de máquinas de lavar, em comparação com os valores de janeiro de 2018, antes da vigência das tarifas.

Os impostos sobre aço e alumínio elevaram os custos de produtos feitos de aço em cerca de 9% no ano passado, aumentando os custos para os que utilizam aço em US$ 5,6 bilhões, de acordo com um estudo do Peterson Institute for International Economics.

Empresas e consumidores norte-americanos pagaram US$ 3 bilhões a mais por mês em impostos por conta das tarifas sobre produtos chineses e alumínio e aço de todo o mundo, segundo um estudo do Federal Reserve de Nova York, da Universidade de Princeton e da Universidade Columbia. As companhias suportaram a adição de US$ 1,4 bilhão, nos custos relacionados com a perda de eficiência em 2018, mostrou o estudo.»

Comprova-se pelos efeitos da sua política nos tecidos industriais americanos: Trump, desgostoso com o seu povo, quer que ele trabalhe a dobrar. Ele garante que ganhará “a guerra”, mas a que preço? Todavia, tenho a certeza, estes braços de ferro serão exaltados pelos seus fãs e a irracional “virilidade” neles demonstrada há-de valer-lhe a reeleição.

Hoje, não tenho a menor dúvida de que os governos se sentem exilados no seu território. Veja-se o drama que o António Costa enfrenta com os professores – roídinho por um sentimento de exílio, face a um povo tão desenraizado que já não sente os dramas do governante. Os governos, para obstar estes problemas, deviam rodar. Governo eleito na Suécia trocava de povo com o da Suazilândia, por exemplo.

Os Congressos dos Partidos deviam ter a mesma lógica de desterritorialização. Podiam realizar-se todos na Califórnia e trocarem entre si as resoluções finais. Ou esperem, façam-se antes em Curitiba, o Bolsonaro garantiu que fornece “as gajas”.

9 Mai 2019

Afrodite, Sena e o ipiranga do corpo

[dropcap]H[/dropcap]á alturas em que é preciso bater no fundo, deixar o mar recuar de vez e observar o que sempre esteve lá por baixo. Por vezes, é preciso despovoar a história, reduzir a zero o inventário da felicidade imaginária e os ovos moles do tempo. Jorge de Sena fê-lo na sua época contra tudo e contra todos. O testemunho de Marcello Duarte Mathias, no segundo dos cinco volumes do seu diário, fala por si quando se refere a Sena como “praguejante e gesticulatório despovoando tudo e todos à sua volta da mesma santíssima fúria homicida: o Brasil, e os Estados Unidos, o Estado Novo e o 25 de Abril, os intelectuais e os que o não são, incluindo o próprio Pessoa que também não escapa à sua ira redentora (coitado, não há maneira de o deixarem em paz!) – ninguém e coisa nenhuma merece graça aos seus olhos.”. Diga-se o que se disser, o país – qualquer país – precisa, de tempos a tempos, de seres abrasivos e lancinantes, que originem depois estes prantos e queixumes tão tardios quanto inúteis.

Lembro-me de Eugénio Lisboa me ter dito, há muitos anos, em Londres, que as grandes transformações da língua literária portuguesa tinham tido lugar nas diásporas. O filão ligava entre outros, Camões a Padre António Vieira, Francisco Manuel de Melo a Garrett e, naturalmente, Pessoa a Sena. Não é altura de me precipitar numa análise à escrita do autor, pois, nesta circunstância, dele interessa-me bem mais o vulcão insaciado, a personagem acrobata e inconformada e a figura do guerreiro, por vezes cego, que fez da contenda um móbil constante de afirmação, apesar do ‘mau jeito’ que causou a muitos dos seus solícitos contemporâneos.

Há quase seis décadas, mais propriamente no dia 7 de Agosto de 1959, Sena chegava ao Brasil dando início a um exílio voluntário. O autor, então com 39 anos, viveria logo a seguir uma fase de escrita particularmente fértil. São da sua lavra, na altura, muitos dos poemas de Metamorfoses, parte dos poemas de Arte de Música, praticamente todo o romance Sinais de Fogo (que viria se ser publicado postumamente), O Físico Prodigioso e ainda alguns ensaios sobre Camões.

Recuemos até esse longínquo ano de 1959 para ver o estado do rectângulozinho a que Sena escapara. Logo no início do ano, Humberto Delgado refugiou-se na Embaixada do Brasil em Lisboa e pediu asilo político. Em Março, um movimento revolucionário contra o regime salazarista em que Sena se envolveu, denominado “Revolta da Sé”, acabaria por ser desmantelado pela PIDE.

Dois meses depois, o Cristo-Rei em Almada, projecto quadrado de Francisco Franco, era inaugurado, enquanto Henrique Galvão partia para a Argentina na qualidade de exilado político.

Nos primeiros dias de Agosto, teve lugar o massacre de Pidjiguiti na Guiné (uma greve dos estivadores do porto de Bissau que acabaria selvaticamente com mais de cinquenta mortos). No Outono desse ano em que surgiu Aparição de Vergílio Ferreira, um outro romance, Quando os lobos uivam de Aquilino Ribeiro, era apreendido e, depois, viria mesmo a ser alvo de um processo judicial.

Enquanto esta miserável melopeia avançava em Portugal e a guerra colonial estava prestes a iniciar-se, Jorge de Sena soube distanciar-se do pântano e construiu mundo. Talvez o sinal mais simbólico dessa viragem radical (ou desse corte umbilical) se encontre nos famosos quatro sonetos a Afrodite Anadiómena que foram publicados em 1961 na revista Invenção de São Paulo, sendo posteriormente inseridos em Metamorfoses. O próprio poeta explicou o sentido desta escrita única: “O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem.” (…) “creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo.”.

Para gáudio dos leitores, deixo aqui em baixo transcritos os dois primeiros desses quatro sonetos. Eles representam, não apenas a ruptura total com a sofreguidão lusitana da época, mas também, tal como se referiu no início desta breve crónica, a postura de quem sabe que é urgente bater no fundo e fazer reaparecer o que é de todos: o corpo, o corpo livre, o corpo desamarrado com que, mais tarde, as Novas Cartas Portuguesas viriam a selar este longuíssimo ipiranga, gritado contra a moralidade da pátria salazarenga (que persiste ainda em muitos e inauditos lugares do nosso tempo).

Cruz, Gastão. Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou a arte de ser moderno em Portugal. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.
Mathias, Marcello Duarte. Os Dias e os Anos – Diário 1970-1993, D. Quixote, Lisboa, 2010, p.379.
Sena, Jorge, Quatro sonetos a Afrodite. Last Updated: Setembro 21 de Março, 2008. Disponível em http://antoniocicero.blogspot.com/2008/03/jorge-de-sena-quatro-sonetos-afrodite.html [Consul. 28 Abr. 2019].

 

I

PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
Lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.

II

ANÓSIA

Que marinais sob tão pora luva
de esbanforida pel retinada
não dão volpúcia de imajar anteada
a que moltínea se adamenta ocuva?

Bocam dedetos calcurando a fuva
que arfala e dúpia de antegor tutada,
e que tessalta de nigrors nevada.
Vitrai, vitrai, que estamineta cuva!

Labiliperta-se infanal a esvebe,
agluta, acedirasma, sucamina,
e maniter suavira o termidodo.

Que marinais dulcífima contebe,
ejacicasto, ejacifasto, arina!…
Que marinais, tão pora luva, todo…

9 Mai 2019

As quatro mãos do meu piano

[dropcap]T[/dropcap]udo o que faço é por causa do Presidente, para o bem e para o mal, foi ele que me trouxe até aqui. Desde que me lembro de existir. Quando atravessava a rua e me atirava para cima dos cisnes negros que nadavam no lago em frente a casa, era o Presidente que determinava o horizonte desse acontecimento. Sempre que fazia o contrário daquilo que me pediam, não era birra, não era mau feitio. Diziam que não entrava na linha, que era rude e que tratava mal os outros meninos – e as meninas também, puxava-as pela mão, contra as suas vontades – e que dava cabeçadas e murros na parede quando estava com os azeites. Não era bem assim, mas era quase, e o quase tinha um cognome. Pedalava por precipícios, num carro sem travões. Explorava moradias em ruínas e bichos estranhos que, claro, me atacavam e por isso tinha que dar corda aos sapatos. Não era que me apetecesse, não era por minha vontade. Na verdade, odiava tudo isso. Odiava automóveis e fazer corridas de carrinhos e caricas em talhões de terra, mas tinha de ser. O Camisola Amarela, o Prémio da Montanha, nenhum faltava à comparência. A classificação por pontos e por uma jogada abaixo do par. Detestava também partir tijolos com a cabeça e os cinturões de artes muito pouco marciais. As viagens a meio da noite para clareiras de florestas cheias de gente não identificada. E alguns objectos voadores. Isso tudo tinha uma razão de ser. O ser que não tinha nome, só tinha fama. Levava-me pela mão.

Não era fácil e o troco não estava garantido. A maioria das actividades era um esforço tremendo. Mas como a vida era assim desde o seu início, não duvidei que pudesse acontecer de outra forma, que o cinto tivesse um aperto mais largo. Fosse de que lado caísse a chuva, ou soprasse o vento, o espectro estava sempre lá, como um banho de água gelada. Bom ou mau, era para cumprir. Não que refilasse ou coisa assim, não tinha nada contra, porque não tinha nada dentro de mim e não conhecia o favor. Ia apenas enchendo o recipiente que formava o meu ser em absoluto, o involucro que o Presidente segurava e que tentava vedar cheio de determinação. Foi sempre assim, em todos os estágios por que fui passando. Escolas, trabalhos, amizades, lutas. Relações quentes e frias. Viagens, festas de aniversário, casamentos e baptizados. Tudo o que inseria para dentro do meu corpo, quem me enfiava a colher na boca ou a pica da imunização? Os pesadelos, as noites mal dormidas, os vizinhos aos gritos, que conversas eram essas, quem as encenava? A família que me arranjaram, os amores, o suor e as lágrimas. Compromissos por terminar, tarefas do tamanho do mundo, coisas vãs? Era a pressa. Era o relógio que estava a tiritar. Era o dedo no cronómetro, que me fazia chegar muito depois do último. Ou antecipando o primitivo. Aqui e ali ao mesmo tempo, cala-te agora, neste devias falar. Quem tinha o microfone em riste? Não é preciso dizer quem era a personalidade. Nem apontar o dedo, porque é feio.

Questionava-o sobre muito do que sucedia. Mesmo depois da idade dos porquês, continuava a perguntar-lhe a razão de ser de tudo aquilo que se erguia à minha volta. Seriam cenários? E os figurinos, quem os vestia? Porque haveria de me colocar em dificuldades quando tudo corria bem e sem tormentos? Ele replicava que era mesmo assim, enquanto me levava ao dentista que me assassinou. Que não podia ser de outro modo. “É assim que o mundo foi feito”, convencia-me. Não me instruiu em religiões ou noutras crenças dissimuladas. Que o mundo era quadrado. O que existia estava à vista. O oculto era também uma ciência, era para apreender e descobrir ao longo do tempo. Que no chão que pisávamos existia uma crosta esférica com várias camadas de matéria incandescente em plena ebulição e que, aglomerado no centro, a mais de três mil quilómetros de distância – Lisboa > Bielorrússia -, um eixo redondinho com a temperatura do Sol que nos mantinha numa rota precisa no céu, impedindo-nos de cair na latrina de sémen do Universo. A paternidade. O vazio sem fundo.

“Nada de pressas”, dizia em muitas ocasiões.

Uma vez no ar, ia eu disparado ao embater no tampo de uma viatura que circulava no sentido errado, ainda não havia telemóveis por isso não pude utilizar o serviço de mensagens curtas, comuniquei-lhe no éter, por alguma frequência: “Porquê isto?” A geometria descritiva a gostar dela própria. Mundo quadrado, sim. “Aguenta!”, ripostou, por entre os estilhaços de vidro, um segundo antes de esborrachar um capacete novinho e o seu conteúdo – isso era o menos! – no alcatrão.

Antes de me apagar: “Aguenta!”

Em meados dos anos 90, declarou: “Deixa tudo e desaparece!” Não pestanejei. A directiva não trazia remetente nem carimbo. Nem formulário para contestação. Mas também não fui para a rua lutar. O meu lacre tinha uma existência regular: a vidinha. Um trabalho, uma namorada, quatro rodas de um automóvel. Ia ao cinema, aos concertos, aos jantares. Conduzia-me pela cidade, noite dentro, e pelo país, de Norte a Sul. Tinha um pé no chão, outro no acelerador. A cabeça no ar. E o Presidente orientou-me, à temperatura do sol nascente, a remoer o meu magma com as ferramentas todas do jardim. Desapareci e aprendi a nadar nessa superfície incandescente. E aguentei!

Na viagem, um homem coberto com uma manta na coxia ao lado, sem lhe ver o rosto, sem lhe ver o corpo. Seria ele? Seria um mantra? Não ousei levantar o véu, não lhe queria ver a cara. Nunca esteve longe, tenho a certeza. Mesmo nos momentos em que tinha de fazer as coisas sozinho, quando tudo andava ao contrário e a crosta no solo parecia romper-se em pedaços, deixando tudo em carne viva, permanecia agarrado ao meu ombro, com o seu visto de rapina. Num olhar que era só meu.

Já não espero por muito. Habituei-me. Agora, em terra de turcos, sem geometrias e deveres ocultos, aguento. Disperso. Um dia após o outro. Há sempre um que vem a seguir, não é?

Já dentro do caldeirão, falei com quem tinha de falar, nada foi por acaso. O algoritmo, o serviço de mensagens longas, os pagers. Deram-me logo isso para a mão, para que não faltasse nada. Associado a pessoas estranhas ao meu estabelecimento, que me acolheram, prossegui. Os caminhos traçados no chão. Um sistema luminoso como na pista de um aeroporto, fitas coloridas atadas aos ramos das árvores, pequenos truques de algibeira. Casas e mais casas, para o conhecimento da palma do território. Sociedades secretas. A história da Guerra do Ópio. Transatlânticos. Mais mantras, iogas e mandalas. O Presidente, a partilhar informação confidencial, elucidava-me sobre o desafio total. A liberdade a passar por ali. Na face da minha cara.

Às tantas, mandou-me para perto do General, para aprender como se fazia. “Vai!”, e eu fui, como um animal irracional que abana a cauda. Não precisava da Razão, podia viver bem sem isso, o fogo ardia sempre ao meu lado. Pensava, fazia relatórios, ouvia conversas. Carregava em botões. Observava a vida por dentro de um rectângulo que materializava em figurinhas planas de papel extorquidas da realidade. Guardava. Acumulava sabedoria. Para quê? Dizia-me que algures lá à frente, no eixo redondinho do céu, o meu dia iria chegar. Que um dia seria eu. Que a maré se iria levantar.

Next!

Um dia, pede-me para chegar a horas. Envia-me bilhetes de avião. Outros, para chegar atrasado. Grito. Para que se afaste. Mas ele não foge. Reclama, que devo ver e observar tudo com atenção, ou que ignore um conhecido de outros tempos com quem me cruzo e, se mais tarde o encontrar numa festa, que invente o pretexto de que tenho dioptrias.

Já não espero por muito. Habituei-me. Agora, em terra de turcos, sem geometrias e deveres ocultos, aguento. Disperso. Um dia após o outro. Há sempre um que vem a seguir, não é? Para lá da colina, para lá do sol posto. Traz sempre o tabuleiro recheado de iguarias a tiritar. Tic. Tac. O gravador em riste, para que permaneça a fita na memória. Sessenta aqui, sessenta ali. Os cisnes negros a atravessar a rua. Sem conserto e sem jantares. O lago seco. O salto à vara. A enfiar-me o capacete. Na paz de quem me dá a mão. E a alma.

Como sempre, está aqui. O Camisola Amarela, em fuga solitária e já muito perto da montanha. Onde está o prémio? A casca solta a sua lava. Cega-me por todo o lado. Tic. Tac. Um copo meio vazio. Meio cheio. Sem sombras. A percorrer as teclas do meu piano. Com ele, o Presidente, perpetuamente astuto, que não fez mais do que me segredar para escrever esta crónica. Jurando nunca se render. Ditando-a.

9 Mai 2019

E se…

[dropcap]O[/dropcap]s dias começam a estar quentes e a pedirem algum ócio merecido, nem que seja para escapar das pequenas e médias tragédias que sempre nos oferecerá a vidinha. Os leitores sabem do que falo: longe de tudo e perto de nós, dedicados de alma e cérebro por uns minutos a questões tão essenciais para a humanidade como “qual será a temperatura ideal de uma imperial” ou, um pouco mais dramático, “que livro é que me apetece ler agora”.

Aqui no bairro é certinho: os cidadãos seniores ganham vida e espaço e as suas alegres rabugices são partilhadas com todos, sem medo nem pudor. Nada é poupado, desde a política ao clássico “onde é que esta juventude irá parar?” e passando pelo melhor lugar onde comer uma lampreiazinha decente. Eu, que tal como o personagem e autor do livro a que roubei o nome desta coluna, me encontro (espero) no meio do caminho da minha vida, gosto de os ouvir. Sento-me perto da mesa em que estão e discretamente tento pescar o máximo de sabedoria e frases saborosas que deles saem. É um ofício delicioso, temperado ainda por cima com uma modesta ambição: um dia gostaria de ser como eles.

E assim aconteceria sem sobressaltos, não fora o aparecimento súbito da menina Marina e da sua filosofia involuntária, que muitas vezes são semente para estas palavras. Como hoje, aliás.

Enquanto atendia um cavalheiro que estava ao meu lado aproveitou para perguntar de forma displicente, um olho em mim e outro no abatanado prestes a sair: “O senhor Nuno já alguma vez pensou como seria se não tivéssemos a vida que temos e fossemos todos mais ricos e felizes?”

Manhã de ócio definitivamente arruinada com esta questão. Por outro lado, crónica assegurada. O que mais me inquietou não foi sequer a presunção de que sendo mais ricos seríamos mais felizes – o que verdadeiramente me perturbou foi o “se”, a ideia da vida no condicional.

Nunca compreendi este exercício, que me parece inútil, triste e perigoso. Mas é uma armadilha em que já vi muito boa gente cair. Viver a vida no condicional é um limbo que deveria ter sido considerado por Dante (sim, outra vez) como mais um círculo no seu Purgatório. Pensar o que poderia ter sido é uma espécie de ingratidão face ao que temos, mesmo quando o que temos não nos agrada. Numa teologia laica seria pecado mortal. Aquele amor que falhou, aquela carreira que não aconteceu, aquele romance que poderíamos ter publicado – pobres minutos, tão desperdiçados neste território de ninguém, que de útil e de belo têm tanto como os famosos prognósticos depois do jogo.

Idealmente, passado, presente e futuro devem estar no mesmo lugar. E se esta formulação parece parente dos tempos preconizados por Santo Agostinho – “o presente do passado; o presente do presente; o presente do futuro” – então é porque é. O famoso carpe diem de Horácio volta a lembrar-nos a profunda tristeza de entregar as nossas almas ao “e se”. Agarrar o dia é aproveitar para pensarmos constantemente no que somos e como podemos fazer para sermos melhores para nós e para os outros, já que não sabemos o minuto seguinte (e não, não é um convite desabrido ao trólaró da vida).

É tão escuro viver no condicional. Uma estrada sem saída, uma rua sem luz. Já nos chega o maior e mais indelével dos “ses” que é nascer. E esse, francamente, já se sabe como irá acabar.

8 Mai 2019

O lugar de que sou é estar aqui

Rivoli, Porto, 10 de Abril

[dropcap]V[/dropcap]iagem -relâmpago para outra manifestação em torno das «Constituições» atribuídas a Aristóteles, na versão do António [de Castro Caeiro]. O Rui [Spranger] emprestou a voz cava para dar corpo aos fragmentos e José Meirinhos propôs um detalhado e muito cuidado enquadramento do percurso destes textos até chegarem à mão do tradutor, que, como bem assinalou, atreve-se a contribuir com inúmeros neologismos. A nossa língua não tinha ainda acomodado medidas e moedas e demais peças de um quotidiano perdido no tempo (e na fantasia). Pena terem sido poucos os que se atreveram à viagem.

CCB, Lisboa, 11 de Abril

Poucos conseguem falar de livros como o Jorge [Silva Melo]. Há um saber que se esconde nas calorosas definições das personagens, no respigar do detalhe biográfico do autor que interessa para estender da história como toalha tombando sobre a mesa. Falou-se de teatro, e muito, neste Obra Aberta. E de língua, que o Duarte [Azinheira] trouxe como pretexto um utilíssimo «Novo Atlas da Língua Portuguesa», de José Paulo Esperança, Luís Reto e Fernando Luís Machado (ed. INCM).

Casa da Cultura, Setúbal, 12 de Abril

Acaba sempre sendo viagem, a conversa desta «Filosofia a Pés Juntos». Lá fomos às raízes para perceber que a alma ensopa o corpo e que demorámos séculos até perceber de que massa somos feitos. O órgão do tempo demorou a descobrir o coração como centro. Até então, o esterno era o lugar da consciência de si: quando apontamos para nós próprios, o cerne fica mesmo ali. Depois, em fundo de boca, fica-me o sentido de sarcófago como comedor de carne.

Povo, Lisboa, 15 de Abril

Sessão marcada por avarias e desencontros, esta dedicada à poesia de José-Emílio Nelson, que terá para mim sempre o caracter de «Beleza Tocada», de fruto que o toque encaminha para a maturação, talvez o apodrecimento. O Henrique de-tantos-nomes Fialho ficou na estrada, traído pelo motor. O Filipe [de Homem Fonseca] foi travado e não podemos ver as suas mãos dançar no ar que o teremim respira. Mas o Pedro [Proença] desenhou com a voz, a Rita [Taborda Duarte] abriu caminhos, que o Luís [Carmelo] e eu seguimos diligentemente. Mas esta poesia é ruim de se dizer, despega-se dos olhos, faz-se agreste e desassossegada, com ela todo o caminho se faz sobre gelo fino. Peculiar, portanto, o encontro.

Coura, sem paredes, 26 de Abril

De súbito, na esplanada, talvez em resposta ao Trakl que o António [de Castro Caeiro] acabava de ler, o Miguel [Martins] diz de cor o «soneto presente», do Ary dos Santos. Na rua onde pulsa o coração desta terra inscrevo na pele o meu hino para estes dias. «Não me digam mais nada senão morro/ aqui neste lugar dentro de mim/ a terra de onde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui.// Não me digam mais nada senão falo/ e eu não posso dizer eu estou de pé./ De pé como um poeta ou um cavalo/ de pé como quem deve estar quem é.// Aqui ninguém me diz quando me vendo/ a não ser os que eu amo os que eu entendo/ os que podem ser tanto como eu.// Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/ a força do lugar que for o meu.» As gaiolas também se rasgam, grita o cartaz do «REALIZAR:poesia» (algures na página), assinado pelo António Pinto.

Biblioteca Aquilino Ribeiro, Coura, 27 de Abril

Por agora, uma certa ideia totalitária de cânone enquanto regulador do gosto vai fazendo escola, suscitando aqui e ali boas traduções, mas acompanhado de retóricas castigadoras, sem se afastar de miserável proselitismo. O momento, portanto, não será o melhor para entender que alguns livros possam nascer de gestos de amor, na crença de que o humano possui grandeza única. E que merece ser celebrada. O António Cabrita e o Miguel [Martins] escolheram guiar-nos através da esparsa produção do Levi [Condinho] com este «Pequeno Roteiro Cego». Trata-se de um tributo afectivo, um reconhecimento da importância que o autor teve no concreto de algumas vidas, tornando-se ainda testemunho de um certo tempo. A poesia ilumina e muito para além desta circunstância, apesar da tocante simplicidade que parece praticar. E depois Levi Condinho trata deus por tu, chama-o para inúmeras conversas, de braço dado, de olhos nos olhos. O autor não quis subir, não se dá com viagens, mas foi devidamente descrito enquanto paisagem pelo Miguel. Por causa da música que soa ininterruptamente em pano de fundo, a Luísa [Pires Barreto] glosou na capa um certo modo das cores se arrumarem para dizer jazz, como foi com certas editoras que, no seu tempo, não recusaram esta luxúria.

«A sensibilidade do miolo miúdo do poema/ não concebe o grito do pregador/ nem o sarcasmo dos castrados da intempérie// o homem vai no transporte da sua vida/ e a escrita faz-se no andar do transporte/ quem entende apenas o exterior parado/ nada vê – por isso o abandono é tanto// e o pudor de uma flor discreta comove/ como o grito das aves na montanha árida// voltar ao grito e ao silêncio/ mas não da forma tão visível como quereis/ eis a ciência do azul de dentro// canto/ mas os cães mijam/ nos postes de silêncio/ do meu canto.»

Retiro do Taboão, Coura, 28 de Abril

O sol esbatia, impiedoso, cada contorno. O rio parecia quedo, concentrado na tarefa de espelhar o céu. Os carvalhos receberam as palavras com soberana indiferença. E, no entanto, os versos de Georg Trakl, vertido pelo António para o cadinho do português, parecem resultar de golpes de canivete em um qualquer tronco. Lá nos explicámos o melhor que pudemos este volume de «Poemas», mas foram sobretudo as leituras em voz alta que me parece que impuseram uns laivos de magia. Não vejo melhor lugar para fazer soar esta melancolia escaldante, este «Sussurro ao Meio Dia». «Sol outonal, delgado e hesitante,/ E a fruta cai das árvores./ O silêncio habita espaços azuis,/ Onde um meio-dia se alonga.// Sons de metal, de moribundos;/ E um animal branco precipita-se./ Canções roucas de meninas morenas/ São levadas como as folhas em queda.// De Deus, a fronte sonha cores,/ Adivinha as suaves asas da loucura./ Sombras movem-se na colina,/ Envolvidas pelo negro da podridão.// Crepúsculo sereno cheio de vinho;/ Fluem tristes as guitarras./ E tu entras na terna lâmpada/ Como se de um sonho te tratasses.» Indistinto na folhagem pareceu-me ver o autor tal qual aparece, tão bem apanhado pelo Manuel [San Payo], na capa. Mantinha o corpo trocado pelo sobretudo de traços, de vestígios. E pareceu-me sorrir, mas ao longe podia ser apenas um esgar.

Algures entre Coura e Braga, 28 de Abril

Esta estrada sinuosa presta-se a devaneios meditabundos. À ida, tive por companhia uma série magnífica de nuvens a pintalgar um azul de espanto. Na descida, o assunto foram árvores, sobretudo os carvalhos e as oliveiras. Anda por aqui uma estranha moda de podar as oliveiras arredondando-as e achatando-as que nem pneu. Mas o que tenho que registar (para prova futura) é a revelação desta espécie que me era desconhecida: limão caviar. O fruto contém pequenas nuvens.

8 Mai 2019

A última ópera de Verdi, mas em traje eclesiástico

[dropcap]Q[/dropcap]uando o famoso compositor italiano Gioachino Rossini faleceu em 1868, Giuseppe Verdi, na época considerado o mais ilustre compositor nacionalista de Itália e um dos mais influentes do séc. XIX, sugeriu que diversos compositores italianos deveriam compor em conjunto um Requiem em homenagem ao grande mestre. Verdi deu início à empreitada com uma versão do Libera me, um responsório católico romano cantado no Ofício dos Mortos e na sua absolvição, orações ditas perante o caixão imediatamente a seguir à Missa de Requiem e antes da inumação. O texto do Libera me pede a Deus para ter piedade da pessoa falecida no Julgamento Final.
No ano seguinte, uma Messa per Rossini foi compilada por treze compositores, dos quais o único conhecido actualmente é o próprio Verdi. A estreia da obra foi marcada para 13 de Novembro de 1869, primeiro aniversário da morte de Rossini. No entanto, no dia 4 de Novembro, nove dias antes da estreia, a comissão organizadora abandonou o projecto. Verdi atribuiu as culpas ao maestro que havia sido escolhido, Angelo Mariani, indicando a falta de entusiasmo de Mariani pela empreitada, o que marcou o fim da sua longa amizade. Verdi nunca perdoou a Mariani pelo ocorrido, mas continuou a rever o seu Libera me, frustrado que a comemoração da vida de Rossini agendada não se concretizaria durante a sua própria vida. Assim, a Messa per Rossini caiu no esquecimento e só foi trazida à luz em 1988, quando o maestro alemão Helmuth Rilling regeu uma versão completa da mesma em Stuttgart.
Em Maio de 1873, o eminente escritor e humanista italiano Alessandro Manzoni, que contribuiu grandemente para a criação da unidade linguística em Itália, e que Verdi havia admirado durante toda a sua vida adulta, faleceu. Ao ter conhecimento da notícia da sua morte, Verdi decidiu compor um requiem – desta vez sozinho – em homenagem a Manzoni. Viajou para Paris em Junho desse ano, onde começou a trabalhar na obra, dando-lhe a forma que apresenta actualmente, e incluindo a versão do Libera me que tinha composto originalmente para Rossini. A estreia foi realizada no primeiro aniversário da morte de Manzoni, no dia 22 de Maio de 1874, na Igreja de São Marcos em Milão, regida pelo próprio Verdi, sendo solistas a soprano Teresa Stolz, a meio-soprano Maria Waldmann, o tenor Giuseppe Coppini e o baixo Ormando Maini. Stolz, Waldmann e Maini tinham todos participado na estreia europeia da sua ópera Aida, em 1872. Coppini também estava escalado para participar, mas teve de ser substituído por motivos de saúde.
A obra foi concluída em 1874 e é uma adaptação musical da missa fúnebre católica romana denominada Requiem, para quatro solistas, coro duplo e orquestra. Requiem é a primeira palavra do texto da missa, cuja primeira estrofe é Requiem aeternam dona eis, Domine (“Concedei-lhes descanso eterno, Senhor”).
Ao longo de toda a obra, Verdi utiliza ritmos vigorosos, melodias sublimes e contrastes dramáticos, como fazia com as suas óperas, para exprimir as poderosas emoções transmitidas pelo texto. O espantoso Dies Irae, que inicia a tradicional sequência do rito fúnebre latino, é repetido quatro vezes ao longo do requiem para transmitir um sentido de unidade. Trompetes são posicionados em torno do palco para produzir uma chamada inescapável ao Juízo Final no Tuba mirum, e a quase opressiva atmosfera do Rex tremendae cria uma sensação de desmerecimento perante o Rei de Majestade Suprema. O célebre solo para tenor, Ingemisco, irradia esperança para o pecador que pede o perdão do Senhor, e o belo Lacrimosa foi composto por Verdi a partir do dueto “Qui me rendra ce mort? Ô funèbres abîmes!”, do quarto acto da sua ópera Don Carlos.

Sugestão de audição da obra:
Leontyne Price, soprano
Rosalind Elias, meio-soprano
Jussi Bjoerling, tenor
Giorgio Tozzi, baixo
Singverein der Gesellschaft der Musikfreunde/ Wiener Philharmoniker, Fritz Reiner – Decca Import, 1960 (2000, audio CD)

7 Mai 2019

O surfista

[dropcap]J[/dropcap]orginho, com 26 anos, deixou a sua terra natal, Rio Verde, no interior de Góias, para se instalar em Florianópolis, onde há muito sonhava viver. Nas férias e fins de semana, sempre que podia, viajava para outros estados que tivessem mar, para se entregar à sua verdadeira paixão: o surf. A profissão tinha estabilizado e podia dar-se ao luxo de agora viver onde quisesse, entregando as suas maquetas por email. Em Florianópolis tornou-se uma espécie de monge surfista. Comia com frugalidade, raramente bebia bebidas alcoólicas e deitava-se cedo.

Amigos, só os amigos da prancha, com quem trocava informações acerca dos horários das marés e das melhores ondas, de semana para semana. Vivia junto ao mar. Não raras vezes o via passar com o fato negro de borracha, descalço, com a sua prancha debaixo do braço. Se me via, acenava-me e vocalizava um “Olá, portuga!”, seguindo em passo apressado ou a correr na direcção do mar ou de casa. Vivia para o surf. Um dia perguntei-lhe se ele era bom a surfar, ao que me respondeu “nem bom, nem mau, o suficiente para me divertir”. Fazia surf como quem faz amor com quem ama. Que importa se se é bom ou mau, se ambos gostam? Para ele não era importante ser-se bom a surfar, mas sentir-se bem a fazê-lo.

Um dia, numa festa de surfistas, na praia, conheceu Janine, uma rapariga entusiasta do surf, que tinha vindo de Curitiba e estava ali a passar férias. A rapariga era muito bonita e gostava dele, ou pelo menos julgava que gostava, que para o efeito é o mesmo. E ele parecia corresponder a esse sentimento. Se prestássemos bem atenção, veríamos que os seus rostos se iluminavam quando estavam juntos. Nesse mês, Janine e Jorginho eram como o mar e a prancha. E se não estavam no mar, estavam em casa dele. Quando Janine teve de regressar a Curitiba pediu a Jorginho que fosse com ela, pois podia trabalhar onde quisesse e ficaria em sua casa sem quaisquer problemas.

Jorginho não pensou sequer duas vezes, disse que não. Peremptoriamente. E que nunca mais a queria ver, que nunca mais lhe escrevesse ou lhe telefonasse. A frieza dele espantou não só Janine, mas também os poucos amigos que tinha. Um desses amigos, Hugo, contou-me a razão que Jorginho um dia lhe deu para o seu comportamento: “longe do mar, longe do coração.”

7 Mai 2019

Liberdade. I

[dropcap]A[/dropcap] liberdade humana é uma das três ideias reguladoras do pensamento kantiano com a imortalidade da alma e Deus. Ser livre, ser imortal, ser em Deus entroncam no mesmo acontecimento da vida. Enquanto ideias localizam-se no espaço estrutural da razão, acima do entendimento e da sensibilidade. Uma leitura adolescente de Kant pode dar a sensação que o acesso ao mundo, proporcionado pela nossa perspectiva, produz, primeiro, sensações a partir da matéria dada pelos objectos perante nós. As primeiras impressões que teríamos do mundo seriam os aspectos dos objectos a partir do seu exterior mais ou menos confuso, sem fronteiras definidas dos seus contornos. A matéria da sensação está distribuída por todo o espaço. Cada ponto de cada matéria de cada sensação estaria constituído por relações espaciais: dentro e fora, próximo e distante, à direita e à esquerda, em cima e em baixo. A cada ponto no espaço poderiam corresponder diversas matérias: cor, textura, figura, forma, som, volume, qualidade de som, textura táctil, temperatura, humidade, rugosidade, lisura, fragrância, paladar. O tempo coordenaria a simultaneidade dessas qualidades sensíveis num mesmo foco de irradiações, desde o centro até à periferia, numa sequência da coexistência de todas as matérias possíveis de um objecto. Um só objecto do mundo estaria assim numa sequência a coexistir com todos os outros objectos do mundo. A sequência permite perceber o aparecimento de objectos, a sua duração, o seu desaparecimento. A sequência permite compreender a distribuição dos pontos imaginários do espaço a coexistir entre si em simultâneo, ainda que as simultaneidades possam não ser percebidas a não ser em sequencias. A própria sequência integra simultaneidades.

Num segundo plano, encontra-se o entendimento com as suas categorias, que permitem compreender identidade e diferença, quantidade e qualidade, existência, possibilidade e necessidade, o comércio entre substâncias entre si e as suas acções recíprocas, causa e efeito, acção e paixão, etc., etc., etc..

Só num terceiro plano, encontramos as ideias, designadamente, a da liberdade humana, a da imortalidade da alma e a de Deus. Ou seja, de certo modo, a leitura desatenta seria uma elevação de planos que estão relacionados uns com os outros numa ascensão do plano elementar de contacto com os planos seguintes, até ao plano da razão tal que do cimo da sua altura se poderia ver o do entendimento e o da sensibilidade.

Mas o nosso plano é o da razão. Lidamos melhor ou pior, de uma forma ingénua ou séria, com a possibilidade da liberdade, da existência imortal da nossa alma, com a possibilidade da existência de Deus. Kant acentua a antinomia destas ideias. Não conseguimos provar a existência de Deus. Ou antes, podemos provar que Deus existe e que Deus não existe. A fé que faz crer põe Deus a existir. A relação com o objecto Deus pode ser de tal forma que não se quer crer que exista. O ateu é negativamente religioso, como o crente é dogmaticamente anti-céptico. A indiferença relativamente à ideia de Deus é filosófica. Compreender um começo, um momento em que se deu a criação de todas as criaturas é equivalente a não compreender como tudo começou. O mesmo se passa com a possibilidade da eternidade. Ou será que estamos condenados a um fim inexorável para todas as coisas e até para Deus? Há sentido ou não para tudo em geral?

Estas perguntas, diz Kant, andam à volta na razão humana ou nós andamos à volta com elas, mesmo que com formulações diferentes. Mais tarde ou mais cedo na vida debatemo-nos com elas. Um dia enfrentamos a morte do outro que nos é querido, em antecipação e depois quando ele já partiu. Conversamos com os nossos mortos. Não os deixamos ir ou eles não desaparecem ao longo da nossa vida. Estão presentes, quando falamos sobre eles, até com quem nunca os viu.

Arrostamos também com a nossa própria morte, a precariedade existencial da vida, a doença, a impossibilidade, o seu carácter caduco. A imortalidade da alma é uma formulação para as nossas preocupações com o carácter finito do tempo deste lado da vida, neste mundo aqui. Projectam-se sonhos possíveis de uma existência que nunca acabasse, de que as vidas dos outros que morreram continuasse, de que existíssemos para sempre. Mesmo que possamos compreender que tal é impossível, namoramos a ideia de existirmos para sempre, temos pena de que os outros reais partam como temos pena da morte dos outros todos, da sua passagem para o possível reino do impossível, de onde ninguém regressa, como pensamos eufemisticamente.

A liberdade humana situa-se assim numa relação íntima com a possibilidade da existência do criador, do criador da vida, do autor da sua manutenção, do portador do sentido, inteligibilidade e compreensão de tudo quanto existe. A liberdade humana situa-se entre a mortalidade e a imortalidade da alma. Como podemos ser livres, quando sabemos inexoravelmente que vamos morrer, que estamos continuamente a morrer? Como podemos viver à vontade, estar à vontade, quando os outros todos aí se encontram no mesmo processo de perecimento, estão a finar-se sem apelo nem agravo?

É do nó complexo e cego destas ideias que parte a interrogação filosófica. Somos nós os interrogados. Não somos nós a fazer a pergunta. A interrogação acontece. Alguma vez na vida, talvez com formulações diferentes pensamos o que seria se os nossos pudessem continuar vivos e os dias da infância se perpetuassem e houvesse uma repetição contínua para sempre? E Deus existirá para nos consolar pela perda da nossa vida? Porquê nascer, então, se estamos condenados à morte? Ou será que vou continuar só como alma sem corpo? A razão e a ciência poderão dirimir estas preocupações? Poderei eu ficar sossegado e tranquilo com as suas verdades?

7 Mai 2019

“Think small” e a comunicação via tweet

[dropcap]H[/dropcap]á sete décadas, a fórmula “Think small” resultou num grande sucesso no campo da publicidade. Foi essa ideia que coroou a entrada em cena e em força da Volkswagen nos EUA. Mais tarde, já nos anos sessenta, a campanha “Lemon” aprofundou o mesmo minimalismo, aliás contemporâneo da Pop Art. O design destas campanhas foi particularmente revolucionário na época. A economia da fórmula falava por si: as imagens isolavam num espaço branco uma pequena fotografia de um automóvel novo que contrastava radicalmente com a dimensão e a escala da tradição de Detroit, dotada com o fulgor quase fáustico do pós-guerra.

A carreira do ‘minúsculo’ no campo do design não passou pelos melhores dias nos anos setenta e no revivalismo intenso e paródico dos eighties. Foi preciso chegarmos ao mundo dos chips, no ‘turn’ dos anos noventa do século passado, para que ela voltasse a aflorar. Hoje em dia, tudo é ‘nano’, tudo é fragmento, tudo é descontínuo: é esse o apelo expressivo que a tecnologia e o cibermundo passaram a veicular à nossa própria expressão do dia-a-dia. Na primeira década do século, a blogosfera reflectiu esse espírito comunicacional. Desde o final dessa mesma década, ferramentas como o Facebook o Twitter e, a seu modo, o Instagram, têm estado a traduzir este renovado design baseado na fórmula vintage “Think small” (enfim, o verbo ‘pensar’ é francamente excessivo para o uso que nestes apressados hiatos da rede lhe é dado).

Atentemos à realidade Twitter que, nos últimos anos, passou a galvanizar a comunicação da política mundial, sobretudo desde o início da era Trump. Destacaria três aspectos para este novo artesanado do ápice e do minúsculo.

Em primeiro lugar, parece óbvio que os tweets estão a deslocar a urgência da actualidade para um outro espaço. Podemos chamar-lhe o espaço do aceno que se caracteriza por um efémero flash (quase devorado antes da devoração) que não chega sequer a ganhar corpo. Nele não há tempo para contextos, nem para pré-avisos: apenas iminência e resposta de tipo fugaz. Nada fica por reflectir e para saborear. É a chamada ‘iminência do coelho’.

Em segundo lugar, os tweets sofrem de remissão obsessiva (os links e os índices presentes na mensagem apontam quase apenas para outros links e índices). No tempo das narrativas orgânicas, tudo apontava para âncoras fixas e claramente posicionadas. Agora, os signos constróem-se através de pontes muito frágeis entre continentes que mal se distinguem. A ideia é mesmo essa: dar a ver a onda através da sugestão do seu contorno (necessariamente) fluido. Para quem tem muito pouco a dizer – o que se adequa na perfeição ao modo como a política hoje se apresenta diante de todos nós – é o modelo ideal.

Em terceiro lugar, o universo twitter baseia-se na elipse e na – chamemos-lhe – irradiação metonímica. Por outras palavras: aquilo que é transmitido permite conjecturar territórios próximos e contíguos. O olhar como que desliza para onde (não) é chamado, sem muitas vezes dar por isso. Nessa medida, o twitter pode ser muito eficaz na sua economia própria. Devido a esta extrema economia, os tweets requerem, portanto, menos ‘dito’ e mais ‘não dito’ (mesmo se não intencionado). Chegam, por isso mesmo, quase a aproximar-se da ideia de fractal: uma unidade mínima e discreta que convive em sistemas diversos, com rostos variados e flutuações intermitentes. Surf e liquidez errante, obviamente.

Concluindo, poderíamos afirmar que o Twitter se converteu, hoje em dia, na versão expressiva e social do “Think small” de há pouco mais de meio século. O desígnio e o design são similares à partida, embora a encarnação da fórmula na nossa era seja, de facto, radicalmente outra. Nos anos cinquenta do século XX, gerava uma atmosfera de fascínio devido ao contraste que exprimia; no nosso tempo, está a gerar aquele impacto fugidio que é próprio da actividade da consciência nuclear.

Repare-se no modo como os efeitos de sentido realmente se alteraram: do contraste do “Think small” dos anos cinquenta  – que tinha o seu tempo próprio e era sempre susceptível de uma dada ponderação sensorial (não foi por acaso que a pintura romântica abraçou sempre os grandes contrastes) – passou-se para uma gramática de acenos flagrantes (ou, adoptando a palavra “flagrante”, não como adjectivo, mas enquanto substantivo abstracto,  dir-se-ia que se passou para uma gramática do flagrante que visa tão-só o flagrante, sem qualquer preocupação em deixar vestígios para arqueologias futuras).

Talvez o “Think small” tenha sido a última aparição moderna do romantismo. O contraste cromático que Caspar David Friedrich registou, em 1818, na sua obra ‘O Peregrino sobre o mar da névoa’ não deixa dúvidas sobre o tempo que é reservado à contemplação dos sentidos (que se realiza sobretudo através da figura do contraste). Um tweet, por outro lado, recebe todo o seu pasmo ao diluir-se nessa mesma reserva temporal: o que dele sobra é sempre e só o espaço para um outro tweet. O que nós passámos e vivemos, enquanto espécie, para, de novo, nos vermos forçados a inventar o jogo do pingue-pongue.

6 Mai 2019