Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasA timidez da coroa Ao Francisco Amaral, in memoriam [dropcap]E[/dropcap]xiste um fenómeno natural que tem um nome poético: timidez da coroa. É um processo observado em algumas espécies arbóreas, em que as copas frondosas das árvores não se tocam entre elas. Vistas do solo criam uma espécie de mapa em que o céu aparece como uma fronteira de azul, como um rio aéreo em que as árvores são as margens. A causa deste fenómeno, descoberto em 1920, ainda não está definitivamente assegurada. Alguns cientistas afirmam que esta timidez existe para proteger as árvores de insectos nocivos; outros concluem que é uma forma de sobrevivência, para que a luz que entra por estes intervalos entre as copas possa permitir uma melhor fotossíntese e, por consequência, um melhor desenvolvimento da árvore. Um entendimento entre gigantes que não se tocam para benefício de todos. Descobri há dias esta timidez da coroa – belíssimo nome, paradoxo involuntário e genial – graças a um vídeo que me apareceu numa rede social. Pouco antes, a mesma rede social tinha anunciado, de surpresa e sem filtros, a morte de Francisco Amaral, radialista de excelência entre outros atributos. E de imediato achei que ambos os acontecimentos estavam relacionados. Porque nas nossas vidas existem pessoas assim. Não as conhecemos mas estão próximas. Olhamos para o lado, vemo-las mas não nos cruzamos. Ajudam-nos sem o saberem. O Francisco Amaral foi uma dessas pessoas, não só para mim mas para muitos que cresciam com a rádio a sinalizar os dias, a libertar todas as emoções. O seu programa, Intima Fracção, era uma referência para os que gostavam e queriam saber da nova música que se fazia na altura. Num registo de sereno lirismo, anunciado pelo genérico do programa – o instrumental Mar d’Outubro, do primeiro disco da Sétima Legião -, a Intima Fracção entrava devagarinho pelo coração adentro, cada emissão a causar espantos vários e nunca repetidos. Em 1988 o jornal O Independente tinha crítica de rádio. Nada de extraordinário – a não ser em Portugal – mas pouco provável nos dias de hoje. Quem a assinava era eu, jovem deslumbrado e nunca saciado pelo que ia ouvindo. Naturalmente uma das primeiras críticas foi um elogio desavergonhado mas justo ao Intima Fracção. Pouco tempo depois da publicação da crítica recebi uma carta do Francisco, a agradecer de forma singela as minhas palavras. Ainda guardo essa carta. Depois disso cruzámo-nos duas ou três vezes, sempre de raspão. A rádio continua a ser o mais subestimado dos meios de comunicação. A vertigem televisiva tudo sugou e a própria rádio foi perdendo a sua humanidade em favor de playlists anódinas. O programa de autor quase desapareceu. Quase: o Francisco era um desses autores e tê-lo-á sido até ao fim. Depois de ter sido dispensado de uma rádio sem vocação para o albergar, a RADAR foi buscá-lo porque o compreendiam. Ficou feliz o Francisco, com a felicidade de quem regressa a casa. Esta crónica, que preferia nunca ter escrito, é também de certa forma um regresso a casa. Um agradecimento a partir do Francisco a todos os gigantes que, sem nos tocarem, nos tocam e nos protegem. O último gesto que recebi do Francisco foi o envio, através de uma familiar que com ele trabalhava, de um pin do Intima Fracção. Amanhã usá-lo-ei, não só para lembrá-lo mas para brindar aos grandes que nos seguram, à timidez das coroas.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasPaís sem vestígios Rua Cor-de-Rosa, Lisboa, 8 de Abril [dropcap]J[/dropcap]á vos tinha dito que as segundas-feiras se tornaram abomináveis? Perseguido pelos mastins das delongas, a semana começa com setas de todas as direcções possíveis mais as que se inventam no momento. E tudo concorre com este alinhavar dos dias, pingue-pingando para a última das horas. O primeiro acaba anunciando a semana que se desfaz, na mão em corrida de obstáculos. Prestes a chegar ao «Povo», para outra sessão de leituras em torno da colecção «Mão Dita», que acabou revelando-se saborosa e intensa, o telemóvel doía-me no bolso de tanto vibrar. Era, avisos de ser «taobua de tiro ao álvaro» em uma delicodoce cena do ódio, assinada por super-herói de saia justa se vangloria da mui nobre arte de espatifar supostas porcelanas, João Pedro George, sobrinho-bisneto do 1.º Visconde de Avelar e 1.º Conde de Avelar – segundo investigação na wikipédia que me deu um trabalhão. Ora o que diz sua excelência, em douto «ensaio», assim chamado para se livrar ao contraditório, dispensável para o suposto jornalismo que a «Sábado» pratica. «Sim sim tem aqui bela coisa que bela coisa tem aqui» (aspas, ver abaixo). O enorme «investigador» foi, com cansativa dificuldade e resiliência, vitimiza-se o putativo herói, a distintas plataformas abertas ao público, do Diário da República à dos contratos públicos online, para levantar um conjunto de contratos que fui fazendo ao longo de vinte anos com câmaras ou entidades supostamente ligadas aos socialistas e ao António [Mega Ferreira]. Exclui todas as outras, de distintos quadrantes políticos, da monarquia ao comunismo, da Presidência da República ao Jardim Botânico da Universidade do Porto, que pudessem afectar a lógica narrativa, que de uma história de adormecer se trata. Põe tudo no mesmo saco, claro, projectos de dimensão e alcance variáveis, envolvendo mais ou menos participantes, assessorias concretas ou colaborações. Mais: se foram propostas ou convites. Em nenhum momento, lhe interessa investigar se alguma coisa ficou por cumprir, se sombra de sombra ou mijo de gato tombou sobre a gestão de cada uma das ideias postas em movimento. Não, basta discorrer a demagogia dos valores e o uso das alarvidades do costume para o efeito: «empochar», «deitou a correr, dirigiu-se saltitante», etc. Aliás, o mais insidioso, que me obriga a defesa frustre perante ataque soez, é o sobrinho-bisneto não afirmar nada. Insinua, com a elegância do «elefante no nenúfar» (aspas, ver abaixo). As páginas da revista abrem para se tornar tribunal de série televisiva mediana, mas muito dramática, de apelo ao mais básico. Reparem que, ao contrário de qualquer prática deontológica, juiz e o advogado desapareceram, para entregar por completo o pôr-do-sol ao procurador-inquisidor que nem precisa apresentar prova alguma, apenas valores, maravedis, contado, dinheirinho de fazer salivar. Agora o projector cega-nos, recortando a figura do dono da justiça, a denotar torrencialmente para que o júri possa. O júri, quer dizer, os leitores. Julgar?, leia-se, condenar sem apelo nem agravo. O temível «investigador», sempre louvado pela coragem, não teve tomates para afirmar nada pelo qual pudesse ser responsabilizado. Só sugere, em nome da liberdade de putativa imprensa. As ligações à maçonaria, por exemplo, que botam sempre picante na grande caldeirada das teorias da conspiração, resultam de artigo do vizinho «Correio da Manhã», ia lá o visconde sujar as mãos… Até na crónica anterior (primeira de quatro), no momento mais abjecto, ao falar das ameaças que vencerá com enorme sacrifício, ainda que isso ponha em risco a criação das filhas, fá-lo entre aspas. Alguém lhe disse, não foi ele. Insisto, de investigação jornalística (ou outra) a prosa nada tem, só manhosice. Para não maçar, veja-se a asneira de dizer que António Lamas sucedeu a Mega Ferreira. Mas há mais mentiras, incorrecções, torções na verdade, como se fosse esse o objecto, sendo mero ensaio. Deu-lhe sopro de ideia e vai de a borrar no papel. Com a máxima a liberdade de enlamear, por ser essa a sua pulsão, que outra. Diz ele, com extrema correcção e maior indignação: «o mártir da Abysmo e da Arranha-Céus, que tem mister de recorrer a parcerias com o El Corte Inglês, a INCM, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, etc., para publicar quase todos os livros do seu catálogo, é a encarnação do ideal de editor independente, que compromete o seu conforto e segurança em nome da formação cultural do país.» Lá está, o «investigador» nem sabe contar. Nos mais de 140 títulos que publicámos, se 10% resultarem de parcerias é muito, sendo que fica por explicar as diferenças, que nem tudo se resume a dinheiro, nem todos os logótipos. Talvez seja a única afirmação-acusação, logo falsa, por azar. Custa, ao rapaz, que eu seja mesmo editor independente. Agasta-o não ter pedido licença. Prova o contrário as edições apoiadas? Será que aquelas por si organizadas e devidamente apoiadas, as fez sem remuneração? Nos puros, sabemo-lo de outros quintais, a superioridade está na limpeza com que deixaram de evacuar. Tanto faz. Nada aqui carece de prova, o supremo tribunal das redes sociais já me condenou pelo crime capital da minha vida estar indelével e cabalmente ligado ao António Mega Ferreira, com o apoio activo do Duarte Azinheira, e as costas quentes do Partido Socialista sem esquecer a Maçonaria. Tenho como pior a «acusação de mau carácter», na vez desta terrível de ser, à vez e conforme as circunstâncias, extremista de esquerda, anarquista, adepto da teologia da libertação ou do Opus Dei. Decidam-se, por amor de Deus! Não me sinto lá muito bem, de nenhum ponto de vista, muito menos financeiro, mas não conto desviar-me muito do caminho feito. Até pelo orgulho nos projectos que partilhei com o António, sobretudo, o de ser um dos editores do seu português límpido, ao serviço de pensamento desabrido e curioso, hedonista e libertário. Sim, libertário significa isso mesmo: construir as montanhas de onde se respira ou vislumbram horizontes. E, de súbito, no meu país e em meio que, supostamente, pensa, a ideia de ser do contra tornou-se valor máximo. Erguemos bandeiras sem ler, sem interpretar, só por ser contra, mesmo uma parede, sem razão nem sentido. Embora lá e de cabeça, que não serve só para pensar! Ao contrário dos santos adorados pela nova inquisição, que pagaram na pele o preço do dito e do feito, mais abjecta resulta esta manhosa impunidade. E em pasquim dirigido por alguém que, antanho, achei ser jornalista e ter noções de deontologia. Que a vergonha te seja leve, Eduardo Dâmaso! Não tenho filhos, mas tive pais e avôs e quem não se sente não é filho de boa gente. O debate pode continuar em outras sedes, com variegados modos de responsabilizar a leviandade da calúnia. Citando amigo querido, «a honra ainda é um valor e ainda há juízes em Berlim». A propósito. Admiro o facto de o vigilante ter colocado em perigo o bem-estar das filhas por tão sanitária sanha (ou saga, ainda não sei bem). Como sou, além de independente, um romântico, acredito que estas leituras maldosas e tristes do mundo não fornecem alegria a ninguém, nem ao próprio, dobrado sobre si, ligado ao saco de fel na vez de soro, nem aos restantes, pela queima de oxigénio. Fiquei, portanto, com alguma compaixão pelas crianças que não escolheram conviver com gente desta cujas janelas dão apenas para o nevoeiro. Mando beijo, com dedo de permeio. A vizinha, Lisboa, 9 de Abril Primeira intervenção do lado de lá da mesa, no «Inventário Possível», projéctil dos manos José [Romão] e Valério [Anjos], ainda por cima de Beckett e tendo por parceiro aceso de velório, o Nuno [Miguel Guedes], cuja quântica da vida reaproximou os nossos buracos negros. Antes do momento, de que já tenho saudades, uma delas o violoncelo rasgante da Sandra [Martins], o Tiago [Fezas Vital] pediu que posasse para projecto seu. Revejo-me na ferida e no gesto. Piegas, comovo-me com o divertimento que erguemos, apesar de não ter sido servido com whiskey. De propósito, traduzi poema que me atapetou depois estes dias. Vede, sem há coincidências. «om bom é um país/ onde o esquecimento onde pesa o esquecimento/ com suavidade nos mundos sem nome/ ei-la a cabeça que sustentamos a cabeça fica muda/ e sabemos que não não sabemos nada/ o canto das bocas mortas morre/ sobre as praias de gravilha fez a viagem/ nada há por que chorar// a minha solidão conheço-a vá conheço-a mal/ tenho tempo é o que me digo tenho tempo/ mas que tempo osso faminto o tempo do cão/ do céu empalidecendo sem parar meu quinhão de céu/ raio que sobe as cataratas tremelicando/ mícrones de anos tenebrosos// vocês querem que vá de A a B não posso/ não posso sair estou em um país sem vestígios/ sim sim tem aqui uma bela coisa que bela coisa tem aqui/ o que é que foi não me faça mais perguntas/ espiral poeira de instantes o que quer que seja dá no mesmo/ a calma o amor o ódio a calma a calma”.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasAbril [dropcap]T[/dropcap]odas a definições extremadas que o associam estão certas: as águas, a porta, o boi, o bode, o abrupto, a entrada, o ponto vernal do viril instante não nos sossega e também inquieta o mais estável de um ponto imóvel. Há um temor de que os ventos se alonguem levando cabeças, ideias, projectos, segredos, e erupções de génio passam intrépidas pelo corredor dos dias. Os telhados de vidro estilhaçam e somos nós nesta sempre imprevista arquitectura simiesca as Capelas imperfeitas. Chove-nos por cima. Tudo isto reunido, tem, claro está, o grande capricho dos elementos que se entendem para assim nos fustigar – intermitências da vida – que as da morte não parecem reunidas neste consenso. Andar tem segredos e não faltam situações de quebra de ritmo energético que toca nos mais frágeis, abalroando-os, sem vantagens aparentes, pois que a força quando actua nem sempre é direccionada. Vai andado até embater e depois desliza para os que estando de boa saúde também cambaleiam ao ritmo da Estação. Abril charneiro requer coragens olímpicas! As Páscoas tosquiam-se pois que vem aí calor- há-de vir – que em muitos momentos chega intenso para logo ir, e vem depois o frio que logo se vai, e todos, numa insanável desdita marcham à frente sem capacidade de retaliação. O que vem e o que vai é uma dança. É o instante sacrificial para nos sustermos de pé. Andar de pé, é ainda um doce mistério articular, e por isso a coluna parece doer a tantos sem sentido, também ele, muito aparente. O que dói é a projecção para o alto, a verticalidade, pudéssemos nós ter mais pés e nada destas dores aconteciam. O Boi Ápis veio do Egipto que na fuga Primaveril dos hebreus se juntou a eles e passou assim infiltrado entre as gentes que fugiam. Ora, depois de uma ausência prolongada do líder, eles mesmos reergueram a sua divindade e fizeram um bezerro. Apís-Abril. Estes infiltrados ainda vinham com bois mas, e dado que a pastorícia fazia parte integrante da vida dos fugitivos, o Carneiro estava assim mais apropriados à moldura do enfático mês. O carneiro morto com sangue pintado nas portas ajudou a salvar inocentes, mas matou outros tão inocentes quanto os primeiros, que não tendo a mancha do seu sangue, morreram no infanticídio. O sangue de Boi não opera milagres. E foi passando que a passagem se deu mesmo que fosse perto o destino dos que empreenderam tão rápida empreendimento. Abril, traz para mais perto o rebanho e deixa as gigantescas carnes bovinas em outras pastagens. Não são precisas metáforas vindouras. Abril, em todo o caso, presenteia-nos com os cornos dos ciclos começados. Avança pelo chifre! A noção do coelho é uma delonga exasperante dado que caçar não é muito Primaveril. Ainda não estão crescidas as crias e não se matam os pais, alusão ao ciclo de fertilidade que se dá quase por raspão e fontes de propagação desmesurada. Os ovos, só os de codorniz, que caíram no deserto em forma de Maná, se fosse de avestruz ou de galinha não eram coincidentes com a época em que tudo o que é pequeno se agiganta. As Páscoas tecem agora a argola dos seus princípios ritualísticos de Abril. Começar, passar, atravessar. Ficar parado agora é bem pior que nos pormos ao caminho mesmo que não se saiba para onde se vai. Vai-se! A experiência dita que o pontapé de saída é o mais difícil e também o melhor. Incrustado ficou no zodíaco como o mês chifrudo. Pois se é Carneiro, passa a Touro. O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos. A Festa da vida com o rubro escarlate do animal. Se não fosse assim, a volúpia não tinha alinhado com o melhor, no Inverno, por exemplo, não se fazem Revoluções, as do Outono são muito maduras, invocam princípios de civilizada análise social que não presenteia a alegria. Por isso, e na vasta tendência do nivelamento colectivo, convém não descurar esta zona de impacto que se dá nas entranhas mesmo do cadáver morto que ao ressuscitar lá para mais tarde funda ainda uma religião. O 25 de Abril é bem uma festa litúrgica mais associada ao Boi. Bela, florescente, ímpar na franqueza direcional, sensitiva do grupo que festeja o ímpeto inquebrantável de uma liberdade que molda a primeira consciência dos grupos humanos Convocar as nossas forças e ter à cintura um ramo de flores, saber que tudo passa rápido e que em muitos casos só passa uma vez, embora o que nos sele seja ímpar, e o que nos abençoa uma casualidade. Abril já quase a meio prestes a formar a saída… do Brexit? Ou de todos nós no local amargo em que nos fomos deixando estar? O que nos planteia a fúria temporal ? Mesmo assim e com tantas alterações há ainda componentes imutáveis quando o transbordo se faz por aqui. O cérebro do universo deu ao nosso essa capacidade de se repetir, e não vai ser pela desorbitada aceleração do impacto neuroidal que se muda em nosso tempo físico. Há muito por fazer, e ainda mais para recomeçar, mesmo às voltas, nada volta como já foi, é esse o sentido da construção.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras III 1. Bipolaridade [dropcap]A[/dropcap] ligação da “mania”, ou “estados maníacos” à “euforia”, ou “estados eufóricos” tem um longa história. O que hoje designamos por distúrbio bipolar, com graus de severidade na sua manifestação, é mais exactamente doença maníaco-depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente. Tratamos por tu a bipolaridade como o stress, a ansiedade e a depressão, da mesma forma que tratamos por tu constipações e gripes. Mas o que hoje em dia parece ser um dado com uma evidência difícil de negar — que a bipolaridade é uma doença que contem em si estados opostos, que a mania se pode manifestar na euforia e que a euforia é uma manifestação da mania — não foi sempre um dado adquirido. A oposição e aparente contraposição de um estado a outro, levou os antigos a pensar que se tratava de distúrbios da normalidade diferentes e, aparentemente, sem ligação um ao outro. Ou seja, podia haver surtos de mania e surtos de euforia num mesmo paciente, mas um estado era uma doença e outro estado era outra doença, como pode suceder que um indivíduo, ao longo da sua vida, tenha doenças e quadros clínicos doentios que não têm que ver uns com os outros. O diagnóstico verificava um estado alterado da consciência. Uma sintomatologia de mania era, contudo, diferente de uma sintomatologia da euforia. Assim, procurava-se uma etologia completamente diferente. Em conformidade, as terapias com vista à cura eram também diferentes. Sem dúvida que a história clínica de um individuo desde que nasceu até que morre permite traçar doenças que são configuráveis nessa pessoa. Pessoas diferentes poderão ter tendência para ter histórias clínicas completamente diferentes. Ainda assim, podemos ver uma tendência de uma pessoa para ser atreita a diferentes maleitas. Cada pessoa têm a sua compleição física, sexo, etnia, idade. Podemos traçar quadros comuns de histórias parecidas para indivíduos de uma mesma etnia, localidade, estações do ano, alimentação, hábitos, se saudáveis ou não, idade, sexo. A integração das doenças como alterações da saúde num mesmo indivíduo ou num grupo de indivíduos implica a sua exposição a ambientes idênticos, os mesmos ou diferentes, ou à própria variação de ambientes, mas também à manutenção de regimes dietéticos ou a sua alteração. Um indivíduo está exposto pela sua própria natureza a um ambiente, a um clima, a uma atmosfera, e os factores variam mas sempre em espaços horizontais que se afectam uns aos outros. O clima, a estação do ano, a idade, a geografia, os hábitos alimentares, o modo de vida, o contacto com outros, a prática de exercício desportivo, a profissão tudo combinado numa lógica difícil de perceber em detalhe, identifica o corpo humano como exposto aos elementos: clima, ar, águas, localidade, tempo de vida, modo de vida, sexo, etnia, etc. etc.. Ou seja, o corpo não é o que existe fechado pela epiderme mas o que existe no seu interior táctil e que pode ser segmentado e visto nos seus tecidos, órgãos, aparelhos, ossos, músculos tendões, etc., etc.. mas como organismo vivo está todo ele num todo a priori que é o corpo. Está por outro lado exposto ao que podem ser geografias antropológicas que afectam o corpo próprio. Cada um de nós tende ao confortável, ao saudável, à bondade do seu estado. Quer dizer: uma doença nunca é vista apenas como um sintoma da causa da sua erupção. Uma doença não tem apenas como cura a iniciação do sintoma mas também a supressão da doença. Há doenças que estão já connosco, mas que não se manifestaram, não têm sintomas. Convivemos com doenças que não sabemos que temos, que não foram ou não puderam ter sido diagnosticadas. Os novos métodos e processos de diagnóstico, os exames de rotina, baterias de análises a tudo e mais alguma coisa, ecografias, radiografias, permitem justamente um diagnóstico de sintomas que não vemos, implicam uma detecção de outro nível. Ora quando se percebe a variação do estado da normalidade em quadros clínicos mentais, a primeira aproximação é idêntica. Procura-se uma interpretação simples da relação entre um sintoma e uma doença e a respectiva terapia com vista à cura, procura-se um tratamento. A mania é a alteração de um estado da mente, da alma, do espírito, da psique, para usar uma palavra antiga. Ter a mania de que se é X, quando não se é X. As mais diversas formas de narcisimo, em que se pensa que se é o máximo, nem apenas os maiores, indivíduos que têm por si a mais alta consideração por si, as formas mais assolapadas de paixão, adição, entusiasmo, fascínio e delírio correspondem a alterações do estado de consciência tais que a normalidade corresponde a uma neutralização da sua erupção sintomática. Pensar só num conteúdo, estar “viciado” numa determinada prática, corresponde a uma forma de enamoramento e paixão por um determinado conteúdo, ao ponto de um indivíduo ser disfuncional. Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z? Porque se muda de manias? As mesmas perguntas podem ser feitas de forma independente, quando investigamos a depressão. Porque podemos estar deprimidos ou, então, tristes, nostálgicos e melancólicos? Por que razão pode não apetecer nada do que quer que seja? Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z? Por que razão se pode conviver e namorar a ideia do suicídio na juventude ou ao encarar becos sem saída? Qual é o sintoma da depressão? Qual é a causa e a razão de ser da depressão? Podemos estar deprimidos na raiz do nosso ser e não termos sintomas? Não podemos também ter sintomas de stress, ansiedade, angústia, tédio, melancolia, nostalgia, tristeza e não sermos doentes mentais? Qual a fronteira entre a psique e o soma? Qual a relação entre esta fronteira estrutural não apenas na vertical: de cima para baixo, mas também horizontal de dentro para fora? E na passividade ou exposição e vulnerabilidade em que o corpo todo dói ou sente prazer? Ser afectado por e estar doente mentalmente resulta da psique? E o corpo não pode afectar a nossa mente? E nós não podemos afectar os outros e ser afectados por eles? Não podemos transformar o mundo em que vivemos como o mundo em que vivemos nos transforma?
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasRapsódia sobre um Tema de Paganini em Lá menor, Op. 43 [dropcap]O[/dropcap] compositor, pianista e maestro russo Sergei Rachmaninoff foi um dos últimos grandes expoentes do período Romântico na música clássica europeia e é tido como um dos pianistas mais influentes do Século XX. Sergei Vasilievich Rachmaninoff nasceu em Semyonovo, perto de Novgorod, no noroeste da Rússia, no dia 1 de Abril de 1873, no seio de família nobre descendente de tártaros, que esteve a serviço dos czares russos desde o Século XVI. Os seus pais eram ambos pianistas amadores, e o jovem Rachmaninoff teve as suas primeiras lições de piano com a sua mãe, mas os seus pais não notaram nenhum talento extraordinário no jovem. Devido a problemas financeiros, a família mudou-se para São Petersburgo, onde Rachmaninoff estudou no Conservatório da cidade antes de ir para Moscovo, para estudar piano com Nikolai Zverev e Alexander Siloti (que era seu primo e ex-aluno de Liszt). Também estudou harmonia com Anton Arensky, e contraponto com Sergei Taneyev. Deve-se observar que, no início, Rachmaninov era considerado preguiçoso, faltando muito às aulas para ir patinar. Foi o rigoroso regime da casa de Zverev (que hospedou vários músicos jovens, como Scriabin) que o disciplinou. Ainda jovem, Rachmaninoff começou a mostrar grande habilidade nas suas composições. Enquanto estudante, escreveu uma ópera em um acto, Aleko (que lhe rendeu uma medalha de ouro em composição), o seu primeiro concerto para piano, um conjunto de peças para piano, Morceaux de Fantaisie (Op. 3, 1892), compostas aos 19 anos de idade, que inclui o popular e famoso Prelúdio em Dó Sustenido menor. A sua reputação como compositor, por outro lado, tem gerado controvérsia desde a sua morte. A edição de 1954 do Grove Dictionary of Music and Musicians desprezou notoriamente a sua música como “monótona em textura… consistindo principalmente de melodias artificiais e feias” e previu o seu sucesso como “não duradouro”. No entanto, os trabalhos de Rachmaninoff não apenas se tornaram parte do repertório standard, mas também a sua popularidade, tanto entre músicos quanto entre ouvintes, tem vindo a crescer desde a segunda metade do Século XX, com algumas de suas sinfonias e trabalhos orquestrais, canções e música coral sendo reconhecidas como obras-primas ao lado dos trabalhos para piano, mais populares. As suas composições incluem, entre várias outras: quatro concertos para piano; a famosa Rapsódia sobre um tema de Paganini; três sinfonias; duas sonatas para piano; três óperas; uma sinfonia coral (The Bells, baseada no poema de Edgar Allan Poe); vinte e quatro prelúdios; dezassete études; muitas canções, sendo as mais famosas a V molchanyi nochi taynoi (No Silêncio da Noite), Lilacs e Vocalise; e o último dos seus trabalhos, as Danças Sinfónicas. A maioria das suas peças é carregada de melancolia, num estilo romântico tardio lembrando Tchaikovsky, embora com fortes influências de Chopin e Liszt. Inspirações posteriores incluem a música de Balakirev, Mussorgsky, Medtner (que considerou o maior compositor contemporâneo) e Henselt. Em “conversas” com o maestro e escritor americano Robert Craft, depois transformadas em livro, o compositor também russo Igor Stravinsky dá um depoimento um tanto anedótico e no mínimo curioso sobre Rachmaninoff: “Lembro-me das primeiras composições de Rachmaninoff. Eram ‘aguarelas’, canções e peças para piano influenciadas por Tchaikovsky. Depois, aos vinte e quatro anos, voltou-se para a ‘pintura a óleo’, e tornou-se, na verdade, um compositor velho. Não se pense, porém, que eu vá desprezá-lo por isso. Ele era, como já disse, um homem apavorante e, além do mais, há muitos outros para serem desprezados antes dele. […] E ele era o único pianista que jamais encontrei que não fazia caretas. Isto já é muito”. Este depoimento, dado por um compositor envolvido nas mudanças revolucionárias por que passa a música no século XX, traduz bem a figura de Rachmaninov no contexto musical contemporâneo: aos artistas criadores e aos musicólogos, na sua grande maioria, a sua obra não causa nem entusiasmo nem desprezo. Por outro lado, aos intérpretes e ao público em geral, ela soa atraente e desafiadora… Por vezes, mesmo comovente. É certo que a linguagem de Rachmaninoff parece ignorar os caminhos abertos por Debussy desde o final do século XIX e permanece ligada às formas tradicionais e às técnicas de composição herdadas do Romantismo. No entanto, ele foi, antes de tudo, um pianista. A parcela mais importante de sua obra, dedicada ao piano, atesta-o. Essa ligação visceral com o seu instrumento faz com que adopte uma estética ultrarromântica, que leva a graus exponenciais o tratamento pianístico, transcendendo (e às vezes superando, à sua maneira), inclusive, as grandes investidas de Liszt. À parte as pequenas peças para piano, nota-se esse “pianismo ultrarromântico” sobretudo em seus concertos para piano e na célebre Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, Op. 43 A Rapsódia Sobre um Tema de Paganini em Lá menor, Op. 43, é umas das últimas composições de Rachmaninoff. Considerada de dificílima execução, a obra foi escrita para piano e orquestra, lembrando um concerto para piano, na Villa Senar, a casa de Rachmaninoff na Suíça, de 3 de Julho a 18 de Agosto de 1934, de acordo com uma anotação na partitura. O próprio Rachmaninoff, um intérprete notável dos próprios trabalhos, tocou a obra na sua estreia na Lyric Opera House em Baltimore, no estado de Maryland, nos EUA, no dia 7 de Novembro de 1934 com a Orquestra de Filadélfia, regida pelo maestro Leopold Stokowski. A Rapsódia é um conjunto de 24 variações sobre o vigésimo quarto capricho para violino solo de Niccolò Paganini, que também serviu de inspiração para outros compositores. Embora se intitule rapsódia, a obra é na verdade construída segundo o princípio de tema e variações. Rachmaninoff encadeia vinte e quatro variações sobre o Capricho para Violino solo No 24 de Niccolò Paganini. Antes de Rachmaninoff, Johannes Brahms nas suas Variações sobre um tema de Paganini, e Franz Liszt nos seus Grandes Estudos segundo Paganini haviam já explorado esse tema. Embora a obra seja executada duma só vez, podemos dividi-la em três secções que correspondem vagamente aos três andamentos de um concerto. O que podemos considerar o primeiro andamento termina com a variação 11 e as variações 12 e 18 abrem e fecham o segundo (andamento lento), e as últimas variações compõem um finale. Ao contrário das convenções, Rachmaninoff teve a ideia de apresentar a primeira variação antes do tema. A Rapsódia é uma das sete peças de Rachmaninoff que cita a melodia do hino litúrgico Dies iræ, que alguns sugerem ser uma referência à lenda segundo a qual Paganini teria vendido a sua alma ao diabo em troca do seu virtuosismo prodigioso e o amor de uma mulher. Sugestão de audição da obra: • Sequeira Costa, piano •Royal Philharmonic Orchestra, Christopher Seaman – RPO Records, 1991
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO rebelde Li Zicheng [dropcap]N[/dropcap]os artigos anteriores, a personagem de Li Zicheng foi superficialmente tratada, tal como os acontecimentos em que participou até chegar à capital da Dinastia Ming. Pesquisando inúmeras Histórias da China, encontramos pouca informação e sem profundidade. Por um acaso apareceu-nos a História de Macau de Gonçalo Mesquitela, a permitir-nos encadear os factos e ter um entendimento razoável desse período. No entanto, alguns episódios expostos não têm comprovação, pertencendo ao que se dizia ter ocorrido. Procuramos, quanto possível, retirar essa parte lendária e juntar com fontes chinesas, sobretudo Bai Shouyi, para tentar descrever apenas o que parece razoável ter acontecido. No primeiro dia da primeira Lua de 1644, Li Zicheng, antes de avançar com um poderoso exército de centenas de milhares de homens para Beijing, criou o Reino de Dashun em Xijing, onde se vestiu com trajes imperiais, escolheu a imperatriz, nomeou ministros e instituiu a sua corte à maneira da Ming. Quando a notícia dessa proclamação chegou a Beijing, nesse dia ocorreu um terramoto arrasador em Fengyang, terra natal do fundador da dinastia Ming, presságio a anunciar o fim da dinastia. Destino traçado desde 1641, quando numa refrega Li perdera um olho, dando-lhe a convicção de ser ele o escolhido como dizia a previsão de astrólogos de Shaanxi: “a dinastia Ming cairia e o Império seria conquistado por um homem com um olho só”, segundo Gonçalo Mesquitela. Li Zicheng nascera a 22 de Setembro de 1606 em Mizhi, Shaanxi, tendo desde muito cedo ficado órfão e por isso, começou por trabalhar num templo e aos 21 anos estava empregado nos serviços de correio como ferreiro num entreposto de muda de cavalos. Devido à reorganização desses serviços foi em 1628 despedido, voltando à terra natal. Aí encontrou a mulher amancebada com outro homem e sem dinheiro para pagar a dívida que contraíra, matou o seu credor e a esposa. Pela lei seria condenado à morte e por isso fugiu para a província de Gansu, onde se alistou no exército ming em Fevereiro de 1629. Como os manchus pressionavam a fronteira do Nordeste, as tropas ming foram chamadas para irem proteger os arredores da capital. Por falta de abastecimento e de pagamento a revolta contra o governo surgiu no seu regimento e nos finais desse ano mataram o oficial militar WangGuo (王国). A partir daí juntou-se a um dos muitos grupos rebeldes de camponeses que desde 1627 se revoltavam contra as altas rendas e taxas que o governo ming lhes obrigava a pagar, apesar da terra, numa severa seca, já nada produzir. Eram milhares de camponeses em fúria, desesperados pela sua sobrevivência, a lutar de uma forma desorganizada, sem unidade alguma. Foi então que Li Zicheng se revelou como um chefe nato, onde nas áreas por si controladas roubava aos ricos para dar aos pobres, abria os celeiros e distribuía alimentos a quem precisava e incentivava os camponeses a recuperarem as terras ocupadas ilegalmente. Em 1631, o governo ming despachou tropas para em Shaanxi combater esses rebeldes e estes foram para Shanxi, juntando-se Li Zicheng em 1633 ao grupo do seu tio Gao Yingxiang, onde também se encontrava Zhang Xianzhong. Para aí o governo ming enviou o capitão Cao a fim de terminar com a insurreição. Derrotados, parte do grupo onde se encontravam os chefes fugiu para Henan. Quando em 1634 o capitão Cao foi mandado para defender Datong, pois os manchu da Dinastia DaJin atacavam pela segunda vez o território ming, os rebeldes puderam agrupar-se. Em Junho, os ming enviaram um outro militar, o capitão Chen para comandar as cinco províncias do Oeste e exterminar os rebeldes. Fazendo um ataque simultâneo em todas as frentes, conseguiu em Shaanxi cercar o já muito enfraquecido grupo e este, encurralado sem possibilidade de escapar, pretendeu aceitar a derrota e render-se. Os chefes para se libertarem fizeram um acordo, prometendo retirar-se para o Norte, mas o capitão executou 36 prisioneiros. Como vingança, mataram alguns funcionários locais e fugiram depois para as montanhas. Profanação dos túmulos Em 1635, na cidade de Xingyang, província de Henan, os chefes dos trinta grupos armados rebeldes que restavam, reuniram-se e planearam uma estratégia para coordenar a defesa. Dividiam-se em quatro direcções e a cada um foi distribuída uma região de intervenção, cabendo o Leste ao grupo de Li, Gao e Zhang. Após a reunião, estes conseguiram ocupar Fengyang (actual distrito de Huai’an em Jiangsu, fronteira com Anhui) onde no Lago Hongzhe se encontravam as sepulturas dos ancestrais da família Zhu. Aí saquearam o túmulo do bisavô do primeiro imperador da Dinastia Ming. Consternado com a profanação, a reacção do Imperador Chongzhen (1628-44), neto do Imperador Wanli, foi mandar “celebrar cerimónias fúnebres para o perdão dos seus ancestrais” e ordenar a prisão dos “oficiais com comandos e executar o eunuco responsável pelos túmulos imperiais.” Zhang Xianzhong seguiu depois para Leste e em Anhui capturou algumas cidades, enquanto Gao Yingxiang e Li Zhicheng foram para o Sul de Shaanxi onde derrotaram por várias vezes as forças ming, enviadas para os combater. Em 1636, Gao foi capturado numa emboscada e executado, passando as suas forças a ficar submissas a Li, que lhe tomou o título de Rei Dashing. Lutava em Shaanxi e Sichuan, quando em Zitong foi derrotado no ano de 1638, conseguindo escapar com 18 dos seus fiéis seguidores, ficando o resto do grupo disperso. Também Zhang fora derrotado e rendera-se ao governador de Hubei. No Verão de 1639, Li e Zhang juntos voltaram à acção, promovendo uma nova revolta, até que em 1640 decidiram delimitar as áreas de influência para cada um. Zhang Xianzhong fixou-se em Chengdu, onde em 1641 as forças ming se concentraram para o atacar, aproveitando Li Zicheng tal circunstância para atacar Luoyang, onde matou o Príncipe de Fu, Zhu Changxun e do palácio levou todo o cereal, ouro e prata, que distribuiu à esfomeada população, ganhando assim um entusiástico suporte para o seu bando, que aumentava em número e agressividade. Ainda nesse ano, em Kaifeng Li perdeu o olho esquerdo, levando-o a acreditar no destino de vir a ocupar o trono da China. Em 1642 capturou Xiangyang onde se declarou Rei de Xinshun e nomeou oficiais civis e militares. No ano seguinte seguiu para Xian e conquistada, mudou-lhe o nome para Xijing. Devido à fraca oposição das tropas provinciais, dominava já os lugares situados a caminho de Pequim, onde nessa área de Shaanxi, Hubei, Shanxi e Henan, criou Da Shun, Região da Grande Obediência. A 8 de Fevereiro de 1644, dia do Ano Novo, Li Zicheng foi à sua terra natal e vestindo-se com o traje de imperador prometeu que, quando ocupasse o trono da China, honraria os seus ancestrais com títulos imperiais até à sétima geração. Nesse dia em Beijing ocorreu uma terrível tempestade de areia. Um mês depois estava às portas da capital da Dinastia Ming.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasPalradores [dropcap]H[/dropcap]á muito tempo, quer dizer há mais de um mês, o foco assestou num juiz que ornamentava os acórdãos com considerandos excêntricos a uma interpretação canónica da lei, pois servia-se de conceitos juridicamente inválidos e espúrios. Imperdoável foi que estas torções se inclinavam para o lado contrário ao do senso comum, atenuando penas que este queria ver agravadas. Como não podia deixar de ser, o banzé social entretanto alevantado alarmou o instinto gregário e corporativo da magistratura e dela vieram as poucas vozes que intercederam pelo Meritíssimo. Evocaram como garante da sua independência e soberania a inalienável subjectividade de um juiz e, evitando tocar no dilema filosófico da inclinação propriamente dita – se fosse para o lado “certo” talvez não tivesse havido clamor público –, mais abonaram a justeza técnica e a boa conformidade do acórdão. Foi nesta linha que um advogado conterrâneo do juiz, e tão prestigiado quanto ele, acorreu em sua defesa numa coluna de jornal. Dado que a questão já submergiu nas águas de bacalhau do costume e deixou de andar nas bocas do mundo ninguém mais se importando com ela, é a idiossincrasia e a exemplaridade deste textinho e não o assunto arrefecido que vale a pena indagar. Transparece na prosa do causídico uma euforia da linguagem, desembainhada como quem exclama num duelo “vais ver como elas te mordem!”. Claro que no seu douto dizer a coisa foi expendida sob a forma de uma preocupação pelos “conteúdos putativamente informativos ou de opinião pouco esclarecidos.” É que à boa maneira da advocacia quanto mais prosaicos são os sentimentos, mais experto é o léxico e mais especiosos são os enunciados. Por conseguinte o jargão ressuma por todos os poros, pretendendo-se ostensivamente impenetrável a leigos. Rebolam-lhe na língua frases cabalísticas: “em sede de aplicação de pena acessória, a qual poderia ter sido imposta no âmbito da pena principal e, consequentemente, com a suspensão da execução da pena” ou “avaliar se o quantum das penas aplicadas fora acertadamente valorado.” Explora a potencialidade de um sintagma verbal pela sua repetição exaustiva: “seria correspetivo da pena acessória de proibição de contactos” ou “desaplicar a fiscalização da pena acessória de proibição de contactos.” Note-se também a tecnicalidade de certos vocábulos pitorescos como “correspetivo” e “desaplicar” – isto é coisa séria, pessoal. Lá para o fim, depois de sovado o português e o entendimento do leitor, o jogo é todo posto na mesa. Confessa ele: “O ‘juridiquês’ não ‘vende’, é encriptado, prolixo e dificulta o clickbait. Mas em honra da verdade há que tê-lo em devida conta para que possamos apreciar de igual forma o que é igual e de forma diferente o que é diferente.” No fundo era isto que ele tinha para dizer – ou falas assim tão bem como eu ou mete a viola no saco. E é esta declaração que torna o artigo sintomático, além de transparente e pueril. Há uma forma de palrar em público que é tipicamente portuguesa. Quando os meios de comunicação convidam um especialista para esclarecer o leitor ou o espectador acerca de determinada matéria, quem nos salta ao caminho acaba por ser um “xpexialista.” Ou seja, um fabiano sobretudo empenhado em demonstrar a sua superioridade sobre nós, o populacho, exibindo uma pretensa perícia no linguajar do ofício. A rapaziada da bola é particularmente flagrante, com as “transições ofensivas”, o “posicionamento no espaço entre linhas” ou a “qualidade de jogo.” Mas também não há médico que sendo entrevistado não prescinda de mencionar a “patologia” em vez da corriqueira “doença” ou “paciente” em vez do pobre “doente.” Eles, na verdade, não se dirigem a nós mas aos pares profissionais, falam para que eles os oiçam e lhes confiram a credibilidade que junto deles querem afirmar. Temem que se forem desafectados os possam julgar superficiais ou, pior, simplórios. Tudo decorre, por conseguinte, num circuito comunicacional fechado e viciado. Poucas coisas revelam mais o nosso atraso intelectual do que estes complexos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda o turismo [dropcap]A[/dropcap]ndar por Lisboa nestes dias é assistir a aparentemente imparável depredação de tudo quanto Lisboa tinha de típico, para utilizar uma palavra cara aos marketeers turísticos, em prol da sua destituição por lojas de smoothies, espaços entre o rustico e o industrial que vendem cafés caros e saladas de abacate com granola entre o intragável e o comer para sobreviver e todo o tipo de falcatruas exóticas que se esforçam para adoptar com urgência a última moda do rebanho da hipsteraliada em que cada um dos seus membros vive na ilusão de não pertencer a rebanho algum – ou, pelo menos, nega-lo tão veementemente como um vegan o consumo de carne. Assim nascem as padarias típicas alsacianas que já nem na Alsácia existem, as lojas de patos de borracha amarelos cujo propósito se situará sempre além das fronteiras do que pode ser, para mim, uma «inteligibilidade da volição do consumidor» e todos o tipo de concept stores que transformam Lisboa numa espécie de site de pornografia gourmet no qual a minúcia da subcategorização é levado ao paroxismo. A par disso, o miradouro do Adamastor continua vedado, existe algures «plano» para que o vulgo possa novamente usufruir dele – antevejo as cláusulas draconianas do «plano», não vá o vulgo decidir comportar-se de forma minimamente natural perante os clientes do Hotel Verride que entretanto transformaram o largo do Adamastor num estacionamento privativo para automóveis de vidros fumados custando o equivalente a um T1 nas Olaias. Ninguém sabe – publicamente – o que será do miradouro mas não é difícil desconfiar de que a clientela do Hotel terá sempre direito de preferência sobre o uso a dar ao espaço – de preferência continuaria fechado, já que dos quartos do hotel se tem uma vista pelo menos equivalente do Tejo e da ponte 25 de Abril, símbolo cada vez mais deprimente do bordel financeiro que sob a máscara do dinheiro e do progresso tomou conta de Lisboa, dos seus habitantes e ruas. Culpados havê-lo-ás em abundância, da esquerda à direita; mas o maior deles partilha sem dúvida da cupidez associada ao deslumbramento de se descobrir que das ruinas se podia fazer ouro. A tacanhez do pensamento político português – perdoe-se o oximoro – é precisamente a de querer transformar tudo num produto passível de ser agitado como uma bandeirola destinada a servir de isco para os impacientes euros nas carteiras dos turistas. Não lhes passa pela cabeça, à classe política em geral, que a inutilidade turística de determinadas lojas e espaços é precisamente o factor que faz a diferença entre um turista se sentir fascinado e defraudado, entre se sentir num sítio que continua a ter uma parte que não lhe é dedicada, uma parte misteriosa, a espaços incompreensível, mas que atesta um modo de vida corrente ou quase desaparecido, um modo precioso precisamente por ser inútil do ponto de vista turístico e resistir à imposição de um exotismo artificial. A classe política continua a achar que participou decisivamente na escolha de Lisboa como destino turístico internacional, quando na verdade apenas colheu os frutos de um quase completo desconhecimento de Portugal enquanto território de múltiplas possibilidades e de uma tempestade perfeita do ponto de vista do turismo mundial. Mas como qualquer tacanho que se preze, o político acha-se na obrigação de seguir e impor o mantra da produtividade, eliminando todo e qualquer espaço que não insista ou se revele incapaz de produzir a maior quantidade de lucro (e de impostos) possível. Lisboa transforma-se paulatinamente num parque de diversões votado a ser cada vez menos habitado pelos cada vez menos lisboetas e segue alegremente o caminho de Albufeira e de boa parte do Algarve: tudo quanto existe é pensado em função daqueles que se despreza cupidamente. Um dia existiremos para o turista, em modo de função permanente. Se a isso se pode chamar existir.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPara lá do que aqui há [dropcap]O[/dropcap] tempo de um acontecimento não coincide com a duração que demora a dar-se. Acontecer pode não fazer notar-se. Acontecer pode existir depois de ter ocorrido. Acontecer pode ser antecipado. O acontecimento na realidade da sua ocorrência tem limites temporais. Quando começa, enquanto dura, quando termina. Pode ser medido com o relógio. Mas antes de se dar início a um acontecimento: uma aula, um treino, um espectáculo, um encontro, um passeio, uma viagem, um fim de semana, umas férias, ele está já a acontecer. Quando termina uma aula, um treino, um espectáculo, um encontro, um passeio, uma viagem, um fim de semana, umas férias, há uma persistência nas nossas vidas, não, apenas, na memória. De manhã à noite, da noite para o dia, do princípio para o fim, há uma data de acontecimentos com as mais diversas fases, durações, formas de inscrição nas nossas vidas, impressões que causam em nós, estados em que nos deixam. Pode também acontecer que não cheguem à superfície das nossas consciências, é como se não acontecessem, é como se não tivessem sido, é como se não fossem. Um acontecimento é uma sucessão de fases, um sucesso, no sentido histórico do termo. Podemos assim perceber que há uma sucessão de acontecimentos que coexistem entre si numa sequência persistente. A permanência de sucessões coexistentes define o mundo e a nossa vida, o mundo exterior e a vida interior, mundo e vida são também coincidentes ou podem ser coincidentes, nas linhas de sucessão que, coexistindo, podem ser sincronizadas ou terem as suas vidas próprias. Acontece lembrar-me de algo ou de alguém, de uma circunstância, situação ou conjuntura. O conteúdo lembrado ocorre-me na mente, mas deixa-me num determinado estado conforme a impressão que causa em mim. Acontece no mundo, hoje, que a meteorologia dá conta de alterações de temperatura. É no mundo, aqui, hoje, que essas alterações ocorrem e não apenas na minha mente, embora as condições climatéricas possam contrariar-me ou não. O modo como eu me encontro pode neutralizar a meteorologia ou pode amplificá-la. A meteorologia pode entrar por mim adentro ou, antes, pode absorver-me, como se fosse eu líquido, e tingir-me, colorir-me. Até, desbotar-me. Se for verdade que temos dezenas de milhares de pensamentos, franjas de tecido temporal com conteúdos distribuídos por si, pensamentos que são sentimentos, representações, vontades, aspirações, desejos, também há coisas que ocorrem no mundo. O que ocorre na realidade transita para um reino da alma ou para o interior da mente. Assim o que me ocorre, aquilo para que me deu e dá, as vontades e desejos que vejo nascer em mim, são transportes para zonas do mundo que existem e não existem, para pessoas que estão vivas e outras mortas, formas de acesso que se projectam sobre o mundo, põe-no sob foco, sublinham a sua importância, localizam-se pelo GPS existencial, no sítio próprio onde terão lugar. É onde vamos para nos encontramos com alguém, para executar tarefas, desempenhar funções, exercer cargos. No princípio do dia o que está para acontecer é tão mental como o que aconteceu no fim do dia. No princípio do dia o que está para acontecer são possibilidades. As possibilidades realizar-se-ão. Outras, não. No fim do dia algumas coisas que aconteceram serão lembradas outras, não. Mas no princípio do dia está a possiblidade de não chegarmos ao fim o dia como todas as possibilidades que poderão acontecer estão ainda “à experiência”, são provisórias, poderão não acontecer, são isso mesmo: possibilidades, à condição. No fim do dia o que quer que tenha sido pensado, viagens feitas ao passado, realmente acontecido ou só em ficção, todas as nossas fantasias, todas as cenas da nossa cabeça, fantasias, estados que se cristalizam e outros que se desfazem, vibrações disposicionais, do mesmo modo, aulas dadas e recebidas, treinos feitos, espectáculos a que assistimos, conversas tidas, enfim: coisas efectivamente feitas, tudo passa para um reino de realidade improvável. Não passa apenas para a memória ou para o cérebro ou para o interior do cérebro. Qualquer conteúdo lembrado está tão fora de mim e eu tão no seu interior como a ponte 25 de Abril que eu não percepciono agora, mas vejo erguer-se como um dinossauro à minha frente por artes mágicas da mente ou do espírito. Eu estou a deslocar-me a sul ou para norte ou, então, corro em direcção a Alcântara ou Belém, passando por baixo dela. A ponte e as margens do rio, o rio, da nascente à foz, tudo está fora no espaço e dentro do espírito? Todos os acontecimentos interiores, psicológicos, e exteriores, no mundo, tudo está numa extensão temporal que se distende, que me serve de plano de fundo, de onde tudo acha origem e para onde tudo regressa. Os limites: princípio, meio e fim, são abstrações no meu princípio antes de eu ter nascido, no meu durante num agora distendido. Depois do meu fim, subsistirão de algum modo? A supressão de uma vida cria impacto de algum modo, como se houvesse uma estranha transcendência da vida suprimida na vida dos outros e nos vestígios que ainda persistem.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDa tristeza 08/04/2018 [dropcap]T[/dropcap]inha passado a tarde com o poeta Luís Carlos Patraquim e pelas dezoito ele sugeriu, Vamos visitar o Craveirinha, que está de passagem por Lisboa. Apanhámos um táxi e quinze minutos depois uma figura plúmbea abriu a porta. En-trámos numa casa soturna, velada por pesados reposteiros e por cores escuras nos mó-veis, maciços, e nos sofás. E lá estava o poeta, com o semblante mais infeliz que me lembro de ter visto na vida. O Patraca apresentou-nos mas, face ao viático da tristeza, como reagir? O Patrarca tentou uma e outra vez levar o vate a sorrir, mas, atrás do olhar enfermiço, via-se: nevava. Saí dessa casa com a impressão de ter visitado um castelo desmoronado; alguém que sobrevivera a uma infâmia para agora, a custo, mungir a dor de viver. Não me admirou que pouco tempo depois morresse; aquela presença tersa, fragilizada, subtraída à ilusão de qualquer palavra esfarelava-se à nossa frente. Recebera o Prémio Camões há pouco tempo mas pelos vistos fora tarde. Creio que o José Craveirinho nunca se livrou do sentimento que o levara a escrever As Saborosas Tangerinas de Inhambane, um poema de revolta e de profunda decepção face ao rumo do país. Leio agora que cerca de um milhão de crianças moçambicanas estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil, de acordo com os resultados do estudo realizado pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança Social (MITESS), em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane-UEM. Um milhão. E essa pesquisa fornece indicações específicas sobre as piores formas desse trabalho infantil: a mineração do tipo garimpo, a prostituição, o tráfico de drogas e o transporte de carga pesada. Lembro-me de numa visita ao Gabinete Contra a Violência Doméstica, na Beira, ter ficado assarapantado porque até 10 de Março de 2010 – ano em que fiz a investigação -, haviam sido registadas na polícia, só nesses dois meses e meio, 110 crianças abandonadas. E do meu horror ao ter multiplicado isso pelo número das cidades existentes em Moçambique. Passo a página e leio que Moçambique perdeu, nos últimos 15 anos, cerca de quatro milhões de hectares de floresta, devido à exploração desordenada e outras acções humanas. As províncias de Nampula, Manica e Sofala são as regiões do país que apresentam o maior desmatamento. Este cenário, dizem os especialistas, ganha contornos preocupantes, agravados pela fraca reposição destes recursos; revela o especialista Credêncio Mahunze: “A província de Nampula, nos últimos 15 anos, perdeu mais de metade da sua área florestal, e se o ritmo continuar, nos próximos 10 anos, podemos não ter florestas nos próximos dez anos”, diz. O que terá efeitos no desencadeamento de um processo de desertificação e, evidentemente, numa alteração do clima local. Moçambique, leio, perde igualmente elevadas somas com a exploração ilegal da madeira, cujo mercado principal é a China: pelo menos 540 milhões de dólares da venda de madeira não foram para os cofres do estado, entre 2003 e 2013. Bom, Celso Correia, ministro da Terra e Ambiente, diz que o governo aposta na reforma do sector de florestas e em novos modelos de fiscalização; o mesmo governo que tem fechado os olhos ao saque. Não creio que estas medidas venham a tempo de abafar as lágrimas não derramadas pela sombra do poeta, irmãs da tristeza que sentia. 09/04/2018 Tive um sonho, uma variação de Fausto; desta vez passa-se em África. Matusalém – assim alcunhado por ser eterno, mais o seu partido, na chefia do governo – está deprimido: não vê mais nada a que deitar-se a mão. As riquezas florestais foram delapidadas, vendida a madeira ao desbarato, o que degenerou numa desertificação crescente. Grande parte da mineração continua sem controle, explorada por “camaradas” que desviam para contas no estrangeiros os lucros em vez de os aplicarem na construção de infra-estruturas. Também a agricultura foi desmantelada – num país de terras férteis e bastante irrigado, nem um tomate agora se produz. As poucas fábricas de têxteis foram cilindradas pelas “calamidades” – o negócio que resgata a misericórdia dos países ricos, colocando nas ruas fardos de roupa a preços da chuva. As praias foram vendidas aos lodges estrangeiros. Os elefantes e rinocerontes contam-se agora pelos dedos, pois todos ganharam com a caça clandestina. A riqueza piscícola encontra-se depauperada, depois de décadas de varredura dos leitos do mar por frotas soviéticas e depois chinesas, que nada respeitavam nem tinham defeso. A corrupção alargou-se aos níveis mais capilares. Matusalém está deprimido: para que raio estar no poder se daí já não vêm vantagens? Só abafar os escândalos, não lhe parece motivador. Resolve endividar o país, nas costas de um parlamento que nunca respeitou. Em biliões. E então aconteceu algo inesperado. Um ciclone de inolvidáveis proporções arrasa a segunda maior cidade do país e alaga um território imenso, provocando uma tragédia nunca vista. Matusalém fica desesperado. Como mostrar uma competência técnica nunca antes exibida para levantar o país da calamidade, sem vislumbre de algo que tenha sobrado e que possa ser depredado? E então, num rasgo, sugere-lhe o primeiro-ministro. O Presidente convoque o Diabo, ele atenderá. Podemos vender a sua alma para salvar o país. Parece um mau negócio mas é o melhor. Seremos perdoados, tudo será esquecido, e morreremos ricos e benfazejos. E o Presidente será recordado como o grande salvador. Melhor plano não havia. Recrutaram-se os melhores espíritas do país e, sob tremendos rituais, convocou-se a Besta. Uma, duas, três vezes, mas o Diabo não reagia. Convocou-se o diabo uma quarta vez, com sacrifício do último rinoceronte, duas girafas e três pacaças. E aparece um furibundo Balzebu no seu lugar, que atira, dirigindo-se a Matusalém: «Não sei para quê este disparate de te convocares a ti próprio, mas estás a pôr alguns vulcões submarinos furiosos! Cuidado com o que vem aí!”. Foi aí que se soube que o Diabo sofria de Alzheimer.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs bugs da maré ansiosa [dropcap]E[/dropcap]m meados dos anos sessenta do século XX, uma menina de mini-saia contida e de cabelos em ninho de cegonha anunciava, no branco e preto da TV, enceradoras, frigoríficos de cromado brilhante e móveis de mogno capazes de albergar uma telefonia e um gira-discos. Tudo isto atrás da montra que reflectia as muitas cores dos reclames luminosos que infelizmente desapareceram das nossas cidades em nome das higienes e das composturas contemporâneas (lembro-me de anúncios famosos que se moviam ao jeito de pirilampos gigantes: o Brandy Constantino, a Oliva, o Fósforo Ferrero, o Ovomaltine, o Ómega e sobretudo a capa e espada do bravo Porto Sandeman). Essa menina congeminava desejos reprimidos e projectava uma espécie de direito natural à preguiça insossa e insonsa (e o que irradiasse do sexo não passava de nenúfares e de trinados da eurovisão). Todos esses electrodomésticos de luxo se cruzaram, ao longo de décadas, com revoluções de brado e com outras (paradoxalmente) pacíficas. O tempo passou e alguns desses electrodomésticos desapareceram ou abandonaram o epíteto do luxo e massificaram-se. Hoje em dia, já pouca gente sabe o que é uma telefonia, um transistor, uma enceraroda, a cabeça de um gira-discos, a fita acastanhada do gravador e muito menos quem foi o homem de capa e espada do Porto Sandeman (que se erguia das majestosas armações de metal que, de noite, sobre os telhados das cidades, contavam histórias de luz ao desalento sigiloso de que Ruy Belo tão bem deu conta nos seus poemas). A democratização dos utilitários tecnológicos com funcionalidades e formatos novos (todo o caudal digital de aparelhamentos do dia-a-dia) tornou-se no dado mais óbvio da nossa vida. A menina de mini-saia contida e com cabelos em ninho de cegonha dos sixties respira hoje dentro de nós, como se a instantaneidade da tecnologia se confundisse, cada vez mais, com um pasmo liofilizado feito da magia ‘on’-‘off’. Os antigos reclames luminosos caíram para dentro do espectáculo individual dos telemóveis e o desalento foi rebaptizado a pensar em novas patologias de tipo compulsivo. Comparar épocas tão distintas – e afinal separadas por apenas meio século – é um ofício parecido com o do carpinteiro José a tentar explicar aos vizinhos por que razão não era o pai de Jesus. Seja como for, a actual revolução tecnológica também teve já os seus lances proféticos falhados (ou, se se preferir, os seus telhados esvaziados de ilusões luminosas). Há duas décadas, na passagem do ano de 1999 para o ano 2000, todas as vozes autorizadas garantiam que a simples mudança de dígito iria gerar um crash global. Uma espécie de 09/11 informático antes de tempo. Esse Millenium Bug chegou a ser tratado, numa das Newsweek do fim de 1999*, através da expressão “banho de sangue”. As estimativas retiradas dessa mesma publicação eram e são, no mínimo, curiosas e, claro, tremendistas: 1º – Segunda Grande Guerra Mundial II – 4,200 biliões de dólares. 2º – Reconversão informática mundial do ano 2000 – 600 biliões de dólares. 3º – Guerra do Vietname – 500 biliões de dólares. 4º – Terramoto de Kobe – 100 biliões de dólares. 5º – Terramoto de Los Angeles – 60 biliões de dólares. Às vertigens das viragens tecnológicas corresponderá o sorriso congelado da nossa menina de cabelos em ninho de cegonha (que cantarolaria as ventanias de Eduardo Nascimento). A memória avança na nossa direcção com o objectivo de devorar, é certo. E fá-lo para que se perceba – e para que se volte sempre a perceber – a impossibilidade de se ser e de se estar em tempos diferentes. Presos ao futuro (e ao encanto dos seus pequenos projectos), os humanos viajam num ‘agora’ em movimento, mas um ‘agora’ que nunca se converte num outro ‘agora’ de modo nenhum. Uma tragédia em si mesma, dir-se-á. Se Ruy Belo falava das tragédias de uma determinada época (Morte ao Meio dia, por exemplo, é um poema revelador dos sixties portugueses -“No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente/ Novembro é quanta cor o céu consente/ às casas com que o frio abre a praça”*), outros poetas houve que expressaram tão bem esta tragédia de fundo que consiste, ao fim e ao cabo, em não se ser de tempo nenhum. Razão por que se fala sempre do “meu tempo”, essa ilha isolada do existir a que nunca se regressa e para que nunca mais se caminha. No Fausto, Pessoa repisava o tema: “Tudo que vemos é outra coisa./ A maré vasta, a maré ansiosa,/ É o eco de outra maré que está/ Onde é real o mundo que há”*. Fiquemos, pois, com o eco, esse espanto inexplicável que é olhar para a fotografia do Rossio da Lisboa dos anos sessenta e crer que ele nunca terá realmente existido. Esse, sim, é o verdadeiro bug. E ali ao pé do café Gelo, com o Diário Popular debaixo do braço, lá vou eu, mão na mão, aconchegadinho, com a menina de cabelos em ninho de cegonha a saborear-lhe o rouge. E o vento mudou e ela não voltou. *Beyond 2000 em Newsweek, NY, November 8,| Vol. 154 No. 19, 1999. *Belo, Ruy; Home de Palavra(s), Assírio e Alvim, (1970) 2016. *Pessoa, Fernando; Fausto, Tinta da China, Lisboa (1907-1933) 2018.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasO que funcionar [dropcap]A[/dropcap] menina Marina, já famosa por ser a sábia do bairro, pergunta-me: «Senhor Nuno, o costume? Meia de leite e croissant com queijo, não é ?». E sei que a resposta está contida na pergunta e sei que nem sequer me deveria incomodar. Mas não: digo que sim mas não é o costume. Tenho problemas ontológicos por resolver, menina Marina. Antes esses do que outros e parecidos. Quem sou, quem diz o que sou, quem diz o que fui – enfim, um croissant com queijo enquanto maço os leitores. Os amigos, quando o são, intimidam-nos. Apanham-nos desprevenidos – nós, que assobiamos descontraídos pelas pequenas alamedas da vidinha – e zinga!, perguntam, incomodam, obrigam a tirar o pano dos espelhos. O resultado nem sempre é agradável (nunca, já posso dizer) mas é sempre necessário. Os amigos, quando temos essa sorte, limpam-nos os fantasmas sem nunca abandonarem o lugar da assombração. Quando isto sucede – esta mistura de indulgência, indiferença e espanto – podemos ajoelhar e dizer como o padre Brown de Chesterton: o mais incrível dos milagres é que eles acontecem. Passaram já por isto, queridos leitores (e leitoras, mas acaba aqui a cedência aos tempos, os substantivos plurais são para se utilizarem)? Claro que sim. Aquele amigo ou amiga que já não encontram há algum tempo (leia-se: meia vida) mas que no entanto continua curioso, receptivo, que quer saber mais com uma ternura violenta mas bem-vinda. Aqueles que nos acompanharam na guerra mas só agora na paz têm tempo e vontade de fazer perguntas e ficar maravilhados com as respostas. E aceitam, e partilham as suas profundas dissonâncias, e vamos para casa com a barriga cheia desta coisa invulgar que começa a ser as pessoas falarem umas com as outras. Escrevo isto sem me queixar, consciente que é um privilégio e um pouco monotemático nestas crónicas. Mas se insisto é porque – lá está – não pode ser um privilégio. Mais uma vez Oscar Wilde tinha razão: um amigo é aquele que te apunhala pela frente. Mas quando não existe frente, quando só existe ecrãs e ilusões de proximidade? Sei lá. Talvez esteja velho, como sempre desejei. Talvez não compreenda nada e numa ingenuidade que não desejo nem pratico lute ainda pelos pequenos grandes gestos, que nos salvarão uns dos outros no quotidiano. Essa “medida temporária de graça” que surge no monólogo final de Whatever Works, o filme de Woody Allen que mais cito e onde fui buscar o título à crónica. Olho a minha agenda e vejo que irei ler Beckett com o mano João Paulo Cotrim, que conheço desde os quinze anos e que nos voltámos a reconhecer há algum tempo, com surpresa, confirmação e festa. Mas porque nos olhámos, porque nos falámos e não vimos nada do que fomos, apenas do que agora somos. É ir para a rua e não ter medo de olhar e falar com quem achamos que melhor nos conhece. O resultado é maravilhoso e garanto – o mundo fica um bocadinho melhor. Pelo menos durante um bocadinho mas provavelmente é esse bocadinho que interessa. Menina Marina, é um croissant com queijo e fale comigo, fale comigo.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasQue me diz o corpo? Cai. Fora de Lisboa, 24 de Março [dropcap]A[/dropcap] notícia apanha-me fora da cidade, fora de mim. Andávamos a arranhar céus, por causa de uma ideia, é sempre assim, mas agora não sei, Manuel [Graça Dias]: desapeteceu-me. Hei-de dar umas voltas, para ganhar coragem de arrumar o irresolvido. Quem, como tu, viu na cidade um corpo vivo, fulgurante e contemporâneo a cada instante? Ninguém, como tu, defendia o direito de cada um, sem restrição de gosto ou proveniência, a fazer a sua casa, a sua cidade. A riscar, arriscando. A construir com ruínas, a erguer em circunvoluções, vasculhando noas catálogos do disponível, sem perder a hipótese do sonhado. Lembro agora que falámos muito de janelas. Hei-de dar umas voltas, de pernas para o ar. Almirante Reis, Lisboa, 28 de Março Deixei-me alhear. A cena estava destinada a durar poucos minutos naquele aquário com uma única parede de vidro, a porta abrindo sobre azáfama de papéis, em murmúrio de irrequietude, prestes a sossegarem em um quase nada absolutamente determinante. A leitura em voz alta e borracha na mão despejava em ladainha dados objectivos, moradas, lugares de nascimento, portanto datas. Definitivos que nem lâminas, se excluirmos os nomes. Os nomes completos não se limitam ao real, trazem primeiro o próprio, e logo dele evocação, perfume, um eco; seguem-se os apelidos revelando raízes, as serras e os rios onde germinaram os pais dos pais, quando uns ainda eram filhos e não sonhavam ser pais. Os apelidos são paisagens que nos atravessam. Movimento, só passada a fronteira de vidro. Os corpos aqui fizeram-se estátuas sentadas, recebendo a chuva a conta-gotas da voz verificando o que precisava ficar escrito para que a vida dos apelidos cruzados prosseguisse depois da morte. Estava quase como devia, a emenda fez-se para justificar o aparato do absurdo formal. Sem precisar, pus os óculos e assinei. O carimbo fez ponto mais final. Ainda não sequei as lágrimas. Santa Bárbara, Lisboa, 29 de Março Corto [Maltese] fez corte à navalha na mão desenhada para prolongar destinos. Meio torto, resolvi alterar a leitura das rugas na testa com lanho longitudinal. Demorei a perceber que se trata de acentuar as coordenadas. Lá diz José [Anjos]: «a mera consciência de si próprio/ ou do corpo/ não é mais do que uma tentativa,/ vã tentativa de estar parado / no que é imparável: a queda.» Horta Seca, Lisboa, 2 de Abril Valério [Romão] regressa de mais uma incursão europeia trazendo na bagagem dois contos vertidos para castelhano, italiano, neerlandês e romeno, no âmbito do projecto CELA (Connecting Emerging Literary Artists), projecto a dar atenção aos emergentes, escritores e tradutores. Isto além da participação na delegação portuguesa à Feira do Livro de Leipzig. Parece satisfeito com ambas as experiências, mas não se lhe arranca relatório minucioso assim à primeira. Anda embrenhado em traduções e junta-se logo ao colossal coro de cobradores das minhas crónicas tardanças: «já trataste da autorização?» Nada me castiga mais que a papelada. Ainda nem abri o documento com as vendas do mês passado. A derrapagem parece ser a minha maneira de caminhar. Campos Trindade, Lisboa, 3 de Abril Nas poucas vezes que não fizemos o tradicional lançamento, por vontade do autor ou outro contratempo, sobrou-nos um estranho gosto da incompletude. Algo parece faltar no longo ciclo de construção do livro sem este ponto de exclamação. Contudo, uma avaliação rigorosa, subtraindo o que se investiu em tempo, recursos e incómodos aos parcos resultados, justifica a dúvida: valerá a pena? Até que acontecem destes, o de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça», do mano José [Anjos]. Falo do intangível, claro: o ambiente. E para melhor explicar, dissequemos, rezando para que o Frankenstein seja, ao menos, terno na sua disformidade. O lugar do crime, de vizinhança que se quer crescente, possui o perfume das raras possibilidades. O Bernardo [Trindade] acendeu a luz da sala de estar, que sabe ser o epicentro de encontros insuspeitos. A Graça [Ezequiel], com foto na página, em versão antes da noite cair, ajuda a dar ideia. A generosidade da Quinta do Gradil, pela mão gentil da Ana [Matias], dispôs saborosas boas-vindas em formato viosinho, no branco, e cabernet sauvignon com tinta roriz, para o tinto. Entre muitos amigos, chegados ou dos de partir, estavam a querida Luísa [Pires Barreto], que desenhou o objecto, cuja capa nasce de uma tela onde o Gil Madeira pôs o Anjos a procurar o feminino por entre luz e espelho e manuscritos. O Gil oferece, ainda, o nosso primeiro logótipo em círculo, dança doida de linhas sinuosas. O Marcello [Urgeghe] rodou sobre si sob o lustre para sussurrar leituras comovidas. E o João [Morais] encheu o espaço que já não havia com a sua campaniça, insuflando oxigénio. O autor, tão amante da queda, levitava, talvez por sentir que as páginas se cumpriam nas mãos e nos olhares, enfim, chegavam algures, a uma estação primeira (à maneira de O Gajo). O Gui sublinhou passagens, sem surpresa, sentindo-se com exemplar naturalidade em casa. Ademais só mesmo a calorosa interpretação cantada pela Ana Teresa [Sanganha], que liga o seu gosto pela poesia à psicanálise, «que de gosto meu não se trata, mas sim de uma identidade». A leitura veio tintada pela amizade, como convém, mas revelou-se justa e cheia de alma. «Digo complexidade porque, à medida que ia mergulhando nos poemas e dobrando as ondas do livro, percebia que não estava a conseguir dissociar as partes em que me tocava, da mesma maneira que não consigo dissociar corpo e mente. Mas pude perceber que memória, infância, amor e morte emergem com a subida das páginas e vivem, transversalmente, numa roda-viva de posições e justaposições. E, enquanto me desvendo através do Zé, penso que afinal só de quatro gotas se faz o oceano e que os mergulhos poderão ter só a profundidade destas quatro gotas: infância, memória, amor e morte… talvez arriscasse dizer que poderíamos retirar a infância e a memória, que das duas fala o amor e a morte, mas, como escreve o José, “são precisos dois olhos para focar/quatro para ficar”. São estas as Quatro Águas que matam a sede à humanidade e lhe dão a distância suficiente da boca do corpo até à terra.» Ferin, Lisboa, 4 de Abril Anuncia-se programa para a televisão pública em torno da música que nos fez mais portugueses. Pede-me o Pedro Castro depoimento matutino sobre o Sérgio [Godinho] e dispara logo a abrir um refrão de memória. A minha perdeu o pio. Sou homem do presente, sobretudo do indicativo, o que me perturba e irrita, fica escrito. Lembrei-me na atrapalhação do hoje que se quer primeiro dia para lançar novo sopro no resto a vir. Veio-me depois à boca o grão da mesma mó, «não sei se estão a ver aqueles dias/ Em que não acontece nada sem ser o que aconteceu e o que não aconteceu/ E do nada há uma luz que se acende/ Não se sabe se vem de fora ou se vem de dentro/ Apareceu». Está visto que o meu tempo continua à espera de suceder. E não ocorreria da mesma maneira sem o SG [gigante]. Biblioteca da Imprensa Nacional, Lisboa, 5 de Abril Lá está, lançamento: «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», de Mariana Viana, com a vetusta a dizer que está atenta aos cânones agitados apesar dessa camisa-de-forças onde a querem fechar, mas que não abdicam nunca de atacar a jugular, a que sangra, não a cegueira das minudências do artesanato do ódio. Ele há diferenças, podemos fazer degraus sem pensar em cânone, subindo ou descendo. Esta sala faz-se lugar perfeito para este desdobrável, em cada uma das direcções de todos os ventos. Entre a terra e o céu, umas varandas sem acesso, disponibilizam livros a quem saiba sobrar o varandim, folhear a geografia, saber o caminho dos degraus de água.
admin h | Artes, Letras e IdeiasO criador e a mentira [dropcap]O[/dropcap]lhando bem para o infinito, e há pessoas que o fazem, conseguimos observar o início de NÓS e descrevê-lo. Lá, nessa obscuridade sempre em expansão – cegueira, ignorância, melancolia -, diz-se que em preciso momento, do nada, a luz se acendeu. Especulação total. Nada se pode confirmar. Não existiam observadores para ver. Mas existem agora. E vemos. Porque a velocidade a que o passado se desloca não é suficiente para chegar até aqui, agora. Não é que o passado já se tenha ido, na verdade, o início disto tudo ainda não chegou. Pior, não se sabe qual será o primeiro a dar de caras com esta coisa a que chamamos presente, se o fim, se o princípio. Ontem é amanhã. Tenho quase a certeza que o mais fascinante que há na vida, mais do que ver, embora esta faculte a outra, é a leitura. Processo que mexe com todos os sentidos e que coloca a mente noutras alturas, não há muitos assim. Atilhos de palavras que constroem uma visão sem ela existir. Uma utopia a cada folha. O rigor de uma cascata, a chegar no fluxo, sem ordem. Por isso, leio. Observo. Escrevo. E sinto-me nutrido. Inicio uma nova experiência em páginas de jornal. Como um passageiro, deixo a torrente desabar e fico à espera do resultado. Gostava que estas crónicas saíssem de forma natural como quem colhe uma peça de fruta do ramo de uma árvore. Uma peça de fruta, o ramo da árvore, é o que esta crónica vai ser. Percorrem-se estradas sem querer fazer contas ao destino. Sigo pelo pavimento, não sei onde vou desaguar. Não é relevante. Certa vez, não sei porque me lembro disto, fui cicerone da região onde habito para uma estrela cadente da televisão. Mostrei-lhe o que havia, vistas, artesanato, costumes e gastronomia. Pelo meio, falámos do medíocre panorama televisivo, sem perceber que estava a participar nessa paisagem. O programa era péssimo, vi mais tarde, dando laivos de humor barato àquilo que levava desta zona. Respondeu-me: “É o que as pessoas querem”. Mas terá de ser assim, não se consegue vencer este estigma e nivelar um pouco mais alto? Nesta mesma terra, um homem de descendência algarvia, com apelido de uma família de artistas macaenses, está revoltado com o que se passa por cá. Viveu na Germânia, onde foi bem recebido e aceite pela comunidade local; e passou alguma parte da sua vida nas américas, tendo feito grandes amizades com os aztecas, onde ainda é respeitado. É uma pessoa só, no sentido em que na terra onde vivemos há muito poucos do lado dele, a gritar em consonância e a contestar os desígnios da autarquia, enraizada até aos cabelos nos poucos habitantes que a compõem. Um sítio grande, pequeno. Vem isto a propósito de quê? Vem a propósito do mundo bloqueado que se sintoniza todos os dias. Aqui, parto do princípio, não sei nada. Pego disto e daquilo e misturo. Agito. Um, dois, três. Já está! De um beco surge uma rua, um ponto cardeal que aponta para aquilo que é vivido, no cerne deste turbilhão. Estatela-se nas folhas deste papel. E vice-versa. A cascata, o fluxo, a desordem. A questão. Quero elucidar as pessoas mais novas para a necessidade da leitura. Ler e desprender a imaginação para outros mundos, como alimento. Escrevo com essa intenção primária, de explorar o planeta cinzento atrás dos olhos. Os germanos, os aztecas, o infinito. A roupa suja. O que sei e o que não sei. Não importa. Aquilo que se sabe é uma ínfima parte do que não se sabe. A luz que se reacende. Ininterrupta. Relatá-lo como verdade é uma incoerência tão grande como a ignorância de um animal rastejante acerca da desventura humana. O passado é a única coisa que temos à frente. Se serve de alguma prova. Inventar é mentir. As pessoas deturpam o verdadeiro para chegar mais longe. Quando estou a criar estou a mentir. Estou a lutar contra a precisão. Contra os factos. Ou o estado das coisas. Uma invenção, uma nova descoberta, com pouco se torna palpável e com contornos de realidade. Inventar é dizer a verdade. Cegueira, ignorância, melancolia. E a crónica segue. Rasura o tempo corrente. Aventura-se na geometria do acaso. Despede-se. Tudo o que experimenta é desconhecido. Conheço-te, sei quem tu és, murmuras. Frase por frase, vai por aqui, a tentar encontrar o texto. E a poesia. Levando água entre as mãos e escrevendo-a no papel. Esse líquido cristalino que é um poema, que é uma ideia. Não fica lá tudo porque, a ideia e o poema, não se compadecem com uma superfície plana e limitada. Mas no pensamento, vago e alheio, fica alguma coisa, se tiver habilidade para isso. Para não entornar mais do que de menos, talvez reste algo perceptível. Cosendo as linhas de um poema. Ou de uma ideia. Que interessa isso dos nomes, e das verdades, se podemos voltar sempre ao início. Mas, diz este descendente de algarvios, aqui todos têm medo. Medo até de o cumprimentar. Não vá estar ligado a forças progressivas que impugnem – porque nem tudo tem o formato visível da Lua– o edil camarário. E sabe-se lá o que existirá amanhã. “Estavas a falar com aquele, não era? Escreveste num poste. Não apareceste na cerimónia. Agora, amola-te”. Não é assim, porque a indiferença vem primeiro. A invisibilidade. Nem se chega às falinhas mansas, a coisa morre ali, muito antes de chegar ao vislumbre de terra firme no horizonte. A ilusão é plena. Cheia de estrelas cadentes e coisas por lavar. Desventura, é certo. Parecemos animais rasteiros, sem ser de laboratório, esses sempre têm mais categoria, mas daqueles que abandonam primeiro o navio, antes das crianças e dos idosos. Muitas vezes, vejo as palavras dos outros – as entranhas, o sentir – e deparo com aberrações, com intolerâncias, com vacuidades. Humor barato. Sinónimos. “O que o povo quer.” Há sempre o nome. Joel, Martins, Sambuca. O que seja. Nomes que vêm à cabeça. Não importa a designação ou o número. Por isso não é de se ligar. As palavras, sim, importam. Vão caindo. Referem, ditam, apropriam. Mesmo deturpadas, porque as mãos não conseguem levar toda a água ao seu moinho, deixam uma raiz. Uma erva daninha. É preciso pensar nelas. Regá-las. Dar-lhes vida. Enxertá-las para que gerem mais peças de fruta. E possivelmente mais árvores. E lençóis por lavar, claro. O criador e a mentira, ditei como ponto de navegação, em letras mais gordas. No início, quando nada há, antes do tudo, a raiz aflora. A realidade não consta. Não há o eu, não há o outro. Não há a saudação, nem a ameaça da mão apertada. Só o coração aperta. Que fazer, senão inventar e criar uma realidade qualquer? Coisas vãs e alheias. Choques. Caos. Caroços. Restos de coisa nenhuma. Revejo esse ponto lá ao fundo, não tão longe como isso, do primeiro momento, um sopro, um evento singular. Luminárias a piscar. Cosmologia física. Densidade infinita. Filosofia quântica. Vivemos num mundo irreal, que não sentimos. Que rodopia numa espiral catastroficamente controlada, composta por fórmulas atómicas não possíveis de percepcionar. Uma vírgula, um ponto final. Vive-se na impossibilidade, é tudo recreio. A invenção do dinheiro. O poder. A água, as palavras, os poemas. Para que serve tudo isso, se não está cá ninguém para nos cumprimentar?
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras II [dropcap]P[/dropcap]onho-me debaixo do duche. Tiro o shampoo ainda da cabeça. A mão direita chega melhor à nuca. A esquerda retira a espuma do lado esquerdo da cabeça. Sinto a água que cai directamente sobre a cabeça e depois escorre pelo corpo todo, ombros, braços, barriga, mas também costas, nádegas. Não vejo as costas, nem a nuca, nem em geral a parte de trás do corpo, como não vejo o interior. Saio do banho. Limpo-me em frente ao espelho. Puxo a toalha da direita para a esquerda e depois da esquerda para a direita, de cima para baixo, para limpar as costas. Vemos sempre só o que está à nossa frente, nunca o que está atrás de nós. Quando olho, com esforço por cima do ombro, para baixo, deixo de ver o que habitualmente vejo e passo a ver o que habitualmente não se apresenta. Sinto as costas quentes e molhadas e depois secas, a refrescar. Mas é pelo tacto. Sinto cócegas, comichão, no exterior e no interior, mas não vejo as cócegas nem o prurido. São fenómenos tácteis. Todo o nosso corpo tem em si a perpassá-lo estruturalmente uma textura táctil, háptica. Sentimos uma dor de cabeça, como uma pontada, a vir do interior para o exterior, mas sem ir ao limite fronteiriço da cabeça. É lancinante, do lado direito da cabeça, um pouco acima dos olhos, no seu interior. É como uma agulha a espetar, mas não de fora. Esta é de dentro. Sinto dores musculares do treino. É no interior da coxa, ou na testa por um golpe sofrido. Não é só superfície nem na pele. Entra-me pelo corpo adentro. Podemos perceber que dói tudo ou que o mal-estar é geral, como quando se tem uma febre de gripe e todos nós estremecemos. Olho através da janela para ver como está o tempo. O céu azul abobadado, sem nenhuma nuvem. Nenhuma folha mexe nos ramos das árvores. Eu toco o céu com um olhar que se expande por todo o azul que eu consigo ver. O azul abobadado serve de plano de fundo ao horizonte. Haverá alguma correspondência entre os raios que saem da abóbada que são os olhos para cada ponto do céu azul? Ou será ao contrário, no plano de fundo azul, em toda a sua extensão, há pontos reais que servem de ponto de aplicação aos raios que saem do semi-globo ocular? Ou dos pontos do céu em toda a extensão a que acedo pelo olhar chegam como dardos raios azuis que formam a extensão. O azul do céu é a soma de todos os pontos azuis? Ou há uma extensão já em forma de plano curvo que é mais do que a soma das suas partes e forma faixas azuis? É o céu azul composto por faixas azuis como a fuselagem de um avião que parece feito de remendos? E o ver azul vem de onde? É do olhar ou da visão? A visão é mais do que o olhar. Eu posso olhar da direita para a esquerda e de cima para baixo, perto ou longe e, ainda assim, não estar a ver nada. Por outro lado, ao olhar numa determinada direcção, de repente, vejo formado, de uma só vez, o céu azul de um dia sereno. Quando eu toco em toda a sua extensão o céu azul, vejo formarem-se em todos os planos até aos meus olhos diversos objectos. Um objecto forma um plano. Há tantos planos quantos os objectos e mesmo sem haver objectos referenciáveis há planos possíveis que se podem estabelecer imaginariamente. O objecto que eu vejo mais longe é a ponte 25 de Abril. Para lá dela, só vejo azul. Mas entre ela e mim, vejo várias edifícios, uns mais longe do que outros, depois vejo a janela que está suja, depois vejo os meus óculos de ler que estão limpos. Mas já não vejo a película que reveste os meus olhos. Não vejo as lentes de contacto. Mas quando procuro ver as lentes de contacto, percebo que estou já fora dos olhos. Concentro-me nos óculos e vejo a sua armação. Depois vejo o que está fora da armação. Concentro-me agora na janela e percebo a sua forma geométrica composta de duas partes. Já não vejo a armação nem as lentes dos óculos. Percebo de forma desfocada a paisagem para lá da janela. Agora toco na ponte 25 de Abril: vejo os carros passarem da direta para esquerda. Não consigo se não adivinhar os carros que vêm de sul para entrar em Lisboa. Vejo, a ponte 25 de Abril deslocar-se para a esquerda, quando os carros são perseguidos por mim a diversas velocidades, na direcção contrária. Deixo de prestar atenção à ponte no seu todo, deixo de ver a ponte e percebo o azul que serve de plano de fundo a tudo. O horizonte da visão é construído por uma projecção que torna todos os planos visíveis, de lá dos olhos até lá ao horizonte. É como se tudo estivesse metido numa esfera de que só percebe a semiesfera abobadada em que eu estou metido com todas as coisas. Vejo agora da ponte 25 de Abril a minha casa, a janela de onde eu há pouco estava a olhar para cá. Desloco-me no tabuleiro. O Cristo Rei lá ao fundo que eu antes não via, passa a estar visível. A foz do Tejo passa a estar visível e a costa de Almada. Lá ao fundo estarão as portagens que eu ainda não vejo. Olho para a Junqueira e percebo o verde dos jardins nas proximidades. Vejo o paredão entre as docas e Belém. E vejo a casa onde está a janela de onde eu via a ponte. Não consigo fazer congruir nada do que vejo com o que via. As proporções estão trocadas. Mas tudo está fora da minha cabeça. A visão só vê fora. Não vejo o interior dos olhos nem o interior da cabeça. Por mais que olhe para o cimo e para baixo e para cada um dos lados e faça mexer o globo ocular, não consigo ver o interior. Só vejo o exterior. Do ângulo da minha visão dou tamanhos às coisas, ponho-as em múltiplas relações que só existem no interior do espaço de visão. O interior é o exterior e o interior é dentro do horizonte complexo da visão.
Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá Macau, Dezembro de 1937 [dropcap]A[/dropcap] guerra já tinha chegado a Macau. Mas ninguém ousava falar dela. Muitos pensavam que, evitando o tema, o medo acabaria por se dissolver. Naquela pequena sala, mal iluminada, falava-se de guerra. Ali todos sabiam que os japoneses, depois de terem tomado Xangai avançavam a caminho de Nanjing. A China era o seu inimigo. Mas o conflito já chegara à calma e descontraída Macau. Não se via, nem se ouvia. Germinava nas sombras, à espera da luz do dia. Mesmo que os ocidentais não quisessem ver a realidade, como muitas vezes acontecia. A luz era escassa, mas era a suficiente para se ver a face de Jin Shixin, onde nenhum músculo se movia. Os seus olhos estavam semicerrados, concentrados no homem sentado à sua frente que, de vez em quando, baixava a cabeça, incapaz de aguentar o olhar fixo da chinesa. Nela não havia afecto, mesmo quando a sua voz era de veludo, como acontecia naquele momento: – Sabes, Zhang, o melhor chá verde tem de equilibrar o sabor amargo com a doçura. De outra forma é impossível conseguir a perfeição. Não parecia que esta explicação interessasse ao chinês, com as mãos e pés atados por cordas. Mal se conseguia mover. O banco em que estava sentado era pouco confortável. Tinha uma das ripas partida e a outra torta. Sentar-se nele já era um castigo. Mas se merecia ou se tudo aquilo estava a ser uma injustiça não o preocupava. Tinha a mente dominada por outros pensamentos. Jin Shixin dirigiu-se a uma mesa e inspirou o aroma que ia saindo do bule de chá que ali estava colocado. Depois, com rigor, colocou o chá nas três chávenas que estavam em cima da mesa e deixou que o aroma se espalhasse por toda a pequena sala. Estavam no interior de uma casa que funcionava como armazém, na frenética Rua de Camilo Pessanha, entre as locandas onde se jogava o fantan, as lojas de penhores e os locais onde se fumava o ópio. O comércio estava sempre aberto, e ali ninguém escutava nada. E todos se calavam. Ela não escolhera o local por acaso, quando chegara a Macau há pouco mais de um ano. À vista de todos, ficava suficientemente escondido para desenvolver as suas actividades secretas. Era ali que Jin Shixin guardava as encomendas de chá vindas da China e que depois levava para a sua loja, “O Jardim Celestial”, na Avenida Almeida Ribeiro, que se tornara conhecida em Macau pela qualidade dos seus produtos. Ela sabia prepará-los como ninguém. Como sempre, toda a arte tem sempre um lado obscuro. Atrás de Zhang, e atento a qualquer eventual movimento deste, estava Wen Xiao. Tinha os braços cruzados e tentava, também ele, perceber o que escondiam os olhos e as palavras de Jin Shixin. Na penumbra, encostado a uma parede junto à porta, apenas se via a casaca branca de Vladimir Potapoff, que há muitos anos se apresentara em Xangai como o conde de Lvov. Um dos muitos russos brancos que, sem alternativas de vida, acabara como guarda-costas dos maiores magnates da cidade chinesa. Viera com Jin Shixin para Macau, um ano antes, para a proteger. – Tal como este chá, as tuas acções têm dois sabores. Pareceram doces, mas resultaram amargas. Sabemos o que fizeste, Zhang. Só desconhecemos a mando de quem. E é só isso que desejamos que partilhes connosco. A voz de Zhang soou pela primeira vez: – Admito que matei Wu. Mas foi por uma questão sentimental. – Eu sei que ambos desejavam a mesma mulher. Mas isso foi apenas uma desculpa. Sabemos que há um inimigo a rondar-nos. O problema é que não conhecemos a sua face. Mas tu conheces, Zhang. E, em nome do passado, deves dizer-nos quem é. Perante o silêncio dele, agarrou numa chávena e levou-a até junto das narinas. – Todos procuramos um aroma perdido. Um sonho que nos faz afastar do caminho certo. Qual era o teu? Dinheiro? Zhang abanou a cabeça. Ela insistiu: – Glória? Vingança? Perante o contínuo silêncio dele, Jin voltou-lhe as costas por um momento. Depois agarrou calmamente uma faca que estava em cima da mesa e rodou-a entre os dedos. – A sombra é parte da luz. É o outro lado dela. Eu peço para sermos invisíveis. Sabes porque? A invisibilidade é o mais difícil dos dons. O teu problema é que te tornaste demasiado visível. Mataste um amigo teu. E, com isso, ameaçaste-nos a todos. Sabes que podes trair os teus amigos, o teu país, a tua esposa, a tua amante. Podes trair por dinheiro, por sexo, por amor, por ódio ou por qualquer motivo fútil. Mas não podes trair a tua família. E nós sempre fomos a tua família. Sabes qual é o nosso único problema? Não sabemos quem é que te encomendou a morte de Wu. E, assim, não sabemos quem é o nosso inimigo. Não sabíamos quem eram os inimigos de Wu. E agora não sabemos quem são os nossos. Porque ele fazia parte da família. Potapoff aproximou-se devagar e colocou-se atrás dela. Ao levantar a cabeça, Zhang ficou com os olhos fixos no russo. Jin notou uma ponta de terror no olhar do chinês. – Estamos a chegar a algum lado. Foi um russo que te encomendou a morte de Wu, não foi? Zhang olhou novamente para Patapoff. Para as suas barbas e olhos negros impassíveis. Julgou, por momentos, que era Ivan Sapojnikov. Não era. Mas cometera o mais terrível dos erros: o seu olhar tinha-o atraiçoado. Sabia, a partir daquele momento, qual era o seu destino. Ele era um homem perigoso para a chinesa. Era um homem que odiava. Não era possível esperar dele qualquer lealdade futura. Jin ficou a olhar para ele, trespassando-o. Por momentos, ela recordou-se da sua vida em Xangai. Lembrou-se do seu chefe, Du Yuesheng, na sua mansão na Rue Wagner, na zona da concessão francesa em Xangai. Imaculado no seu casaco de mandarim e na roupa de seda, enquanto dirigia o seu enorme negócio de ópio. Jin tornara-se uma das suas subordinadas mais fiéis. Fora ele que, prevenindo o futuro, a enviara para Macau. Jin agarrou novamente na sua dadao, a faca que tinha sido utilizada pelos rebeldes Boxers, na sua luta contra o poder. Não era uma arma sofisticada, nem o poderia ser. Deu-a a Wen. Zhang olhou para os dois e para o sorriso malévolo de Wen. Sabia que ia morrer. Jin agarrou na chávena de chá e levou-a à boca. Depois de beber um pouco, acrescentou: – Já não conhecemos os nossos inimigos. Estão nas sombras, onde é mais difícil ver. Estão dentro de nós. É pena que assim seja. Zhang olhou com ódio para ela e disse: – Eles vão matar-te. Sabem quem és. E o que tens. – Não te iludas, Zhang. Fui treinada para não ter medo da morte. Não acredito na morte. Só acredito no fim dos meus inimigos. [CONTINUAÇÃO]
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTurbulento período de transição [dropcap]G[/dropcap]uerras por toda a China marcaram o reinado do Imperador Shunzhi (1644-1661). No início, contra Li Zicheng, líder dos rebeldes camponeses e militares de Shaanxi e cuja chegada a Beijing levou o último imperador da Dinastia Ming a enforcar-se. Já com o Trono do Dragão ocupado pela Dinastia Qing, logo as cortes dos príncipes ming, cujo sonho era retomar o poder, instalaram-se no centro e Sul da China, onde os exércitos manchus os combateram até 1661. Também em Beijing, um outro tipo de guerra ocorreu entre os jesuítas da Missão e os mandarins do Tribunal dos Ritos, incomodados com o relacionamento íntimo do padre Adam Schall e Shunzhi. O manchu príncipe de Rui (Dorgon), que em Beijing desalojara os revoltosos e colocara o Imperador Shunzhi no trono da China, como regente político e militar mandou o príncipe de Ying (Ajige) em perseguição a Li Zicheng, terminando este morto numa emboscada no Verão de 1645. Quando em 1644 a corte ming se mudou para Yingtian (Nanjing) e Zhu Yousong, o príncipe de Fu, se tornou o Imperador Hong Guang (1644-1645) da Dinastia Ming do Sul, o regente Dorgon, tio do Imperador Shunzhi, enviou o príncipe de Yu (Aisin-gioro Duoduo) para acabar com essa veleidade. A curta existência do primeiro regime Ming do Sul terminou no Verão de 1645, após um general traidor entregar às tropas qing o efémero imperador, fugindo a corte ming para Hangzhou, onde se dividiu. Uma parte dirigiu-se para Shaoxing (Zhejiang), ficando aí Zhu Yihai, o príncipe de Lu, como imperador de Julho 1645 a Junho 1646. Pertencia ele à nona geração do décimo filho do primeiro imperador da dinastia Ming, Zhu Yuanzhang. Conseguiu repelir um ataque das tropas qing mas, com comandantes militares arrogantes e desobedientes, o poder caiu nas mãos dos eunucos e no confronto seguinte com os qing logo saiu derrotado. A outra corte refugiou-se em Fuzhou (Fujian), subindo ao trono Zhu Yujian como Imperador Long Wu (Agosto 1645 – Outubro 1646). Este, quando em 1644 o príncipe de Fu se tornou Imperador e o libertou da prisão, recuperara o título de príncipe de Tang, que lhe fora retirado em 1636. Pertencia Zhu Yujian à oitava geração, descendente do terceiro filho de Zhu Yuanzhang. Mas bastou um ano para esse imperador e o de Shaoxing serem destronados pelas tropas manchus. Outra bolsa de resistência aos qing ocorreu em Chengdu, Sichuan, quando em 1644 Zhang Xianzhong se autoproclamou imperador do Grande Reino do Ocidente. Aliado ocasional de Li Zicheng até 1640, acordaram então delimitar as suas áreas de acção. Em Chengdu, Zhang encontrou a Missão jesuíta fundada em 1640 pelo padre Luís Buglio e estando este doente veio para o ajudar Gabriel de Magalhães S.J., após um ano a estudar chinês em Hangzhou. Foram os padres levados para a corte, decalcada da Dinastia Ming, a fim de o aconselharem com os seus conhecimentos. Sanguinário governante, instaurou um regime de terror com massivas execuções e nem mesmo os missionários estiveram livres de perigo. Zhang foi morto pelos qing a 2 de Janeiro de 1647, numa emboscada nas Montanhas de Fenghuang, em Xichong. Em 1646 revoltava-se Zhu Youlang, tomando as províncias de Guangdong e Guangxi. Esta corte ming, a última, só teve o seu fim em 1661. Versão dos jesuítas “Ao contrário do relacionamento conflituoso com o Budismo e o Taoísmo, os jesuítas manifestaram desde o início uma atitude de grande abertura face aos valores morais e éticos propostos pelo Confucionismo, por eles considerado, não como uma religião, mas antes como uma sabedoria ou um código de preceitos morais para a condução prática da vida”, segundo Horácio Peixoto de Araújo. São deste autor do livro ‘Os Jesuítas no Império da China’, as citações que se seguem, “Se Adam Schall gozava da confiança do imperador e da amizade de alguns importantes dignatários da Corte, não lhe faltavam também fortes adversários que apenas aguardavam ocasião oportuna para manifestarem o seu desagrado ou mesmo a sua total oposição a semelhantes larguezas concedidas a um estrangeiro. Entre esses adversários, destacava-se o mandarim Guen, Presidente do Li Pú ou Tribunal dos Ritos de Pequim. Por diversas vezes, tinha este tomado iniciativas no sentido de provocar o afastamento do jesuíta do cargo de Director do Tribunal da Astronomia ou das Matemáticas. A ocasião para um frente-a-frente público acabaria por surgir em princípios de 1658, na sequência da morte do príncipe herdeiro, filho do imperador Shun-zhi” e da dama de origem tártara, chamada Tong O Fei, a sua concubina preferida. Lembremos que o príncipe de Rong, quarto filho do Imperador Shunzhi, logo que nasceu foi escolhido como sucessor, tal o amor que o imperador tinha pela mãe, a favorita Donggo hala, mas passados 105 dias morreu a 25 de Fevereiro de 1658. Se aqui já demos uma versão, agora deixamos a História contada pelos Jesuítas e assim regressamos ao relatado por Horácio Peixoto de Araújo. “De acordo com as normas em vigor, competia ao Tribunal da Astronomia e, em última análise, ao seu Director Adam Schall, a decisão sobre a hora considerada mais ditosa para a realização do funeral do pequeno príncipe. Observados os procedimentos previstos para tais circunstâncias, Schall comunicou a Guen a hora exacta em que deveriam começar os rituais fúnebres. Este, a quem competia, na sua qualidade de Presidente do Li Pú, a organização das solenes exéquias dos membros da família imperial, ignorou tal informação e deu início às cerimónias duas horas mais tarde. Entretanto, fosse para evitar previsíveis dificuldades, fosse para comprometer pessoalmente o Padre Schall, Guen falsificou o despacho que tinha recebido, substituindo a hora nele apontada pela hora da efectiva realização do enterro. Ao tomar conhecimento deste facto e receando, por sua vez, as gravosas consequências de tal alteração, Adam Schall decidiu informar o imperador do sucedido. Averiguados os acontecimentos, Guen foi deposto do alto cargo que ocupava e só por intercessão de grandes mandarins conseguiu evitar a condenação à morte.” Os jesuítas começaram a perceber as dificuldades que iriam ter quando o Imperador Shunzhi morresse. Segundo Gabriel de Magalhães, . Para agravar a situação, em 1659 Yang Guang-Xian (杨光先) escreveu o livro BuDeYi (不得已, Refutação de uma Doutrina Perniciosa), “posicionando-se abertamente contra a religião cristã”, “doutrina funesta e contrária às mais genuínas tradições culturais e sociais do império, já que não respeitava os cinco grandes princípios que fundamentavam a arquitectura dos vários níveis de relações no interior da sociedade chinesa”. Segundo Gabriel de Magalhães, para responder a esse livro o padre jesuíta Buglio escreveu ‘Apologia’, que para corresponder ao estilo do país o intitulou ‘Refuto porque não posso mais’, (不得已辨, BuDe YiBian).
Rita Taborda Duarte h | Artes, Letras e IdeiasEspelhos toldados das palavras [dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Mais perto. Tão próximo que mais ninguém nos ouça, pois que todo o papel será como as paredes: brancas e com ouvidos. Se me quiserdes escutar, dizer-vos-ei em surdina, a vós só, num oaristo tímido entre nós dois: A poesia, a melhor, é um equívoco. Um pantomima cega e ficcional em que vamos persistindo, fingindo como quem acredita, mentindo como quem crê. Há livros de poesia que nos lembram isto mesmo, desejando palavras não com que se escreva e diga, mas com que se pinte ou componha, ou, pelo menos, se reaja ao mundo visível, emendando-o. «O Olho e a Mão», obra conjunta de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, com poemas que se interpelam mutuamente, assim como às pinturas por que se fazem acompanhar, e a que resistem, também, é um destes livros capazes de «cega[r] a ortografia»: rasurá-la, exibindo o equívoco de se chamar literatura à poesia, a par de outras artes literárias. Tantos escritores, pensadores, poetas, Sartre, Croce, Verlaine vêm denunciando esse logro, insistindo, com o orgulho da convicção, que poesia e literatura estão nos antípodas e que o leitor de poemas é uma ilha rodeada de equívocos por todos os lados. Qualquer coisa como esta: todos sabemos, e repetimo-lo de lição estudada: a terra é redonda! Mas, e então? Há que vivê-la como se fora plana, que sempre é mais prático para conquistarmos o nosso quotidiano chão. Algum jeito haveria se andássemos a rebolar por esse universo fora, provando, a cada dia, a circularidade do mundo? Pois será redonda, é quanto basta saber-se, para continuarmos, no entanto, a vivê-la como se fosse aplanada, sem a precisão de nos pormos a escrever de pernas do avesso, só para corresponder à idiossincrasias manientas das realidades. Assim corre a poesia e a literatura: Enfiamos, incautos, no mesmo saco da literatura, ficção e poesia como se fossem irmãos desavindos, mas ainda assim irmãos, como se fossem todos gatos, a esgatanharem-se lá dentro, mas ainda assim gatos. A ambos chamamos literatura, tratando-se nitidamente de seres vivos de espécies diferentes (até mesmo de Reinos, diria). Se o romance for (e é!) um bicho, a poesia será, por evidência, uma planta. Ou uma pedra. Uma pedra que pode florir, é certo (como em Celan), até fazer a fotossíntese, mas ainda assim, pedra: inteira e intacta. Sartre tomou-se de outras palavras, para explicar isto mesmo, lembrando que, entre o prosador e o poeta, só há em comum o movimento da mão traçando as letras. O prosador faz uso das palavras, enquanto o poeta se limita a contemplá-las, desinteressadamente. Antes, aliás, Verlaine já o tinha explicado, com a leis cientificamente provadas da poesia. O que distingue um poema não é uma caminhada solidária na liteira da língua, aquele subsidiário desta, mas o inverso: a poesia- é uma arte que se move por uma rebelião contra a palavra, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, sequer seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E, quando ele as contempla, nem é, como julgava Sartre, para as apreciar em êxtase. Desenganem-se: Não! É para delas melhor se defenderem. Há que conhecer o inimigo, para melhor abrir a brecha do ataque. Quando toca à poesia, temos a certeza de que a língua, as palavras, a gramática, não serão um instrumento, sequer o material com que se constrói a parede do texto, os significados; não, a poesia é a destruição da parede da linguagem E se for mestra, tal parede, tanto melhor. Não, meu tão certo secretário, não me desviei do livro, que um livro tanto é aquilo que é, desmentindo as próprias letras, como aquilo que somos capazes de lhe responder. E eu ainda estou procurando respostas às perguntas que ele me vai fazendo, mesmo depois de fechado. Mas vejamos, que a leitura de um livro ( mas porquê?) não pode ser só este acto de dar a ver o rombo que no leitor provoca: Em «O Olho e a Mão», os poemas de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David intersectam-se mutuamente e atravessam pinturas, diversas, de várias épocas, sem nenhuma regra implicada que não seja a urgência de lhes responder e de habitar esse lugar intermédio de comunhão poética, combatendo as palavras da língua e as imagens, num processo de remissões e reflexos especulares: trata-se de «espelhos toldados de palavras», como se lê na nota dos autores que encerra o volume. Não lhes chamaremos poemas ecfrásticos. Um substrato mais forte se indicia no livro: toda uma concepção poética que nos mostra como a alteridade não existe senão como interioridade, mesmo intimidade. Mais do que os implicados reenvios dos textos poéticos às pinturas, o que sobressai é o poema como espaço de liberdade: do olho à mão, tudo ė a linguagem a que se resiste, desfazendo a língua, esse tabique que separa o olho do mundo. Poemas e pinturas tornam-se um jogo de espelhos sibilinos, que não reflectem, mas devolvem, sim, imagens outras: no fundo, «escavam [com a mão e o olho impuro, necessariamente impuros, aliás] o atalho de cada verso», resistindo à língua, deixando-a para trás, para a transformar noutra coisa ainda. Adequar-se-ia, facilmente, a estes poemas o epíteto «metamorfoses» (como, aliás, chamou Sena ao seu próprio livro): nada é o que é, senão o que fazemos sê-lo. É o que se diz num destes poemas, de Ana Marques Gastão, em confronto com o quadro de Christian Schad ( The portrait of Dr. Haustein, 1928): Talvez o que mais importe na escrita dum poema seja a sombra e o seu nome, não o meu nome mas o dela o nome da sombra- umbra, ombre, ombra shade, schaten» […] que, por sua vez, será também é resposta ao soneto-leitura-rasura da mesma pintura, por Sérgio Nazar David, intitulado «The Wall»: […] A sombra que projetam na parede os cães que nos rodeiam é menos de mulher do que de loba. Queria ser mãe, esposa, filha, irmã dos que mordem o meu seio. Falta algum flor voluptuosa neste quadro. Nele cubro de cinza e pó/ (não tenho remorsos) o rastro dissoluto de Satã. A poesia é o que resulta do sinuoso percurso que vai do olho à mão e a transforma em «mão inteligente», usando a expressão de Ana Hatherly: este é o livro de um processo em relação, de como os poemas se furtam à linguagem e de como a mão que escreve poesia é a mão que rasura a língua e lhe propõe novas ortografias. A escrita que nasce destes quadros ou que lhe devolve as cores é a que traz, não a linguagem dos sentidos e da significação, mas a do espanto. Manuel Gusmão, um dia, traduziu em poema este gesto fenomenológico que nasce da escrita poética ao escrever: «Com o espanto vêm as coisas/ à mão imaginante.». É esta mão imaginante, um modo de «flexão de dedos incertos», que empresta novas imagens às pinturas, que nem o olhar, nem a língua comum, nem qualquer gramática, nos poderiam de outro modo ofertar. Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, O Olho e a Mão, 7letras, Rio de Janeiro, 2018 (edição apoiada pela DGLB)
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasOs pés pelas mãos [dropcap]E[/dropcap]xigiu Donald Trump aos norte-coreanos que eles transferissem todo o seu arsenal nuclear para os EUA, sem explícita garantia de que o guardariam com inigualável segurança e particular atenção à fadiga dos materiais. Acho um plano genial e não vejo motivo para não ter desdobramentos, a todos os níveis. O Brexit, por exemplo, resolvia-se trocando os cidadãos britânicos com os húngaros. Estes, às margens do Tamisa ganhariam a cor louçã dos ingleses e posturas democráticas. Deslocados os problemas, estes deixariam de fazer sentido. Nem todos os britânicos seriam deslocados, Theresa May manter-se-ia na ilha para ensinar os preceitos da etiqueta a Viktor Orbán. A rainha Elisabeth II de Inglaterra, como no youtube a dizem reptiliana, seria substituída pelo melhor ginete cigano de Budapeste – um equídeo, além de especialista no xadrez como o comprovou Swift em As Viagens de Gulliver, enobrece sempre qualquer réptil. Eu próprio já exigi ao meu vizinho de 26 anos, com quem não me dou nada bem e que tem o meu porte, que me ceda o esqueleto dele; em ficando com os meus bicos-de-papagaio baixará a gripa. De Donald Trump só me interessa a cabeleira; dispenso-lhe o “arsenal”, para cogumelo basta o meu. Para compensar, estou a investigar sobre o “pinto” de Leon Tolstoi, e, por intermédio de um espírita amigo, negoceio o nosso transplante de pélvis. À minha mulher há-de agradar esta nova Guerra e Paz! (à mulher do cronista, não confundam sujeito da crónica com o sujeito civil – mas não lhe digam, que é surpresa!) Ah, como serei dedicado e preventivo contra a fadiga dos materiais! E a Putin, por que não exigir o mesmo a Putin, ó Donald? Segredaram-me que os chineses se prontificam a entregar aos EUA toda a tecnologia referente à Inteligência Artificial, desde os segredos da HUAWEI ao fabrico das robots-sexuais que fazem boletins meteorológicos e traduzem os poemas de Li Bai. Cuidado América, esta oferta pode não passar de um cavalo de tróia, embora, nesses domínios, quem melhor para cuidar da fadiga do material? Entretanto, parece que nos campos de golfe de Trump – delataram os funcionários – só ele pode ganhar. Quem lá vai deixar o couro e o cabelo por uns metros de relvado e a codicia dos buracos, tem de ceder à prerrogativa. Os milionários pagam para se comprometer a deixar o boss ganhar. Uma medida digna de Kim Il Sung, avô. Foi o que os terá aproximado da primeira vez? Contudo, agora, Kim ficou ofendido por considerar que a proposta americana apontava para a crença de que haveria nele uma fadiga da inteligência. Foi-me pedido um parecer sobre esta matéria e prometo depois divulgar o meu relatório. Esta semana foi farta em acontecimentos. Escreveu-me a Joice Hasselmann, representante do partido de Bolsonaro no Congresso. Eis o teor da missiva: «Meu caro Cabrita a política é como a pesca ao corrico – lança-se o isco para longe e vai-se puxando, a ver se pica cardume… O Jair Bolsonaro nunca foi desses pescadores que fazem de cegonhas no mercado antes de voltarem a casa. Onde deixa cair o anzol é certinho, só não vêm sereias porque a Michelle não deixa. Mas muito robalo, pirarucu, dourado… até o atum, conhece? O atum prostra-se aos seus pés. E o Jair sabe escolher a melhor minhoca, a corrente do peixe, os ventos favoráveis… com ele não há demoras. Uma genebrazinha apura-lhe o faro, a intuição. Só peixes nobres. Nesse dia foi à pesca, a espairecer, consumia-o a política do PT. Contra os vermelhos, um peixinho de sangue azul, porque ele se põe o anzol, até o lagostim trepa, mesmo o macho… Teria sido escusado ele levar a melhor cana, uma cana de carbono, de quatro metros, que tinha comprado em Montevideo, para ali era desnecessário, mas um homem tem a sua vaidade! Uma cana de carbono, negríssima, com uma flexibilidade que não se via em mais nenhuma. Ainda dizem que o Jair é racista… E estava por ali, na Estação Ecológica de Tamoios, entre Angra dos Reis e Paraty, sossegado a contar as guelras que se iam amontoando no balde e congeminando como salvar o país dos comunistas quando apareceu aquele fiscal, O senhor não pode pescar na Estação, é proibido. Mas sabe quem eu sou, perguntou-lhe o Jair, eu sou o próximo salvador da pátria. Pode ser, mas eu sou do Ibama e hoje tem de tomar multa, 10 mil reais. Olhe que eu vou salvar o país, eu nunca minto! Eu até acredito no senhor, mas lei é lei… e aplicou-lhe a multa. Há dez anos, senhor Cabrita. Eu sei que parece coincidência ser o único fiscal do Ibama exonerado agora que o Bolsonaro chegou ao poder, mas é preciso ser muito caro de pau para achar que neste gesto de despedimento houve ressentimento. Repare, o espírito religioso é o mais apto à defesa do Meio Ambiente e esse senhor não era um simples fiscal mas um Chefe; ao não reconhecer em Bolsonaro o seu dom e a sua missão mostrou como estava despreparado para o cargo que ocupava. Quando Cristo fez secar a figueira que não deu frutos à sua passagem houve todo este sururu? Então? Ainda vai ser estudado: a Parábola do Peixe Ilícito. Sei que o senhor é um jornalista sério, e por isso passe a Palavra. Sua, Joice”
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasTupperware [dropcap]”O[/dropcap] amor é um alimento”, recorda-me o Facebook nas suas memórias. Quem o diz, num vídeo, é Gustavo Santos, o guru que todos amamos odiar. Ontem, no comboio para casa dos meus pais, uma rapariga contava, ao telefone: “Sabes aquela marmita? A minha mãe encheu-a de salsichas e molho.” Eu própria regressei coleccionando mais um tápáruére, como se diz em bom português, com doce de côco, consequência da última ida da minha mãe à Guiné. É uma verdade universal que os ditos, pertencentes a alguém que seja mãe, devem ser estimados e devolvidos imaculados, o mais depressa possível, sob ameaça de desencadear várias pequenas guerras familiares à escala mundial. Recordo uma amiga ter-me levado dois, certa vez, um com uma inscrição a marcador preto onde se lia que o dito lhe pertencia, a ordenar “favor devolver” e outro, da sogra, que já lho pedira há bastante tempo e que ela, julgando-o perdido, suspirou de alívio ao saber que ainda existia. Devolvi-lhe as caixas com almôndegas que tinha feito nesse dia. Se, para alguém que adora livros e ainda os empresta, não há nada pior do que não os reaver (excepto dobrarem os cantinhos de páginas que não marcámos), é também verdade que é por nunca devolvermos alguns que a nossa biblioteca ganha contornos mais interessantes. Por três vezes comprei e emprestei um dos meus preferidos, “A balada do café triste“, de Carson McCullers, e lhes perdi o rasto. Paz à alma dos “Contos Completos” de Truman Capote e à versão bilingue do “Book of Longing“, de Leonard Cohen. Anos passados, encontrei este último em versão original na estante de alguém que me é querido, e trouxe-o apenas para,uma hora depois, declarar, insolente, que não lho devolveria. Mas ele deixa. O amor, tal como os tupperware, também pode ser rastreado, perdido, devolvido mas nunca de igual modo, não importa se numa caixa de gelado de tamanho familiar usada para congelar malaguetas ou num daqueles dos bons, com abertura para deixar escapar o vapor e que vedam tão bem que quase não conseguimos abri-los. Cresci com uma mãe que é a melhor cozinheira que conheço e de quem de momento tenho três caixas em casa. Mas vou encontrando outras que não reconheço logo: a de tampa azul da Andrea, o frasco de vidro da Lilit, o de tampa amarela do Daveed. Vou-me apercebendo de quanto da nossa memória afectiva está contida nessas caixinhas e frascos. Lembro-me de ter deixado um saco com o meu melhor tupperware, de sopa, à porta de um rapaz que amei muito e durante muito tempo. Foi a primeira vez que o fiz. Como um gato que nos recebe com um pássaro ou rato morto na boca e o deposita a nossos pés. Gestos de amor, delicados. Rituais e oferendas, sacrifícios. Afectos por vezes recíprocos, tupperware muitas vezes não recuperáveis. Lembro-me de voltar de casa dos meus pais com uma das comidas preferidas do meu namorado da altura, feita pela minha mãe, e de ele a ter devorado sorridente, mandando recados elogiosos para ela, que ainda nem sabia que ele existia. O prazer de preparar refeições para a semana e ver aquele amontoado de caixinhas cheias de segredos e coisas boas, acalma e é demasiado bom, sobretudo para quem tem algum transtorno obsessivo-compulsivo. Sim, porque também cozinho para mim, para conforto próprio. Outro dia saí com sopa e bolo (eu juro que cozinho muitas outras coisas) para uma amiga que estava muito doente. Desta vez, pedi que passasse o que trouxera para outros recipientes ou pratos, ela lavou-os e eu trouxe-os de volta comigo. Talvez eu esteja em estágio para a maternidade sem o saber. Certamente já passei demasiado tempo a tentar fazer coincidir tampas e caixas, no armário e na vida (se nunca partilharam casa, não sabem como é difícil conseguir harmonia e coordenação de recursos). Mas quero com isto dizer que voltei com bem mais do que levei, e nem me refiro a chás arménios e colombianos ou a uma conserva maravilhosa. Regressei a casa sabendo que ainda agora lá estava, e é esse o motivo pelo qual vou continuar sempre a demonstrar, da maneira como o fizeram comigo, o que é para mim o amor. Um alimento, uma partilha, uma delícia. Na mochila, em sacos, nas mãos, na poesia de e.e. cummings, carregamo-nos uns aos outros, aos nossos corações e às nossas boas intenções e más interpretações. Uma e outra vez nos transportamos do frigorífico para a mesa, para o aprofundar de laços, para celebrações demasiado íntimas para caberem em algum lado. Mas nós bem que tentamos. Home is where _____________’s (insert person you love here) tupperware is.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasPressagiar catástrofes com amor [dropcap]É[/dropcap] conhecido o apego romântico pelas ruínas que fez escola a partir do primeiro terço do século XVIII. Houve na época – e um pouco mais tarde – quem sacralizasse e até quem forjasse ruínas. William Gilpin (1724-1804), amante deste tipo de poética, chegou a propor a destruição parcial de algumas villas de Palladio para que o gozo do “laconismo do génio” se tornasse possível. No final desse século, o círculo dos românticos de Jena, nomeadamente Schlegel e Novalis, também não escondeu a paixão por uma estética do inacabado. Este último traduziu o encanto pelo escorço através da fórmula: “devolver ao finito uma aparência infinita”. Nestes casos de admiração pelo não acabado, pelo informe e pelo puro fragmento está em causa aquilo que, de modos muito diversos, Freud e Agamben viriam a designar por fetichismo, ou seja, a substituição de um todo (de um corpo) por algo que o representasse com o intuito de o tornar presente e, ao mesmo tempo, de o ofuscar (em Delfos, vinte e tal séculos antes, o oráculo não fazia outra coisa). O fetichismo faz parte da fantasia com que se imagina um vaivém regular entre um objecto que se deseja e um (efabulado e bem tratado) objecto interposto que o prefigura. A publicidade, sobretudo depois dos anos cinquenta, aprendeu e interiorizou muito bem esta lição (percebendo que as ruínas também implicam a consciência de um tempo que é humano e que, portanto, não nos cai de cima, desamparado, vindo de uma qualquer graça divina). Em 1765, o pintor Hubert Robert regressou a Paris, após uma estadia em Roma – tinha então pouco mais de trinta anos -, e viu-se subitamente recebido em festa. Os seus arcos de triunfo cobertos de ervas daninhas e os seus pórticos desabados mereceram grande aplauso. Diderot, que foi pioneiro no que se viria a chamar ‘crítica de arte’ (ao escrever sobre os Salões do Louvre), foi um dos entusiastas de Robert, tendo considerado que os seus quadros suscitavam um estranho efeito de “doce melancolia”: “Viramo-nos para nós próprios, antecipamos os efeitos da passagem do tempo… e eis assim consagrada a poética das ruínas”. Congelemos as palavras de Diderot e reatemos a conta-corrente do nosso tempo: a humanidade ‘despeja’ todos os dias na rede um número incalculável de palavras, grafos, algarismos, pasmos, idiotias, seja o que for, enfim, que advenha do acto de teclar (e de outros tipos de inscrição que nos são familiares). Dessa quantidade de material pouco sobra ou tem utilidade uns dias depois. O que se actualiza, quase logo se desactualiza. O mais curioso é que a cultura da rede só dá realce – e em jeito de compulsão – ao ‘agora’. O que implica que se está a formar no planeta um arquivo morto, ou, se se preferir, uma imensa amálgama de ruínas. Gilpin e Robert dariam saltos de gáudio por cima das fogueiras de Santo António. É possível que um ‘renascer’ da antiga tradição da poética das ruínas venha, um dia, a revelar o âmago da época em que vivemos, pois parte dela é diariamente submergida e raramente sujeita a uma reciclagem, digamos, definitiva. Talvez o teor desta futura arqueologia venha a conhecer ressonâncias parecidas com o teor dos plásticos que devoram oceanos e que estão hoje a ameaçar as espécies marinhas. De qualquer modo, o papel das ruínas sempre foi o de pressagiar a catástrofe, enquanto parte intrínseca do fôlego moderno. Mesmo quando elas são invisíveis e aparentemente pouco ruidosas, como é o caso dos destroços, dos resíduos e de todo o tipo de restos (mais ou menos) mortais que são gerados pela rede.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasEntre amigos [dropcap]T[/dropcap]empos estranhos estes, leitores. Mas por outro lado, terá havido alguns que o não tenham sido? Duvido. Mas é com estes dias que temos de lidar; e estes são os dias em que todos os dias existem “estudos”. Sabeis do que falo. É difícil escapar a uma publicação que nos grita que um “estudo” decidiu que o pepino não existe; que respirar é perigoso; que usar pijama está por enquanto fora de moda; que ler crónicas de sujeitos com o apelido Guedes pode ser nocivo à saúde. E por aí fora. A ideia que parece transversal às conclusões destes “estudos” é esta: “estudámos” o óbvio, e concluímos que o óbvio não apresenta grandes interpretações. É, como dizem os “estudos”, óbvio. Mas pronto: toda a gente tem direito a “estudar” o que quiser, embora não me importasse nada de conhecer quem financia estas actividades. Dava um jeitão ser subsidiado para um “estudo” que concluísse que à noite temos sono, por exemplo. Daí que sem surpresa tropecei em mais uma investigação rigorosíssima e essencial à humanidade que concluía que a amizade entre homens heterossexuais durava mais e melhor do que as relações românticas ou casamentos dos sujeitos estudados. Deixem-me colocar a coisa em termos modernos: o “bromance” – contracção entre ‘brother’ ou ‘bro’ (mano) e romance – é coisa mais perene do que namoros ou matrimónios. Ainda bem que alguém pagou a alguém este “estudo”, sob pena de vaguearmos nas trevas até ao fim dos tempos. Mas pelo menos deu-me assunto, o que nem sempre é fácil. Numa altura em que existe uma fúria igualitária que chega mesmo ao modo de sentir, haja um “estudo” – por mais ocioso e parvo que seja – que lembre que há diferenças. E é nelas que devemos rejubilar. Não falo de hierarquias: a amizade masculina não é melhor, mais leal ou seja o que for do que a amizade entre mulheres. É apenas diferente. E sinceramente, se é ou não mais duradoura do que as “relações” é irrelevante. Há muitos exemplos públicos e notórios deste fenómeno agora “estudado”: Sinatra e Dean Martin, Kingsley Amis e Philip Larkin, Lobo Antunes e Cardoso Pires. E tantos outros que vivem felizmente no quotidiano. Como é o meu caso e poderá ser o seu, leitor. Eu conto, só como exemplo: há pouco tempo fiz uma longa viagem, cerca de cinco a seis horas de carro. Um terço desse período foi passado em completo silêncio, com a excepção da música que se fez ouvir na rádio. Os outros dois terços foram mais ruidosos: inventaram-se línguas estranhas para canções, partilharam-se escatologias sem pudor, disseram-se grosserias a sorrir, falou-se de cinema e de episódios marcantes da vida, lembraram-se lengalengas infantis e brejeiras. Rimos, rimos muito. O silêncio foi apenas um parêntesis necessário para tudo isto. E “isto” são quatro amigos em viagem. Nem sequer quatro amigos “íntimos”, de frequência constante e confidentes – apenas gente que se gosta e que circunstâncias profissionais junta de quando em vez. Isto, para mim, que não tenho “estudos”, é a essência de uma amizade masculina (e pronto, no caso heterossexuais apenas porque calhou assim). A assiduidade nunca está em questão, nunca está à prova. O silêncio é suportado naturalmente e até bem-vindo. Partilhar o silêncio com uma amiga é muito mais difícil. E isto não é um julgamento, apenas uma constatação de quem tem grandes amigas mulheres. Isso e esse regresso a uma adolescência artificial e efémera faz um pouco da amizade masculina. Os homens adultos, quando se juntam, transformam-se em crianças velhas e livres. A escritora Iris Murdoch, que não era exactamente uma admiradora deste estado, definiu-nos bem: “ [a companhia masculina] é uma espécie de cumplicidade no crime, (…) de deglutir o presente de forma gulosa mesmo que o inferno esteja por todo o lado”. Terá razão. Mas ainda assim prefiro o que escreveu Montaigne após a morte do seu grande amigo La Boétie: “Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria: ‘Porque era ele, porque era eu’ ”. Olho uma fotografia: mostra Humphrey Bogart a aninhar o seu grande e pequeno amigo Peter Lorre sob um enorme abraço, com o olhar benevolente de Lauren Bacall. E penso que este sim, é o mundo, e que se lixem os “estudos”.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasComo um garfo Povo, Lisboa, 18 Março [dropcap]”Á[/dropcap]gua, água a toda a volta / e as pranchas a encolher; / Água, água a toda a volta, / E nem gota para beber. // O oceano apodrecia: / Meu Deus, meu Deus e que isto se haja podido passar! /Viam-se ali rastejar seres de lama com patas/ Por sobre a lama do mar!» A noite abriu-se com A Balada do Velho Marinheiro, épico setecentista de Samuel Taylor Coleridge, lido de enfiada pelos marujos Jaime [Rocha], [José] Anjos, Luís & Luís [Carmelo Gouveia Monteiro], com apoio de amurada do violino de Francisco Ramos. Navegou-se a versão de Alberto Pimenta, recriando pela voz as paisagens negras, as tempestades interiores, as fantasias de horror que resultam da morte descuidada de um albatroz. Sonharei com mil metáforas, vicejando no charco do tédio, enquanto a nave-cemitério desliza. Mymosa, Lisboa, 19 Março Apesar do ruído de fundo, a conversa com o Levi [Condinho] possui condão musical. Aparte a agenda do que se vai tocando, nas salas-praças como nos becos recônditos, discorre ainda com qualquer coisa de cidade. Um lugar erguido sobre espantosa memória. Andamos às voltas com «Pequeno Roteiro Cego», a antologia que o Miguel Martins e o António Cabrita lhe dedicaram, e por isso mesmo o assunto dificilmente seria outro que as múltiplas vidas, a minimal repetitiva ou a atonal, a aleatória ou apenas clássica. «vamos procurar as árvores dessas ruas e escrever nelas o nosso encantamento/ para que o mundo saiba que a redenção dos astros/ passou pelos nossos lábios numa noite em que assaltámos/ as portas de Deus». Ao que parece, foi a música que fez trocar o seminário pelo mundo. Mas por onde anda Deus, afinal? Horta Seca, Lisboa, 20 Março Por milhentas razões, uma deles o bafio de grémio ajuntando duas profissões que não possuem os mesmos interesses, fui resistindo. Até hoje. Recebi o cartão que diz ser o sócio 2733 (rasurado) da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Que auspício devo ler nesta gota de azeite tombando no alguidar? Jardim da Parada, Lisboa, 21 Março Carregamos caixotes, quase só poesia, para a barraca de madeira ainda com nódoas de queijo, talvez de enchidos ou mel, quem sabe. Desta, na Feira da Poesia da Casa Fernando Pessoa, não nos calhou em sorte a número 13. De tanto ouvir que a poesia está na moda, talvez comece a acreditar. Tomo nota das homenagens com que o país se engalana para saudar Sophia ou Sena, mais aquela que este. Vejo os fins de tarde nos cafés da cidade a encherem-se com leitores em voz alta. Nas sessões do Povo, há quem exija acaloradamente momentos open mic para aproximar os lábios do microfone. Depois, os festivais, os concursos, os simpósios, as polémicas. A questão emerge sempre a mesma: que sobrará desta espuma? O esforço de feira serve apenas para manter ténue ligação à terra, para que um ou outro leitor incauto possa ter os livritos à mão de semear. Mymosa, Lisboa, 22 Março Certas amizades entretecem-se em agitada tranquilidade. Pode cada um dispor na mesa a sua inquietação, a dúvida, o que resta do sofrido ou alegrado, a esperança e uma visão, ânsias, um texto ou afazer, gestos, por vezes até a crepitação de um deus fugidio. E memórias, sobretudo se assumirem o fulgor das de Agostinho Jardim Gonçalves, o viajante frenético. Certos encontros são, só por si, rota e destino. Villa Portela, Leiria, 23 Março A vista do vale pedia mais tempo de fruição. Abusámos, pelo que a descida às mãos do João [Nazário] atropelou minutos e paisagens e despenteou os tiles dos nomes que os tinham. Acorríamos, no âmbito da «Ronda Poética», à primeira sessão pública em torno de «anastática/para Alberto Pimenta», antologia que ganha intensidade por força das circunstâncias. Manuel Rodrigues aconteceu fazer-se grande leitor de Pimenta, que há muito fascinou Edgar [Pêra] que, na sequência do documentário que lhe dedicou, vai de escolher os poemas onde o Manuel mais se entregava ao diálogo com Alberto. Do triângulo nasceu o volume, com insuspeita unidade e abrindo para uma voz que merece outras a(tenções (não sendo gralha, o parêntesis). A linguagem, a palavra surge aqui na vez da carne da realidade, personagem principal neste coro de vozes, tantas vezes mudas, mumificadas, postas em pedra. Estamos em perda, bem o confirma qualquer diálogo com as tradições, com os mortos, com os mais vivos de nós. A palavra tem que desfazer-se navalha que rasgue sentidos. E isso faz o Manuel com a mais banal, a mais gasta pelo uso, que colocada cirurgicamente no poema nos obriga ao torção, a procurar novo rumo, a rodopiar para fora de todos os centros. A pontuação atípica respira uma asmática de esforço. Muitos parêntesis se abrem para nenhum fecho visível. Assinalando pontos de encontro de origens distintas, confluências, esquinas. Como pétalas de uma rosa que resiste. «abre-se a janela/corre uma aura romântica/ através da cortina bicolor e/se fecha logo ( mas já entrou/ abre-se para que saia e/ penetra outra com pó/ moderno ( os germes/ vêm sempre já com nomes/ e uma equipa de especiais/ que lá fora provam o ar/ e o respiram para conclusões/talvez teóricas talvez piores/ que as anteriores/». E depois há Pymenta, aquele que jamais conclui, como bem revela o imperdível, «O Homem-Pykante – diálogos com Pimenta». Afirma Manuel, fechando poema que tudo implica: «estás no meio e sabes que vais morrer ’/ por entre qualquer infinito/ cada ponto é eixo sendo seu central/ livre ou perdido ou orientado/ caindo sempre por dentro/ veículos de lenta transformação/ transporte mudanças e transacções/ na constante mesma certeza/ do inesperado eminente incógnita/ concomitante/ ao corpo trazido/ à potência do delírio …/para além dos seus limites/ ninguém mais vivo há que tu ’/ e sabes que vais a meio» Arquivo, Leiria, 23 Março Somos reincidentes, na triplicidade, mas com pretexto mais óbvio de lançamento. Mas agora caiu oficial, a «Ficha Tripla», tanto mais que a foto do Sal [Nunkachov] (algures na página) foi tirada aqui no palco, já querido, da Arquivo. Que acontece de distinto quando nos juntamos para dizer? O Anjos leu menos do que o habitual, pendurado que estava nas cordas da guitarra. Sem que com isso contasse, devolvemos-lhe versos de raspão. O António faz soar como ninguém o seu Trakl. Fugi dos meus versos (onde andam eles?) para me perder no José Manuel Simões. As noites acontecidas e prestes a acontecer exigiam-no. «Do chão onde ontem a enterrei/ a noite irrompe como um garfo,/noite de hoje que eu não conheço/ e todavia já/ noite velha que sei de cor.// Como um gesto premeditado,/ nasce assim devagar,/ tão nacional e tão leve,/ tão primaveril pelas esquinas,/ tão cheia de gatos nos telhados,/ tão sem sono por ela adiante,/ pequena noite habitual e casta/ ligada ao dia por minúsculos grãos de café,/ cores, vidros e frágeis cordões de fumo,/ mas no entanto e sempre/ tão principalmente noite». Arquivo, Leiria, 24 Março Antes de outra de «cores, vidros e frágeis cordões de fumo» e luminosas gargalhadas, com a incansável Susana [Neves], a cansada Suzana [Nobre], o anfitrião João e o atento Sal, também para esconjurar as negras notícias, «No Precipício Era o Verbo» desdobraram-se em palco, com uma novíssima segunda parte dedicada a Sophia. As cordas endiabradas do Carlos [Barretto] soaram a chão movediço para as vozes inspiradas dos funambulistas habituais. Uma das peças foi dedicada à Patrícia Baltazar, que, em «Catapulta» (Ed. Do Lado Esquerdo), desenhou o momento com esta navalha: «Não vai doer. É bater de frente com a morte. Olhar a silhueta das asas de um anjo». Saravá, Patrícia.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras I Dedicado a José António Tenedório [dropcap]A[/dropcap] palavra fronteira tem vários sentidos. O primeiro que ocorre é geográfico. A fronteira delimita países geograficamente. Mas historicamente alteram-se tal como diferentes foram os diversos povos que habitaram o espaço delimitado por uma mesma fronteira. Há fronteiras naturalmente geográficas: rios e montanhas. Outras foram forçadas política ou militarmente. O conceito de fronteira tem múltiplas dimensões. Definem-se espaços dentro das fronteiras nacionais e além-fronteiras. Além disso, ser fronteira não define apenas estaticamente localidades, locais, lugares, regiões, províncias terrestres, mas também há fronteiras marítimas que são território nacional de um país e vão muito além do território terrestre. Ser fronteira não é assim definido bem por uma linha geográfica. Ela é difusa ao olhar ainda que bem definida em latitude e longitude. Ser fronteira não é assim um objecto apenas realmente existente. Ao olhar para o globo terrestre como um todo, encontramos morfologias marítimas e terrestres que são as únicas heterogeneidades que encontramos a olho nu. Ser fronteira permite compreender o que é entrar num país e sair de outro país, o que é invadir e defender, acolher e exilar-se, regressar e partir. São muitos os infinitivos que estão conjugados no ser fronteira. A expansão das fronteiras nos impérios historicamente relevantes permite compreender também outros sentidos. Do ponto de vista do império e do invasor colonizador, o projecto para o mundo inteiro é integrar dentro dos seus limites. Do ponto de vista dos colonizados é ter sido invadido e ter perdido a identidade nacional dada pelo corpo definido na anatomia da sua fronteira. Aquém e além, dentro e fora, no interior e no exterior, acolher e libertar são determinações pensadas no fundo da concepção de fronteiras. A cabeça da serpente que era Roma para o seu império tinha as suas fronteiras numa periferia móvel. Um historiador como Tácito compreende o império a partir da relação tensa que há entre a fronteira na Germânia por exemplo e o que se passa na cidade. O arco tenso entre o núcleo duro do senado romano e as fronteiras do império funda o espaço interior estruturante do próprio império. A nossa vida tem diversas fronteiras vitais. Os sítios que habitamos na nossa existência estão localizados num mapa vital que pode ser partilhado com outras pessoas. Enquanto mapa definido pela vida humana desmultiplica-se em múltiplos sítios, lugares, localidades. Há tantos países quantas as pessoas que são naturais dos seus países e uma única pessoa conhece vários países. Há tantos globos terrestres quantas as pessoas que o habitam, ainda que só lhe acedam pelo ângulo particular do canto do olho. Há múltiplos globos terrestres vistos por uma única pessoa conforme o país que habita ou visita apenas e o duplo olhar que se constitui como natural de um país ou como habitante, provisória ou definitivamente, de um outro país. O conceito de fronteira corresponde em certa medida ao conceito de horizonte. Mesmo que compreendamos a existência de fronteiras e elas possam ser efectivamente ultrapassadas, mesmo que consigamos ver fronteiras representadas ou fotografadas na contemporaneidade ou ao longo da história, a interpretação do ser fronteira implica sempre uma vivência existencial do sentido, do que é estar em casa, em segurança, de um modo acolhedor, cómodo, familiar. E por outro lado, o que é projectado para fora dessa comodidade, o que é inóspito e inospitável, o que é estranho, está fora de casa, nos faz sentir como peixes fora de água. Gizamos, assim, as nossas próprias fronteiras ou vemos como elas são projectadas a partir do interior da existência humana. Define-se para nós de algum modo desde sempre o espaço estrutural do que é familiar e nós é próprio, do que nos pertence, e o espaço inóspito do que provoca alienação em nós, nos é estranho e não nos pertence. O espaço desta fronteira é afectivo ou sentimental. As fronteiras alteram-se a partir da intimidade da nossa sensibilidade que nos faz sentir em casa no mesmo sítio que nos faziam sentir não em casa. E vice versa: podemos deixar de nos sentir em casa no mesmo sítio a que outrora chamávamos casa. Há fronteiras delineadas com outros que ficam borradas, quando os outros desaparecem. Há fronteiras definidas com outros, quando não havia nenhuma linha a determinar qualquer horizonte de habitabilidade. Há fronteiras que são imaginadas, quando no passado eram inimagináveis, e passamos a habitar um sítio que é bom de ser habitado. Há mundos perfeitos que desabam por não terem fronteiras afectivas. Não por desaparecerem, mas porque nos lembram cidades fantasma inabitáveis pelos próprios nós que já foramos e não seremos outra vez ou só muito dificilmente. Cada pessoa giza as fronteiras do seu próprio império e tem que se ver com as fronteiras dos impérios que são as existências dos outros. Ao sermos com outros, somos por eles e contra elas, passamos por eles na nossa mais completa indiferença, ou ficamos presos uns aos outros pela ausência de indiferença, quando os outros fazem a diferença e nós fazemos a diferença nas suas vidas. Cruzam-se várias nações com outras pessoas, esboçam-se mundos, refazem-se mundos, desfazem-se mundos, constrói-se impérios e destroem-se impérios. Somos Roma e as zonas limítrofes mais periféricas, de nós mesmos e dos outros. As fronteiras são desenhadas a partir do próprio que é nosso, a partir do interior, da intimidade da nossa própria vida. A vida nas suas múltiplas formas com outros e sem eles, sensibilidades, impactos afectivos, crises emocionais, ganhos e perdas é vista a partir da Roma do império que somos nós com outros até à periferia do mundo inteiro na sua totalidade. É aí que se definem os outros na importância muita, pouca, nenhuma ou total das nossas vidas nas dos outros e das dos outros nas nossas vidas. É nesse interior que se define o ateniense em nós e os bárbaros, os que são nossos e os outros. É aí que nos definimos, que percebemos se riscamos ou não riscamos, se somos importantes, muito, pouco ou nada, ou somos tudo parar os outros. E nós próprios na multidão de gente que somos, na múltipla personalidade que é a nossa, definimos também fronteiras para o nosso eu mais íntimo, aquele mesmo que nós somos, e para os outros eus que desprezamos, de quem temos medo, que segregamos, que não afirmamos ou até negamos que alguma vez tenham existido. À superfície da consciência ou sou quem giza a fronteira entre o aquém de mim e o além de mim, quem eu integro e quem eu expulso. Que fronteiras são estas? Qual é o sentido do ser fronteira em que eu entro e saio, eu integro e expulso, eu segrego e acolho? Cancelar-me-ei de mim próprio ou estou sempre continuamente numa posição de apropriação? E a fronteira da vida que é o seu limite, o além, depois da morte?