José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasUm volte face [dropcap]O[/dropcap] general Wu Sangui (1612-1678), estacionado na Passagem de Shanhaiguan, tinha sobre o seu comando o único exército capaz de fazer frente, tanto ao dos rebeldes comandados por Li Zicheng, que com 60 mil homens cercava Beijing, como ao dos manchus, à frente do qual estava Dorgon, o Príncipe de Rui regente da manchu Dinastia Qing, que no outro lado da Grande Muralha esperava uma oportunidade para invadir a China. Após o Imperador Chongzhen se enforcar, encontrava-se o filho, o príncipe Zhu Cilang, prisioneiro de Li, que entrara triunfante na capital. Wu, que se recusara a enviar o seu exército para ajudar o imperador, agora negociava alianças, primeiro com Li, para este lhe entregar o herdeiro ming com o título de Príncipe e conceder-lhe o poder feudal sobre as províncias ocidentais, comprometendo-se a não o hostilizar quando como imperador subisse ao trono. Li convencido ter força bastante para derrotar Wu não aceitou e avançou para a guerra, mas o general fizera também um acordo com Dorgon e numa aliança, aceitou o título de príncipe feudal manchu, abrindo as portas da Grande Muralha em Shanhaiguan para o exército qing entrar na China. Quando Li Zicheng iniciou o combate e de repente apareceu a cavalaria manchu percebeu ser melhor retirar-se para Beijing e cumprir o acordo, enviando o príncipe herdeiro a Wu Sangui. Este logo proclamou Zhu Cilang imperador e assumiu-se seu regente, negociando a paz com Li; permitiu-lhe ficar com o produto do saque, mas teria de se retirar de Beijing para as províncias do Oeste, dividindo a China entre os dois. Esta a solução mais conveniente para Wu pois, em vez de ser príncipe feudatário dos manchus, tornava-se regente do imperador ming. Sem suspeitar do acordo entre Wu e Li, Dorgon preparava a invasão a Beijing, mas a retirada de Li da capital, levou-o a imediatamente seguir com o seu exército e cercar a cidade. Encontrava-se o acampamento de Wu nos arredores, fazendo-se os preparativos para no dia seguinte ser o Imperador Zhu Cilang colocado no Trono do Dragão. Sabendo de tal, o Príncipe de Rui proibiu o acesso do general Wu e do jovem soberano ao Palácio Imperial e no dia 6 de Junho de 1644 foi buscar ao acampamento o general e com ele seguiu para a Sala do Trono do Palácio, onde como regente do Imperador Shunzhi aceitou em nome deste o trono. O primeiro acto foi “conceder a Wu o principado prometido e logo a seguir ordenar-lhe que perseguisse e derrotasse Li e trouxesse de volta o tesouro roubado e o produto do saque de Pequim.” Seguiam os revoltosos liderados por Li Zicheng para Oeste, a caminho de Shaanxi, quando as tropas manchus e ming unidas os perseguiram e onde hoje é a província de Hubei, Li foi morto numa batalha no Monte Jiugong, com a idade de 39 anos, encontrando-se o seu mausoléu no distrito de Tongshan. No entanto Gonçalo Mesquitela tem outra versão e refere, “Numa série sucessiva de acções, Li foi derrotado e teve que se refugiar na longínqua província de Shaanxi, depois de perder tudo de que se apropriara. Dois anos depois entrava para a vida monástica, no Sul de Hunan, no Monte Chia, em Au-Fu, onde se refugiara. Ali viveu mais 28 anos, como monge anónimo, até morrer em 1674.” Fim da Dinastia Ming do Sul Os manchus conquistaram a capital e capturaram os dois filhos do Imperador Chongzhen, fazendo-os desaparecer. Extinguia-se a linha directa do último imperador ming, mas tal não significou ficarem os manchus a controlar a China, pois muitos dos oficiais ming preferiram, em vez de colaborar com os usurpadores bárbaros e manter os privilégios, apoiar os descendentes da família real que pelo Centro e Sul ergueram a Dinastia Ming do Sul (1644-1662). Curtos e sucessivos reinos ming foram criados, sendo o primeiro estabelecido em Nanjing e durou um ano, terminando no Verão de 1645, seguindo-se a conquista pelos manchus dos reinos de Shaoxing e de Fuzhou (Fujian), onde em Outubro de 1646 foi executado o Imperador Long Wu (Zhu Yujian, Príncipe de Tang). O seu irmão mais novo, Zhu Yuyue escapando de barco chegou a Guangzhou onde fundou um novo estado Ming, tendo a 11 de Dezembro de 1646 ficado com o título de reinado Shao Wu. Mas em Zhaoqing, capital da província de Guangdong e Guangxi, já se encontrava Zhu Youlang como imperador. Guerreavam-se ambos pelo trono quando em Janeiro de 1647 o exército manchu liderado por Li Chengdong tomou Cantão e matou Shao Wu. Sobrava Zhu Youlang (1623-1662), Príncipe de Yongming e neto de Wanli (14.º imperador ming entre 1573 e 1620), que desde 18 de Novembro de 1646 ostentava o título de Imperador Yong Li (1646-1662) e fora para Zhaoqing devido ao suporte de Qu Shisi, oficial militar ming com o cargo da defesa dessa província. Era também ajudado por três mandarins convertidos ao Cristianismo, assim como pelo eunuco Pang Tianshou, baptizado em 1628 pelo jesuíta Longobardi em Beijing, que o acompanhou sempre com grande fidelidade. Li Chengdong, ex-comandante da Dinastia Ming do Sul que liderava um grupo de tropas Qing, após capturar Cantão seguiu para Zhaoqing, de onde Yong Li se retirou e fugiu para Guilin. Em auxílio do imperador Macau enviou 300 soldados portugueses, sobretudo artilheiros, comandados por Nicolau Ferreira e ajudados por missionários jesuítas, que conseguiram acabar em Julho com o cerco feito desde Março de 1647 à cidade de Guilin. Expulsos os manchus, esta vitória foi o sinal para a revolta geral na China e não somente em Guangdong. Os manchus tinham deixado nos postos os governadores ming que se lhes submeteram, mas estes colocaram-se ao lado do Imperador Yong Li quando se começou a acreditar ser possível voltar a restabelecer a Dinastia Ming. Até 1649 os governantes de sete províncias (Yunnan, Guizhou, Guangdong, Guangxi, Hunan, Jiangxi, Sichuan) e de três províncias no Norte, Shaanxi, Shanxi e Gansu, assim como Fujian e Zhejiang, juntaram-se ao Imperador. Às suas forças aliaram-se ainda as do exército armado de camponeses que integrara o grupo de Li Zicheng e as tropas ming, até então associadas com as dos manchus. Em Guilin, o jesuíta alemão André Koffler baptizou em 1648 a Imperatriz Helena, esposa de Yong Li, assim como Ana, a mãe deste e o filho herdeiro, Constantino. Em 1650, os manchus atacaram de novo Cantão com dois exércitos, capitaneados por Geng Jimao e Shang Kexi, cercando-a durante nove meses. A cidade foi conquistada em 25 de Novembro, morrendo mais de cem mil pessoas e três dias mais tarde, os manchus tomavam e saqueavam Guilin. Nos finais de 1651 estava Yong Li reduzido às províncias de Yunnan e Guizhou e mesmo aí perseguido. Em 1656 o general Sun Kewang quis ocupar o lugar de Yong Li, sendo este protegido pelo general Li Dingguo que, após uma batalha, o levou para Yunnan. Derrotado, Sun Kewang passou com o seu exército para o lado dos manchu e perseguiu o imperador, que teve de fugir para Burma. Em 1661, Yong Li foi entregue aos manchus e por ordem do general Wu Sangui estrangulado em Yunnan a 11 de Junho de 1662.
Rita Taborda Duarte h | Artes, Letras e Ideias«Um Chouriço é tão Poético como uma Rosa» [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, e de mansinho, aconchegado, acolhei estoutros versos que são teus; é que, se tudo vai sendo feito de mudança, tomando-se sempre de novas qualidades, se se converte, é certo, em choro, o doce canto, e a neve, como previsto, se sobrepõe ao verde manto; a bem da verdade, mesmo que tudo se transmude, sim, como soía, essa mudança, faz-se, ‘inda assim, de maior espanto. Debaixo do mesmo sol, a metamorfose é regra, não novidade: a crosta, sabemo-lo, altera-se mutante, encerrando no imo a mesma matéria. A pedra fóssil recobre o bicho antigo; o âmbar sobrepõe-se à resina; e é próprio da pérola ter o empedernido coração de um grão de areia. Assim corre a vida, também a poesia. A poesia está aí, no mundo, e mutatis mutandis, se rege pelas mesmas regras, mesma ciência: como ele, é cíclica, sim, em mutação, mas, no fundo, a mesma, sempre girando em torno da palavra, como a terra à roda do sol. Retoma novos atributos, sem perder os antigos. Tantas vezes, à poesia, então, não lhe basta por isso ser lida; há que ser manuseada, mas usando o corpo todo e os sentidos, para que lê-la seja literalmente testar-lhe as formas, os contornos e alterá-la, sim. A poesia, por vezes não se conforma à língua (um absurdo: o mesmo é que o dia não se queira sujeitar ao sol…). Mas o certo é que alguns leitores lhe adivinham o incorformismo; procuram, mansamente, satisfazer-lhe os desejos. Meu tão certo secretário, perguntais, já: «A que vem isto agora?». Que não? Que não perguntastes nada, que pensáveis até noutra coisa, distraído?… Pois tende paciência, e prestai atenção, que ainda assim te respondo: Tudo isto vem propósito de Alberto Pimenta, para quem «uma rosa é tão poética como um chouriço», tal como, para o outro, o binómio de Newton ganhava aos pontos à Vénus de Milo… Alberto Pimenta foi por estes dias duas vezes lido, duas vezes metamorfoseado, tomando-se sempre de novas qualidades, sem deixar, no entanto, de se mostrar como soía. A sua poética foi por duas vezes tomada e tornada corpo de performance. Dois modos distintos de a ler, mas mantidos num elo triangular, que fazem da poesia de Pimenta massa de modelar: poesia em processo de mutação e metamorfose; formas de leitura que actuam performativamente, poeticamente, até, nos seus próprios textos: em primeiro lugar, o filme (que não documentário) de Edgar Pêra (com argumento do próprio Pêra e de Manuel Rodrigues), a que foi dado o título «O Homem-Pykante- Diálogos Kom Pimenta», e que estreou no «Indie», 2018 e que teve, agora, a sua estreia comercial. Esta leitura da sua obra transmutada em filme é uma poesia-performance em movimento, em que o acto de montagem se transfigura no procedimento de montagem/colagem da própria linguagem poética de Alberto Pimenta. Tratar-se-á da sua poesia feita corpo-em-movimento, sempre dando conta da incomodidade da língua, em que a poesia vive. Sim, há sempre que fazer sentir o peso da língua; este grilhão de que o poeta não se livra. Alberto Pimenta bem foi escrevendo, avisado, que «não há opressão maior/e mais infame que a da língua.». Mas outra leitura-metamorfoseada foi lançada também por estes dias: a publicação de «Anastática para Alberto Pimenta», antologia poética de Manuel Rodrigues (Abysmo, 2019) e dedicada a Pimenta, com prefácio e selecção de Edgar Pêra. Estes poemas, assim dispostos, \assumem novamente um corpo performativo, de duplo efeito; por um lado, são lidos inevitavelmente com a voz espectral de Pimenta a assombrá-los; por outro, obrigam, em simultâneo, a reler a sua poesia, através do eco de Manuel Rodrigues. E, ao assumir-se Pimenta e a sua poética múltipla, prenhe de estilos, como o destinatário único de cada poema, ergue-se, audivelmente, do livro, um diálogo, a que o leitor assiste como espectador de uma cena dramática que se liberta das páginas. Poemas, portanto, que se tornam cena em acto, como se a língua não se bastasse a si mesma e se procurasse no texto o espectro de um corpo-destinatário: «Para Tal te Evitar» se eu pudesse morreria ao escrever um pintor que poderia desejar senão uma morte d’óleo diante à tela pianista o piano e cigala em cantante amador a mando que ama a valer _que quererão para boa morte_ esses povos sob mitos de recitar? ora, diz-me lá tu, que leste mais como crês que preferirão morrer os exércitos de guerreiros ávidos com tanta guerrilha ainda a devir? eu, se pudesse, escreveria sempre» (Manuel Rodrigues, Anastática, Abysmo, 2019) Bem o sabemos, desde Lavoisier, que nada é novo e tudo se transforma; mas que fazer, se nós, leitores e habitantes do mundo, todos à uma, vamos vivendo como se a vida e a poesia fora coisa nova, exultando-as, em plena liberdade do espírito: Assumimos o mesmo exacto espanto perante um poema (escrito, claro está, com a mesma massa da língua que nos oprime), assim como perante o sol nascente por cima de cada manhã, gratos pela beleza que mais não é, afinal, do que a prova do tempo a morder-nos as canelas..«[…]/Pois é: sempre o mesmo e/ sempre desencontrado, o tempo/com o tempo.//Ele destrói tudo./Destrói tudo./Destrói tudo.// Como não havia de destruir-se a si mesmo? Levantar paredes/e deitá-las abaixo, /para poder levantar de novo…// – Não é o princípio/das estações do ano?/De que te queixas? » (Alberto Pimenta, Nove fabulo, o mea vox/De novo falo a meia voz, Pianola, 2016). A previsibilidade do sol, consabido, requentado, a pontuar de laranja o fundo do horizonte traz a mesmíssima novidade de um poema. Atrás de um, a angústia do tempo passando, atrás de outro, as grilhetas da língua, asfixiando: e perante esse espectáculo triste, nós leitores e habitantes do mundo, celebramos o espanto, ainda assim. Por isso, estas insistências, absurdas, mas tão essenciais, em transformar a obra em metamorfoses, oferendas, tributos, palimpsestos, como se pretendesse alongar o efeito do nascer do sol. Na sua lição de sapiência, na Universidade Nova de Lisboa, Pimenta explica, a dada altura, que os poetas seriam importantes para exprimirem o indizível: se fosse para dizer, tão só, o dizível, explicava, então, «não seriam necessários poetas, bastar-nos-ia a prosa.» Mas, atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, talvez Alberto Pimenta não tivesse razão: os poetas não procuram sequer dizer o indizível. Pelo contrário, procuram criá-lo e fazer crer ao mundo a sua existência. Na verdade, todos sabemos que, provavelmente, no princípio não estava sequer o verbo. Mas quem sabe se estará no fim? Por isso, só por isso, não basta ler os poetas: às vezes é preciso transformá-los, continuá-los, para que o ciclo não se acabe, nunca.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [CAPÍTULO ANTERIOR] [dropcap]D[/dropcap]o hotel Riviera podia ver-se o mundo. Os portugueses que viviam em Macau acreditavam nisso. Todos os finais de tarde dirigiam-se para ali, vestidos a rigor. José Prazeres da Costa, elegante no seu fato branco de linho e fumando um charuto filipino, sempre desdenhara dessa ideia. Mas não resistia à tentação de estar ali. De pernas cruzadas assistia ao concerto da Benny Spade Orchestra. Muitos pares tinham estado a dançar e agora descansavam um pouco. Ele apenas observava. Escutou uma voz, vinda do palco, em inglês: – Say, you guys want have a little fun? E a música recomeçou. Benny Spade morrera há um par de anos, mas o nome mantivera-se. Um outro americano, Charlie Powell, tomara conta da banda. Nada mudara. O objectivo era colocar os corpos a dançar, muito próximos, e a não temerem o contacto físico. O grupo tinha chegado de Xangai uns meses antes, onde tocara nos hotéis Cathay e Metrópole da Concessão Internacional. Alguns dos músicos tinham tocado também no Ciro’s, o clube nocturno conhecido pelo seu ar condicionado, onde os taipans britânicos e os gangsters chineses entravam à noite, com as suas mulheres ou amantes. À porta do Ciro’s estavam sempre russos de uniforme, garantindo a segurança. Todos eles diziam ser antigos generais do czar e, com o seu olhar impiedoso, travavam os pedintes chineses. Lá dentro, muitas russas desdobravam-se em sorrisos e galanteios aos visitantes. Era um estilo de vida que se adaptava aos edifícios de arquitectura europeia que se impunham no Bund, a famosa frente ribeirinha da cidade. Tudo parecia sólido e perene. A Xangai moderna era uma criação ocidental e não chinesa. O Céu e a Terra uniam-se naquela cidade. Mas tudo mudara com a chegada dos japoneses a Xangai. E já nem o jazz unia um mundo que se quebrava como uma bola de cristal. Sentada, Jin Shizin assistia à dança de homens e mulheres que se recusavam a acreditar que a guerra existia ali ao lado. No pequeno palco, ao lado dos seus companheiros da Benny Spade Orchestra, Cândido Vilaça, conhecido como Cat, tocava saxofone. Olhou para a sala e não deixou de reparar na chinesa. Conhecia-a de um outro lugar. Quando ela se levantou para dançar com um português bastante mais velho do que ela, lembrou-se. A sua forma de dançar, ousada e radiosa, não escapava à atenção. Vira-a em Xangai, nas noites no Ciro’s. Mais tarde, quando deixou o palco e reparou que a chinesa estava sozinha, aproximou-se, com descaramento, da mesa onde estava sentada a fumar e disse-lhe, em inglês: – Boa tarde, gostou? Os olhos cor de amêndoa de Jin semicerraram-se e fixaram-no como se fosse um alvo. A sua face era sólida e esbelta e o seu cabelo preto era moldado por uma franja que caia sobre os olhos. Cândido percebeu: era uma mulher invulnerável. Ou quase. Ela sorriu polidamente, e respondeu num português quase perfeito: – Gostei. – Estava a dançar. – Foi um acaso. Não costumo dançar. – Não? Não gosta do que tocamos? Ela voltou a fitá-lo friamente depois de ter soprado o fumo do cigarro para o espaço que os separava. – A vossa música traz-me demasiadas memórias. – De que não deseja recordar-se. – Não. De que eu me quero sempre recordar. Cândido Vilaça fingiu não perceber. Não queria dizer de onde a conhecia. Fez menção de se sentar. – Preciso de beber algo antes de voltar para o palco. – Acredito. Mas nessa cadeira está sentado o senhor que está comigo. Cândido Vilaça recuou na sua intenção. Foi então que, olhando para trás, viu um japonês que olhava fixamente para ele. Não se lembrava de alguma vez o ter visto. – As minhas desculpas. Mas foi um prazer. O companheiro da chinesa aproximava-se e Cândido afastou-se. Foi até ao balcão do bar e pediu um uísque. José Prazeres da Costa aproximou-se dele e deu-lhe uma pequena cotovelada. – Não tiveste sorte com a chinesa? – Não tentei nada. Prazeres da Costa sorriu, desafiador. – Não? Olha que ela, a Grande Dama do Chá como é conhecida, tem sólidas amizades. Não as desafies. Neste pequeno meio português todos conhecem todos. A intriga é o seu jogo de cartas preferido. Cândido deu uma pequena gargalhada. – Meu caro, eu sei que o amor, em tempos de guerra, é uma coisa impossível. – O amor é sempre uma coisa impossível. Nunca desafies esta máxima. Conheciam-se desde que Cândido chegara a Macau. Prazeres da Costa gostava de jazz. E de mulheres. E de dinheiro. Não por esta ordem, é claro. Este encostou as costas ao balcão e olhou para a sala. O seu olhar cruzou-se com o do japonês. Conheciam-se, mas não se falaram. Como se evitassem que alguém os relacionasse. Cândido reparou na troca de olhares, mas não queria conhecer o mundo secreto de Macau. Tinha outras preocupações. Como tinha o sono muito leve, dormitava e não dormia. As olheiras sustentavam a sua vida. Diziam que os homens de jazz envelheciam mais depressa do que os outros. Sabia porquê. Interpretavam canções sobre mulheres magoadas e sobre os homens que elas tinham amado. Ele também era assim. Abandonava as mulheres sem olhar para trás. Era egoísta. Não inspirava confiança nem segurança. Escutou a voz da cantora que estava no palco. Vestida com um traje chinês, apesar de ser filipina, cantava em português, com um sotaque: “Se eu tiver de mentir, Aos que amam a verdade Farei isso Se eu mentir Será um dever Será por saber A verdade sem a sentir Se eu quiser mentir Será antes de partir.” Ficou com a letra na memória. Assobiou-a baixinho, para se recordar. Gostava de cantoras assim. Descrentes e com a voz carregada pelas dores alheias. Foi até à varanda, seguido por Prazeres da Costa, funcionário do Governo, mas sem grande convicção. Estiveram ali durante alguns minutos, falando de coisas banais. A banda de Cândido já tinha terminado a sua actuação diária e, por isso, saiu dali e foi em busca da noite. Prazeres da Costa disse-lhe que ia para casa. Forma de dizer que ia ter com a amante. Quando chegou à casa de ópio na Rua da Felicidade, o músico entrou e avançou pelo meio do fumo, pediu uma cerveja e sentou-se numa cadeira disponível. O mundo deslizava à sua volta. Nada lhe importava. Sentiu um aroma conhecido e, levantando-se, foi em busca de conforto numa sala escondida por um biombo. Quando se ergueu da pequena cama, lá fora, o escuro da noite cedera o lugar aquela luz indecifrável que antecede o amanhecer. [CONTINUAÇÃO]
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasO que diz Tavares [dropcap]D[/dropcap]iz Tavares: “Os leitores estão cansados, as pessoas trabalham muito, têm vidas duras e há uma literatura para cansados, para pessoas que vêm do trabalho e que querem ler um livro como quem quer ter uma massagem ao final do dia. Mas a função da arte e da literatura não é descansar. É acordar, perturbar, reflectir. Não deveríamos ver arte ou ler livros quando estamos cansados. A literatura e a arte exigem muito de nós.” De tão iterado e brandido o mantra da arte – e concomitantemente do artista – como ventoinha ou despertador das consciências, ele já ascendeu a esse grau superior do consenso e nível zero da inteligência que é o lugar-comum. Contudo, a putativa evidência e a pressuposta unanimidade de tal função não resiste ao escrutínio de uma mesmo que módica racionalidade. Ia a dizer Tavares: “Mas a função da arte e da literatura não é […]” – alto aí… O quer que ele diga a seguir virá na sequência de um passo em falso que é o de jungir a arte a um “deve ser.” Logo ela tão predisposta a nunca ficar onde a querem pôr e a transbordar as margens em que a tentem conter. Delibera Tavares: arte “é acordar, perturbar, reflectir”. Priva-se, então, da qualidade de arte aquela que demande o sublime? Não pode a arte avocar-se como pesquisa, experiência ou experimentação formal? E porque se estreita a categoria de arte – que é como quem diz: acomoda-se – à finalidade de inquietar, desafiar, desacatar, criar desconforto, ou até invectivar, afrontar e amotinar? Destitui-se de ser arte a obra que se concebe e oferece como consolação? Precisamente a missão de consolar os “cansados” que tanto precisam do refrigério que só a arte entrega. À rédea curta a que Tavares vincula a arte é indispensável o contributo do chicote com que ele, o soberbo e esclarecido artista, se atribui a missão de flagelar os “cansados”. “Mutatis mutantis” esta atitude reproduz um método antigo aplicado com grande êxito pela Inquisição: se macerares a carne, desprendida dos pecados do corpo a alma se libertar-se-á e só assim estará afim de contemplar a maravilhosa verdade. Reitera Tavares: “Está a fazer-se cinema e literatura para cansados, no sentido em que é entretenimento, que serve para acalmar. […] Se for um livro forte ninguém cansado o consegue ler.” Definitivamente Tavares não escreve para os leitores que há. Apieda-se deles, os “cansados,” e não os culpa, coitados, do cansaço que sofrem nem das escolhas a que este os sujeita – o desmiolado “entretenimento.” Mas, tenham lá paciência, enjeita-os sem dó – acha-os incapazes de ler um “livro forte”. Tavares presume, portanto, escrever para um leitor que esteja ao seu nível embora constate a sua inexistência. Deste postulado logicamente deriva que Tavares adjudica a si a prerrogativa de julgar quem se elevará a esse seu nível de exigência. Esta fraude é usual chamar-lhe “criação de novos públicos.” Não é difícil perceber que só considera terapêutico arremessar um “murro no estômago” – execrável clichê – de outrem, quem não seja espancado pela vida das 9 às 5 ou em horário alargado. Quem se põe para além das cólicas e constipações do homem comum – o “cansado.” Ora isto traz a lume a questão da legitimidade que Tavares arroga. Que deus, pacto social ou constituição agraciou Tavares como “conducator” dos leitores? Quem o nomeou sherpa do escrúpulo e da lucidez? Que foro lhe outorgou a distinção de vate dos porvires? Quem o designou com a santificada vestal da grei? Pois nada nem ninguém. O que Tavares sobretudo demonstra é a contumaz falta de generosidade que em demasiados casos é característica do artista contemporâneo, em particular o que opera nas artes narrativas. Esta pungente supressão de empatia com o leitor que se lhe apresenta decorre do movimento tectónico que tem vindo a reposicionar a manifestação da arte não como um processo e uma dinâmica de partilha, mas como um exercício narcisista e misantrópico de expressão pessoal e egocêntrica. O problema não são os leitores “cansados,” o problema são os Tavares de quem afinal os leitores estão deveras cansados de ouvir.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasBrasil em auto-ficção [dropcap]E[/dropcap]steve há poucos dias em Portugal um amigo meu, o Eric Nepomuceno, para um encontro no âmbito das comemorações do 25 de Abril de 1974, chamado “Resistências pacíficas: o valor da liberdade”, no Auditório Municipal Fernando Lopes-Graça, em Almada. O Eric, com setenta anos, conheceu de perto da ditadura brasileira e os seus efeitos. Os seus artigos contra o regime militar valeram-lhe um exílio em Buenos Aires. No que concerne ditaduras e ausência de liberdade de expressão, Eric sabe do que fala. Perguntei-lhe pela situação no Brasil e o Eric respondeu-me “você não faz ideia”. Disse-lhe que temos acompanhado a situação pelas notícias que nos vão chegando e que de facto a coisa parece ainda pior do que antecipáramos. “Sim”, contrapôs, “as notícias são importantes, mas só revelam uma camada das muitas mudanças que todos os dias vão ocorrendo, e as mais brutais por vezes são as mais subtis, que ficam de fora da agenda jornalística”. Contou-me que há dias estava numa tabacaria para comprar um maço de cigarros, na “fila dos velhinhos”, como a apelidou, e que teve de sair para trocar dinheiro ali perto, “pois a menina não tinha troco”. Quando regressou, o tipo que antes estava atrás dele na fila pagava uma conta qualquer – a tabacaria, além de vender cigarros, também serve para comprar jornais e pagar contas da luz, do telefone, da água, etc – atirou-lhe “Você foi rápido”. “Sim, fui perto, e estava vazio”, respondeu Eric. “Pensei que tinha ido buscar dinheiro no Lula”, foi a resposta do tipo. Assim, do nada. Sem que Eric fizesse qualquer declaração de intenções ou esboçasse qualquer provocação. O Eric, versado por razões biográficas em conflitos de toda a espécie, respondeu “Não, fui na sua mãe, ela não pagou por ontem à noite”. A coisa felizmente acabou bem. Os insultos não passaram do modo caixinha de comentários. Mas a sucessão de bravatas podia ter tido um desfecho distinto. De facto não temos qualquer experiência da realidade quotidiana dos brasileiros que se opõem ao regime de Bolsonaro. As notícias que nos chegam são sobre as decisões mais ou menos incompreensíveis tomadas pelo governo actual. De fora ficam a o dia-a-dia e os seus conflitos. E são esses que na verdade mais interessam a um escritor. Num futuro mais ou menos próximo alguém escreverá sobre o quotidiano deste período sombrio da história do Brasil. Este período que está muito mais perto de se tornar uma ditadura de cariz teológico semelhante à narrada no Handsmaid’s Tale do que num regime fascista comparável aos do século XX. A história das nações é uma sucessão de factos e das relações nem sempre claras que os unem. Mas a história das pessoas de todos os dias, dos seus conflitos, das suas pequenas vitórias e derrotas é a literatura que em grande parte a tece, e é através desta que acedemos a uma compreensão mais vasta de um determinado período histórico. Quando alguém pergunta para que serve a literatura (que, em boa verdade, deve estar primeiramente ausente de qualquer propósito ou função), podemos sempre dizer que a literatura se pode constituir como ponto de vista privilegiado sobre a memória. Mesmo que não servisse para mais nada, já teria a utilidade funcional que a nossa época tão preocupada com a produtividade reclama. Entretanto, e enquanto estamos imersos no processo de transformação do Brasil que conhecemos noutra-coisa-qualquer, o Eric confidenciou-me a sua vontade e disponibilidade para escrever crónicas sobre o dia-a-dia deste Brasil em mudança. E disse-me que o faria “bem baratinho”. Se estivesse num lugar de chefia de um periódico português, escrevia-lhe já um mail. Além de saber do que fala, o Eric é um escritor do caraças.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasObituário. [dropcap]A[/dropcap]pagaste-te nesta Páscoa. Não sabíamos de ti. E. ligou-te muitas vezes desde quinta-feira santa até Domingo. Talvez tivesses ido à pesca. Foste até aos noventa. É muita maré. Lembro-me daquela rua. Não era bem uma rua. Era um caminho. Fomos vizinhos durante muito tempo como se fosse uma comunidade. A princípio, encontrávamo-nos só no verão, quando éramos jovens imortais. Depois, quase todo o ano, durante alguns fins-de-semana. Sempre tinha havido os muito velhos, aqueles que tinham um quotidiano moderado, sensato. Ou então se calhar era outra coisa, era a velhice a “dar-lhes” já. Que é feito dessa gente? Pouco menos de vinte anos tinha eu e eles eram já tão velhos. Subsistem ainda na minha memória, mas não podem continuar ainda vivos. Revisito esses tempos. Lembro-me da rua antes de ser habitada, quando ainda era só um pinhal, prestes a ser colonizado, como se fôramos colonizadores do Sudoeste português. Estava deitado numa cama de rede. Olhava o céu azul, plano de fundo para árvores recortadas nas suas formas. Eram castanhas, quase negras, e verdes. O que se vê a olhar o céu é virgem. É igual ao que tantas gerações de homens viram, sem fios ou parabólicas, postes de electricidade ou o que tiver sido feito pelo ser humano. Tive essa percepção. A natureza tem outro tempo e outra história, diferente da do ser humano. Antecipei o que aí vinha. Ano após anos viríamos de férias, haveria festa e romance, descanso. Os pais tinham uma outra experiência de férias. Os miúdos viviam as férias grandes do mundo. E vieram anos atrás de anos. Sestas dormidas e mergulhos dados, bebedeiras e romance. Aprendizagem difícil de ser-se fora de si e ao mesmo tempo estar-se em si, ser-se o próprio, o único com quem se tinha intimidade e ao mesmo tempo aquela remissão ancestral, arquetípica, primordial e proto qualquer coisa que nos atirava para o outro, a outra pessoa. O desejo que nascia e não era um acrescento, algo que queríamos ter a mais. Era a falta de outra pessoa, a falta inteira de sermos outros, uma outra versão completamente diferente de nós mesmos e que passava pelo outro que queríamos encontrar e só inventávamos no sonho. Era isso que eu via a olhar deitado de costas o céu azul, plano de fundo daquela percepção com formas de árvores, pinheiros e eucaliptos. Era o princípio informe de qualquer coisa que iria acontecer, a história, a minha biografia. Tudo aquilo iria transformar-se com os 15 anos que viriam e depois os 16 e os 17 com fim do liceu e a faculdade. Tudo a perder de vista, perdido da vista, longe da vista, estava já naquela percepção daquela tarde do início de Agosto em que a nossa rua não existia ainda. Os dias seguir-se-iam. Depois, o tempo entre o fim das férias grandes e o princípio das férias do ano seguinte. Amizades que se mantinham à distância temporal de um ano. Sentia-se a transformação. Ela ligou-te para te desejar boa páscoa. Começou a ligar-te na quinta-feira santa e continuou até Domingo. Já não nos víamos há algum tempo. O tempo passa. Já não há a nossa rua. Desfizeram-na, quando transplantamos as nossas vidas para outras ruas e as casas foram dadas ou deixadas ao abandono. A rua já nem sequer é insólita como nas noites de inverno, despovoadas de gente, vividas a pão e vinho e conversa. Aquecíamo-nos como podíamos. Ainda tínhamos tempo. Ainda viria um verão e outro. Depois, os velhos começaram a morrer. Os outros, os das outras famílias. As casas, pouco a pouco, começaram a ficar desabitadas. Primeiro, ainda bem conservadas. Algum dos mais novos vinha e ainda passava lá um fim de semana, limpava a casa, fechava a casa. Era uma casa habitada mas pouco frequentada. Os mais novos emigraram ou perdiam o interesse, deixavam de pagar a renda ou esqueciam e abandonavam as casas. Abandonar uma casa é abandonar uma legião de famílias. A casa esperava as famílias o ano inteiro e despedia-se delas no fim do verão. As casas ficaram decrépitas. Mais velhos morreram. A maior parte dos jovens envelheceram e quiseram ir viver para outras ruas, outros bairros, outras vilas, outras cidades. Tudo envelheceu. Já não testemunhei a vinda de mais novos. Também acabei por fazer o que fizeste. Não emigrei, mas dei a casa. Ninguém ma comprava e para não a deixar abandonada, dei-a a quem mais precisava. Foi um descanso. As memórias seriam intoleráveis. Preferi lembrar-me da casa desde o primeiro dia até ao último dia. Foram mais de três décadas felizes. Vivas dadas ao Verão e o gosto por regressar para a rentrée. Telefonei-te para te desejar boa páscoa. Estaríamos lá naquela rua se fossem outros tempos, quando era o princípio antes de estar definido e quando começou a estar definido. Os tempos da estabilidade quando eu próprio deixei há já muito os meus 14 anos. Alguém atendeu o ™. Era uma sobrinha tua. Disseram-me que foste ao hospital para um exame de rotina. Abriram-te. Fecharam-te. Duraste mais três dias e morreste. Ressuscitaste escandalosamente para mim, que não te via há quase cinco anos. Não ver alguém é deixar alguém no campo de latência que é idêntico à morte. Ressuscitaste-me também aquela rua onde passamos férias durante mais de três décadas. Vi-a, como se fosse daquela primeira vez, sem casas, nem pessoas. Só o céu azul e árvores. A floresta tornara-se virgem, de novo. Nunca nada nem ninguém testemunha a nossa infância ou juventude ou idade adulta já. É tudo como se não tivéssemos sido. Quase como se não tivéssemos sido. Agora, tu habitas em mim esse olhar. Não és visto, mas vives comigo no meu olhar. É um olhar à distância. Não é perceptivo. Nem é só o da lembrança. Sou eu no meu futuro despovoado de ti, mas a fazer vida ainda.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e Ideias“Diamantino” e o cinema Bimby [dropcap]E[/dropcap]streou a 4 de Abril em 22 ecrãs em Portugal, o filme vencedor do grande prémio da crítica do festival de cinema de Cannes. “Diamantino”, 96 minutos, já passou em perto de 60 Festivais Internacionais, entre estes; Toronto International Film Festival, London BFI, New York Film Festival, ou Cannes como referido. Teve estreia comercial de cinema no Brasil e em França. Em Portugal, nos primeiros 4 dias de exibição em sala, foi visto por 3.898 espectadores, a que corresponde a receita bruta de 20.967,04 euros. É provável que para além dos elogios da crítica tenha sucesso comercial. Quando o filme começa, a história já aconteceu e o protagonista narra-a com o recurso quase constante à voz-off, é uma viagem por dezenas de excentricidades esta em que acompanhamos Diamantino, é esse o nome do protagonista, e que nos narra os momentos próximos da falência da sua carreira de hiper-estrela do futebol mundial. Fora dos relvados procura de um novo sentido para a vida, e, apesar de só querer fazer o bem, como pelo próprio nos é dito, ou talvez por isso, entra numa odisseia delirante construída como alguns pratos na cozinha doméstica contemporânea. A construção narrativa resulta de uma mistura de ingredientes como nas máquinas de cozinha Bimby; é introduzida uma ou duas cenas que gravitem em torno do neofascismo, mais duas ou três, em torno da crise dos refugiados, um nó narrativo em torno da ficção científica aplicada à modificação genética, ao trans-género, duas ou três ideias com capacidades especulativas e facilitadoras do género comédia, a ideia parola e simultaneamente multimilionária do jogador de futebol de topo mundial caído em desgraça, carrega-se no botão, a coisa mistura, e saí a narrativa. Sai sempre uma coisa qualquer. Saí uma história com um tempo narrativo, em que a questão da verosimilhança, do verosímil, sendo sempre um aspecto central para a adesão do espectador ao que vê e vive no ecrã, não é a questão central. Ou pelo menos se tomarmos a questão da verosimilhança enquanto cópia, reprodução do modelo. Estamos em território do cinema onde por definição tudo é possível, e mais do que um mimetismo do real nos territórios da ficção, o que se precisa para admissibilidade por parte do espectador da possibilidade do real, são pequenos toques, lugares de contacto, raspões, ou, se possível, toques em profundidade perfurando a carne e chegando ao osso da realidade, o cerne ou átomo primeiro. Acontece que este cerne da realidade em territórios do cinema não tem a obrigatoriedade de ser uma imagem reprodutora a realidade pré-existente ao filme. O cinema tem esta coisa fantástica, todos nós perante o ecrã nos disponibilizamos para a viagem, e aceitamos outro regime estético do que o da colagem ou da figuração do real. E é aqui que o filme “Diamantino” se joga, e, paradoxalmente se ganha, e se perde. Há elogios rasgados em vários jornais; “Divertimento leviano e seriedade ideológica” jornal Público, “É um delírio de monta raro no cinema Português”, jornal Expresso, “Diamantino” é um objecto de uma energia nova no cinema Português”, estamos próximos, mas não tanto assim, do genial cinema do Federico Felini, ou caminhado na direção do país do Brexit, e de outra estética cinematográfica, dos filmes Monty Python. O que por si não retira qualquer valia ao filme, mas mais do que a singularidade da obra, “Diamantino” confirma um dos caminhos que o cinema contemporâneo tem vindo a percorrer, o da sucessão episódica de acontecimentos numa estrutura narrativa fragmentada de múltiplas ideias que chegam e partem sem particular discussão ou profundidade. “Diamantino” confirma a tendência do cinema contemporâneo neste trabalhar da eficácia da desconexão, ou nas palavras de Jaques Rancière, na tradução de José Mirando no “O Espectador Emancipado”: “ … a eficácia estética significa propriamente a eficácia da suspensão de toda e qualquer relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado….uma rotura entre as produções das diversas modalidades artísticas de saber-fazer e fins sociais definidos, entre formas sensíveis, as significações que nelas podemos ler e os efeitos que podem produzir. Dizendo de outra maneira, trata-se da eficácia de um dissentimento. O que entendo por dissentimento não é um conflito de ideias ou de sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. “ Afirmam os realizadores Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que nesta sua primeira longa-metragem tinham como assunto “…fazer um filme principalmente sobre uma pessoa muito rica que adotava uma pessoa muito pobre e os problemas políticos inerentes a essa situação”. É uma premissa válida como qualquer outra, seguramente uma linha narrativa de grande potencial para o desenvolvimento de uma telenovela, género que também precisa, e muito, de renovação. No filme “Diamantino”, os criadores do produto telenovela podem encontrar um toque seminal para um caminho onde a comédia excêntrica se torne núcleo estético central no desenvolvimento da narrativa. Se assim vier a acontecer estaremos num processo ao contrário do caminho percorrido pelo Pedro Almodóvar, que tão exemplarmente explorou o Kistch na filmografia, partindo muitas das vezes do pequeno ecrã, ampliando a dimensões gigantes a intensidade dramática das personagens nas diversas situações e ambientes e de um quotidiano urbano vivido nos inícios de uma “Madrid me mata”. As linhas de filiação no cinema contemporâneo são sempre muitas e diversas, um dos filmes que pode ser convocado a propósito do “Diamantino” , embora com outro tema e um outro exercício, mas onde o “excêntrico” é o filão explorado é o BORAT, de 2007. O filme de Larry Charles; Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan, produção dos EUA. Estreou em 837 salas nos Estados Unidos, e no primeiro fim de semana fez 26,4 milhões de dólares. Neste filme, Borat Sagdiyev (Sacha Baron Cohen), é um jornalista do Cazaquistão que resolve deixar o seu país e viajar para os Estados Unidos, com a intenção de fazer um filme documentário. Durante sua viagem pelo país, ele conhece pessoas reais que, ao reagir ao seu comportamento primitivo, expõem o preconceito e a hipocrisia existentes na cultura americana nos dias de hoje. É certo que aqui estamos num outro regime estético, o de um cinema que assume o híbrido, a contaminação entre cinema e documental na sua construção e processo. No entanto se repararmos na caracterização do personagem principal que é apresentada como se segue: “ Filho de Asimbala Sagdiyev e Boltok, o Estuprador — de quem também é neto e genro—, nasceu em 30 de julho de 1972 na vila fictícia de Kuzcek, no Cazaquistão. Diverte-se jogando pingue-pongue, dançando música disco e fotografando mulheres enquanto elas vão ao WC. Viúvo, comemora a morte da primeira esposa Oxana — violentada e comida por um urso — que, apesar de cozinhar bem e ser boa no arado, passado três anos de a ter comprado — ao completar 15 anos — começou a ficar com a voz grossa, ganhar pelos no corpo e ficar com a “vagina parecida com a manga de um feiticeiro”. Tem um filho de 13 anos chamado Hooeylewis e dois gêmeos de 12, Biram e Bilak, sendo também avô de dezassete crianças — algumas ele planeia vender para a popstar Madonna. Na sua família ainda estão a irmã mais velha Natalya — a quarta melhor prostituta do país (sexta durante a turnê das Pussycat Dolls) — e o caçula Bilo — retardado mental com a cabeça em forma de espiga e mais de duzentos dentes. Em sua viagem aos “US and A”, como chamava os EUA, em busca de um romance com Pamela Anderson, conheceu Luenell nas ruas, com a qual uniu laços. Respeitado apresentador de telejornal na sua pátria natal, é membro do quadro de honra da Universidade de Astana, onde se formou com louvor não só em jornalismo mas em inglês e no estudo de pragas. Prestou durante longos anos serviços ao governo criando cinco novas pragas que devastaram cinco milhões de cabras no Uzbequistão, sem contar a época em que fez gelo, foi guardador de sémen de animais, caçador de ciganos e removedor de pássaros mortos em um computador. Pagão até fazer amizade com os pentecostais e converter toda a sua vila ao cristianismo, admira a visão política de Joseph Stalin por causa do forte e poderoso pénis do ex-ditador russo e apoia o presidente Bush na sua guerra de terror. Encontramos a extravagância e o delírio como eixo e fonte para a caraterização do personagem, o que nos aproxima e muito, embora que um grau de complexidade substantivamente menor, da caracterização do personagem “Diamantino”. Carloto Cota , em “Diamantino”. Em “Diamantino” o personagem principal, – Carloto Cotta -, é um jogador de futebol galáctico hiper famoso com pronuncia das ilhas, uma sonoridade próxima dos Açores, faz muita publicidade, e as montanhas de dinheiro que ganha são geridas pela família, no caso duas irmãs gémeas, essenciais na trama, são elas as antagonistas e simultaneamente coadjuvantes do herói da narrativa. As terríveis gémeas acabam por estar na origem de um ataque cardíaco fulminante que retira a vida ao pai. Um crime, acidente, rapidamente secundarizado nas peripécias da narrativa. Este herói tem uma particularidade, uma ingenuidade próxima da debilidade mental e um conhecimento do mundo para além “dos toques na bola” muito incipiente. Tem ainda uma característica definitivamente fundadora da relação que o público estabelece com o personagem e com o filme, quando está em campo, os outros jogadores são por ele vistos como cães de peluche gigantes, é a eles que finta e ao lado deles que corre e pontapeia a bola na direção do golo na baliza adversária. É uma personagem caricatura sem particular evolução do arco narrativo, ou quase, dado que o filme é estruturado em 3 atos, – como são quase sempre todas as histórias do cinema e na literatura oral e escrita-, e no final o protagonista está diferente, descobre e vive o amor físico com o filho adoptado. Incesto e homossexualidade? Não é bem isso, primeiro porque o filho na verdade é filha, e segundo porque a adopção é falsa, resulta de um disfarce para um trabalho de espia de encomenda para a jornalista com quem vive uma relação amorosa e que está investigar possíveis escândalos financeiros de fuga aos impostos do jogador galáctico. Como referido, o argumento, segue a estrutura do 3 actos, e como tal conta-nos uma história com principio meio e fim, aspecto em nada displicente para a relação dos públicos com a narrativa, seja esta qual for e, no caso do cinema, ser excêntrica pode mesmo ser uma vantagem, como é o caso. No entanto o argumento construído, assim parece, com a moderna Bimby que tudo cozinha, acaba por cometer o erro do excesso de ingredientes com dosagem em quantidades próximas do aleatório, – mesmo sendo visível o cuidado com cenas plantadas na linha do tempo que permitem o avanço e o final. Fica excessivo mesmo num filme que trabalha o excesso, uma paleta tão vasta de assuntos, como refugiados do norte de África, fuga aos impostos, jogadores galácticos, Brexit, campanhas para as eleições europeias, genética aplicada, identidade trans-género. Mas é isto tudo o filme, e se por um lado este excesso faz perder densidade por outro lado faz ganhar excentricidade e mantem num muito razoável nível o interesse e o prazer de acompanhar esta singular viagem fílmica. O filme tem um departamento de arte que não acompanha o excesso que carateriza o filme, duas irmãs gémeas com grande destaque e um protagonista que se entrega sem reservas ao filme, e um pai que estranhamente parece não tem o sotaque dos filhos. Ainda assim é um filme bem construído e ousado no panorama nacional. Não é todos os dias que se vê um jogador galáctico que quer só “fazer o bem” e alimentar com crepes de Nutella e Chantily essa gente negra para ele desconhecida que atravessa quase a nado o mediterrâneo para chegar ao paraíso do continente Europeu. Um continente que vive e se olha a si próprio, por vezes, como neste caso, com ironia e sátira. O filme teve efeitos especiais da Irmã Lúcia e apoio financeiro do ICA, Euro-Image, e Fundo Ibero-Americano. Vai continuar em cartaz e é uma das produções que vai marcar a colheita cinematográfica deste ano nas salas nacionais.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDa telha ao Brecht 25/04/19 [dropcap]C[/dropcap]omecei o ano com a telha. A esgravatar no imenso abismo que, no dizer de Camilo José Cela, se abre entre estar hodido e estar hodiendo. Nos primeiros dois meses, no plano existencial, obcecavam-me os borrifos de sangue que redemoinhavam no caustico bafo de uma estrela negra. E de repente abriu-se uma fissura no denso negrume da estrela negra: o convite para um projecto muito desafiador. Como as coisas chegam em séries, na semana seguinte recebi outro convite para um projecto irrecusável. Em ambos trabalho, neste momento. É do segundo que falarei primeiro. A mensagem surpreendeu-me: conhecia de nome a actriz e encenadora e vi alguns dos seus trabalhos, mas há quinze anos que estou fora e desconhecia que entre nós havia elos. Felizmente que os havia. A Maria João Luís convidou-me para escrever uma peça tendo como objecto a (complicada) relação entre o Bertolt Brecht e a Helene Weigel (sua mulher e diva), no momento em que encenavam a mítica versão da Mãe Coragem. Há desafios a que não se pode dizer que não, se chegam no momento em que se está maduro para não estragar o embrulho da bela complexidade que nos puseram ao colo, e ao entusiasmo (primeira acendalha da criatividade) já aliamos a disciplina. Estou radiante, e prometo que irei falando dos matizes que trouxerem a hulha a esse fogo. O primeiro livro em que peguei foi o Intelectuais, de Paul Johnson, que aí desfila retratos incisivos de 13 intelectuais entre os quais Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Russell, Sartre, Edmundo Wilson, Lillian Hellman… e Brecht. E terminam assim as suculentas quarenta páginas dedicadas ao dramaturgo alemão: «Neste relato tentei encontrar algo que dizer a favor de Brecht. Mas, salvando o facto de que sempre trabalhou muito e que durante e depois da guerra enviou encomendas com comida para a Europa (ainda que isto possa ter sido obra de Weigel) não há nada que se possa dizer a seu favor. É o único intelectual, de entre os que estudei, que parece estar destituído de um só rasgo que o redima.» Logo no início fôramos avisados: «De facto, inventou um tipo novo de intelectual, como o fizeram Rousseau e Byron no seu momento. O intelectual novo modelo de Brecht, de que ele mesmo foi o protótipo, era áspero, duro, desapiedado, cínico, em parte gangster, em parte entusiasta e desportista.» O livro é informado, num bom balanceamento entre vidas e obras, e não se exime nem de mostrar o brilho nem as contradições dos retratados, à vez magnéticos e perigosos. Entre o tanto que aprendo, enxergo que só o facto de Brecht ser um santinho da esquerda nos impediu de ver o grau zero do seu comportamento ético e a dimensão canalha da personagem, na verdade, um péssimo exemplo, que nem Auden, um santo católico, (que colaborou com ele), consegue poupar – classifica-o assim: um filho da puta. É definitivamente um personagem fascinante, já que a qualidade da obra ninguém lha tira. Embora mesmo aqui haja nuances: Hannah Arendt, num excelente ensaio, defende que tudo o que Brecht escreveu depois do casal regressar à Alemanha e de terem criado o Berliner Ensemble, é inferior ao que escreveu antes. Juízo que só poderei avaliar depois de ler detidamente cinco mil páginas de e sobre ele. Aliás, decidi começar por uma peça póstuma: A Judith de Shimoda; já que ando a rever Ozu e Mizogushi vem a talhe de foice. E o primeiro ensaio será o da recolha dos textos do Benjamin sobre o seu amigo Brecht. 27/04/19 «“O Brasil não pode ser o país do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com mulher, fique à vontade. Agora, [o Brasil] não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay”, disse Bolsonaro em café da manhã com jornalistas.» Nem sei como reagir a semelhante barbaridade. Quando era miúdo não havia gays. Havia homossexuais, panilas, ou larilas, consoante o estrato social de quem aludia ao “fenómeno”. Os primeiros dois homossexuais de que me lembro, eram justificados por causa de um desastre de automóvel de que haviam sido vítimas: fora o efeito colateral. Depois descobri que o meu tio. Que dois amigos de infância, e três da adolescência. E que uma namorada um pouco rezinga que tive, afinal. Eu próprio a dado momento senti-me um miserável porque não tinha Veneza nem me aparecia um Tadzio para me desviar da minha via straight, pois, esteta e curioso, achava que isso podia dilatar o meu campo da percepção humana. Ou seja, cresci num momento em que essa dimensão ontológica estava inibida no horizonte do meu piqueno mundo para depois a ver desabrochar sem medo e ela se tornar um dos pilares de uma consciência finalmente em simbiose com a liberdade do corpo. Descobri em seguida que, em Roma, o generalíssimo, o vigoroso, o estratega único, o grande Júlio César era conhecido como “o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”, e que, se eu tivesse nascido romano e a coisa fosse só cultural, a minha hipótese de ser bissexual era descomunal. Nunca mais consegui deixar de respeitar as escolhas de cada um e um dos filmes da minha vida é com certeza O Jogo de Lágrimas, do Neil Jordan. Certo é que nada me preparou para a evidência de que o Brasil – o país de Drummond, de Hilda Hilst e Lispector – tenha agora um presidente que, depois de ter assegurado que as posições que o Brasil assumiria na ONU se orientariam pela Bíblia, tenha agora declarado que, apesar de ser absolutamente contra Sodoma, o Brasil é uma Gomorra aprazível, de lubricidade à flor da pele e de pernas eternamente abertas para o turista – declarações que me parecem pouco apostólicas e me deixam literalmente estupefacto. Mas isto sou eu que sou ateu, havendo mistérios da fé que nunca poderei compreender.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA antologia do esquecimento [dropcap]M[/dropcap]omento existe na vida dos poetas em que desejam ser antologiadores, o que se compreende muito bem dado o conhecimento da matéria e as vastas horas dos dias debruçados na leitura da causa. Mas alguns que da poesia têm quanto muito uma analogia com o fado, anunciando-se com vários graus de entendimento por designado interesse na expressão, não raro o desejam também, sendo por isso mesmo que há antologias para todos os gostos, que é sempre o tal gosto de gostar de muita coisa e de procurar entender o que corre nos veios delas. Há mesmo antologiadores que em parceria com outros se obrigam, reunidos, em fazer parte do conjunto do seu antologiado. Defendem um princípio de natureza barroca e cada espaço vazio é dado como fórmula desconhecida, se insurgindo então sempre e com mais matéria do que a noção poetizante pode supor ou suportar. Daí que, se todo o cuidado é pouco em juntar, mais cuidado teremos de ter em subtrair. Nas antologias escatológicas existe então um consenso total, uma irreprimível vontade que subjaz à força de uma subversão qualquer e nivela todo o dejecto em causa comum, partilhada, e de todos bem-dita. O que cobre a vasta gama do sermão, entre as virilhas do verbo e o desmando da aleivosia de cada um, é a audácia, que tende para a norma vassala que é o engordar do dislate soberano. Uma grande esteira climatérica, os chamados «Jardins de Inverno», se adensa por entre a floresta tropical dos ensejos onde o léxico coloquial reverbera, e onde as capas das antologias começam por ser duras, para logo afrouxarem lá para as edições seguintes. Sejamos então um pouco mais claros – quem Antologia quem? Geralmente os do mesmo género literário, pois que devem unir assim as peças soltas e separar da curiosidade o destino que lhes é inerente e todo o impulso para a amálgama não será benéfico na expressão que um género traz. Após as reformas e as lutas laborais, metem-se então alguns pelas páginas, adentrando-se numa malha prolífica de “poetas” mas aqui, como em tudo, é preciso começar cedo, estar presente, pois a centelha só brilha em cada um na proporção de um estranho abandono. Quando os não obreiros se manifestam costumam dar nós cegos e estranguladores na linguagem, a pandemia do ofendido empurra para o lixo o próprio termo poético. O talento dos outros começa a ser, não raro, uma arritmia, e se em ousada abnegação de sinais se sabe inquestionável, não sabe contudo o porquê de quererem ocupar um lugar tão difícil quanto o seu. Cuidando dos afetos de proximidade matamos a lira das nossas esferas mais distantes. As Antologias de Eugénio de Andrade e Jorge de Sena são tratados alquímicos elementares, porém, nem sempre se nos apresentam como tal, subjugados que andamos por recentes, novos, novíssimos e interessantíssimas edições descontroladas. […] mera circunstância de igualdade/ infeliz neve que a si própria deve o esforço de pousar… vir corromper o Sol da primavera/ que não esqueça logo o projectar da Esfera – e, só depois, a Sombra essencial.[…] Jorge de Sena. Não raro também assoma aquela frase de Carlos Queiroz «não só com sentimentos se faz poesia, mas também o poema se nega aos ressentidos». A negação que quer provar abnegação também existe, e todas as volúpias mantidas para a chegada à lira de Orpheu do canto antologiador. «Os que vão morrer te saúdam», assim cumprimentavam César! As Antologias de autor são, curiosamente, muito mais elucidativas para o interesse público, que deve reflectir na construção de uma obra e no tratamento de uma linguagem que urge ser reabilitada para que não fique perdido um certo som que educará mais e melhor que todas as narrativas dos muitos enunciados. A língua é uma matéria que se faz na correspondente do vocabulário poético, que ao separar-se dela vai moldando uma arquitetura deficiente na zona da linguagem cerebral. E nunca será com transferes de sangue contaminado que a percepção arranjará espaço para tão demarcada área cuja função mecânica por incrível que pareça se conhece bem menos do que era espectável. Ainda andamos intrigados, foneticamente falando. Antologiamos os profetas, e deles só havia som. Quando a insurgência face aos livros sagrados se dá, gritam então as vozes antológicas da natureza humana, que foi quem as compilou no que pensa ter sido dito, é que ao nomear adquirimos a força precisa para combater mas, na longa matéria dos signos escritos, a Humanidade é um Verbo só. Porém, raros são os que lhes acrescentam mais tempos. Outros tempos. Mais amplexo verbal. Mais realidade, e mais sonhos, portanto. Escutar os Cancioneiros antologiados da voz colectiva, que quando o mutismo vier depois da perda de sinal, os nossos gestos valerão pouco para salvar da ruína todas as coisas reunidas.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO mais eminente concerto para piano jamais escrito [dropcap]O[/dropcap] compositor, pianista e maestro russo Sergei Rachmaninoff (1873-1943) foi um dos últimos grandes expoentes do período Romântico na música clássica europeia e é tido como um dos pianistas mais influentes do Século XX. O total fracasso da sua Primeira Sinfonia, composta entre Janeiro e Outubro de 1895, e estreada apenas no dia 27 de Março de 1897, em S. Petersburgo, esmagou o compositor psicologicamente, causando um hiato de três anos na sua carreira de composição. A obra foi muito mal recebida pelo público e mesmo ridicularizada pela crítica, liderada pelo famoso compositor e crítico musical russo César Cui, membro do célebre Grupo dos Cinco. Pensa-se que este desastre deveu-se, em grande parte, à fraca preparação da orquestra e do seu maestro, o compositor Alexander Glazunov, conforme atestam vários testemunhos, entre os quais o de um outro compositor e maestro famoso na época, Alexander Khessin. A recepção desastrosa da sinfonia, combinada com a preocupação da objecção da Igreja Ortodoxa ao casamento com a sua prima, Natalia Satina, contribuiu para o colapso mental de Rachmaninoff, seguido de um período de profunda depressão. Rachmaninoff escreveu pouca ou quase nenhuma música nos três anos seguintes, até iniciar, em Janeiro de 1900, um tratamento de hipnotismo com o psicólogo Nikolai Dahl, um especialista de Moscovo, por coincidência músico amador, que o fez recuperar rapidamente a auto-confiança. Um importante resultado dessas sessões foi a composição do Concerto para Piano e Orquestra Nº 2 em Dó menor, Op. 18, encomendado por um empresário de Londres, que seria dedicado ao Dr. Dahl, em reconhecimento da recuperação do compositor. O Concerto foi composto entre 1900 e 1901. Durante uma viagem a Itália, Rachmaninoff completou o segundo e terceiro andamentos, que apresentou num concerto em Moscovo, com grande aclamação. Este sucesso deu-lhe confiança para concluir o primeiro andamento do concerto, que é frequentemente considerado o mais eminente concerto para piano jamais escrito. A obra foi muito bem recebida na sua estreia no dia 27 de Outubro de 1901, em Moscovo, na qual foi solista o próprio Rachmaninoff, sob a direcção do seu primo Aleksandr Ziloti. O Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 em Dó menor, Op. 18 conferiu um sólido reconhecimento e fama a Rachmaninoff como compositor. A obra veio confirmar que o compositor estava completamente recuperado da depressão clínica e do bloqueio da escrita que o tinham impedido de compor. O longo período que Rachmaninoff demorou a recuperar não foi em vão: cada frase memorável, linha bombástica de violoncelo, e acorde de piano de peso é magnificamente colocado para criar uma verdadeira obra-prima musical. Melodia gloriosa após melodia gloriosa flui do teclado; o diálogo entre a orquestra e solista é divino. A música é ao mesmo tempo virtuosística e lírica, com o piano e a orquestra revezando-se para acariciar a pesada melodia russa. Com os acordes que soam como sinos no andamento de abertura, a serenidade dos arpejos no segundo e o impulso confiante do terceiro, é fácil presumir que esta peça foi obra de um compositor seguro e confiante, enquanto a verdade era muito diferente. Após uma introdução invulgar que consiste numa série de acordes cada vez mais intensos e ricos do piano, a obra desvenda-se de maneira gratificante, cheia de maravilhosos diálogos entre piano e orquestra (sem duelos), melodias crescentes e refinadas reviravoltas de harmonias. Os compassos introdutórios do segundo andamento orientam habilmente o ouvinte da tonalidade de Dó menor do primeiro andamento para a de Mi Maior do segundo. Um nocturno nostálgico, e a introdução de duas cadências não quebra o clima reflexivo do andamento. Outra modulação hábil de Mi Maior para Dó Maior apresenta-nos o finale, um andamento que alterna entre dois temas; o primeiro, que apresenta uma dança vigorosa, e o segundo, um dos mais famosos de Rachmaninoff. A enunciação final deste tema conduz a obra ao seu glorioso final. Sugestão de audição da obra: Sequeira Costa, piano Royal Philharmonic Orchestra, Christopher Seaman – RPO Records, 1993</strong
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasCansaço [dropcap]E[/dropcap]m 1982 um dos grandes cronistas em língua portuguesa – o brasileiro Rubem Braga – publicava mais um daqueles textos que deveriam ser ensinados nas escolas. Na aparência tratava-se da recordação de um jogo de futebol entre amigos, na praia. Braga lembrava, de forma suave e melancólica, um essencial desafio que tinha acontecido trinta e sete anos antes. A crónica é na verdade sobre o efeito da passagem do tempo e da forma como vemos o mundo consoante essa passagem nos afecta. Não resisto em citar este pedaço, para benefício do amigo leitor e do universo em geral: “Ah, roda de amigos e de mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento horrivelmente besta mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão morrer de repente, uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua risada clara, será aflita e feia, azeda e triste”. E terminava com esta frase lapidar e resignada: “Ultimamente têm passado tantos anos.”. Tem razão, o cronista. Pior: parece que os anos que passam ultimamente são cada vez mais. Em pouco mais de uma semana os dias foram ingratos para os amantes das pequenas coisas: a destruição comovente da grande beleza, como aconteceu em Paris (para não falar de outros valores que para aqui deixo de fora); a chacina horrível no domingo pascal no Sri Lanka; e tantas outras atrocidades que não nos chegam ou pelo menos chegam em diferido. Derrotado, cansado, precisei de uma pausa, do regresso àqueles que escreveram e onde me sinto em casa. Nem aí, nem aí: na mais recente edição da revista Spectator – que historicamente albergou muitos dos que formaram e formam o meu modo de ver o mundo, da política às artes e sempre com a possibilidade de debate – aparece um extraordinário artigo assinado por um James Tooley. Chama-se They Tuck You Up (traduzido à pressa, “Eles Aconchegam-te”) e é um trocadilho com o primeiro verso de um célebre poema de Philip Larkin, This Be The Verse: “They fuck you up, your mom and dad”. Este poema, publicado no livro High Windows, é de Abril de 1971. É um exemplo feroz do cepticismo do poeta, neste caso sobre o conflito de gerações – mas mais do que isso, é uma reflexão pessimista sobre a natureza humana. O poema defende que os pais enchem os filhos com os seus defeitos, embora não o desejem, já que os seus pais também o terão feito. E termina com esta extraordinária quadra, que conclui e dá sentido ao poema: “Man hands on misery to man. / It deepens like a coastal shelf./ Get out as early as you can, / And don’t have any kids yourself “. O articulista responsabiliza este poema – e este poeta e outros artistas como ele, afirma – como os responsáveis pela decadência e quase extinção da família tradicional que teria começado no final dos anos 60 e na década seguinte. Não se trata portanto de uma opinião literária: trata-se de um panfleto moralista em que se afirma que alguma arte é responsável pela decadência da sociedade e dos valores “decentes “ que essa sociedade deverá ter. E sempre que há alguém que defende este tipo de argumentação sabemos logo duas coisas: é estúpido e é perigoso. Por coincidência, antes de chegar a este artigo tinha regressado a casa com uma magnífica edição de The North Ship, o primeiro livro de Larkin e que um amigo me ofereceu. A ele regressei imediatamente, como que a procurar santuário. Mas o mal estava feito. Ah, meu Rubem Braga, você continua a ter razão: ultimamente têm passado muitos anos. O problema é que muitos, tantos, têm sido para trás.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA estratégia de Wu Sangui [dropcap]S[/dropcap]ó na História de Macau de Gonçalo Mesquitela encontramos explicado, com um fio condutor coerente, o trecho da História da China aqui narrado. O único exército ming disciplinado e preparado para fazer frente à força militar do reino de Dashun comandada pelo Rei Li Zicheng, que partira de Xijing (Xian) e vinha avançando sem encontrar grande resistência, era o do general Wu Sangui (1612-1678) estacionado na Passagem de Shanhaiguan a cerca de 200 milhas de Beijing. Apesar das ordens para o general se deslocar para a capital e ajudar à defesa, este não se moveu, levando o Imperador Chongzhen a preparar a fuga do príncipe herdeiro Zhu Cilang (朱慈烺) e de outro dos seus filhos Zhu Cijiong (朱慈炯), fazendo-os escapar disfarçados. Depois, o imperador embriagou-se, matou as duas filhas e ordenou à Imperatriz Zhou e à sua favorita Yuan (袁) que se suicidassem, mas esta última recusou-se e apesar de a tentar matar, ela não morreu. Li Zicheng no dia 18 da terceira Lua cercou Beijing e no dia seguinte, 25 de Abril de 1644, cedo de manhã Chongzhen enforcava-se. “Conhecida a morte do imperador, seguindo os rituais prescritos muitos dos dignatários da corte, cumprindo os cânones de Confúcio, mataram-se, assim como duzentas concubinas. Nessa mesma tarde, Li entrou no palácio imperial e quis verificar pessoalmente a morte do imperador. Dois dias depois dava a primeira audiência aos sobreviventes da corte”, onde os humilhou, deixando-os prostrados a levar pontapés e bofetadas dos soldados vitoriosos, a quem foi autorizado o saque da cidade. “Mandou ainda perseguir e matar os membros da família imperial.” Li Zicheng trazia pressa em ser coroado imperador, no entanto quis cumprir os rituais confucionistas e assim deu ordem ao Presidente do Tribunal dos Ritos para calcular a data mais auspiciosa para se sentar no Trono do Dragão. O general Wu, a governar a Passagem de Shanhaiguan, esperava para decidir qual o rumo a seguir, pois sabia ser o seu exército a fazer pender a vitória para o lado por ele escolhido. Primeiro quis perceber como o grupo rebelde de Li actuava e tratava os submissos oficiais ming e sabendo também estar o exército qing na fronteira preparado para invadir, poderia contar com um ou com outro para combater as forças do adversário que escolhesse. Esperar para ver Recebida a confirmação da ocupação de Beijing, Wu Sangui escreveu ao pai, um oficial de alto grau na corte, aconselhando-o a submeter-se a Li Zicheng e pediu-lhe para tentar resguardar a sua favorita Chen, colocando-a como concubina no Palácio Imperial para ser bem tratada e não correr perigo. Wu conhecera Chen Yuanyuan em Suzhou a cantar numa companhia de ópera e logo por ela se apaixonara. Sentava-se na primeira fila a observá-la e como jovem atraente conseguiu a sua atenção. Andava neste namoro quando o pai o mandou chamar a fim de ir realizar os exames para oficial militar em Beijing. Prometeu vir buscá-la para se casarem e após passar nos exames de keju mandou um criado com dinheiro para a comprar, mas tinha ela já sido vendida a um outro oficial da corte. Este comprara-a para a oferecer ao Imperador por ser parecida com a sua filha, a favorita concubina Tian (田), que um ano antes morrera. Como o soberano não a aceitou, estava ela livre e assim disponível, tornou-se concubina de Wu. Sabendo Chen já em segurança na corte, Wu usou de novo os serviços do pai para fazer chegar a Li Zicheng a sua proposta. Dispunha-se a servi-lo, “se fossem aceites duas condições: a de que lhe fosse enviada Ch’en e que o príncipe herdeiro, que fora aprisionado, lhe fosse confiado. Propunha até retirar-se para as províncias ocidentais, levando o herdeiro Ming, desde que lhe fosse concedido o título de Príncipe e o respectivo poder feudal sobre aquelas províncias. Comprometia-se a, se assim fosse, não hostilizar o novo imperador.” Percebendo o objectivo da entrega do herdeiro directo da Dinastia Ming, Li, furioso com Wu, propôs-lhe que se rendesse o recompensaria, caso contrário “atacá-lo-ia e mandaria decapitar seu pai.” Sem resposta de Wu, entretanto a negociar uma aliança com Dorgon, o Príncipe de Rui regente da manchu Dinastia Qing, Li, sem saber de tal, após uma semana de espera fez-lhe um novo aviso e três dias depois marchava à frente de 60 mil homens contra o exército ming. A desproporção de forças era tal que levava a convicção da rendição de Wu. Li atacou em Yipianshi, próximo de Shanhaiguan, seis dias depois do contacto entre Wu e Dorgon, em que o general, “alegando a sua fidelidade aos Ming e o desejo de se vingar da morte do imperador Ming, aceitara o título de príncipe feudal manchu e a coordenação das suas forças com a dos manchus.” Para tal abriu as portas da Grande Muralha à entrada do exército qing na China. Iniciado o combate, de repente apareceu a cavalaria manchu e Li, percebendo não ser a vitória fácil, retirou-se e enviou a Wu o príncipe herdeiro e a concubina Chen. Vira-casaca Com o príncipe Zhu Cilang junto a si, Wu Sangui logo o proclamou imperador e devido à menor idade assumiu-se seu regente. “É nesta qualidade que negoceia a paz com Li, pela qual este devia deixar Pequim, podendo levar o produto do saque, e retirar-se para as províncias do Oeste. Caso os manchus atacassem, reuniriam as suas forças para lhe resistirem. Dividiam, assim, a China entre os dois, passando Wu a posição bem mais forte como regente do imperador, em vez de ser príncipe feudatário dos manchus.” Sem possibilidades de resistir às forças aliadas, Li regressou a Beijing onde soube do acordo feito por Wu também com os manchu e logo prendeu o pai do general, ameaçando matá-lo se este não aceitasse reconhecê-lo como imperador. Wu, sem ceder à invocação da Piedade Filial, lembrou que pelas “próprias regras confucianas, o pai, como dignatário da corte imperial, deveria ter morrido em defesa do imperador. Assim não se sentia obrigado a sacrificar a sua lealdade à dinastia, à vida do pai. O velho Wu foi executado por Li, juntamente com todas as mulheres da família.” Antes de se retirar de Beijing, Li Zicheng, sem esperar pela data auspiciosa, fez-se coroar imperador e partiu levando tudo o que pôde do palácio imperial e ao sair, lançou fogo às muralhas do palácio. Dorgon, sem suspeitar do acordo entre Wu e Li, continuava a preparar a invasão a Beijing, mas quando Li daí se retirou com o seu exército, logo se antecipou a Wu e colocou as suas tropas a cercar a cidade, proibindo que Wu e o jovem herdeiro tivessem acesso ao palácio. O general acampara fora da cidade e preparara para o dia seguinte, 6 de Junho de 1644, a coroação de Zhu Cilang no Palácio Imperial, para colocar Dorgon perante o facto consumado de haver já no trono um imperador ming. Precavido, o Príncipe de Rui foi no dia da entronização buscar ao acampamento o general e com ele se dirigiu ao palácio onde na Sala do Trono lhe foi então solicitado que como regente aceitasse o trono, o que logo acedeu em nome do Imperador Shunzhi.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCéu nublado [dropcap]A[/dropcap]inda estamos muito aquém de perceber exactamente o que mudou no modo como nos relacionamos com os outros desde o surgimento das redes sociais. É normal, estamos «entre»; entre estados-de-coisas que carecem de definição e de distância para as conseguirmos apreender com clareza. Não sabemos ainda se o fenómeno Facebook é apenas transitório. O que sabemos é que este ganha utilizadores a nível horizontal de expansão geográfica e que os perde a nível vertical e demográfico junto dos mais novos. Os mais novos estão a preterir o Facebook em prol do Instagram e do Snapchat, entre outros. Não parece haver uma plataforma – ou um formato – capaz de estabelecer um standard equivalente à rádio ou a televisão no séc. XX. É interessante estarmos entre estados-de-coisas. Nunca na história da humanidade a geografia contou tão pouco. A distância da informação eclipsou-se. E mais do que a distância, o epicentro. Somos todos difusores de informação enquanto participantes activos na rede. A própria noção de informação está a mudar. Mais do que uma via de sentido único do emissor ao receptor num meio canónico, a informação é neste momento um emaranhado atómico de perspectivas cuja análise requer uma capacidade computacional disponível apenas a nível estatal. As famigeradas fake news não são o aspecto mais assustador ou perigoso desta equação. Enquanto formos capazes de desmontar o fenómeno, os danos à credibilidade dos meios de comunicação podem ser contidos (os perigos neste momento são outros e não cabem aqui). O problema decorrente da multiplicação de pontos de vista é o da absoluta relativização da informação. O problema é deixarmos pura e simplesmente de ter critério para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Na verdade já tivemos mais longe. Nos Estados Unidos, onde parte da realidade assume contornos de caricatura, um homem foi detido em Dezembro de 2016 por entrar com uma metralhadora AR15 numa pizzaria de Washington chamada Comet Ping Pong em busca de tirar a limpo uma história que circulava na Internet, sobretudo nos meios conservadores e em sites que navegam entre a indignatite e a teoria da conspiração tout court, que defendia que a dita pizzaria era na verdade um albergue para uma rede de pedofilia dirigida pela candidata democrática às eleições presidenciais desse ano, Hillary Clinton. Apesar de o homem ter disparado uns tiros, o balanço foi francamente positivo: a única coisa que morreu nesse dia foi a noção, e esta já entrara comatosa no restaurante. No caso em apreço, não é que a notícia não tenha sido evidentemente desmentida uma série de vezes por entidades competentes (como a polícia metropolitana do distrito de Columbia). O problema é que há cada vez mais pessoas a acreditarem que os meios de comunicação (e uma boa parte das entidades ligadas de algum modo ao governo) lhes mentem, mesmo quando se tratam de histórias em relação às quais o único critério de averiguação deveria ser o bom senso. Se a coisa não descambar num desastre global nos próximos vinte, trinta anos, escrever-se-ão milhares de teses de doutoramento sobre esta época de “entres”: entre a solidão e a omnipresença, entre a verdade e a mentira, entre a ficção e a realidade. Talvez uma delas seja a chave para compreender um mundo cada vez mais estranho, até para aqueles que acabaram de entrar nele.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDiários Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê. Camões. Não Pode Tirar-me as Esperanças. In “Sonetos” [dropcap]A[/dropcap] inquietação provoca a insónia. Noite longa não dormida. Depois, ao longo do dia: inquietação, ansiedade, angústia, preocupação. O corpo tenso, enervado. Não se consegue estar sentado. Tenta-se ler em voz alta pela casa toda. Dá-se um esforço tremendo à procura da concentração. Que métodos os monges Zen terão desenvolvido para poderem concentrar-se? Perda de acuidade de atenção. De novo a tensão. Não há nunca nestes dias relaxamento descontraído. Um diário pessoal não pode ser apenas uma agenda das coisas que têm de ser tratadas pela nossa acção nem uma acta de coisas tratadas. Uma agenda pessoal virtual ou no papel não tem apontadas as nossas maiores preocupações. É para não esquecer, claro, que apontamos na agenda o que há para fazer: marcações de consultas, encontros mais variados profissionais e pessoais. Não marcamos tudo. De resto, podemos falhar a encontros ou consultas que estão marcados na agenda, como podemos não nos esquecer do que não marcamos, porque está tão presente que não carece de marcação. Há uma agenda pessoal a partir da qual, depois há agendas virtuais e físicas. O lance diário traz consigo as preocupações presentes que vêm dos últimos dias ou das últimas semanas, meses ou até anos e décadas do passado. Distribuem-se não apenas num só dia, mas por vários dias, semanas, meses, semestres ou como podemos organizar o nosso ano, que pode ser lectivo, civil ou religioso ou só assim como quem não quer a coisa. Podemos também não ter nada para fazer e ter dias de lazer, fins-de-semana prolongados, feriados ou férias. Durante esses períodos de tempo da vida há uma espécie de suspensão de quem somos enquanto somos o que fazemos. Há um intervalo de tempo, uma pausa, uma paragem em que o dia-a-dia vem da agenda do tempo de lazer. Ir às compras, ir à praia, ir para o campo, ler, ouvir música, ver o pôr do sol. Diferente de exercer funções ou cargos, realizar tarefas, cumprir prazos. Mas o lance diário começou antes do próprio dia ou da hora quando começam as consultas ou os encontros ou as outras marcações. Tudo começa antes do seu início com uma antecipação que pode ser de meses, que é quando marcamos as coisas, às vezes só na nossa cabeça. A lembrança é para memória futura. É agora que marco coisas para a tarde, quando é de manhã, para amanhã, fim de semana desta semana ou para as próprias semanas. Hoje, está já a ser vivido como o resultado de intenções gizadas que se projectaram para um futuro que agora é realizado. Somos o resultado do projecto de intenções que nos lançam para o dia de hoje, que começou lento ou rápido, com o pequeno almoço, a vinda para o local de trabalho, o início do exercício de funções. Trazemos connosco também o resultado por mais provisório que seja dos últimos meses: pessoas com quem vivemos e existimos, trabalho realizado. Hoje é já diferente do dia do calendário no ano passado, eventualmente no mesmo local e à mesma hora. Hoje é o resultado de um lance que se pode ter aberto num qualquer dia de Verão do ano passado ou de há muitos anos, muitas décadas, antes mesmo de compreendermos bem quem somos ou o que fazemos ou quais são as verdadeiras intenções da vida para nós. Hoje, abre também um futuro intencional que configura várias possibilidades ainda só em intenção, mas já com a abertura à possibilidade real e efectiva do possível que é possível, diferente de um sonho que se desfaça como uma vaga apaga desenhos na areia. O nosso diário teria de ser de uma natureza diferente de uma mera recensão das coisas que fizemos ou que poderíamos ter feito. Encontros a que fomos. Encontros a que faltamos. Consultas marcadas e em que estivemos presentes ou as que faltamos. Aulas dadas e tidas. Aulas faltadas. Espectáculos a que assistimos e aqueles a que não assistimos. Mas a nossa agenda teria de ser no condicional. O que poderíamos ter feito e não fizemos. O que não poderíamos ter feito e foi o que fizemos. O que poderíamos ter sido e não fomos o que não deveríamos ter sido e acabamos por ser. A possibilidade de inflexão. A possível reversão do que parece estar destinado e, tão petrificado que não muda nunca. É como se houvesse uma intenção por vida. Cada pessoa tem de lidar com a sua aspiração. Somos o desejo que é como quem diz a falta que sentimos de algo ou de alguém. Somos o desejo de nós próprios que é como quem, então, pode dizer a falta que sentimos de nós próprios, a carestia de um si que não foi e que não pode ser já ou ainda pode ser. Cada pessoa é esse trajecto de uma estrela cadente, como dizia Platão, atirada para o cimo em direcção ao alto e a riscar o céu. A antecipação do que está para ser e por ser e a que damos início não é nossa por assim dizer. Desde sempre já lidamos com essa antecipação. A antecipação que está envolvida com desejo, ânsia, intenção, esperança, futuro é excêntrica. É ela que nos visa a nós. Nós somos concebidos no anterior desta concepção prévia e meramente formal de que há um futuro e que temos de ser esse futuro, num ter de fazer, ter de agir, ter de ser. A antecipação usa-nos para se expressar através de nós no mundo, na vida, com outros, connosco. A cada instante exprimimos sempre na coreografia da existência a nossa relação intrínseca com a intenção constitutiva do nosso ponto de vista e estamos já a caminho, na direcção do que achamos é nós próprios, num modo de ser que nos é de feição, a chegar até nós. Também, é certo, sentimos que estamos puxados como pela corrente forte de um rio na direcção inversa àquela para que queríamos ir e que nos esforçamos por atingir. A antecipação preocupa não por este ou aquele conteúdo que exerce pressão sobre nós, as ralações do dia a dia, a preocupação com os outros de quem cuidados, nós que somos preocupação para os outros e que nos preocupamos com o ser uma preocupação para os outros. A antecipação não é apenas para o dia de hoje ou para o curto ou médio prazo, nem é para o longo, longuíssimo prazo, do que está para haver sem sequer percebermos bem como, porque se encontra na linha do horizonte do tempo para lá do qual não haverá mais tempo. A antecipação que preocupa arromba essa linha do horizonte, esse espaço temporal abobado, catapulta-nos para um tempo a haver sem que percebamos bem como será a sua vivência, algo de para sempre. Podemos esquecer-nos das nossas acções, não nos lembrarmos do que fizemos no dia de hoje, mas cada uma das nossas acções é inscrita, quando feita, no tempo passado em que coincidimos com a eternidade do passado e, por isso, é já indelevelmente conteúdo da vida, do mundo. Cada uma das nossas acções inscreve um conteúdo no presente que não será também nunca apagado da nossa vida. Requereu tempo para ser, para cair no mundo, para ser conteúdo da minha vida, intersectar vidas que connosco fazem a trama do tempo.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasTempus fugit [dropcap]H[/dropcap]á histórias que uma vez lidas nos perseguirão toda a vida. O seu significado é facilmente compreensível, mas desde logo percebemos que só quando a sua verdade se tornar experiência por nós vivida as haveremos de entender. Poderiam estas histórias servir-nos de aviso, fossemos menos cépticos e displicentes, forma de nas idades da força e da razão nos imunizamos contra a assombração da morte. Somos descuidados com o tempo, substância que tardiamente aprenderemos ser escassa quando dela precisamos. O conto “Papagaio de papel” de Lu Xun foi uma dessas combustões larvares à espera de oxigénio que a inflame. Assim que o li – não deveria ter mais de 20 anos – tocou-me nele a promessa de uma expiação que embora decifrável seria nessa altura ainda incorpórea. Vem numa colectânea que se pode intitular de “Erva selvagem” (野草) e tive-o numa amorável edição francesa da 10/18 que me foi roubada. Só me resta aqui em cima da mesa uma sofrível tradução em português, emasculada e murcha. Comprei o livro por ser chinês, pois andava à época com a cabeça cheia de chinesices. Um velho sofre as agruras do Inverno e ao ver papagaios de papel a brincarem no céu azul de imediato o contrista o ferrão da memória. Recordou, então, que quando jovem – por conseguinte pretensioso – julgava os papagaios de papel um passatempo nefasto e frívolo, indigno de pessoas educadas. Assim proibira de os lançar o irmão mais novo, a quem eles maravilhavam os seus 10 anos. Um dia surpreendeu-o a construir um papagaio em segredo e num acesso de sanha virtuosa destruiu-o sem contemplações. Mais fraco e pequeno o benjamim limitou-se às lágrimas dos aviltados. Ao velho, deparando agora com o vôo dos papagaios, cometeu-lhe mágoa a súbita memória de acto tão cruel e prepotente. O único modo de se redimir seria pedir desculpa ao irmão. Este recebeu-o com um sorriso: “Isso aconteceu deveras?” – não se lembrava de nada… O corolário de Lu Xun é ineludível. “Que perdão poderia haver? Sem ressentimento o perdão é uma mentira.” O velho retornou a casa sem alívio – aquela dor perduraria para sempre. Às 11h do dia 16 deste Abril – “the cruelest month, […]mixing memory and desire, stirring dull roots with spring rain.” – deflagrou em mim o sentido do conto de Lu Xun. Também eu me apercebi do mal feito tarde de mais para que tivesse emenda. Esse dia sentenciou que até ao fim haverei de carregar a desolação de não ter procurado arrependimento por certas patifarias em tempos perpetradas sobre a pessoa que num período da minha vida passada se me confiou e amou e a quem devia ter retribuído ou, ao menos, acalentado. As minuciosas degradações e deliberadas inclemências que executara vinte anos antes, já não tão jovem como isso, mas mais imaturo do que presumia e menos alumiado do que o meu convencimento admitia, não foram equívocos – eram maldades. Falhas de quem teve a felicidade ao alcance da mão e a desperdiçou. Mas o pior veio depois. Arrefecidas as pulsões e amanhado algum siso, reconheceria como erradas as acções praticadas e atroz o desgosto que provocaram. Vendo o horizonte encurtar-se tal como o ancião de Lu Xun pressentiu nos papagaios de Inverno, sobrou-me então oportunidade de, tal como o velho, ter buscado redenção junto daquela que decerto ma concederia. Por desídia não o fiz. É verdade que se tornam alheios e distantes os caminhos que se apartam em rumos divergentes. E que as consumições são um rio de caudal incessante. Mas nada senão a vontade cedeu à procrastinação. E assim foi que a morte rasurou o privilégio da compaixão. Esta pena jamais se confortará. Que adianta ter agora o coração nas mãos quando o outro já não bate?
admin h | Artes, Letras e IdeiasHomo Roussus Televisionis [dropcap]C[/dropcap]omo se chamava ele? Todos o tratavam por Jonas, mas não sei se era o seu verdadeiro nome. Não é importante. Aconteceu tudo demasiado rápido, não deve ter chegado a um ano. Jonas, viemos a saber depois, tinha 27 anos, ainda estava ali para todas as curvas da vida. Mas o que se pode fazer, acontecimentos sem explicação existem por todo o lado. O dele foi o mais surpreendente, não me lembro de ouvir ou de ler alguma coisa assim, nem num livro de ficção científica. É tão rebuscado que ninguém se iria lembrar disto. Há histórias de lobisomens e indivíduos comuns que são picados por um bicho qualquer e se transformam num ser abominável, com poderes extraordinários e mais tarde em super-heróis, se a tramóia for para vender bilhetes. Há também a história de Kafka, em que um homem acorda certa manhã metamorfoseado na figura de um monstruoso insecto, depois de uma noite agitada de pesadelos. O desgraçado do Gregor Samsa. Se calhar, o nosso amigo também se chamava Gregor, dada a firmeza com que a vida foi regurgitada por todos os poros da sua existência. Com ele foi diferente, apesar da trajectória ter sido veloz, a acoplagem não aconteceu de repente e os sintomas não se notaram de imediato. Talvez tenha sido um tique, um movimento mais brusco do braço, em que a mão se põe a coçar a cabeça de modo irreflectido, talvez à procura de um pensamento com a ponta dos dedos, por entre a floresta do couro cabeludo. De dia para dia, eram mais nítidos esses gestos, só depois vieram as transformações físicas. Mas também aqui podia ser uma perturbação qualquer, nada fazia supor aquele desenlace. As orelhas a ficarem mais planas, o nariz mais achatado, os olhos maiores, como o lobo da avozinha. Mas foi o andar que deu o alerta, perna mais aberta, a coluna laça que o tornava mais atarracado. Teria levado uma martelada na cabeça? As palavras a irem-se, como se tivesse sob o efeito do jogo da Roleta Ruça, que na altura estava na moda. Que se passa Jonas? E ele não dizia, faltava-lhe o vocabulário, não conseguia argumentar e ia-se embora, fascinado pela natureza lá fora. Não era Alzheimer nem um AVC, isso tínhamos a certeza, mas não se sabia o que era, seria contagioso? Nunca tinha ouvido falar na Roleta Ruça, não acreditei que fosse possível. Pus-me a pensar se seria perigoso, pelo menos não tanto como a outra em que se enfia uma bala no tambor de um revólver e se roda o cilindro. E é azar se o projéctil sai à velocidade do som e nos estoira os miolos, porque há mais probabilidades de o disparo sair em seco. Aqui não, aqui ninguém morre, mas o resultado é de igual requinte. O feitiço é sempre o mesmo, joga-se pelo fascinante desafio. Aposta-se a fala. A cada nível, mantemos ou perdemos vocábulos, até ao extremo de ficarmos sem o conhecimento de todas as palavras. É um jogo, o mais certo é sairmos derrotados, e quanto mais fundo caímos mais sentimos o direito de recuperar esse bem precioso que é o acto de falar. Verbo após verbo, tudo cai na corda do esquecimento. O tambor tange o som do oblívio. Poder-se-á dizer que é uma experiência científica? Talvez seja apenas isso. No início, ligamos o cérebro a um capacete cheio de propulsores eléctricos, cada um com a sua função estimulando zonas distintas da nossa mente. Como um motor de busca, o aparelho pesquisa as palavras armazenadas em cada uma das gavetas da memória e retira-as, eliminando o seu registo. Perdemos a noção do termo, do seu significado e da sua existência. De palavra em palavra vamos ficando vazios, sem nada para dizer. Não conseguimos articular uma fala, a partir deste ponto tudo se apaga, é o fim da vida em sociedade. E não é um sonho agitado, o resultado é idêntico ao de premir o gatilho com a bala a entrar por uma têmpora e a sair pela outra, deixando um rasto de destruição. O rastilho de um homem perdido. Mas o sistema não é infalível e ao fim de alguns dias a memória é assaltada pela configuração anterior e em pouco tempo a nossa linguagem é restabelecida. E quando damos por isso desatamos às gargalhadas como quando aspiramos um balão de hélio e falamos. É incompreensível. Mas com o Jonas não foi possível mudar os fusíveis, o seu mal foi progressivo e sem retorno. A sua família assustou-se e tentou encontrar especialistas, do ramo da neurologia ao esoterismo. Fizeram-lhe exames, passou por todas as ressonâncias e aparelhos de rádio. Deitou-se com todo o tipo de marquesas. Consultaram osteopatas, médiuns que captam a energia das estrelas de olhos fechados e as canalizam para o corpo do paciente. Foram à maior sumidade de acupunctura da cidade, guinchou quando lhe espetaram agulhas na nuca. Um homem no Alentejo pôs-lhe as mãos em cima para lhe sentir os males, não encontrou nada. Afagou-o no final e deu-lhe uns pozinhos para tomar em casa. Por fim, uma análise ao DNA revelou drásticas mutações genéticas. Jonas estava a transformar-se num homem das cavernas. Os genes participavam numa orgia. Ninguém acreditou, claro. Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco. No entanto, a comunidade científica começou a interessar-se pelo caso e não o deixou expirar. Estudiosos de todos os quadrantes ventilavam teorias absurdas, uma após outra. Comentadores de fim-de-semana dissertavam as suas sentenças sobre os braços mais compridos desta criatura, agora quase a arrastar no chão, numa desorientação curvilínea. Os pelos que lhe cobriam o corpo, a pele mais escura. Teria sido alguma coisa que comeu? A oposição usou-o como arma de arremesso para criticar o governo, que simbolizava o estado do país. Não foi preciso rodar o revólver. O assunto estava na ordem do dia e os esclarecimentos plausíveis eram nulos. Ainda se pensava que podia contagiar e aparecer novos casos. Para despistar características hereditárias foi feito um rastreio à sua família, mas Jonas permaneceu em casa. Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco. Isto chegou aos ouvidos de uma das estrelas que liderava as audiências, a Cristina Pinheiro, por quem Jonas suspirava o maior pasmo, que o quis levar ao seu programa. Tinha uma equipa de médicos e cientistas que iam explicar o caso em directo, nesta altura já mundialmente conhecido. O país parou para assistir a este triste espectáculo. Contra a sugestão da equipa de produção, a anfitriã deixou o seu interlocutor à solta, porque não era natural, mas sobretudo porque queria reverter o andamento da enfermidade, encenando uma voz doce e segurando a mão de Jonas. “Me, Jane. You, Tarzan!” Num grande plano, enquanto a apresentadora tentava ordenhar uma lágrima, pudemos observar a transmutação para australopiteco e depois para mais longe ainda, num retrocesso de milhões de anos. Já ninguém sabia definir exactamente o termo certo para a espécie, aquele nível era demasiado alto. Os cientistas boquiabertos, sem conseguirem articular uma palavra. Os homo camera com os tambores a ruçarem-lhes as têmporas. A bala a perder-se no motor de busca. No oblívio. Miolos espalhados nas lentes. Mas o que aconteceu é que perante a figura maior da sua devoção, o nosso ânthropos não se conteve e devorou a dondoca que tinha à sua frente. Não me perguntem como a devorou, porque não vou dizer. De seguida, como quem abandona uma conversa que não lhe agrada, escapuliu-se por entre os seguranças e desapareceu. Saiu a guinchar e já em completa postura primata. Supostamente, deverá ter zarpado para a selva. Patrulhas policiais seguiram-no a todo o gás, com helicópteros e um dispositivo militar numeroso em seu alcance. Iam à procura de um chimpanzé, mas a velocidade do projéctil era tal que o mais certo foi ter-se transformado de imediato num girino, ou num fóssil de dinossauro. Quem sabe, na costela de algum Adão.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRessonâncias [dropcap]H[/dropcap]á obras que nos tocam pela densidade humana que nelas perpassa e não por outras qualidades específicas, técnicas e formais – a obra até pode ser lisa, mediana, coxa. No cinema isso é muito claro. Lembro-me do delicioso Saint Jack, de Peter Bogdanovich, um filme “menor” dos anos oitenta com uma personagem maior do que a vida, e onde Ben Gazzara interpreta um americano “exilado” e que actua ou como um proxeneta muito especial ou um facilitador de negócios, iluminando com a sua sageza as noites de Singapura. A dado momento Jack é colocado diante da tentação de se tornar um delator, em troca de uma quantia que lhe permitiria regressar à terra. Mas a sua “pureza” é a liberdade com que agencia vidas sem com elas interferir, e escolhe permanecer na sua “pobreza essencial” – afinal, o seu modo taoista de “seguir a linha da água” e de estar em ressonância com o mundo, numa conectividade concreta. Revi-o agora no YouTube. Mais recentemente recordo-me de outro filme (também está no YouTube), O Visitante, de Thomas McCarthy, interpretado por Richard Jenkins, de 2008, que a política de Trump em relação à emigração actualizou. Um renomado professor de economia, Valter, epítome de uma classe média de sucesso, atravessa uma crise por causa da viuvez que lhe revelou a irrelevância dos seus valores. Sente-se agora um “homem sem qualidades”, que vive agarrado às memórias da sua mulher, uma pianista de carreira, ao ponto de sem qualquer sucesso querer aprender a tocar piano. A contragosto, vai a Nova York dar uma palestra, onde mantém um apartamento. Chegando lá, descobre um casal de imigrantes ilegais a viver no apartamento, ele árabe, ela negra. Mas, sendo um homem sem reservas mentais percebe que eles foram enganados e deixa-os ficar. Tarek, um jovem sírio-libanês, é percussionista e a música acaba por tecer entre os dois uma verdadeira cumplicidade. Valter percebe que afinal não é um caso perdido para a música, apenas estava enganado no instrumento. Por acidente, Tarek é preso e deportado, a sua namorada tenta desaparecer no anonimato, e Valter, que luta contra a desumanidade com que as autoridades tratam Tarek, acaba por se envolver com a mãe deste, uma mulher decente e educada, chegada do lado dos derrotados da História, para se inteirar da situação do filho. No fim ficam todos sozinhos porque a vida não se compadece, mas Valter está mudado e o filme acaba com o académico e reputado palestrante a tocar tambor no metro. Valter toca tambor no metro para se identificar com Tarek, essa figura anónima do bem que as absurdas e cínicas leis humanas penalizam, e para tentar recuperar o que aprendeu com ele: a Ressonância, essa sílaba de uma frase que só no transporte de um ritmo (fantasmaticamente colectivo) se deixa formular como um lugar (mental, atópico) onde o mundo deixa de ser um estranhamento. Ao resumi-lo, reduzimos à caricatura este filme sóbrio e aparentemente simples, com quatro personagens e um drama atualíssimo, mas o que nele vale é a densidade das personagens e o seu subtexto: creio que a ressonância neste filme é a metáfora para falar da escuta, o seu primeiro tema, ou antes, da escuta deficiente com que nos condenamos ao isolamento social. Vivemos em sociedades doentes porque já não nos escutamos nem aos outros nem a nós mesmos, e a pele do tambor é aqui o tímpano que nos falta. Nas sociedades actuais, como diria Sloterdijk, somos sempre convidados a ouvir o que ajuda a não ouvir o mundo e a alteridade. Valter enganara-se anos a fio de instrumento musical porque, preso às imagens da sua mulher e à sua música sedativa e funcional, deixara de se ouvir. O outro grande tema do filme é, concomitantemente, o da hospitalidade. A hospitalidade não é apenas o acolhimento do outro, mas o modo como através da presença do outro no meu espaço vital eu deixo de mentir a mim mesmo. Como nos ensinou a psicanálise, a mentira a si mesmo é primeiro que tudo uma proteção narcísica, defendemo-nos contra a imagem desfavorável que podemos dar de nós mesmos; neste sentido, a mentira secunda a intenção de quem tem vontade se perseverar a si mesmo. Lidar com um outro, o que acarreta tensão, obriga-nos a resolver este estado de reféns da consciência intencional e a transitar mais rapidamente para o plano da verdade. A hospitalidade não abriga então apenas as dimensões da fraternidade e da responsabilidade, é igualmente um passo essencial para o amadurecimento e o auto-conhecimento. É outra forma de ressonância. E isto serve tanto para os planos individuais como colectivos. Também no Youtube, à procura de estudar a estrutura de várias óperas, por súbita necessidade profissional descubro uma versão inteira (e legendada) da Carmen, de Bizet, com a romena Angela Gheorghiu no lugar da protagonista, que me fascina. Como até agora andava distante da ópera não tinha dado conta do trabalho desta intérprete, não só no canto como no magnetismo que transmite às personagens. E há um pormenor da encenação que amplifica a força e sensualidade da personagem: quando a Carmen está em cena há uma máquina de vento ligada que lhe electriza o cabelo e o corpo. O fito é dar-lhe uma aparência indomável, e o instrumento é, de novo, a ressonância. Três obras magnificas para rever muitas vezes.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO que a Notre Dame fez chorar! [dropcap]C[/dropcap]om o incêndio da Notre Dame que pôs meio mundo a chorar (e a rememorar fotografias), lá se foi a tragédia de Moçambique. Depois veio a greve dos motoristas de matérias perigosas, o pessoal andou à pancada (até numa pacata bomba de gasolina de Campo de Ourique) e lá se dissipou o imenso pranto pela Île de la Cité. Parece que os media dão conta do que passa e não do que fica. Mas haverá algum tipo de registo que dê conta apenas do que fica? E o que é que fica, para além das lágrimas ao vento e das imagens parisienses (vento muito forte que seca todas as gárgulas que afloram no enfiamento das grandes comoções)? Perseguir uma realidade perene e não efémera sempre foi desígnio (e desejo) dos humanos, é verdade. Aristóteles imaginou um mundo sobrelunar que resistiria à corruptibilidade, enquanto a “metempsicose” que Platão apresentou no Fedon traduz a ideia da imortalidade da alma e da reencarnação. As religiões do livro e as orientais (que se baseiam também na reencarnação) secundam a tradição. Os mitos, da antiguidade aos nossos dias, estão cheios de personagens que resistem à lei da morte. Até nas possíveis respostas ao famoso livro de Calvino “Porquê ler os clássicos?” ou no conceito de “cânone”, defendido por Harold Bloom, se pressente a mesma necessidade de resistir aos dons do efémero. O mundo moderno, ciente de que os paraísos ‘só’ poderiam existir neste planeta, soube harmonizar habilmente a lei da vida (“A morte é a curva da estrada”, já dizia Pessoa) com um ímpeto de totalidade. Por outras palavras: os humanos acreditaram que haviam de domar o mundo e dar conta de tudo à sua volta. Para domesticar o tempo, nada melhor do que inventar uma ciência que radiografasse o passado e uma outra que ‘ideologizasse’ o futuro. Ficava tudo resolvido. É por isso que, a partir de meados do séc. XVIII, foram aparecendo narrativas que desenhavam, país a país, a sua própria história. Vico terá sido o anjo da anunciação (com Ciência Nova, 1725) e, logo a seguir, em todos os cantos da Europa, pôs-se em marcha um ininterrupto culto da memória, fosse através da criação de museus, fosse através da criação de novos saberes (arqueologia, antropologia, etnologia, etc.), fosse através da redacção de ‘Histórias’ nacionais e universais (com letra grande para sugerir a ilusão moderna de objectividade). De E. Gibbon (1737-1794) a A. Herculano (1810-1877) e de Marquês de Condorcet (1743-1794) a J.Michelet (1798-1874), os ‘grandes factos’ são desocultados e colocados em perspectiva, de modo a dar sentido ao presente e às comunidades que os enunciam, como se cada uma fosse o centro do mundo. Este frisson de obsessivamente recriar o passado (cada qual a seu gosto) fez-se através de cuidadas montagens e selecções (as Tordesilhas da história portuguesa não seriam nunca as Tordesilhas da história castelhana, por exemplo), razão pela qual a objectividade – que ainda hoje permite que se creia na existência duma ciência histórica – é tão irrealista como o é o personagem que Borges criou em Funes o Memorioso*. Funes projectou uma nova língua que dispusesse de vocábulos para cada folha das árvores ou para cada pedra das montanhas, pois a sua memória era prodigiosa e abrangia todos os detalhes com que em vida se debatera. Como a tarefa era árdua, decidiu resumir o projecto a ‘apenas’ setenta mil lembranças. No final, desistiu por achar que o trabalho era infindável e inútil. Os historiadores foram mais inteligentes do que Funes, na medida em que recorreram a montagens subtis, antecipando-se à lógica das gramáticas com que Griffith e Eisenstein haveriam de glorificar o cinema. Se as ideologias no seu design oitocentista são hoje matéria de manuscrito (com o é a Ilíada, por exemplo), este culto moderno e sistemático do passado foi-se perdendo no meio da amnésia colectiva que a era tecnológica arrastou consigo. Razão por que, hoje em dia, a representação do passado se faz mais através de práticas em fluxo centradas no que se passou a designar por “património” do que através da interiorização de uma determinada narrativa orgânica e saturada de coerências (como aconteceu na minha escola primária e nas aulas de história do liceu). Os objectos falantes – monumentos, sítios reconhecidos pela unesco, paisagens protegidas, etc. – são hoje o porta-voz dos nossos legados, daí terem-se convertido num turismo global de massas que mete a um canto as antigas peregrinações a Jerusalém. É por esta razão que o incêndio da Notre Dame pôs o povo a chorar com glamour patrimonial. Juntemos a esse pesar os ingredientes fotográficos com que cada sofredor expôs ao cosmos a sua própria ópera interior. Quando no fim da Comuna de Paris, os derrotados pegaram fogo a meia Paris, ainda não existiam os sacos lacrimais da contemporaneidade. E ninguém, na altura, os teria entendido. Para os communards, a primeira internacional, as barbas cerradas de Marx e de Engels e o invasor prussiano eram as referências pesadas. O passado bem podia esperar nos mais-do-que-sagrados livros de ideologia e de “História” e ainda naqueles que levaram Adolphe Thiers a mandar executar mais de vinte mil almas (facto que a então jovem fotografia documentou sem quaisquer filtros e reservas, num contraste absoluto com a vacuidade narcísica e idiota das actuais selfies). O empenho moderno pela “totalidade”, baseado em receitas racionais que dariam respostas a todas as ‘grandes’ perguntas, sucessor, aliás, do apego clássico pelas realidades perenes (com a imortalidade na fila da frente), é hoje um produto datado. Um genérico fora do prazo de qualquer prazo validade. Esgotadas as crenças no ilimitado, o que nos sobrará? Pela frente, leia-se, como cenário de futuro, resta-nos o frémito dos gigabytes; para trás, leia-se, como cenário do passado, resta-nos a síndrome do património e os seus mil trivagos com direito a sorrisos e a selfies, tendo como cenário a acqua alta de S. Marcos, as cores avermelhadas da Petra jordana ou o pináculo da Notre Dame a cair no meio do fogo. De facto, tanto faz. E uma lagriminha no olho para coroar a emoção não ficará mal a ninguém, pois, logo a seguir a Paris, virá a greve dos motoristas e depois, e depois, e depois. Haverá sempre um depois para suster o que fica e para levar para o panteão, lado a lado, com Amália, tudo aquilo que passa, como se fosse, e é afinal, uma “estranha forma de vida”. *Borges, Jorge Luis; Funes, el Memorioso em Ficciones – Prosa Completa, Volumen I, Narradores de Hoy – Bruguera, Barcelona (1944) 1980, pp. 383-390.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA Sonata que abriu as portas do futuro [dropcap]L[/dropcap]udwig van Beethoven, nascido em Bona no dia 16 de Dezembro de 1770, foi um compositor alemão do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). É considerado um dos pilares da música ocidental, pelo incontestável desenvolvimento, tanto da linguagem como do conteúdo musical demonstrado nas suas obras, permanecendo como um dos compositores mais respeitados e mais influentes de todos os tempos. “O resumo de sua obra é a liberdade”, observou o crítico musical alemão Paul Bekker (1882-1937), um dos mais influentes do séc. XX, “a liberdade política, a liberdade artística do indivíduo, a sua liberdade de escolha, de credo e a liberdade individual em todos os aspectos da vida”. Durante os seus primeiros anos de vida em Bona, esteve exposto a uma exigente formação musical por parte de um pai obcecado em convertê-lo num “novo Mozart”. Tal ambição questionável, unida a um não menos perigoso carácter ligado ao alcoolismo, teve repercussões directas na vida pessoal, académica e social do jovem Beethoven, não apenas fazendo dele um rapaz introvertido e medroso, mas também um mau estudante demasiado cansado para ir à escola depois de passar as noites a praticar piano. Em todo o caso, sem justificar os meios que aperfeiçoaram o seu talento, a realidade é que com apenas sete anos, Beethoven já era capaz de dar recitais de piano que deixavam o público boquiaberto; entre eles, ao mesmo compositor e maestro Christian Gottlob Neefe, que ficou tão impressionado com a habilidade do pequeno Beethoven, que se interessou em guiar, enriquecer e aperfeiçoar a sua formação musical. Neefe era o melhor mestre de cravo da cidade de Colónia na época. Assim, aos 10 anos abandonou a escola para dedicar-se inteiramente à música. Os seus progressos foram de tal forma notáveis que, em 1784, já era organista-assistente da Capela do Palácio Eleitoral em Bona, e pouco tempo depois, violoncelista na orquestra da corte e professor, assumindo a chefia da família, devido à doença do pai. O Conde Waldstein, um nobre de Bona, financiou-lhe uma viagem a Viena, em 1787, aos 17 anos de idade, para aprender com os melhores, de entre os quais com Mozart, que lhe previu um grande futuro e, mais tarde, com Haydn. O Arquiduque da Áustria, Maximiliano, subsidiou então os seus estudos. No entanto, pouco depois de chegar à “capital da música”, a sua mãe caiu gravemente doente e Beethoven teve que regressar a Bona. Após a morte da sua mãe, o seu pai caiu numa profunda depressão que obrigou Beethoven a tomar a cargo os seus irmãos mais novos, tocando viola e dando aulas de piano. Por sorte, não teve que fazê-lo por muito tempo, pois o seu extraordinário talento era cada vez mais conhecido e eram várias as pessoas interessadas em financiar a sua completa dedicação à música. Em 1791, com apenas 21 anos, já desfrutava de prestígio junto da nobreza dessa cidade, que não dispensava a presença do músico nas suas festas. Em 1792, Beethoven regressa a Viena, em definitivo, onde, fora algumas viagens, permaneceu o resto da vida. As cartas de apresentação que levava consigo abriram-lhe as portas da nobreza local. O Príncipe Karl Lichnowsky instalou-o no seu palácio e pagava-lhe uma pensão. Os recitais constituíam o divertimento predilecto da nobreza e as apresentações musicais limitavam-se quase a concertos nos palácios. Foi aí que teve o seu primeiro contacto com os ideais da Revolução Francesa, com o Iluminismo e com o movimento literário romântico alemão “Sturm und Drang”, do qual um dos seus melhores amigos, Friedrich Schiller, foi, juntamente com Johann Wolfgang von Goethe, dos líderes mais proeminentes, e que teria enorme influência em todos os sectores culturais na Alemanha. Beethoven fez a sua primeira apresentação pública, delirantemente aplaudida, em 1795. Em 1796, apresentou-se em Praga e em Berlim, onde cumpriu um extenso programa para a corte imperial, do qual constavam as suas Duas Sonatas para Violoncelo, Opus 5, escritas especialmente para a ocasião. Em 1797, estava com 27 anos e um prestígio crescente que atraía alunos e convites para recitais, e que lhe proporcionava desafogo financeiro. Estudou também piano com Salieri, Foerster e Albrechtsberger, tornando-se um pianista virtuoso, cultivando admiradores, muitos dos quais da aristocracia. Afirmando uma sólida reputação como pianista, compôs as suas primeiras obras-primas, as três sonatas para piano Op. 2 (1794-1795), que mostravam já a sua forte personalidade. Foi em Viena que lhe surgiram os primeiros sintomas da sua grande tragédia. Foi-lhe diagnosticada, por volta de 1796, aos 26 anos de idade, a congestão dos centros auditivos internos (que mais tarde o deixou surdo), o que lhe transtornou bastante o espírito, levando-o a isolar-se e a grandes depressões. Consultou vários médicos, inclusive o médico da corte de Viena. Fez curativos, usou cornetas acústicas, realizou balneoterapia, mudou de ares, mas os seus ouvidos permaneciam tapados. Desesperado, entrou em profunda crise depressiva, pensando mesmo em suicidar-se. Embora tenha feito muitas tentativas para se tratar, durante os anos seguintes a doença continuou a progredir e, aos 46 anos de idade (1816), estava praticamente surdo. Porém, ao contrário do que muitos pensam, Ludwig jamais perdeu a audição por completo, muito embora nos seus últimos anos de vida a tivesse perdido, condições que não o impediram de acompanhar uma apresentação musical ou de perceber nuances timbrísticas. No entanto, o seu verdadeiro génio só foi realmente reconhecido com a publicação das suas Op. 7, Op. 10, e Op. 13, entre 1796 e 1799: a Quarta e Quinta sonatas para piano, em Mi Maior e Dó menor, respectivamente, Sexta e Sétima em Fá Maior e Ré Maior, respectivamente, e Oitava em Dó menor, op. 13, a famosa sonata “Pathétique”. A Sonata para Piano Nº 8 em Dó menor, Op. 13 “Pathétique”, de Ludwig van Beethoven, foi publicada em 1799, embora tenha sido escrita no ano anterior, quando o compositor tinha 27 anos de idade. Beethoven dedicou esta obra ao seu amigo, o Príncipe Karl Lichnowsky. A obra foi designada “Grande sonate pathétique” pelo editor, impressionado com as sonoridades trágicas da obra. Esta foi a primeira das sonatas para piano de Beethoven a alcançar o estatuto de cavalo de batalha. Beethoven abre esta composição em três andamentos, na tonalidade dramática de Dó menor (que mais tarde escolheria para a sua famosa Sinfonia Nº 5), com uma introdução lenta e meditativa – Grave – Allegro di molto e com brio, usando esse recurso pela primeira vez numa sonata. Aparentemente colocando uma questão, ou lutando para superar um dilema, a música busca resolução e alívio, que aparece na exposição propriamente dita, quando o andamento, impulsionado por oitavas tremulantes na mão esquerda, acelera, e o tema se transforma em enunciação profundamente ansiosa, introduzindo, mais uma vez, um humor questionador e incerto, sem excluir enunciados enérgicos, possivelmente indicando um desejo de transcender o sentimento de incerteza. Durante a breve secção de desenvolvimento, uma sensação de tensão dramática predomina, mas o tom geral muda na recapitulação, levando a uma coda, que fecha o andamento. O segundo andamento, Adagio cantabile, começa com uma melancolia calmante, lânguida e melancólica, de uma beleza outonal. Dominando todo o andamento, esse tema inicial eclipsa tanto o segundo tema moderado quanto o momento de tensão dramática na secção intermédia do andamento. O finale, Rondo (Allegro), é realmente o segundo Rondo na sonata, já que o andamento do meio possui as características estruturais dessa forma. Este andamento abre com um tema graciosamente eloquente acompanhado de figuras arpejadas tocadas pela mão esquerda. Embora o clima pareça brilhante, a música é tingida de melancolia, apesar do segundo tema lúdico. Seguindo a repetição e o desenvolvimento temático, o primeiro tema surge como simultaneamente mais ágil e mais delicado. Uma longa e brilhante coda completa o andamento. Com esta sonata, principalmente com o seu primeiro andamento, Beethoven abriu as portas para o futuro – ninguém depois de ouvir essa obra – poderia fechar os olhos às possibilidades de expressão aqui apresentadas. Sugestão de audição da obra: Beethoven Piano Sonatas – Vol. 3 Sequeira Costa, piano – Claudio Records, 1991/ No de catálogo: CB55732
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras IV. Corpo e alma. [dropcap]A[/dropcap] psique afecta o sôma. O sôma afecta a psique. A afecção é enunciável na voz passiva. Ser e estar afectado por qualquer coisa que aconteceu, por X. X é o agente da passiva. Este esquema serve para o corpo e para a alma. Mas o corpo pode ficar afectado por qualquer coisa que lhe acontece. Por exemplo, a respeito da temperatura: sofre com o calor ou sofre com o frio. Mergulhamos com calor na praia. Entramos no sauna no inverno, com frio. Pode ser conteúdos higrográficos: a humidade ou o clima seco, uma casa húmida ou uma casa seca. Por outro lado, podemos sofrer com quartos escuros. A escuridão na infância metia medo, fazia sentir o mundo na sua indefinição. Sofremos de fotofobia: a luz crua do meio-dia. Mas há uma relação entre estados mentais e o corpo. A coreografia do corpo de quem não tem confiança e é tímido ou está vulnerável é diferente da coreografia do corpo e da fácies de quem tem confiança. Há uma relação entre a alma e o exterior como há entre corpo e exterior. Reagimos a espaços fechados ou extensos, ao clima mental e meteorológico, a atmosferas física e mentalmente. Podemos gostar do deserto ou achá-lo desolador, como podemos expandir o olhar pelo mar com entusiasmo e fora de si ou então achá-lo a solidão inabitável de um elemento alienador de nós próprios. Há, assim, relações no próprio edifício: descemos da cabeça até aos genitais, estômago, pulmões e coração. Subimos desses terminais até à cabeça. Os orifícios podem ter funções várias ou só funcionais ou eróticas, o que permite compreender funções diferentes e sintéticas entre si. Há uma relação psico-somática que permite compreender a correlação entre o que acontece anatomicamente no corpo, mas também com a nossa percepção do corpo, se estamos gordos ou magros, com bom ou mau aspecto, com energia ou sem ela, treinados ou não, em boa ou má forma. Esta avaliação ultrapassa o conteúdo anatómico. Pensa uma relação com o corpo que pode ser estética mas é desde sempre já uma avaliação do bem estar ou do mal estar com que nos sentimos na nossa pele. Podemos fazer qualquer coisa para alterar o estado do corpo e assim poder estar melhor na nossa pele. Por outro lado, percebemos que também podemos mudar de hábitos de vida, alimentares ou modos de vida. Nesse caso percebemos a diferença que há entre não praticar desporto e praticar desporto, como nos encontramos depois de vir ao treino a que não queríamos ter ido e como nos encontramos à mesma hora, quando devíamos estar a vir do treino, mas a que não fomos. O gosto que fazemos ao fazer o que fazemos ou a dificuldade com que fazemos a contra gosto o que temos de fazer. Não há nada que façamos que não tenha esta forma de interpretação mínima do prazer e do sofrimento, do gosto e do desgosto, do bem estar e do mal estar, do bem ser e do mal ser. O ser das nossas actividades vive precisamente do prazer afectivo e emocional que dispense, com que nos outorga. Haverá actividade produzidas na nossa psique que a alterem? Isto é, há actividades da psique que actuam sobre a psique deixando-a objecto, vítima exposta e submetida a si? Os antigos perceberam a acção da psique activa sobre a psique passiva, uma relação que é estudada pela natureza correlativa da psique sobre a psique. Por outro lado, é possível que a atividade da psique se difunda e distribua pelo mais ínfimo poro da existência do meu corpo. O bem estar da alma é o bem estar do corpo, quando descansa, depois do trabalho ou do exercício, da actividade sexual, quando dorme, e estando cansado e cheio de sono. O corpo altera-se convulsivamente para se deixar estar e entregar ao relaxamento, ao sossego, como no sono que se segue a uma sessão de massagem. Mas o corpo próprio também pode estar tenso como num combate, na ânsia do prazer sexual possível e iminente, quando, prestes a atravessar a rua, olha para a direita e para a esquerda com atenção e cuidado, quando está a trabalhar no seu ofício, quando me concentro no teclado e procuro escolher as palavras que resultam do pensamento das frases e do argumento que tenho em mãos. Todas as nossas acções, todas as nossas actividades, pensamentos, sentimentos, estão implicados num horizonte que é anterior, interior e exterior, antecipa e é consequência na psique e no corpo. O corpo flui no fluxo da consciência do mesmo modo como o fluxo de consciência inunda, alaga, submerge o corpo. A psique é corpórea porque está diluída em todas as partes do meu corpo, do lado de dentro e do lado de fora. O corpo manifesta-se a partir de si à psique que lhe está justaposta, ou melhor que o atravessa em toda a sua extensão, ossos, articulações, tendões, músculos, aparelhos e órgãos, extremidades e epiderme. O corpo é da extensão do que eu vejo. O que eu vejo não é do tamanho dos meus olhos. Olho para alguém e vejo nos seus olhos, no hemisfério dos seus olhos ou espelhado nos óculos escuros, a paisagem que se estende à sua frente. Vejo a praia inteira e as nuvens no céu nos óculos de alguém ou no seu globo ocular. Será comigo assim? Ouço não nos meus ouvidos, nem interiores até, os carros que passam no tabuleiro da ponte 25 de Abril. Mas a ponte, com tabuleiro e carros, que eu ouço na sua passagem não está dentro da minha cabeça. Sinto o frio da praia na costa vicentina, mas só tenho contacto com água nos meus pés e não na totalidade dessa extensão. O cheiro que sinto rebentar-me os pulmões tem a fragrância do vento que desce das montanhas até à cidade, quando é noite. Todas as flores espalhadas pelo cume e pelas encostas das montanhas está fora do meu nariz e é no cérebro que eu sinto que o vento penetra e me embebeda. Eu toco o rosto de uma criança e não é apenas a sua bochecha ou apenas os meus dedos e a palma da mão, mas é o outro, pequeno, a pessoa inteira na sua vida que me está a ser indicada, a sua alma e não apenas a parte das bochechas que eu aperto e acaricio. A invasão do corpo é também a invasão da alma. É através do corpo que a alma se abre, estende ou contrai e fecha. Mas sou eu quem existe no corpo e na alma. Ser eu ao modo do meu ser, ser eu ao modo do meu sou, ser o ser do sou, é excêntrico relativamente à alma e ao corpo. “Sou” acompanha-me a mais ínfima parte do meu copo, sente pudor e vergonha ou mal estar, gosta e não gosta do que tem, do que faz e do que lhe fazem. Sou acompanha-me em todos os meus estados de espírito desde manhã até à noite, toda a vigília e todos os meus sonhos ou noites em que parece que não sonho e outras em que sonho acordado, bons sonhos e maus sonhos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasÂngelo de Lima [dropcap]O[/dropcap] poeta Ângelo de Lima, nascido na segunda metade do século dezanove, ainda de cariz vagamente simbolista entrando no Modernismo português pela Revista «Orpheu», não merecia o veredicto de um homem como o doutor Egas Moniz! Mas, enfim, a ciência em princípio sabe, ou sabia tudo, e dava e dá pareceres da sua verdade que longe parece andar de naturezas e casos especiais. Sem qualquer sensibilidade para os factos, a leviana demonstração dos ditames analisados põem-nos de sobreaviso perante aquilo que é definido por diagnóstico. Já então a Nobilidade não era prova de mais distinta compreensão, pois que se o fosse seria um desprimor analisada por tais factos. E diz assim daquele que foi um poeta de fina e inventiva interpretação linguística e altíssima qualidade poética: «O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio. (até aqui nada de mau, pois adjectiva tal natureza, a uma talvez, quem sabe, excepção) Ao lado de qualidades artísticas, que os seus amigos talvez exagerem um pouco, mas que em todo o caso são incontestáveis, apresentando no mesmo caso coisas lamentáveis (riso). Assim, com o lápis, é um emérito desenhista; um pouco académico, não perdoa a nitidez dos contornos, sendo talvez um pouco duro. … é uma lástima e não chega a ter consciência do seu nulo valor». Muitas vezes o que parece não é e o que é de facto pode até nem se parecer com nada. Mas, na grande erudição de pareceres pátrios, quem disser a primeira asneira parece muitas vezes coroado de um momentâneo sucesso, que é tanto maior, quanto maior as insígnias, e assim ficou retratado o poeta, onde lhe seriam acrescentadas ainda as toscas descrições de Miguel Bombarda, descrições essas, mais anatómicas, no âmbito de um auto-retrato Bocagiano. Haviam de dar certas as rigorosas demonstrações para descanso das mentes, e os pareceres, para efeitos curriculares, para que o levassem depressa a desistir de qualquer ideia estouvada de se manifestar. Em clausura no Júlio de Matos, assim passa grande parte da sua insanável vida, ele que foi até um ilustre membro da Revolta Republicana do 31 de Janeiro. O auto-apelidado país poético “esquizofreniza” cada vez que um lhe sai ao caminho, que será sempre alguém de características suspeitas e não longe da armadilha do ditame. É que tal sociedade, de uma loucura enfadonha, procura resolver tal dilema pela anulação da diferença, criando a sua norma, que é também ela suspeita de alarvidades várias sem método legítimo. Quando lemos Ângelo de Lima sabemos que a inovação é um lado verdadeiramente apaixonante, não interessando para nada qualquer juízo de valor, e que a moldura de uma assinatura daquelas é um mérito tal que talvez até haja espaço para dar graças a certas doenças ou amenizar suspeitas que recaiam perante pacientes assim. Em último, um pedido de desculpa pela vilania do tratamento que lhes deu o coro dos pareceres colectivos, pois creio que a desculpa não está outra vez na moda e quando esteve seria também esta a última a ser lembrada. Por isso, creio que ele nos merece a nossa atenção genuína e neste instante que escrevo em português estas simples linhas, lhe presto o meu louvor, e em português lhe peço desculpa. A sua alma saberá entender que sou apenas uma porta-voz que ameniza uma grosseira injustiça. – Devemos virar-nos para o Sol querido poeta – não este que por aí anda em goelas disfarçadas, mas para a deidade do dom das coisas que difíceis de manobrar são a vida e a morte, e também o que sobra de Humanidade nos interstícios de tudo. É esse dever sagrado que foi dado como único vínculo nesta situação, que as vozes, são alucinações dos que ao perpetrarem-nas não chegam a ser escutadas no vitral das provas. Cada vez que te vejo a tristeza vem, e vem pura, sem drama – a dramaticidade não chega até aqui – nem a consciência de que mesmo a grande dor da mãe morta possa ser do feto um filho recusado, explica quase nada perante a tua grande ausência de fixação. As estrelas brilham em outras vibrações bem longe dos úteros, como daqueles que à força desejam sanar o insanável. É contigo que agora me conecto em simples melodia, talvez em voz primeira e factos renovados. Nenhum parecer é definitivo, nem os anátemas nos tomam para sempre, só o tempo estranho e longo de uma caminhada toda de imponderáveis efeitos, nos aproxima da situação mais provável de uma harmonia. E cada vez que me doem as palavras todas conjugadas para efeitos óbvios, eu desisto de escutá-las, lê-las, ou continuar cerrando as filas das suas amplas armadilhas, e só tu apareces no cimo de um esplendor qualquer resgatado à maravilha: «- Mia Soave … – Ave?!…- Alméa?!… Maripoza Azulal….-Transe!… Que d’Alado Lidar, Canse… – Dorta em Paz…. – Trespasse Idéa! …. Não Doe Por Ti Meu Peito….- Não Choro no Orar Cicio… – Em Profano… – Edd´ora… Eleito!…. Balsame- a Campa… o Rocío. Que Cahe sobre o Último Leito!… – Mi´ Soave!…. Edd´ora Addio!… “
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRevisão da matéria dada [dropcap]U[/dropcap]ma reportagem no Notícias, de Maputo, relembra-nos como pode descer o homem, na escala dos ratos. Aí se lê: há mulheres moçambicanas a serem forçadas a actos sexuais em troca de ajuda humanitária, na sequência da destruição causada pelo ciclone Idai. Emergem, em todos os lugares, em estados de crise, comportamentos deste tipo – da Croácia, ao Ruanda, ao Brasil de Bolsonaro: um artista é morto com oitenta tiros e ao Ministro da Justiça só lhe ocorre comentar, “acontece!”. Como em todos os períodos sombrios, flirtamos com o pior da pluralidade humana, à escala global. Uma educação a sério conseguiria inculcar uma maior humanidade, a civilidade, no comportamento das criaturas? Face à insensibilidade de Moro levantam-se dúvidas mas atenuaria o número de ocorrências bárbaras; uma verdadeira educação humanista reforça o respeito pelo outro e a compaixão. Entretanto, li um livro a vários títulos interessante, Le Battement du Monde (A Pulsação do Mundo), um diálogo entre dois pensadores: Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut. O livro surpreende pela actualidade, apesar de ser de 2003, sobretudo no diagnóstico traçado no capítulo O Estádio e a Arena. Vou resumir alguns dos delineamentos aí esboçados. Nada de muito novo, simplesmente bem sistematizado: «Na hora actual, a psicose de massa mediática substituiu integralmente o senso comum, esse maravilhoso órgão de uso democrático da inteligência colectiva». Isto é muito claro para quem acompanha no Youtube a caricata evolução política no Brasil, onde enxameiam os canais, individuais ou colectivos, que pretendem substituir o papel dos media tradicionais. No geral, percebe-se que o que move o homem é a ilusão. Depois, a prática prevalecente (muito mais nos representantes da direita do que nos da esquerda) não é a de esgrimir argumentos mas a de taxar os adversários com etiquetas infamantes ou denúncias moralizantes. Modo de ser que se locomove segundo uma espécie de princípio da razão insuficiente herdado da retórica de guerra (em frívolos mas agressivos jogos de linguagem) fomentada pelos jacobinos no período de radicalização da Revolução Francesa. Eles compreenderam, explicam-nos os autores, que, para sobreviver na turbulência permanente, é preciso ser o primeiro a caluniar. «A calúnia é a primeira arma do povo, ou melhor, dos amigos do povo», e o volume das calúnias urde rapidamente uma “sociedade do escândalo”, a qual garante uma rede à prática da calúnia e nos reenvia para o primeiro teatro da crueldade: o circo romano. «Se, agora, alguma coisa não funciona no sistema mediático mundializado é por causa desta conversão cada vez menos secreta, cada vez menos decente, do espaço público num circo (…) O espaço público é penetrado por dois mecanismos de competição: aquele das acções de opinião e o das sensações circenses. Nos nossos dias, a questão é de saber se existe uma vida fora do circo. A maior parte dos nossos contemporâneos responderá pela negativa. Eles estão convencidos que só o circo proporciona a vita vitalis, essa vida desdobrada de um sentimento de significação». Acresça-se a isto, que decalca o que se passa (eles terem-no detectado em 2003 só confirma que há várias velocidades na globalização), duas outras características concomitantes: A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa. Repare-se em como o circo da opinião dos canais se transforma numa caça ao níquel. Quem mantém um canal lucra na proporção do número de likes e de visitas; daí que seja preciso dramatizar, acrescentar elementos de sensacionalismo à matéria, para que o vídeo seja mais impactante. Rapidamente as mensagens se convertem em slogans e os argumentos preterem à verdade os efeitos da retórica. O que imita a lógica televisiva. Quando vejo o Olavo de Carvalho a perorar para as centenas de milhares de pessoas inscritas no seu canal, e a usar-se da soberba que o faz afirmar ser o único escritor brasileiro que conhecerá a posteridade, tentando convencer os seus fiéis sobre o geocentrismo e que o Einstein era “um babaca”, só me lembro daquela questão de Brecht: “Que é roubar um banco, comparado com fundá-lo?”. Esbateu-se a consciência do valor civilizacional, o sentido do respeito pelo adversário e as boas regras intelectivas. O que faz a grandeza das personagens num filme como A Grande Ilusão, de Renoir? A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa Aquilo que parece uma ideia inócua a borbulhar numa proveta burguesa, é mais sério do que se afigura. Não apenas à superfície isso sustente a vaga de anti-intelectualismo que vemos emergir por todo o lado, como é sintoma disto: «Os novos denunciantes, no momento do insucesso, tentam mudar as regras do jogo. É isto, o fascismo. Deixa-se cair as boas maneiras do combate quando se compreende que na arena actual há risco de se perder a vantagem. Produz-se então um último esforço desesperado para negar a derrota. É por esta via que o terrorismo jacobino se volta a instalar na nossa cultura.» Onde fica a ética no meio desta amálgama de tudo ao molho e fé na calinada? Talvez um princípio dela seja esboçado pelos autores quando defendem: «(…) é preciso reformular um código de combate, implicando o cuidado do inimigo. Quem não quer ser responsável por um inimigo já cedeu à tentação do tanto pior melhor. Querer ser responsável pelo seu inimigo: o gesto primordial de uma ética civilizadora dos conflitos. Se a forma do “celerado” é a única maneira de conceber o inimigo, aí estamos já embrulhados no massacre imaginário.» Será isto entendido por poucos, paciência. Começa-se sempre por poucos. Na Grécia antiga inventaram-se os Jogos Olímpicos como uma emulação da violência e a competição agónica substituiu a guerra. São de soluções deste tipo – que implicam um reforço da simbolização, i. é de um retorno da astúcia, da persuasão, da inteligência e da capacidade interpretativa articuláveis no espaço público, contra a literalização cognitiva e a calúnia que aí se jogam – que o futuro necessita para se proteger.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasSer livre [dropcap]H[/dropcap]á umas décadas, ser livre era coisa só de revolução. Não se falava de outra coisa. E não se admire o mais blandicioso dos leitores, se o cenário se vier a repetir, pois o diabo à solta é coisa íntima destes pobres mortais que somos todos nós. Mais recentemente, a ideia de que ser livre é, também – dir-se-ia sobretudo – um ofício aplicado de cada pessoa foi-se tornando, a pouco e pouco, permeável na nossa sociedade. Por trás de cada uma destas concepções, que as mentes mais aferradas adoram opor uma à outra, respiram desígnios com tradição e com algum mar ao fundo (nem sempre com a melhor vista para a rebentação, conceda-se). Neste mês que tem a coloração dos prodígios, o tema apetece. Mas dissertar apetecerá muito menos, até porque as folhas já encheram as árvores da Infante Santo e os sintomas dão-se agora a ver, mais por breves acenos e sinais do que por discursos que ocupariam a parede toda do tempo. Passemos então ao contorcionismo, ou seja: passemos a drapejar alguns dos sintomas. Escolhi três: escravaturas fugazes, famílias empapadas e multidões a eito. Primeira história: quando alguém adora ser (ou confundir-se com) a linguagem que estudou. Uma desses ‘bons espíritos’ que coloca likes nas redes sociais antes de ler seja o que for, incluindo estas minhas crónicas (sim, o afecto é o sistema solar inteiro), perguntou-me outro dia: “Do que tratam as tuas crónicas?”. Como bom actor, fingi que nada de anormal se passava da fronteira de Badajoz para cá, e respondi: “Gosto de cogitar sobre o nosso tempo, avançando e recuando como e quando me apetece, e sobretudo sem depender de heróis, ou daquilo que geralmente se designa por formações especializadas (referência a quem diplomado em X apenas fala de X ou, pelo menos, invariavelmente com o filtro de X, sem outros esforços adjacentes). A pessoa ficou sentida. A psicologia – e a linguagem técnica da psicologia que através dela falava – era a sua casa, isto é: propriedade privada em sentido estrito. Não gostou de perceber que assim era, na sequência do nosso abrasivo diálogo. Mas convenhamos que acontece tanta vez que um discurso (psicológico, filosófico ou de outra área) sobre um tema importante se torna numa verdadeira rebarbadora, por ser construído apenas por ‘palavras de ordem’ que só têm – ou teriam – vida própria no seio da redoma em que (e para que) foram criadas. Como se não se pudesse, de modo desalinhado, indagar o mundo fora desses limites. Como dizia o Jorge Silva Melo no filme ‘Ainda Não Acabámos: Como Se Fosse Uma Carta’ (2016) – “O que interessa é o início do gesto, o gesto a abrir-se”. No entanto, grassa por aí uma infinidade de ‘bons espíritos’ para quem o mundo é uma coisa fechada, feita de concordâncias fictícias e com vista apenas para remições ilusórias. Na realidade, ser-se escravo é, também, permitir que uma linguagem qualquer se sobreponha ao que uma pessoa é, enclausurando-a numa espécie de armário calafetado de onde não se vê sequer o mundo, quanto mais um bom buraco negro. Segunda história: quando as famílias travam a redescoberta mais íntima da liberdade. Ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças. A minha geração passou o tempo todo a rebelar-se contra essa “vaga sagrada que é a família”, expressão utilizada por Marina, uma das personagens que expressamente o repetiu no romance Lusitânia (1980) que Almeida Faria escreveu no final dos anos setenta. Laivos e indícios do Maio de 1968, porventura. Ainda que a família dita tradicional esteja em vias de fanico, falar deste tópico, hoje em dia, é o mesmo que lucubrar sobre os falanstérios de Charles Fourier. De qualquer modo, muito do que separa os dois países onde vivi, o nosso e a Holanda, é neste campo que se encontra. Nas terras de Vermeer, os jovens saem de casa antes dos vinte e o estado há muito que se colou à itinerância e estimula até a procissão. E pode fazê-lo, claro está. Por cá, a saída de casa já está no final dos trinta e, muitas vezes, é coisa que vai para além disso. O itinerário torna-se pegajoso e é evidente que os factores materiais acabam por selar a angústia das longas e traumáticas dependências. Estou em crer que este é um dos factores que mais amarra, em Portugal, as pessoas a formas de liberdade (muitas vezes) apenas abstractas e sem grande saída. O percurso próprio e livre, esse, é sempre o mais complicado. Terceira história: quando as multidões e as suas furiosas causas ascendem ao vazio. Perdemos também a liberdade, quando nos deixamos arrastar pelo vórtice, mesmo se as causas forem da maior nobreza. Aconteceu comigo. Há umas semanas, quando o tema da violência doméstica atingiu o clímax mediático, eu achei que o caso da cabeça de uma mulher encontrada na praia de Leça da Palmeira passava todas as marcas. E passava e passa, como é óbvio! Sinceramente indignado, embarquei no jorro e denunciei, dando à estampa um post em conformidade. Há semana e meia, veio a saber-se que o homicídio fora obra de uma outra mulher, devido a uma dívida e não a violência doméstica. Ir no rebanho, ainda que animado pela mais alta graça dos deuses, pode ser ruinoso para a nossa própria liberdade. O ‘Me Too’ e os seus feéricos apoiantes, lá no olimpo da sua infinita ‘magistralidade,’ têm muitas vezes caído nesta armadilha soez. No meu caso, o desacerto é e foi sobretudo da minha consciência e não teve, de certeza, consequências de maior. Seja como for, ser livre implica – deixem-me empregar palavras de Heidegger que não são propriedade privada de ninguém – não estar entregue ao “ente intramundano” e ao vazio que aprisionam e que não permitem “aceder a si mesmo”. Por outras palavras ainda: ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças. Jogo complexo, é certo, mas o único em que vale mesmo a pena acreditar (até porque um clímax mediático não é, na larga maioria das vezes, um clímax efectivo e real).
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasPrecipícios interiores “Lembro-me de ter pensado que há coisas que só se engolem com muita fome e uma flor à frente. Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem qualquer dia já nem vai precisar da flor.” – André Tecedeiro [dropcap]É[/dropcap] a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero. Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles. No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser “muita coisa”. A estranha do lado de cá, com ironia, respondia, “Eu sei muito bem o que dá para comprar com esse dinheiro.” Seguiu-se um “Nada”, mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco. Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a ser feita em tempo útil. Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo. Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento. Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam outros a preparar a nossa comida. Então, porque é tão estranho que alguém no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua. Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim? A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão, ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher, como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona, transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação, e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias melhores.