Reformas dos Calendários

[dropcap]Q[/dropcap]uando os portugueses se estabeleceram em Macau, o mundo ocidental era ainda regido pelo calendário juliano. Este fora criado no ano 708 de Roma [46 a.C.] pelo grego Sosígenes, que transferiu o começo do ano de Março para o dia 1 de Janeiro, fazendo-o corresponder à Lua Nova depois do Solstício de Inverno. Mudou também o nome do quinto mês para Julho, em homenagem a Júlio César e à duração do ano trópico de 365 dias deu mais um quarto de dia, passando cada quatro anos a haver um de 366 dias. Teve esse ano 445 dias, para se estabelecer a concordância entre as estações e o Equinócio da Primavera, sendo os mais de dois meses atrasados agregados sem terem passado. No entanto, o ajuste do calendário teve um erro corrigido no ano 757 de Roma [4 d.C.] por Augusto César Octávio, que ordenou a mudança do nome do mês Sextilis para Agusto (Agosto), como Júlio César fizera e para ter tantos dias como o de Julho tirou um dia a Fevereiro, ficando este com 28 dias. Em 525, o monge Dionysos Exiguus fixou a origem do calendário cristão em 25 de Dezembro do ano 1, que representava o ano 753 após a fundação de Roma.

Em 1582 o Equinócio da Primavera ocorreu a 11 de Março, percebendo-se haver um erro de dez dias no calendário juliano. Então, na 4ª feira de 4 de Outubro o Papa Gregório XIII decretou que o dia seguinte passava a ser 6ª feira, 15 de Outubro de 1582 do calendário gregoriano. Este foi logo adoptado por Portugal, Espanha, Itália, França e só mais tarde pelo resto dos países Europeus e suas colónias.

Os jesuítas na China

Ainda antes de ser estabelecido o novo calendário, Macau em 1582 iniciava o seu período de apogeu, em que a prata passava a ser usada nas transacções entre a China e os portugueses.

Organizava-se então a Biblioteca dos Jesuítas com os livros chineses de D. Melchior Carneiro S.J., que desde 1568 aqui vivia e fora o primeiro a governar a Diocese de Macau, erecta a 23 de Janeiro de 1575 por bula de Gregório XIII, a abranger toda a China, Japão, terras vizinhas e ilhas adjacentes. O Capitão-mor D. João de Almeida e o Bispo do Japão e China D. Leonardo de Sá, chegado no ano anterior, recebiam a 9 de Março os quatro jovens embaixadores japoneses, que iam a caminho de Roma, e eram acompanhados por Alexandre Valignano, o Visitador dos Jesuítas no Japão. Por essa altura aqui ainda não existia o Senado, nem se sabia estar Portugal sob o domínio da Espanha, só revelado a 31 de Maio. Matteo Ricci (1552-1610), vindo de Goa, chegava a 7 de Agosto e ainda em 1582, Chen Rui, o novo Vice-rei de Guangdong e Guangxi, convocou o Capitão, o Ouvidor e o Bispo para se apresentarem em Zhaoqing (capital da província) a fim de esclarecer o estatuto de Macau, ainda não reconhecida legalmente pelo Governo de Cantão, apesar dos mandarins do distrito de Huengshan aqui terem funcionários chineses nos serviços alfandegários. Os governantes portugueses recusaram-se ir à sede da província, mas como era importante enviar uma delegação, para aí seguiram o ouvidor Matias Penela e o jesuíta italiano Michele Ruggieri. O Tutão (Vice-rei), atraído pela promessa do jesuíta de um relógio mecânico portátil em ferro como presente, em Dezembro desse ano mandou-o chamar e nesse encontro permitiu aos portugueses continuarem em Macau, mas sujeitos às leis chinesas, e aos padres, a possibilidade de viver na China.

Quando a 19 de Agosto de 1583, pelo calendário gregoriano, D. Melchior Carneiro faleceu em Macau, os jesuítas Ricci e Ruggieri preparavam-se para seguir até Zhaoqing onde iriam fundar a primeira Missão católica na China. Aí ficou Ricci, até que em 1598 viajou para Beijing onde, expondo as novas teorias da Renascença, sobretudo na área das matemáticas e astronomia, cativou os eruditos e o Imperador Wanli (1573-1620). E foi pelo saber científico, sobretudo dessas duas matérias, que os jesuítas entraram na corte do Celeste Império, onde vigorava o Calendário Shou Shi.

Narração do Tempo

Os chineses tinham uma longa história na Astronomia e as muitas reformas dos calendários davam-lhe já um alto grau de perfeição. Se os primeiros resumiam-se a evidências fragmentárias, já no ano 2608 a.n.E. o Imperador Amarelo (Huang Di) mandara construir um observatório, sobretudo para corrigir o calendário.

Após várias reformas, no ano de 462 apareceu o calendário “Da Ming”, cujo valor encontrado para o mês sinódico era ainda o mesmo em 1723 e no ano trópico havia uma diferença de 51,84 segundos para o calendário “Shixian” de 1645, feito por von Bell. Resultados ocorridos devido à melhoria das técnicas de observação levadas a cabo por Zu Chongzi, que encontrou a solução para saber a hora precisa do Solstício de Inverno ao prolongar por um espaço de 24 dias as medições da sombra do gnomo. Um maior comprimento da sombra projectada pelo Sol poderia ser observada nos dias mais distantes do Solstício de Inverno. Também inovou quanto à aplicação da precessão na formulação do calendário.

Com os mongóis a conquistar a Ásia Central e o Médio Oriente, os astrónomos chineses tomaram contacto com os calendários usados por esses povos muçulmanos e com a expansão territorial do Império pela Dinastia Yuan, o calendário “Hui Hui”, após ser revisto, foi adoptado em 1236 pelos muçulmanos do Norte da China e chamado “Ma Ta Ba”. O astrónomo persa Jamal al-Din ibn Mahammad al Najjari, que muito contribuíra para a feitura desse calendário através dos estudos que fizera no Observatório de Samarcanda, veio em 1267 para a China e ofereceu o “Calendário dos Dez Mil Anos” ao Imperador mongol Kublai Khan, tornando-se este o calendário oficial da China. Mais bem concebido que o calendário chinês “Da Ming”, quanto ao cálculo das órbitas planetárias e na aplicação da astronomia esférica, no entanto continuava a conter muitos erros.

Assim foi decidida a compilação de um novo calendário, tarefa entregue a dois astrónomos chineses, Wang Xun e Guo Shoujing. Guo inventara um novo gnomo, que permitiu confirmar o valor do ano trópico em 365,2425 e afirmava que o Solstício de Inverno era o instante em que o Sol se movimentava a uma velocidade máxima. Notou também que cada trimestre depois do terceiro dia a seguir ao Equinócio do Outono era de 88,91 dias e a duração do outro trimestre, que correspondia à Primavera, era de 93,71 dias. Estes factos levaram a concluir estarem correctos os cálculos do movimento da eclíptica do Sol e a flutuação da sua velocidade aparente, feitos em 728 pelo astrónomo Yixing. Resultante da compilação dos estudos efectuados na Grécia, Arábia, Pérsia e China, a Tabela Astronómica Il-Khanate (al-Zij al-Ilkhani), escrita em persa no ano de 1272, serviu de base a Wang Xun e Guo Shoujing para, combinando com a fórmula trigonométrica da esfera do calendário Hui Hui, fazerem os seus cálculos astronómicos do movimento diário do sistema solar. Assim, em 1281 criaram o novo calendário “Shou Shi” (Narração do Tempo), que foi a quarta grande reforma na história do sistema do calendário chinês.

1 Abr 2019

Patrícia Baltazar (1977-2019)

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 23 morreu uma grande poeta, Patrícia Baltazar, com apenas 41 anos. E os seus últimos meses nesta vida foram de grande sofrimento. Há pessoas cujo desaparecimento nos causa uma dor profunda, um vazio impronunciável, a despeito de não haver muita proximidade. Apesar de termos trocado vários emails, estive com ela apenas uma vez.

Guardo para mim esse dia precioso. Patrícia tinha uma aura de ser mais do que era. Todos temos um pé na terra e outro no além, mas nela isso via-se, ouvia-se, percebia-se. Há três anos, quando comecei a colaboração com o Hoje Macau, e no período em que escrevi acerca dos poetas mais novos, foi por ela que comecei. Tenho pelos seus livros um enorme apreço e gostava de os ver reeditados, lidos. Deixo-nos três poemas de Fumar Mata, Madrugadas, 2010:

XXX

Há muito mais do que medo da morte. Há uma chave na porta. Fuga e as minhas mãos em coma.

Sempre na frente de batalha, eu, com circo, pouco pão. Uma dádiva, ter a vida presa por um filho. Vida na vida. Amor. Um extremo.
Coma.

XXXI

Sabre. Suicídio.

Não vou regressar.
Fui ao pântano do sacramento. Os olhos secaram.
E não vou voltar.
Eu não sei voltar
– à prova de bala no peito. Láudano e absinto.
Outros ao acaso. Eles não sabem nem sofrem.
Tudo se degrada por cima da cama. Pouco
Calendário. Um só instante de pavor.
O amor é a náusea de assistir à náusea. Largar
vida por vida e tanta morte.

XXVI

Passei os dias nas coisas. fervi, dei de comer, dei de
Lavar, dei um beijo, disse-me traz-me azul.

No fim de contas, lavei o cabelo, cantei descalça
dançando com o cabelo, mudei o disco, cantei de
novo. Não dancei mais.

Chegou-me azul.

1 Abr 2019

Obras no andar de cima

[dropcap]H[/dropcap]á quase quatro semanas que tenho obras no andar de cima. Normalmente, começam por volta das oito da manhã. Mas há dias em que acho que não haverá barulho. Outros há em que acredito que terminarão em breve e nada faço. Nada faço quer dizer não saio de casa, não vou para a Faculdade ou para um café. Como trabalho em casa e estou habituado ao meu habitat, fico desnorteado. Insisto. Já me aconteceu estar horas à espera de que qualquer coisa suceda, que o barulho ensurdecedor pare, que eu consiga finalmente concentrar-me e abafar o barulho. Mas é óbvio nunca nada disso acontece. Num destes sábados, o trabalhador disse-me que ia fazer barulho. Respondi que já estava habituado. Não sei bem se me percebeu, até mesmo porque os trabalhadores das obras devem achar que as pessoas estão fora durante o dia. Pelo menos que podem ausentar-se. Ainda assim, tive o primeiro impacto com ele. Eram para aí umas seis e meia da tarde, quando começa o som do que posso descrever apenas como um matraquear violento. Parecia que era no interior da minha cabeça, não era na divisão acima apenas. Por mais que procurasse abrigo em qualquer uma das divisões da casa, ficava sempre exposto ao barulho ensurdecedor. O som é cacofónico, não tem ritmo ou varia conforme o volume do excessivo para ainda mais excessivo. O som tem um impacto táctil. Sinto mal estar por todo o corpo. Não consigo ouvir os meus pensamentos, nem escutar música nem ler nem ver televisão. Lá fui ao andar de cima e bati com força na porta, porque a campainha estava desligada. O senhor apareceu-me atarantado. Eu disse-lhe que era sábado e era já muito tarde para estar a fazer aquele barulho. Incomoda-me sempre falar com alguém que está a trabalhar. O trabalho é o seu ganha pão. O inconveniente e incómodo são meus. Ele pediu desculpa e terminou o serviço, pelo menos o mais pesado, porque achou que poderia executar outras tarefas não tão ruidosas. Eu não tinha percebido que aquele sábado era apenas o início de um inferno sem tréguas. A qualquer hora do dia, sobretudo de manhã, começava aquele ruído, barulho, manifestação acústica do inferno. É a minha representação acústica do inferno. Obras para sempre no andar de cima, sem que eu possa sair de casa. Não sei bem por quê não poder sair de casa, por que razão havia uma impossibilidade de alterar as hipóteses para sobreviver ao dia-a-dia. O que me faria insistir em estar em casa. Claro que é a casa e é aqui que trabalho, não tenho um local de trabalho, por assim dizer. Mas por outro lado, há tanta gente que vai para um café ou praia ou biblioteca. Por quê ter insistido? Talvez algo de resistente ainda sobreviva. Não quer ser expulso de casa e querer ficar onde é casa, onde me sinto acolhido, onde é familiar trabalhar. E é aqui que as coisas começam a fazer sentido. O meu trabalho como qualquer trabalho de natureza intelectual ou que requeira a concentração absoluta do espírito manifesta-se musicalmente. A música é a agenda, o programa, o calendário e o horário. Noto que não ouço música se não no carro. Mas nunca para trabalhar.

Não foi sempre assim. Costumava ouvir em modo repeat canções que me permitiram tal como mantras entrar em transe. Estudava a ouvir música. Depois, porém, deixei de o fazer. Tal como anos antes tinha deixado de tocar música porque se tornou objetivamente incompatível ler e tocar. Mais tarde tornou-se incompatível ler e escutar música. É que a agenda do estudo era musical. O objectivo era o transe, o fluído, a corrente disposicional que se cria quando estudamos, quando vamos nas horas num voo de sobrevoo, alto, sobre as picos da paisagem do espírito.

Quando estudo, ouço música. Como disse Sócrates não aquela versão popular, acústica, com instrumentos. É uma música idêntica à que se sente vibrar em nós quando vemos um filme ou um espectáculo, quando lemos ou ouvimos ler poesia. O mesmo se passa quando dou aulas. É uma passagem por uma dimensão musical. Era isto mesmo que eu achava que estava a acontecer. A passagem das horas requer a música que é criada ou recriada pelo estudo, pela insistência, pela tentativa de compreender e interpretar passos do pensamento ou formas de traduzir esses mesmos pensamentos. Ler é um acontecimento musical, transporta-nos para outras dimensões com velocidades musicais, ritmos, volumes sonoros, paisagens emocionais, sentimentos, vibrações que nos fazem bem ao corpo. É uma experiência Zen. Era esse feitiço que tinha sido quebrado. O ruído da vida, o barulho, perturba justamente esta dimensão musical que se cria pelo espírito, através do espírito e para o espírito.

Hoje, tem sido um dia bom. Comecei com as pancadas violentas que perturbam o sono às oito horas da manhã de uma noite mal dormida. Pensei que não iria sobreviver. Mas afinal, o barulho violento das batidas incompreensíveis tem sido mais ou menos pacífico. Consegui alinhar estas frases de transe e no transe, quando é bom ouvir lá ao fundo os carros a passar imperturbáveis na ponte 25 de Abril, quando os homens das obras não gritam uns com os outros e eu consigo, sossegado, entrar na dimensão musical da minha agenda.

31 Mar 2019

A constante de Galileu

[dropcap]P[/dropcap]ara dar um exemplo: Galileu seria hoje tão ou mais maltratado do que foi o seu tempo.

A insolência de Galileu foi irrestrita e profunda. Em primeiro lugar afrontou todo a saber dado como adquirido, seguro e insofismável. Convém não diminuir este desafio com a prosaica caricatura do cientista humilhado por autoridades presunçosas e prepotentes. É certo que a sabedoria vigente à época se cristalizara em dogmas e defendiam-na instituições estabelecidas como dominantes. Mas tal posicionamento fora ganho e consolidado ao longo de séculos de controvérsia, exposições e arguições, aperfeiçoamento conceptual, refinando os princípios e os corolários de um modelo sofisticado e satisfatório de conhecimento da realidade. Os adversários de Galileu não eram portanto uns tolos, mesmo que este nos seus diálogos – platónicos –, por puro desplante, tenha posto na boca de um Simplício as teses por eles esgrimidas.

Em segundo lugar a desfaçatez de Galileu foi ao ponto de pretender desbancar evidências empíricas. Mas que parvoíce é esta de desmentir o que se “vê claramente visto,” o que é verificável e mensurável – o Sol a descrever diariamente um arco no céu em torno da esfera terráquea?

Como pode alguém contradizer uma observação partilhada universalmente? Que falta de bom-senso…

O terceiro aspecto da insubordinação de Galileu é o mais abstruso e por conseguinte o mais ousado. Não faz sentido virar ao contrário a ordem do mundo, pretender impugnar a inteligência acumulada, a prática homologada, a cultura convencionada e o próprio senso-comum tão só com um argumento operacional.

Meu caro leitor, aqui chegados manda a prudência que te avise: doravante correrás o risco de te sentires insultado.

Vamos lá a ver: em nome de quê afirmas também tu que a Terra gira à volta do Sol?

Desfechar esta pergunta a meio de uma discussão garanto-te que é infalível em causar estupefacção no teu arguente, o qual é possível que replique: “está provado cientificamente.” Hás-de reparar que tal resposta, assim sem mais, coloca-o inapelavelmente ao lado dos antagonistas de Galileu, dos conformistas que aceitam com passividade caprina a informação corrente e comumente validada. Não passa de um acto de fé. Por isso incorre no equívoco maior de enterrar o debate no funesto lodaçal da crença. As conversas entre “acreditar” e “não acreditar” em matéria gnosiológica depressa desandam em teorias da conspiração – na medicina, na dietética, na agricultura, na economia, por exemplo, o obscurantismo tem ganho espantosa tracção – tão ridículas quanto indigentes, mas irredutíveis como é inerente às convicções.

Retorquir “está provado cientificamente”, sem demonstração e como se a certeza valesse por si, revela também falta de curiosidade, que é o germe do conhecimento. Não te incomoda aceitar como verdadeira uma explicação contrária aquilo que constatas? Se com tanta frequência recorres à experiência sensível para sustentar as tuas opiniões – “então não se está mesmo a ver que…?”, costumas dizer – porque diabo neste caso não confias no que os sentidos testemunham? Porque admites sem estranheza que deves desconfiar deles?

Recordo-te então que Galileu esteve em vias de lhe purificarem o espírito segundo o testado método da assadura das carnes porque afirmou o heliocentrismo como exacto pelo facto pueril e subsidiário de dar mais jeito às contas… Com Sol no centro calculava-se o movimento das estrelas com maior rigor, elegância, simplicidade e previsibilidade. E para aumentar o escândalo outra prova não apresentava senão a matemática. Com tão económico e transparente raciocínio, desanuviado de digressões especulativas, sem arrimo nos textos canónicos e despojado de tradição, não admira que se tivesse visto em palpos de aranha perante as doutorais e eclesiásticas autoridades.

Mas cabe também recordar que quotidianamente assumimos mais certezas infundadas do que julgamos, agarramo-nos demasiado a elas sem lhes perceber esse defeito, fiamo-nos sobremaneira no que é intuitivo, repugnamos o incómodo das ideias contra-intuitivas. Sobretudo temo-nos em demasia como esclarecidos no mesmo passo em que absorvemos os lugares-comuns proliferantes e daninhos que nos são incutidos pelo império da opinião.

Sim, ao cabo destes séculos os critérios de Galileu continuam a ser rotineiramente desprezados.

29 Mar 2019

Uma obra-prima extraordinária

[dropcap]F[/dropcap]ez no dia 3 de Fevereiro 210 anos que nasceu o compositor, pianista e maestro alemão Felix Mendelssohn Bartholdy. Membro de uma família judia notável, mais tarde convertida ao cristianismo, Mendelssohn nasceu Jakob Ludwig Felix Mendelssohn Bartholdy em 1809 em Hamburgo, filho do banqueiro Abraham Mendelssohn e de Lea Salomon, e neto do filósofo judaico-alemão Moses Mendelssohn, crescendo num ambiente de intensa efervescência intelectual. As maiores mentes da Alemanha da época foram visitas frequentes da casa da sua família em Berlim, incluindo o filósofo, linguista e diplomata prussiano Wilhelm von Humboldt, fundador da Universidade Humboldt de Berlim, e o famoso geógrafo e explorador Alexander von Humboldt. A sua irmã Rebecca casou com o grande matemático belga Lejeune Dirichlet. O seu pai renunciou à religião judaica e a família mudou-se para Berlim em 1811, tentando dar a Felix, ao seu irmão Paul, e às suas irmãs Fanny e Rebeca, a melhor educação possível. Fanny tornou-se uma pianista e compositora conhecida.

Felix era considerado uma criança prodígio. Começou a ter lições de piano com a sua mãe aos seis anos, sendo depois orientado por Marie Bigot, em Paris. Mais tarde, em Berlim, todos as quatro crianças estudaram piano com Ludwig Berger, que tinha sido aluno do pianista e compositor Muzio Clementi.

A partir de 1817, estudou composição com Carl Friedrich Zelter em Berlim e começou a compor aos nove anos. Escreveu e publicou o seu primeiro trabalho, um quarteto com piano, aos treze anos. Mais tarde teve lições de piano com o compositor e virtuoso Ignaz Moscheles, confessando no seu diário que este tinha muito a ensinar-lhe. Moscheles foi um grande colega e amigo seu ao longo da vida.

Embora não se tivesse tornado o próximo Mozart, Mendelssohn possuía um comando da sintaxe musical apenas rivalizado pelo seu eminente predecessor e, na verdade, algumas das obras da sua juventude ultrapassam as do prodígio austríaco numa idade comparável. Infelizmente, naqueles primeiros anos, Mendelssohn sofreu o escárnio de críticos e académicos pedantes que confundiram a sua graça sem esforço com mera extravagância e recusaram levar a sério as suas obras. Mesmo no séc. XX, pensava-se seriamente que faltava substância à música de Mendelssohn porque este tinha sido uma criança privilegiada. No entanto, da sua juventude emergiram duas obras-primas extraordinárias: o Concerto para Violino, Piano e Orquestra de Cordas em Ré menor, MWV 04 e o Concerto para Dois Pianos e Orquestra em Mi Maior, MWV 05, ambos produtos do génio de um adolescente de apenas 14 anos, e atingindo ambos níveis de genialidade a que a maior parte dos compositores não chegam em toda a sua vida. Além destas obras, aos 14 anos, tinha também já composto o Largo e Allegro em Ré menor para Piano e Cordas, MWV O1, o Concerto para Piano em Lá menor, MWV O2, e o Concerto para Violino em Ré menor, MWV O3.

O Concerto para Dois Pianos e Orquestra em Mi Maior, MWV 05 exibe um equilíbrio inquietante entre os instrumentos de forma a que estes parecem combinar-se na perfeição mas não sem ser imediatamente óbvio que um instrumento apenas não poderia executar a obra sozinho. Elaborada como uma prenda de aniversário para a sua igualmente musicalmente precoce irmã, Fanny, a peça foi estreada pelos dois no seu aniversário, no dia 14 de Novembro de 1824. Dada a sua envergadura e dificuldade, é evidente que ambos eram executantes virtuosos para além das suas vocações criativas. Convencionalmente arranjado em três andamentos, o concerto abre com uma veia clássica e pura expressa numa introdução alargada, que Mozart podia ter escrito. Os pianos entram, um de cada vez, e segue-se um diálogo espirituoso. Mas depressa se torna evidente que Mendelssohn atravessa a linha para o Romantismo. Temas arrebatadores e surpresas cromáticas surgem e cadências surpresa e mudanças de atmosfera abundam. Em todo o andamento, os dois pianos são parceiros iguais – prova do respeito de Felix pela capacidade da sua irmã. O andamento termina com uma robusta coda que poderia ser o finale de uma obra menor. O segundo andamento é um adagio insuperavelmente elegante e Mendelssohn mais uma vez dá à orquestra o privilégio de abrir com um prelúdio extenso antes dos pianos entrarem, mais uma vez, um de cada vez, apresentando um tema hesitante, mas encantador. O andamento termina com uma longa passagem de maravilhosas tercinas de ambos os pianos de encontro a uma melodia suave e simples nas cordas. É um contraponto perfeito mas de longe demasiado inspirado para ser um mero exercício. No finale, os pianos anunciam-se eles próprios com um diálogo palpitante e o andamento rebenta num grande furacão sinfónico com ambos os pianos a serpentearem sem esforço através dele. Mendelssohn cria tensão e drama com êxito através de um motivo ascendente em ambos os solistas e na orquestra e a obra finalmente guina para uma espantosa coda plena de arrepiante pirotecnia pianística e uma conclusão abrupta. O concerto é maduro, grandioso, e convincente e em todos as acepções um verdadeiro concerto para piano Romântico.

O facto de se tratar da obra de um adolescente torna-o assombroso. O Concerto, obviamente inspirado no Duplo Concerto, K. 365 de Mozart, e provavelmente inspirado pelo novo amigo de Mendelssohn, Ignaz Moscheles, mostra também como Mendessohn tinha absorvido Weber, Hummel e Field. Considerada imatura pelo próprio Mendelssohn, a obra foi posta de lado e não foi publicada, permanecendo na forma de manuscrito até 1961, quando a Leipziger Ausgabe der Werke Felix Mendelssohn Bartholdy publicou uma versão substancialmente revista por Mendelssohn e editada por Karl-Heinz Köhler. Nesta partitura, Mendelssohn lida com questões como o papel do virtuosismo, o design harmónico e as relações temáticas entre os instrumentos tutti e os solistas. A edição presente oferece um olhar sobre um ponto crucial na evolução do género concerto por um dos compositores mais importantes que escreveu para o género no início do séc. XIX.

*Sugestão de audição da obra:

Katia e Marielle Labèque, piano
Philharmonia Orchestra, Semyon Bychkov – Philips, 1990</strong<

29 Mar 2019

Do que andamos a fazer neste planeta

[dropcap]A[/dropcap] tradição do policial é a tradição da boa gestão dos “saberes”. Há diversas receitas, todas elas abertas a grande inventividade, mas o nó górdio da teia é sempre o mesmo: o leitor só pode – ou, pelo menos, só deve – saber o que há a saber no final da narrativa. Nem sempre assim foi, apesar de haver quem diga que a Bíblia foi o primeiro grande policial que apareceu no planeta (o argumento é de policial e nem sei como é que Simenon não pôs Maigret a tratar dele: de quem foi a culpa de nós todos, mortais, termos aparecido neste canto do cosmos?).

Na maior parte das narrativas pré-modernas, as ferramentas literárias que todos interiorizámos há muito (complicação, clímax, desenlace, etc.) não passavam de coisas de extra-terrestre. As narrativas do mundo antigo e medieval eram crípticas por natureza, ambíguas, construídas de propósito para que algo de insondável se pudesse, aqui e ali, vir a revelar. Como se um segredo governasse o mundo e fosse missão do homem interpretá-lo.

O romance moderno que foi aprendendo a libertar as urdiduras com Cervantes, Diderot ou Stern e que, depois, as vincou com Stendhal, Tolstoi ou Eça, passou a democratizar o segredo: com a devida fleuma, passaram-se a conceder ingredientes ao leitor para que, ao longo do enredo, ele pudesse conjecturar e até imaginar esse segredo que, no final, e após situações mais ou menos extremadas e polidas, lhe era dado. Geralmente, não do modo como o esperava, mas tal como o desejaria. Sim: o desejo é mais forte do que as promessas de redenção.

Antes destes arrufos modernos e frágeis, tudo era realmente diferente. Tomemos como exemplo os Portenta, também considerados presságios. No fundo, eram imagens acopladas a mensagens literárias enigmáticas que, até ao limiar de setecentos, estavam associadas aos defeitos inusitados de parto, dissociando-se da maioria das monstruosidades que correspondiam sobretudo a criaturas que, segundo as mais distintas lendas, povoavam a periferia distante e desconhecida do globo.

Estamos a falar de um mundo tal como Richard of Haldingham o desenhou no século XIII, de acordo com o tradicional modelo T-O (o chamado mapa de Hereford). Ao centro do esquema de cor dourada, por cima do traço horizontal da letra T, surgia a Ásia e, por baixo desse mesmo traço, à esquerda, surgia o Nilo e, à direita, o Dom. Por sua vez, à esquerda e à direita do traço vertical da letra T (o Mediterrâneo), aparecia a Europa e a África, respectivamente. À volta do T, duas enormes circunferências davam a ver, não o que poderíamos pensar ser a atmosfera, mas sim oceano, apenas oceano sem fim. É para além desse desconhecido e vasto oceano periférico que, segundo diversas tradições, o mundo andava povoado… por criaturas monstruosas.

Para Santo Agostinho, a natureza estava, de facto, platonicamente dividida em duas partes: a da ordem e visível, que permitia ler os sinais da divindade, e a do inesperado e do incompreensível (ou do maravilhoso) que tinha uma única finalidade: mostrar aos humanos que existem diversos graus do “saber” que só a deus dizem respeito. Não é por acaso que, ainda no século XVI, a palavra curiositas* remetia, em grande medida, para um certo tom nada cordato de heresia.

Nesta história sem fim que é a história da gestão dos saberes que pululam nos relatos da tradição literária (e imagética), o segredo foi quase sempre um presente adiado. Foi-o nas versões medievais da carta do Preste João das Índias, nas imagens de Ravenna (1557), de Boaistuau (1560) e em muitas das que aparecem na Chronica mundi de Schedel (1493). O segredo só viria a ser devolvido ao comum dos mortais, quando, na alvorada do policial e do gótico (lembro-me de Os Crimes Da Rue Morgue de Poe), os crimes em ambiente lúgubre, as tramas em atmosfera soturna e nocturna e os novos labirintos urbanos passaram a conviver com um novo formato de enredo que passou a perseguir um objectivo claro: revelar, apenas no desenlace, um segredo. Mas revelá-lo. Mesmo se fosse imaculado. Mesmo que fosse comprazidamente subentendido. Entre nós, já sem falar dos segredos da (malvada) insolvência dos bancos, nem o de Fátima resistiu.

Faltará só explicar o que andamos a fazer neste planeta.


[1] Edward Peters, Libertas Inquirendi and the Vitium Curiositas in Medieval Thought in La notion de liberté au Moyen Age – Islam, Byzance, Occident, Société d´Édition Les Belles Lettres, Paris, 1985, pp. 89-98 (91).

28 Mar 2019

Sem anestesia possível

[dropcap]Q[/dropcap]uando entrei, pediram que me deitasse, baixasse a saia, levantasse a camisola e virasse o rosto para a parede. O médico não tinha como saber que eu já conhecia cada uma daquelas agulhas desde o dia anterior, do Youtube. Vai sentir um frio, uma sensação gelada, do spray anestesiante. As nádegas a descoberto, os olhos fechados. Vou começar. Um jogo de adivinhação sobre a minha carne, um-dó-li-tá. Imaginei uma mão aberta e uma faca a saltar por entre os dedos, tentando acertar no vazio. Primeiro, não doía, era apenas uma impressão enervante. Tentava não pensar nos meus pais na sala de espera. A minha mãe tentara entrar, mas fora impedida. Preferi assim. Peço desculpa, mas tenho de encontrar o lugar exacto da anestesia. Primeiro não doía, mas depois já não era um jogo afinal, ele fazia a agulha saltar vezes sem conta, aparentemente sem ritmo ou destino, até que encontrou o que buscava, e eu percebi que a anestesia era só para a carne, como é que eu não pensei nisso, como poderia não me doer o osso, como é que eu não previ isto, como é que eu. Peço desculpa. Peço desculpa. Peço desculpa.

Pensava que conseguia fazer isto sem chorar. Sem gritar. Não é só a agulha. Quem nunca levou uma injecção no rabo? Ninguém me estava a dar nada. Eu vim aqui para me tirarem uma parte de mim. Talvez para depois me tirarem a minha vida, ou o que eu acho que tenho de meu, e de vida.

Vim aqui para me cravarem uma agulha o mais fundo possível, eu que já tive tantas agulhas espetadas em mim nestes últimos anos, que viro sempre o rosto para o lado e que, quando finalmente não quis fazê-lo, fui obrigada. Vim aqui para sentir alguma coisa a ser aspirada de dentro de mim, de um lugar secreto onde nunca ninguém me tocara. Tente pensar em alguma coisa agradável. Tentei, tanto. Estava um dia tão bonito. A praia. A minha irmã. Procurei-a em vão.

Nem ela me poderia valer naquele momento. Mais tarde, dir-me-ia que a mãe entrou pelo quarto a chorar e a anunciar que eu iria morrer. A nossa mãe, sempre tão dramática, hipocondríaca, fatalista. Mas eu ainda não sabia, ainda estava ali na sala pequena, dividida em duas por uma cortina branca, tudo era branco, os ossos são brancos…

Estou aqui deitada como se fosse um chão de calçada portuguesa e o médico está a picar, picar, picar e finalmente eu consigo ouvir e sentir o meu osso a partir, este som é o meu osso a partir, quero que isto páre, eu que nunca parti nada, nem a cabeça, não literalmente pelo menos, de órgãos partidos só sei mesmo do coração, como é que se sobrevive a isto, uma fractura interna, é disto que falam quando falam disso, e agora a agulha aspira qualquer coisa e então é isto um mielograma e então é isto uma biópsia. A voz tremia, crescia numa sucessão de ais que eu cada vez controlava menos, e no entanto não me mexia. Não podia. É tão difícil respirar enquanto se sofre. Também isto me escapara. Esta simples noção, este malabarismo íntimo que eu julguei ter dominado a vida toda e que, agora, ficava provado por agulha mais carne mais osso mais medula que, afinal, eu nada sabia. Não havia Mário Viegas a recitar Armindo Mendes Carvalho. Ai a dor que tenho aqui!

A enfermeira sentou-se aos meus pés. Segurou-me na mão esquerda, braço estendido. Devo tê-la agarrado de volta, com uma força que me escapava por todos os outros lados. Um anjo que eu não via mas que visitava a minha cama, como Jesus no conto do Eça. Minha querida, tenha calma, já não falta muito, como se chama? Hesitei. Pela primeira vez na minha vida, durante segundos, eu não me lembrava do meu nome. Sentia-me prestes a perder os sentidos. Solucei uma vez mais, e disse. Consegui dizer o meu nome. Depois, acabou.

Limpeza, um penso, portou-se muito bem, vai ficar tudo bem. Daqui a duas semanas saberá os resultados, se houver alguma coisa antes nós dizemos. Esperar e sofrer, sempre. Fiquei em silêncio. Agora deixe-se estar deitada de barriga para cima uns quinze ou vinte minutos, já venho ver como está.

Olhei o tecto, incapaz de mais. Atrás da cortina, uma voz feminina com sotaque espanhol dizia, Vai sentir uma sensação fria, vou aplicar um spray. Momentos depois, um velho, Ai minha Nossa Senhora. Ai minha Nossa Senhora. Chorei por ele. Ai pobre daquele velhinho.

Vieram buscar-me. Percebi, então, que coxeava. Tantas primeiras vezes em tão pouco tempo.

Levaram-me para uma sala com cadeirões e sentei-me. Reconheci pessoas da sala de espera, o velhote que estava com o filho, um outro homem, a moça grávida. A televisão ligada mas ninguém lhe prestava atenção. Deve haver algum estudo que comprove que o zumbido de uma televisão ligada no canal mais desinteressante possível acalma os nervos físicos e burocráticos dos pacientes, como deve haver um estudo a comprovar o contrário.

Eu tinha parado de chorar. Mas havia uma rapariga à minha frente, muito pálida, careca, a quem vieram dar um pequeno-almoço líquido. Ela estava cansada e tinha covas debaixo dos olhos.

Fechou-os várias vezes, e dormitava de vez em quando. Quando as enfermeiras saíram, a minha e a dela, quando eu olhei bem em volta, um homem de pijama e pantufas, a rapariga grávida, os outros, mas sobretudo a rapariga careca, chorei como nunca antes. Pensei, não vamos todos sobreviver. Pensei, eu não vou sobreviver, eu vou morrer mesmo, estou doente, quantas vezes pode alguém escapar, quantos exames feitos e quantas certezas do que não tenho e iguais incertezas sobre o que tenho, quanto tempo mais posso aguentar sem a má notícia derradeira.

Chorava de medo, vergonha, desespero e dor, e já todos deveriam ter passado pelo mesmo, pois ninguém disse nada, como se eu ali não estivesse, ou estivesse tão calma e seca como eles, e talvez eles estivessem pior, até. Eu ainda não tenho nada, posso não ter nada, até podemos todos sobreviver, tens de aprender com isto, nada te ensinou mais na vida do que isto, vais morrer. O tempo passado num hospital, qualquer que seja a situação, é o mais próximo do Inferno que podemos experienciar.

Não fui trabalhar. Mandei uma foto do meu rabo à minha irmã. Sentia-me enjoada e fraca. O que dormi pareceu-me pouco. A viagem de carro de casa dos meus pais para a minha foi difícil, com uma respiração consciente e forçada para evitar vomitar a todo o custo. Coxeei durante uma semana, tempo que demorei a conseguir deitar-me novamente de barriga para cima. Quando deixei de precisar de pensos, apenas um ponto ínfimo mostrava que algo se passara, e era difícil dar com ele à primeira, por mais vezes que me visse ao espelho. Como se nada fosse. Como se tivesse sido um sonho. Mas não tem sido isso a minha vida? Tanta ironia. E eu tão pequenina.

28 Mar 2019

Ácaros & Orgasmos

[dropcap]G[/dropcap]eorge Steiner, no discurso de agradecimento ao honoris causa atribuído pela Universidade de Lisboa, teve este desabafo: «É possível que as humanidades nos tornem menos empáticos, que elas nos proporcionem uma enorme riqueza interior que nos torna menos capazes de reagir imediata e vigorosamente à necessidade humana. A necessidade humana é frequentemente estúpida, desordenada desprovida de beleza». (Das cinzas do silencio à palavra de fogo, Porto, Exclamação, 2018)

E proferiu este juízo contra si mesmo; toda a vida defendeu que as humanidades humanizavam, ei-lo aos oitentas a pôr a hipótese contrária, embora sob ressalva: «espero estar enganado».

A hipótese levantada é terrível. Talvez a frequência excessiva da arte nos amortize a sensibilidade, reféns da literatice. Quanto mais consumidores da cultura e da arte mais alheios à sorte do que está “lá fora”? Ver a beleza de uma fotografia de Sebastião Salgado afinal imuniza-nos de questionar a pobreza?

Talvez o mal emerja do cruzamento de quatro coisas: uma mutação da cultura de massas, o “apagamento” da mathesis e da memória e a bomba demográfica.

Quando havia um vislumbre de mathesis (a hipótese de uma ciência geral que articule os diversos horizontes do saber) confiava-se numa maior correspondência entre a sensibilidade, o conhecimento (científico ou artístico) e a moral.

Hoje, alia-se à suposta falência da mathesis uma depauperação da memória e a pulverização da cultura humanística, degradada pela asfixiante auto-referencialidade das indústrias culturais – a minha filha de 15 convidou-me a ver “um filme espectacular com a Lady Gaga” e afinal era a quinta versão de A Star is Born (fraquita). Mas como ela não tem memória das outras… E lembremos como as televisões viram sobre si mesmas “as janelas para o mundo” e se saciam na circularidade auto-referencial (- fenómeno a que Eco chamava a neo-televisão).

Entretanto, o conhecimento foi preterido pelo entretenimento, o qual sustém o seu foco na sociabilidade: se não vemos a última série de televisão, a peça de teatro mais badalada ou lemos os livros mais vendidos, quem somos? As indústrias culturais oferecem catálogos de “novidades”: as emboscadas e solicitações em que enredamos gratuitamente o nosso tempo. E o gosto médio vai baixando de nível porque, de sempre, a qualidade que emerge de uma “sensibilidade prospectora” não pode ser a de todos, nem muito menos de massas. E aquela implica trabalho, erudição, distância e risco.

Se hoje se confunde na democracia (do gosto) a hierarquia da popularidade com a do prestígio, foi a forma do sistema desviar para as performances económicas os critérios que deveriam assentar na qualidade formal e orgânica das obras. Porém, apesar de José Rodrigues dos Santos vender como pãezinhos, é um lixo, não é Lobo Antunes: diferença facilmente verificável no modo como um e outro trabalham a linguagem, os seus supostos materiais.

Recordemos uma maravilhosa formulação do maliano Tierno Bokar, segundo o seu discípulo Hampaté Bâ:

“A escrita é uma coisa e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem.”

Bokar prevenia, como Platão, contra o fetichismo da letra impressa, mas o seu aviso ajusta-se hoje igualmente aos estereótipos das indústrias culturais e até ao nó cego cognitivo que impera nas redes sociais.

Ao mesmo tempo, o mercado oferece um índice de satisfação imediata que se entrosa num tipo de cultura remix (Rui Chafes), de horizontalidades, onde tudo se equivale e rapidamente fica obsoleto. Hoje, quando a opinião de um especialista se equivale à de um ignaro nas redes sociais estamos diante de letras mortas, das fotografias do saber. Contudo, o gosto da maioria, ilusoriamente reforça-se com a explosão demográfica; à maioria, que tem sempre um anseio pela metade, um querer pela metade, é indiferente que seja absolutamente distinto saber como funciona a máquina de lavar roupa ou como apertar o botão.

Quando estabelecemos com a cultura uma mera relação petisqueira, heterónoma, i.é, de divertimento e descarte, não se produz aí, em termos humanos, nenhum campo novo de valores e de relação. Pelo contrário, a experiência estética profunda, implica uma vulnerabilidade – nela, a nossa percepção sobre as coisas, o mundo, as relações, mudam; despertamos para um novo sentido, talvez o transe dessa luz de que fala Bokar e que pode estar obstruída ou ser desvelada.

Como escreve o filósofo Byung- Chul Han: «Não podemos ver de forma diferente sem nos expormos a uma vulneração. Ver pressupõe a vulnerabilidade». Eis porque de comum vemos melhor as nossas tradições de fora delas do que no seu seio, ou percebemos finalmente certas complicações da nossa vida, mercê de um distanciamento.

Do lado do entretenimento temos o Gosto (convertido em tique facebookiano), do lado da reminiscência (diria o Platão) gera-se uma flutuação das “placas continentais” que muda a nossa topografia interior. Deste lado a experiência, do outro a ilusão conectiva.

E afinal, é mesmo impossível uma mathesis? Não. É propaganda da cultura de massas, para fazer cumprir o ideário hegemónico do neoliberalismo, o qual subentende uma sinonímia do sujeito ao consumidor, esquema em que o sonho e a criatividade imaginativa ou rememorativa são menorizados na medida em que se associa a juventude a uma rápida busca ansiosa que privilegia a eficiência. Daí que a noção de subjectividade se veja substituído pela de performance.

Mas continua a haver outros paradigmas mais fecundos.

Se abraçarmos o pensamento da complexidade, de que Edgar Morin nos abriu as portas, notamos cadeias de transmissão entre diversos saberes que se observam simultaneamente nas ciências, nas artes e na vida. Há outros caminhos.

Embora tudo isto dê trabalho, e aqui se exija a educação, até para compreendermos que o trabalho que o conhecimento dá pode não só dar prazer como (um efeito lateral) até recompensar-nos. A sabedoria, meus caros, pode ser uma felicidade, já as indústrias culturais… finam-se numa lógica masturbatória: momentânea e aquém do outro.

28 Mar 2019

A verdadeira ralidade

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Não me olheis com esse olhar liso e branco de quem desconfia. Repara: as injustiças do mundo são para se cumprirem. Se a ti me achego, o teu papel é justamente o do papel: acolher-me com virgem resignação. E, de mim, só podes esperar, pacientemente, a mácula. Chegarei, com os meus bordões rascunhados, sem mata borrão. Terás de o suportar. O importante, como diria Ruy Belo, é que «não doa muito» e, depois, que te escondam na «terra como uma vergonha». Ao papel resta acolher as palavras que nele se sepultam. É a tua função, meu tão certo secretário. Que dizes? Que havíamos acordado em não nos tratarmos por tu? Mas, quem me pode demover? Tu? Vós? Sabes que mais, meu secretário, tão certo; tu, papel, nem mais existes na realidade concreta do meu dia-a-dia; a folha que serias é uma metáfora quase morta que me dá guarida, embora sem tecto, sem paredes. E toda a realidade, como tu, é coisa parca e indecisa; sequer dá luz: obscuridade bruxuleando, ao longe, só.

O mundo aspira à realidade: cada coisa, cada objecto, cada palavra. E a poesia também a deseja com todo o seu empenho; julga poder instituí-la, até. Nelson Goodman fez-nos crer que o realismo é um «caso de hábito», o malabarismo artificioso de fazer crer, convencer, inculcar.

Vejamos: temos o mundo, ele aparece-nos como resultado de um «ver confuso» (Fernando Gil) e esperamos, ingénuos, que seja o poeta a dispensar os óculos com a graduação exacta da nossa miopia. O poeta, sempre esforçado, empresta-nos de bom grado o seu monóculo, o seu binóculo, o telescópio, suas lunetas; um microscópio, e até os seus próprios olhos nus: e eis o real, diante do leitor, tão desfocado quanto possível. Não invento, meu secretário; também Juarroz isto nos explica, se nos diz que o âmago da poesia «é descobrir a realidade, inventando-a». Ou desfocando-a, diria, que é outro modo de a inventar. Ou, talvez, ainda, retirando-lhe uma letra, para lhe dar nitidez. Foi o que fez Manuel Resende: transformou em Realidade em Ralidade, e eis que nos surge um real muito mais ral(o) e fluido, que convoca passados num presente: História(s) em contemporaneidade(s); certo desconjuntar formal da língua, que, entre uma piscadela à poesia experimental (que culmina no hiperpoema, destacado no fim do livro), e certo espírito santo de orelha de surrealismo (que nem descura, porque não pode, a consciência social e política do mundo em que chafurdamos), carrega às costas a tradição clássica da poesia: porque na verdade clássicos somos todos, modernos e os antigos, inevitáveis cabeçudos, em que nos tornamos, nós, os anões, aos ombros de gigantes: «Eu é um pseudónimo de nós e nós pseudónimo disto tudo», escreve Manuel Resende. «O Leão é feito de carneiro digerido», diz-nos Valéry: e é a sombra dos que vieram antes de si (e que também tanto traduziu) que compõem o mosaico da sua poética.

Na poesia de Resende, agora reunida pela editora «Cotovia», tanto cabe uma cantiga, não de amigo, mas de amargo, como os diferentes rizomas que sobrevêm de uma tradição moderna (Baudelaire, Whitman, Campos, por lá se passeiam), ou a poesia clássica, ou o classicismo do nosso Renascimento, com a pernada barroca que o experimentalismo desencanta, sempre. Aliás, também vós por aqui estais, meu tão certo secretário, transposto em mensageiro dos tempos modernos. O tom é classicamente o da vanguarda, nesta dicotomia de inventar o mundo, sobre diferentes socalcos, em diversos sobressaltos. Ora lede e reconhecei-vos nesta «Crítica da Razão Pragmática»: «Vinde cá meu tão manso mensageiro/Febril mercúrio falar-me dos deuses/ Saberás que é impossível a mímica rítmica dos rins/saberás que é impossível amor meu//Impossível vivermos os dois sempre aos pares pela vida fora/vem cá corpo cru deusa em carne viva/vem cá saber as horas o irreprimível horário da manhã/ Um relógio de gestos uma religião de salários.».

Diz-nos Osvaldo Silvestre, no posfácio que acompanha este volume de Poesia Reunida, que, em Manuel Resende, «tudo: o político, o privado, a realidade, o sonho se funde numa espécie technicolor sem censura». Mas, mais do que fusão, trata-se da convocação do real em diferentes planos (disse convocação? Queria dizer descoberta; não, diria antes invenção; perdão, de novo, pois queria dizer revisão permanente de uma matéria nunca dada), apresentando tudo numa mesma dimensão de simultaneidade, mas à luz de várias lentes e graduações. Como um mosaico composto de peças de proporções diversas.

Num poema intitulado «Streptease1990», dedicado a Mário Cesariny e que termina com um endereço de email, como assinatura, escreve-se acerca da importância da libertação do real certeiro do dia a dia: «Pronto já me despi de certezas (das grandes primeiro que das pequenas)./ E agora , que dispo? /Espero ordens.»; e, num poema, mais adiante, no mesmo livro, resgatando um Manuel António Pina que pisca o olho a Camões, a mesma ideia do real que é simultaneamente memória histórica e tempo presente, tradição na contemporaneidade; mundo político-social e auto-referência poética; onírico e absurdo e reconhecimento concreto do quotidiano. Da mesma forma, a realidade física e matemática e aquelas partículas que, afinal, só a palavra e a poesia inventam e instituem, quando assumem às costas a canga da história, da memória, do social e do concreto, com a sensibilidade de quem transforma sentires em sentidos e em realidade: «Onde estão as partículas elementares/Quando a gente não está a olhar?/A questão é de se pôr, só que elas estão,/ Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar.».

Mas, só um momento, meu tão certo secretário. Disse eu realidade (física matemática, onírica, histórica ou poética, seja lá o que isso for.)? Pois, desculpai-me, que uma vez mais me enganei. Queria eu dizer Ralidade. Ralidade é que é: sem lar, sem tempos, sem fronteiras. E é esta exacta ralidade, descoberta ao ser inventada, que Manuel Resende nos oferece, ao longo da sua poesia, e também aqui, expressamente, numa cantiga à laia de soneto:

CANTIGA À RALIDADE

S’a ralidade não me chatiar
Não vou eu chatiar a ralidade.
Porém, essa megera sem idade
Não tem tempo e fronteiras, não tem lar,

Não tem respeito, sempre a dar a dar,
Remexe-me no peito, busca o qu’ há-de
Servir-lhe de pretexto pra provar
que continua a mesma ralidade.

E eu que tenho mais o que fazer,
Dormir, dormir, morrer, talvez sonhar
–Ou contra o cruel fado a ‘spada erguer.

Mas esta dor no peito, a falta de ar,
Esta barba há três dias por fazer
Já ´stão à minha espreita ao despertar.

Manuel Resende, Poesia reunida, Lisboa, Cotovia, 2018

26 Mar 2019

A matilha dos afectos

[dropcap]H[/dropcap]einrich von Kleist, o patriota prussiano, poeta e dramaturgo, escreve entre algumas obras de referência aquela que viria a ser a obra-prima do teatro romântico, «Pentesileia». É uma obra monumental! Não tanto pela opulência ou pelo vírus exacerbado da representação, mas pela temática e virtuosismo em delinear o impossível sem quase nenhum recurso ao comprometimento dos méritos da união, e um fôlego pulverizante que nos coloca diante da tensão máxima dos arquétipos masculino e feminino.

Este vigor é uma oferenda sagrada, embora se leia nele desde o início o mítico desfecho da morte anunciada. Aqui as delícias da aproximação não existem e a junção é banida pela representação da força de cada um, Aquiles e Pentesileia. Depois, há todas as vozes sacerdotais que representam a missão em coro grego e a consciência dos que acarretam as linhas de acção de um empreendimento. Nada de domesticável, até civilizado, do modo como o concebemos, toma as rédeas destes cavalos que ambos fazem relinchar com seus cascos ferozes. É a causa de cada um, que indomável, nos acelera a vontade de ser um deus, mesmo cegando com o brilho das espadas.

Esta peça foi talvez buscar a orientação para a sua liberdade e pujança à derrota prussiana, o que exerceu no autor uma desvinculação nacionalista – ou melhor- uma outra orientação da força, já sem efeitos propagandísticos e saído assim dos círculos daqueles que se barricam nas hostes. Os heróis, são gregos, com observância para uma era matriarcal, essa civilização amazónica que levou à agricultura o quadro de uma ginecocracia com a sua componente dionisíaca que é o da apropriação do macho como servil emblema de combustão, que a obra urge suplantar, pela afirmação da condição apolínea. Parte então: “para este combate amoroso assente no «ódio mortal entre os sexos» a dilacerante ambivalência de um campo de batalha, que bem poderia ser «um leito revolvido».” Avançamos efectivamente pelas superfícies tectónicas que vacilam e se tocam para delinearem a supremacia de uma nova crosta terrestre, e acrescenta: «Pentesileia ferida de morte por ele, surge aos olhos de Aquiles, duplamente bela, e só aqui descobre a plenitude do sortilégio amoroso». Mas, e também, para cumprir a nova ordem cósmica se revela que a morte de Aquiles não foi um assassinato trágico, apenas uma paixão exemplar de que a terra comunga e sobre a qual baixam naturalmente as trevas – um imenso pôr-do-sol sangrento.

Estas esferas simbólicas vêm do fundo dos tempos e congregam-se numa faísca de metal em fusão num ventre titânico e original, quase neolítico, que imprime moderações e metamorfoses a eras que se vão fazendo com mais ou menos resistência. Nós, que em pleno século vinte e um escutamos estupefactos as histórias de terror dos casais, devemos cingir-nos aos mitos fundadores ou estaremos condenados a uma saga imprópria para a posteridade.

Também o tempo do amor paixão se desmoronou e nem por isso deixámos de nos apaixonar, a lenda da felicidade é mais uma fábula, e por vezes carregamos um couro que não sabemos que estamos a ouvir, e as vozes que gritam sem que as oiçamos, atiram-nos para vastas superfícies de infortúnio onde se esgota, por isso mesmo, a sua razão de existir. – E é claro – querer moderar abismos assim calcinados por descaso e desconhecimento, cria hiatos, e vicia-nos também nos nossos próprios embustes de consequências estranguladoras.

Goethe (estamos pois no fim do século dezoito) foi um opositor a esta manifestação, se é que se pode assim apelidar a reacção em face desta abordagem indómita, e foi-o, na sua moderada frequência de homem em busca de uma «educação sentimental» em tudo antagónica a este Kleist -este- seria então a expressão dos obscuros movimentos dos afectos. E não apenas! Kleist demonstra que se pode ser escandaloso a partir na nossa própria natureza. Quem não é escandaloso, é doloso, malsão e até rude, configurando um caso de hábitos adquiridos que lhes empresta naturezas várias, não sendo no entanto cada um praticamente ninguém, face ao sistema vibratório de uma obra tal. “O tal inumano, onde os afectos perderam o seu véu pudico e trespassam os corpos como flechas, nus, crus e incalculáveis”. Para além de um brilhante tratamento de linguagem, é uma recuperação mitológica trabalhando dentro de nós a remota, longínqua, área adormecida, ou mesmo extinta; a linguagem vai então servindo o propósito acelerativo de uma hipnose, e, um homem surge-nos subitamente um ser diferente daquilo que geralmente nomeamos. Estou certa que uma mulher também.

Ainda, e voltando às Amazonas, cujo impulso as projecta para o combate e a captura dos seus vencidos, não lhe poderemos chamar sedução, pois que o Amor está-lhes negado. É mais a continuidade biológica que prepara um terreno cujo domínio é exercitar as armas e propagar a espécie: nenhum homem, mesmo filho, tem qualquer sentido na sua estrutura interna, na medida, em que assentes no mito dionisíaco, o homem é ente utilizável, festim para fruição, onde se vai aqui pressentido já o terror face a esse deus que faltava e que assinala o fim de uma estirpe. O homem que se usa, nunca será igual aquele que comanda: e é este instante que marca as raízes que podem muito bem estar escondidas, até, quem sabe, em algum de nós. Já Marguerite Yourcenar tem, no seu livro «Fogos», esta passagem clássica e definitiva, em conto, e embora bem mais refinada diz isso mesmo: «A viseira levantada descobriu, no lugar de um rosto, uma máscara de olhos cegos que os beijos jamais alcançariam. Aquiles soluçava, segurando a cabeça desta vítima digna de ser um amigo.»

Uma emboscada foi lançada. A força que nos destrói é a mesma que nos constrói, saiba agora do Amor a matilha, que a predação o conduzirá a outra História.

26 Mar 2019

Amores de Shunzhi

[dropcap]O[/dropcap]Imperador Qing Huang Taiji morreu em 1643 sem designar sucessor e um comité de príncipes manchus elegeu, entre os seus onze filhos, o nono [e não o terceiro, como por engano ficou referido no artigo da semana passada], Aisin-Gioro Fulin (1638-1661) como continuador da Dinastia Qing. Tal ficou a dever-se em muito ao trabalho de bastidores da sua mãe, Bumbutai (1613-1688), a Imperatriz Xiaozhuang após Aisin-Gioro Fulin ser Imperador. Era uma das três mulheres que o clã mongol Borjigit enviara à corte nürzhen para estreitar relações, sendo as outras duas, a tia de Bumbutai, a então Imperatriz Xiaoduan (Jerjer, 1599-1649) e a irmã mais velha, a favorita consorte Minhui (Harjol, 1609-1641).

Fulin tornou-se o Imperador Shunzhi (1643-1661), o segundo da manchu Dinastia Qing, quando em 8 de Outubro de 1643 no Palácio Imperial de Mukden (Shenjiang) foi entronizado. Por ter apenas seis anos foram nomeados os regentes Jirgalang e Dorgon, filho mais novo de Nurhachi e meio irmão de Huang Taiji.

Quando os qing atravessaram em 1644 a Grande Muralha contava o seu exército aproximadamente dois milhões de homens no sistema das 8 bandeiras. No nono dia da décima Lua de Jiashen (8 de Novembro de 1644) Shunzhi tornou-se em Beijing o primeiro Imperador da Dinastia Qing da China. Aí, os jesuítas acabavam de alcançar uma grande vitória sobre os astrónomos chineses ao conseguirem prever um eclipse solar para o primeiro dia do oitavo mês lunar de 1644, não calculado pelo então calendário chinês. Tal demonstrava a necessidade de substituir o Calendário Shou Shi (Narração do Tempo) feito por Guo Shoujing em 1281.

Em Beijing, os jesuítas vinham trabalhando desde 1629 na correcção desse calendário e contra a vontade dos astrónomos da Dinastia Ming preparavam um novo calendário para o substituir.

Reinava já a Dinastia Qing quando aconteceu como previsto por Joannes Adam Schall von Bell o eclipse lunar de 15 de Janeiro de 1645, o que levou a ser oficializado o Calendário Shixian feito por esse jesuíta alemão, logo nomeado Director do Departamento de Astronomia de Beijing e a quem o Imperador Shunzhi sempre deu protecção.

Liberdade religiosa

Os padres da Corte puderam continuar em Beijing devido ao entusiasmo da Dinastia Qing para com o novo calendário. O elevado estatuto que gozava o então mandarim jesuíta Schall von Bell e a sua grande intimidade com o Imperador levaram-no a conseguir em 1650 autorização para construir a Igreja da Imaculada Conceição, mais tarde Catedral do Sul (Nantang).

Durante seis anos esteve o Imperador Shunzhi liberto da governação do país, entregue ao regente Dorgon, e por isso teve tempo para se dedicar às artes, sendo um bom calígrafo e um excelente desenhador de paisagens. Estudou o confucionismo e como extremoso adepto da piedade filial escreveu uma série de poemas dedicados à sua mãe. Após a morte de Dorgon, no último dia de 1650, Shunzhi iniciou com doze anos a governação do país.

Em 1651, numa caçada pela Montanha Jingzhong em Hebei, ao saber encontrar-se ali há nove anos o monge Bieshan em meditação numa gruta, para lá se dirigiu. Após ser por ele recebido, regressou ao palácio e mandou construir um local especial para o acolher, mas o monge recusou. Assim se iniciou o interesse do Imperador Shunzhi pela doutrina budista.

As esposas

A concubina Tunggiya hala (1640-1663) era proveniente de uma família manchu mas vivera sempre entre os chineses han. Entrara na Cidade Proibida em 1653 e a 4 de Maio de 1654 deu à luz Xuanye, o terceiro filho de Shunzhi e por este se ter tornado em 1661 o Imperador Kangxi tomou ela o título Cihe, mãe do imperador e após a morte, Imperatriz Xiaokangzhang.

Já por uma questão política e de tradição, para acalmar o clã mongol Borjigit, o Imperador Shunzhi casou-se em 1654 com Alatan Qiqige (1641-1718), que ficou a ser a Imperatriz mãe Xiaohuizhang, apesar do pouco afecto do imperador por ela.

A sua favorita era a concubina Donggo hala (1639-1660), que entrara no palácio em 1656 e tornou-se a consorte Xian. A 12 de Novembro de 1657 deu à luz o quarto filho do imperador e tal era o amor por ela que Shunzhi o escolheu para seu sucessor, mas este morreu passado três meses, trazendo um grande desgosto ao casal.

Em 1658 Shunzhi mandou chamar o monge budista Yülinxiu do Templo Baoen em Huzhou (hoje Wuxing, em Zhejiang) para ir a Beijing falar com ele. Este recusou e só após várias tentativas acedeu. O imperador ofereceu-lhe o título de mestre Dajue e tomou-o como professor, pedindo para que lhe desse um nome budista e assim ficou a chamar-se Xingchi, aliás Chidaoren. Após dois meses, o mestre regressou ao templo e o Imperador requereu que lhe enviasse um dos seus estudantes.

Shunzhi convidou um outro famoso monge do Templo Tiantong de Zhejiang, Muchenqin que nas conversas se apercebeu da sensibilidade do Imperador e seu entendimento sobre a abstracta doutrina do Budismo Chan. Teria na última reincarnação sido um monge, o que Shunzhi concordou pois, cada vez que visitava um templo não tinha vontade de lá sair e não fosse deixar a mãe sozinha já seria monge.

A Beijing chegou Xisen, o estudante enviado por Yülinxiu, com quem o imperador falava frequentemente sobre a doutrina e lhe pedia conselhos. Com a sua favorita Donggo hala conversava e discutia sobre os livros Chan tornando-se ela também budista. A sua morte em 23 de Setembro de 1660 afectou profundamente o Imperador, que logo passados dois dias lhe atribuiu o título póstumo de Imperatriz Xiaoxian e mandou celebrar um grande funeral budista, convidando 108 monges para durante 21 dias recitarem orações do Clássico budista.

O Imperador deprimido quis suicidar-se, obrigando dia e noite a ter uma pessoa a acompanhá-lo. Com uma tristeza imensa, pensou abandonar o trono e fazer-se monge. Dois meses após a morte da sua favorita, Shunzhi pediu a Xisen que lhe rapasse o cabelo e nem a Imperatriz viúva sua mãe o conseguiu demover. Esta, desesperada, mandou chamar Yülinxiu para vir ao palácio a fim de o obrigar a abandonar tal ideia. Levava 18 dias de monge, quando este chegou, mas nem as várias razões expostas o demoveram e em desespero, Yülinxiu ameaçou com a chantagem de mandar queimar Xisen. Só assim o conseguiu demover.

Dos oito filhos masculinos de Shunzhi, o primeiro nascido em 1651 morrera 89 dias depois.
Ao preparar a sucessão, dos seis candidatos o imperador inclinava-se para o segundo filho Fuquan (1653-1703), então com nove anos. Mas a mãe de Shunzhi, a Imperatriz viúva Xiaozhuang não concordou e por sugestão de von Bell, o único a saber sofrer o Imperador de varíola, propôs a escolha de Xuanye, pois aos dois anos tivera essa doença, bastante mortífera para os manchus que não tinham defesas contra ela. Assim vacinado, o seu terceiro filho Xuanye com oito anos foi o escolhido.

A 5 de Fevereiro de 1661, Shunzhi com 22 anos morreu, sendo sepultado conjuntamente com a sua favorita, a Imperatriz Xiaoxian, no Mausoléu Xiao.

25 Mar 2019

Mundo e música

 [dropcap]N[/dropcap]ão tenho a certeza, mas imaginemos que o nosso primeiro sentido é o auditivo. A percepção acústica tem consequências no nosso corpo todo. Não nos lembramos de como era no ventre da nossa mãe. Mas podemos achar que é táctil, líquido, quente, interior: um pequeno mundo. Ainda assim, proponho: a nossa primeira sensação é acústica. Como será no interior do ventre da nossa mãe? Seremos nós exteriores dentro de um interior acústico? Lembro-me de como foram as minhas percepções: o mar, o trânsito em Lisboa, a cozinha onde se matavam animais para serem comidos, os primeiros dias de Primavera, o frio de Dezembro. Eram visuais, não? Mas todas tinham a vibrar no seu interior música, tinham tonalidades, melodias, harmonias. Eram músicas estranhas porque não tinham instrumentos a exteriorizá-las. Tinham uma camada visual e uma camada acústica. E não só. O tacto era musical: o corpo era quente e lento ou frio e rápido ou lento e rápido: quente e frio. E era húmido ou envolvente como um slow ou seco como um acorde do baixo para o agudo. O gosto era musical: batidos de morango eram uma sinfonia e a Coca-Cola um Rock pesado. Depois, há o olfacto: as doces e melódicas fragrâncias que contrastam com o ácido e azedo que dá prazer e nos faz elevar ao céu e descer ao inferno.

 As primeiras impressões são acústicas, são auditivas. Não apenas nas sensações. Não. São no espaço. O quarto da infância é lento como o tempo do tédio. O quarto, o mesmo, da juventude, é rápido como as músicas doidas que se ouviam e ouvem quando o tempo tem de ser preenchido. O quarto do estrangeiro encontra na luz ou na penumbra, numa segunda-feira ou numa sexta-feira, o seu ritmo. Mas era ao domingo que era lento. O tempo da vida tem esta musicalidade complexa, inebriante. Quando era tempo, era musical. Não sabemos bem como, mas era. E, depois, há os outros. Os outros têm as suas sensações, os seus locais, os seus tempos. Podem ser os outros com as suas sensações, os seus lugares e os seus tempos, mas os outros connosco e nós com eles somos outras sensações, outros lugares e outros tempos.

 Os outros vêm das suas mães, dos seus cheiros, sabores, visões e audições. Vêm do seu tempo, do seu lugar e do seu corpo. Quando conhecemos os outros vemos um misto de tudo: sensações, lugares, tempos. Os outros são os seus pais e avós, irmãos e filhos. Nós somos os outros: pais, irmãos e filhos. Os outros que são connosco e nós com eles somos um conjunto de sensações, lugares e tempos. E tudo isso é uma melodia complexa com múltiplas vozes, ritmos e melodias. Ninguém é só. Alguém é só na mudez e no silêncio das suas vidas. Não. Mesmo na voz solitária falamos connosco e somos três: eu que falo comigo sobre mim: tu que falas contigo sobre ti. O outro que fala consigo sobre si. Nós que falamos uns com os outros sobre nós. Vós que falais com os outros sobre vós. Os outros que falam com eles sobre eles.

 A primeira percepção da vida é acústica. O tempo é captado no tempo. A harmonia é ouvida na distensão temporal da harmonia. O ritmo é o da vida. Lento como nas tardes de domingo. Rápido é sexta-feira à noite ou sábado. O ritmo e a melodia é diferente nos primeiros acordes. É diferente nos acordes finais de um soneto. Um soneto é música falada. A fala é a música da conversa, do discurso, do que dizemos sem querer e do que dizemos sem querer. É como nas relações intrínsecas e íntimas. Tudo é um horizonte musical.

 Tudo é um horizonte musical. Não é visual, táctil, olfactivo ou gustativo.

 Vem um tempo, o princípio, acordes primeiros da vida: sempre a criar expectativa, sempre, ao princípio de prazer. Depois, talvez tarde demais, mas ainda cedo, de sofrimento. A promessa transforma-se em ameaça. O tempo futuro, musicalmente, é o da ameaça e da promessa. A promessa do prazer e a ameaça de sofrimento.

 A noite abate-se sobre o quarto na solidão. A solidão não engana. A solidão pode não ser eu só, mas acompanhado por toda a gente. Um mundo cheio de vozes sem dizerem nada e cacofónicas. Também pode ser outra coisa. Eu com toda a gente do mundo e nenhuma harmonia. Ou então: eu só contigo: em vez de haver um ritmo tão lento que abranda a vida ao ponto de a parar. É que a morte não tem tempo e, por isso, não tem música.

 Mas tu vieste: cheia de ritmo e melodia e harmonia.

 A vida passa do silêncio da mudez a ser a melodia do silêncio em que nada preciso de dizer no tempo.

 O tempo é a vida. A vida é a música possível, quando há amor. Impossível, quando não o há.

22 Mar 2019

Fogo preso

[dropcap]N[/dropcap]ão há dinheiro mais bem gasto do que em foguetes e tabaco. Este aforismo hedonista, tão ancestral quanto os apetites de Gilgamesh, dispendeu-o um fogueteiro com quem jantava. Parte interessado certamente, mas talvez por isso omnisciente ao invés do que resmunga o hamster do senso-comum, esfalfado a correr no rolo sem sair do lugar.

Sem levar a mal, o artesão preferia que o intitulassem de pirotécnico. Fogueteiros haviam sido o pai e antes dele o avô, ambos sofrendo a glória de terem batido as botas no ofício. O avô numa banal explosão; descuidou-se um instante a misturar ingredientes e agora estás vivo, agora estás morto; o barracão em lascas pelos ares e os pinheiros à volta todos chamuscados. Sobejaram tão poucas parcelas do velho que ficaria o caixão à tara se não lhe metessem uns pedregulhos. Já o pai teve combustão mais lenta. Foram dar com ele de borco numa tina de água ao fundo quintal, provando que não lhe falharam o instinto e as pernas para fugir após o rebentamento. Clinicamente morreu afogado e não das queimaduras ou de baque cardíaco com o susto.

E tem medo? Não é medo é respeito.

Já não havia rojões, comemos fêveras assadas, rijas que nem cornos. Não fosse a prudência do homem e o jantar teria sido um desconsolo. Contratado para iluminar as festas de Vila Nova de Cerveira dali a pouco projectaria a sua arte atmosférica por cima da toalha negra do rio Minho. De baterias e balonas expandir-se-iam serpentes, girândolas, alternados e trauliteiros, invadindo furiosamente a noite de som e cor. O último morteiro seria de arrancar pedra.

À orla de lá do rio vinham os galegos bisbilhotar. Queriam festa de borla? Levassem com as canas. Sempre podia uma ou outra furar uma cabeça, com sorte furar um olho. Passou-se isto há 25 anos, ainda 40% da actual população do globo não era nascida, antes das Europas que voltaram a ligar terras que para os suevos eram uma.

Recuando 10 anos, ou seja até ao Pleistoceno, na Bienal de artes de Cerveira de 84 outros fogos mais rasteiros e daninhos por lá se atearem. O certame pusera a tónica na performance, modalidade então em alta, mas, como amiúde sucede com as vanguardas, julgando rasgar os caminhos do futuro afinal esvaía uma época. “Corpos críticos e políticos que questionam a relação social, política e ideológica do corpo no mundo” no passo em que se repensava “a própria arte e as suas limitações;” enfim, o costume desde Lascaux, se assim se quiser olhar para as artes.

Mas houve momentos. Uma performer credenciada cobriu a nudez integral de pigmento azul e espojou-se em delíquios sexuais com um espadarte intacto e fresco que há-de ter custado uma nota preta no mercado de Matosinhos. Honre-se-lhe a coragem e o risco que acabaram por ter consequências. Não procederam estas da afronta ao pudor burguês e à denúncia da sua hipocrisia, mas dos ferozes pruridos que a tintas de má qualidade lhe provocou e a precipitaram nas urgências de dermatologia do S. João.

Noutro vi-me desgraçadamente implicado. O artista centrou-se numa roda de gente. Nas minhas mãos depôs um pequeno petardo que lançaria uma bola de fogo: “aponta para mim e dispara quando fizer sinal.”

De tanga – a temperatura estava amena, não se constiparia – empreendeu uma dança com tochas e labaredas, toda conceito quase nada habilidade. A dado ponto acenou-me. Apontei e hesitei. Insistiu de má cara, a minha vacilação quebrava-lhe o ritmo. Atirei. Tão curto era o trajecto que o projéctil não descreveu elipse e cravou-se em chamas no ombro dele. Os circunstantes não reagiram logo – transitar da intenção para a ignição podia ser que fizesse parte. Lá acabou também ele por ir ter de charola ao S. João. Caso estivesse de banco a mesma equipa é de crer que diagnosticaria esta forma de expressão artística como um caso de saúde pública.

Execrado pela comunidade como sabotador fui degredado de Cerveira. Mas ele é que mandou disparar! Ora essa, parvalhão! A arte são alegorias, quando muito metáforas ou metonímias, não há desculpa para o dano.

22 Mar 2019

Diário imprevisto de viagem

[dropcap]N[/dropcap]ão tenho normalmente grande contacto com miúdos de quinze anos – calma, não é nada disso. Embora o meu filho tenha de facto quinze anos, é um miúdo – como diremos – assaz atípico. Não sei o que se passa na cabeça dos adolescentes agora, na verdade não sei o que se passa na cabeça das pessoas em geral e tenho por hábito desconfiar das personas judicativas que as pessoas assumem facilmente diante de um teclado e de um ecrã. Quase ninguém é tão mau, tão bom, tão engraçado ou tão feliz como o avatar virtual que o representa. Além disso, vivo – como quase toda a gente – numa bolha constituída pelas amizades que de certo modo reforçam o ponto de vista segundo o qual esta atmosfera pode ser, a espaços, respirável. Dito isto, um adolescente de quinze anos não é mais misterioso para mim do que os participantes num programa da manhã: equivalem-se. A diferença é que ainda assim é mais fácil – embora porventura menos tolerável – ter acesso a um programa da manhã.

Fui convidado em 2018 para estar duas semanas em Bordéus com outro escritor – um marroquino, desta feita; o negócio é ter duas perspectivas, uma de dentro e outra de fora, da europa e da união europeia – ao abrigo de um programa local de cidadania europeia. A ideia é que os putos contactem com escritores – vivos, porque para a maior parte deles ser escritor equivale a estar morto – que lhes coloquem desafios às preconcepções que naturalmente decorrem da falta de contacto efectivo com outros pontos de vista além daqueles que os rodeiam e que tendem a reforçar aquilo que pensam. A ideia era portanto pô-los a pensar ao lado daquilo que pensam. Duas escolas por dia, duas horas em cada escola, uma vintena de criaturas em ebulição hormonal e com uma paciência tendencialmente diminuta para tudo quanto não seja imagem. Uma maratona.

Eu que não tenho especial vocação para a troca de experiências a nível intergeracional – ou mesmo horizontalmente geracional – achei que podia valer a pena nem que fosse para parasitar a experiência alheia com a qual são feitos todos ou quase todos os romances. A minha grande surpresa foi encontrar miúdos em cada turma muito diferentes dos restantes, bastante mais isolados e circunspectos no início das sessões, mais silenciosos, também, mas surpreendentemente curiosos acerca da pequena fatia de mundo que lhes conseguíamos entregar entre as perguntas orquestradas e as risotas. Não me percebam mal, como quase toda a gente que olha para baixo na hierarquia geracional, estava convencido do absoluto desproposito da juventude. Achava que não queriam ler, que não queriam aprender, que não queriam saber de quase nada senão do que se passa no enquadramento de um ecrã de telemóvel ou de computador. É quase mas não inteiramente verdade. Lêem menos, de facto (multiplicada de tal modo a oferta de distrações, seria estatisticamente improvável que a escolha deles recaísse tantas vezes sobre o livro como quando este competia apenas com a televisão). A principal diferença, parece-me, é o facto de estarem muito mais preocupados com o futuro do que eu e os da minha idade estávamos. Preocupam-se com o desemprego, com as alterações climáticas, com os direitos das minorias, das mulheres, com o racismo e restantes discriminações. Não quer dizer com isso que o plano social coincida com o plano prático. Mas pensam nas coisas com uma seriedade incompatível com a manutenção de uma fachada social de aceitação. Infelizmente – não há bela sem senão – parecem-me muito adultos. Demasiado adultos. Com quinze anos eu estava essencialmente preocupado em captar a atenção da Fatinha que parecia só ter olhos para um latagão com um cabelo loiro e encaracolado a lembrar as piores fotos do antigamente e incapaz de alinhar duas ideias que não gravitassem em redor do seu umbigo. O meu pai coitado bem me tentava ajudar: “pelo menos não deixes que a tua mãe te escolha a roupa”.

22 Mar 2019

Mercúrio retrógrado

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ati com a cabeça. Bati e bati com força, não figurativa mas literalmente, o que prova que, a ser um recurso estilístico, a realidade nada tem de estiloso. O mesmo devem ter pensado os donos das gargalhadas altíssimas que ouvi após o embate, o qual entortou a haste direita dos óculos e me deixou com a visão turva por instantes. Era de noite, estava distraída, olhar preso num jornal que alguém deixou num banco da paragem (mãe, pai, por que me abandonaram, vulgo ensinaram a ler?!), e com um saco de papel do McDonald’s na mão, que é como quem diz, quase mereceste levar com o mupi, que não teve culpa nenhuma e já lá estava.

Gostaria de um dia ter a minha cara em todas as paragens de autocarro, locais esses de que sou membro diamante, mas talvez esta não seja a forma mais eficiente. Também gostaria de ir ao supermercado usando vestidos Valentino, mas isso fica para outra crónica. Eram já quase onze da noite, chegara à paragem onde o tempo de espera era de trinta e cinco minutos e, para fazer tempo, fora comprar comida. No restaurante, o atendimento atrasado, funcionários discutiam entre si, clientes discutiam com a gerente, motoristas de serviço de entrega suspiravam e bufavam. Eu rezava para não perder outro autocarro, enquanto comia os nuggets mais tristes de sempre. Mas eu ia tão bem no meu vegetarianismo quase totalitário, que talvez tenha sido o karma, ou então o único, o temido, o incorrigível mercúrio retrógrado. Na paragem, com uma dor crescente do lado mais afectado pela pancada, ainda me parecia ouvir a risota alheia, em eco, cada vez menos sonante, mas ainda no ar. Cheguei ao meu destino rapidamente e, em menos de vinte minutos, estava despachada de mais uma burocracia que, espero eu, tenha sido a final. Novo compasso de espera na paragem ao fundo da curva, perto da rotunda. Desta vez, não estava sozinha mas com um casal, cujo odor corporal me fez rezar novamente, com todas as forças, mas não as suficientes para aspirar mais ar, que o autocarro não demorasse muito.

Chegada a casa, caí na cama, não sem antes recordar que nesse mesmo dia, numa entrevista feita em minha casa, faltaram os microfones, que ficaram do outro lado do rio, que uma peça de equipamento se estragou, que alguém se atrasou quase uma hora, que outro alguém combinou para as 15h com alguém que achou ter marcado às 16h, entre outras confusões e falhas de comunicação.

No dia seguinte, antes de seguir em viagem para Londres e de lá para Hong Kong e Macau, tentei ir a um multibanco específico, que permitisse depositar dinheiro: nada feito. Durante o voo, tentei ver um filme ou ouvir música, no entanto o meu écrã não deixou, por mais resets que a tripulação fizesse. Pedi novos headphones pois os meus não funcionavam. Precisei de paracetamol pois a dor de cabeça passou de forte a insuportável, de subtil a um galo. Um galo português em Macau, algo a que os meus amigos, por algum motivo, parecem achar demasiada piada. Pelo menos encontrei dinheiro na rua duas vezes seguidas, no espaço de uma hora. Tentei comprar comida e nenhum dos terminais do café aceitava o meu cartão, o que me obrigou a ir levantar o bonito dinheiro destas terras.

No hotel descobri, ao tentar aceder ao wifi, que me pede o número do quarto e o apelido, que o meu último nome é, agora, o de solteira da minha mãe. Há algo de curioso em telefonar a estranhos para descobrir em quem nos tornámos. Antes, no controlo de passaportes, o funcionário perguntou-me várias vezes se eu era eu, qual o meu nome, a data de nascimento. Apontou para a fotografia, depois escondeu-a. Sim, eu sou essa pessoa. Essa daí sou eu, sim. O meu passaporte é de 2017, cabelo esticado, desfrizado, comprido. Cortei o cabelo nem há uma semana (sim, a minha irmã convenceu-me finalmente e fi-lo eu mesma, pela primeira vez na vida, em casa), já não o desfriso há mais de um ano e meio, perdi peso e voltei a usar óculos que tirei, como mandam os scans biométricos. O sinal no rosto, esse, é o mesmo de sempre. Ainda assim, parecia não ser suficiente. Lá o convenci, talvez por ter-me oferecido para mostrar outros documentos, embora talvez isso apenas o confundisse mais, pois no cartão de cidadão o meu cabelo também está bastante diferente. Lembrei-me de quando trabalhava num edifício no Areeiro, e ia ao mesmo café todos os dias. Num dia em que fui de cabelo apanhado em vez de solto, a dona não me reconheceu logo. Ri-me sozinha ao lembrar de uma amiga que passou por mim na rua, na semana em que voltei a usar óculos, sem perceber que era eu. Nova afronta ao meu nome, quando o vejo com um g em vez de um c no novamente malogrado apelido.

Quem claramente percebe disto é uma das moças do hotel, cujo nome adorei: Bet Si. I see what you did there. Mercúrio volta a estar directo dia 28 de Março, mas é certo e sabido que os seus efeitos se sentem bastante tempo antes e depois da sua vinda. Gisela Casimiro was marked safe during the first Mercury Retrograde of 2019, após ter sofrido o que julgou serem os seus efeitos todos em apenas vinte e quatro horas.

É com alívio e já sem galo que de vós me despeço, desejando a todos um trânsito planetário seguro, e até aos próximos dois. Qualquer coisa, sabem de quem é a culpa.

21 Mar 2019

Manifesto das mãos

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]arcel Duchamp posicionou-se contra a tirania da retina na arte. Foi uma boa fisgada e necessária.

Todavia, cem anos depois precisamos de um manifesto contra uma arte que seja só conceptual: a arte que descartou o corpo, a mediação, o corpo-a-corpo com os materiais, e que abandonou a expressão como saldo de uma experiência no tempo, faliu.

Há um saber técnico que imprudentemente se descuidou e há uma inteligência, diria até, uma poética da mão, que convinha resgatar.

E não é preciso ir muito longe. Se até a música depende das mãos, como não ver nisso o apelo a uma conformidade, a uma humildade que nos transporta à magia do tangível? O desempenho das mãos não admite embustes, nem na punheta de bacalhau. Porque na música não basta a excelência que a partitura encadeou, coitado do acorde que não encontrou o seu exacto momento de ataque, o tom e o valor que só a mão lhe emprestam.

Há uns meses comecei uma vagarosa caminhada para o emagrecimento e quando me inquiriam sobre a minha diminuição de álcool eu respondia: “Quando o Orson Welles morreu, dizem que tinha à volta de cento e cinquenta quilos. O que é certo é que seis meses antes ele se cruzou num aeroporto com a Rita Hayworth, com quem fora casado, e que esta não o reconheceu. Ora, eu não quero praticar esta crueldade sobre a minha ex-mulher, senão o ódio que me devota e lhe orientou meia vida deixa de fazer sentido!”

Era evidentemente uma blague, decidi emagrecer quando as minhas mãos se tornaram sápidas e já não conseguia olhar para elas.

Nas mãos, como no rosto, começa a eroticidade do corpo. Calhou-me escolher o rosto e também as mãos.

Para o Rei Ubu seria simples imaginar o seguinte recurso para a dócil aceitação da escravatura: as mãos da plebe seriam desenroscadas do corpo após as dez horas de trabalho e só na manhã seguinte lhes seriam restituídas. Sem mãos não há revoltas, apesar do raciocínio.

Pois. E este idiota abandono da agricultura em todo o mundo é reflexo do caviloso predomínio que se dá a mente contra a mão. O mesmo que levou Bolsonaro a condenar um dedo no cu: eu não percebi a maleza do gesto a não ser no sentido em que faltará a mesma determinação para semear a beterraba.

O que é certo é que é bimilenária na arte a desconsideração do trabalho manual em relação ao projecto, o que redundou no racionalismo da mente.

Nem pela masturbação aprendemos.

É engraçado o descaro com que em 1965 Robert Rauschenberg enviou o telegrama-retrato de Iris Clert, uma marchant francesa, onde se lia: “ This is a portrait of Iris Clert, if I say so. Robert Rauschenberg.”

Engraçado é ter sido tomado a sério. Como antes, em Duchamp, a morfologia de um mictório, de um portador de garrafas, de uma pá de neve, foram confundidas, por simples penhor do nome, com uma nova função.

E, contudo, o peso generoso do ser humano está na mão. No que esta transfigura e transmuta. A agressão em perdão, o objecto desvalorizado em valor que cicatrize. E até a cegueira de uma mão pode ser divina. Vê-se no modo como Hokusai  aproveita o dom do acaso e faz do acidente, do estudo e da destreza, um só. Vê- se nas pinturas cegas de Tomie Ohtake, uma nipónico-brasileira que fez dezenas de quadros magníficos de olhos vendados; vê-se nas mãos de Rembrandt, na voluptuosa capacidade metamórfica de Júlio Pomar – pintores que talvez busquem a caligrafia de Deus, sem que em nenhum deles isso signifique um mínimo de beatice e antes uma operação mais concreta e abrangente do olhar.

O velhinho Focillon explicou-o maravilhosamente: “(…) entre o espírito e a mão, as relações não são tão simples como as que há entre um chefe autoritário e um servo dócil. O espírito faz a mão, mas a mão também faz o espírito. O gesto que cria, exerce uma acção contínua sobre a vida inferior. A mão arranca a capacidade de tocar da sua capacidade receptiva, organiza-a para a experiência e para a acção. É ela quem ensina o homem a tomar posse do espaço, do peso, da densidade e do número.”

Experimentem lá fazer arte contra estas grandezas.

E noutra página do seu breve Elogio da Mão, Focillon dá o uppercut: “ O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não consegue criar uma arte: as suas mãos dormem.”

Mãos sonâmbulas como as do voyeurista que domina este tempo de esplendor pornográfico, em cuja teia o cínico se espoja como a aranha convencida pelo seu raciocínio sobre a inexistência do vento.

Razão tinha o catalão Juan-Eduardo Cirlot, quando escrevia:

“Os olhos do meu espírito não têm/ a boca do meu espírito,/ as mãos do meu espírito não têm o corpo do meu espírito.// Esquartejado flutuo no abismo./ Azamboado de morte como uma água inquinada.// Já não quer dizer que não foi nada? / Todo um jogo de luzes e espelhos,/ todo um retábulo de fumo tenebroso? // As veias do meu espírito não têm/ o sangue do meu espírito.”

É urgente percebermos que o pensamento só sobrevive em consentindo que o acaso se infiltre nas redes que tece – “exterior” que só o corpo, as mãos, lhe garantem.

21 Mar 2019

Que ninguém atire

[dropcap]C[/dropcap]isterna, Lisboa, 11 Março

A semana foi absorvida pela montagem das imagens fortes da Ana [Jacinto Nunes], oriundas de «Ararat», com que a Cisterna, da Catarina [Marques da Silva], se abriu à cidade. A experiência da curadoria, no caso partilhada com o António [Gonçalves], não vai sem tensões. A escolha dos curadores, ainda que conversada, não deixa de ser a imposição de uma leitura, no caso, arremedo de narrativa, criação de ritmos a partir de cores, dimensões e temas, com subtilezas espalhadas que nem armadilhas e dramatismos a roçar o teatral, enfim, jogos de luz e sombra. A partir da leitura do sítio, pareceu-nos que mostrar menos, dada a força do gesto da artista, seria mostrar mais. A respiração de cada pintura interpela-nos, puxa-nos inteiros pela mão de modo a participarmos em cada cena. Outro fio corre ainda, tocando aqui e ali o chão: a escultura. Para além da sua força intrínseca, cada peça ora se associa ora confronta o habitat criado. Não consigo evitar a metáfora do ecossistema para descrever o por aqui se ajardinou. Imagino o que acontecerá nas noites com o conjunto convivendo em plena escuridão. Parece-me, aliás, provável que algo vá mudando durante o período da exposição. A nossa colonização do lugar alterou muitas vezes o que víamos. Até repousar em uma harmonia que só aconteceu no derradeiro segundo.

 

Cisterna, Lisboa, 12 Março

A perene confusão que habito faz com que a agenda seja de geometria violentamente variável. Dá-se algumas vezes em que aprecio bastante a medida do estrago: à mesa do almoço. Gosto de pensar nela como extensível, respondendo às surpresas como novos lugares. O resultado costuma ser não apenas de disparatada alegria, mas de produção criativa. Hoje foi dia. Tinha planeado, por entre os escolhos dos muitos aniversários do mês, pôr a escrita em dia com o Miguel [Rocha], mas estava por cá o António [Gonçalves] e juntaram-se, por força do calendário, a Raquel [Santos] e o José [Pinho], sem esquecer a Isabel. Em cima do cheiro a café e dos mimos que o Miguel trouxe, isto é, gengibre cristalizado e grãos de café vestidos de chocolate, e das gargalhadas, a conversa versou artes e culinária, livros lidos e a escrever, festivais e exposições e crianças. E má-língua, claro. Nem precisava nascer nada desta horta, mas garanto que sim, um qualquer cruzamento de couves e flores. Para já, aqueceu-me o coração, passe o lirismo.

 

Horta Seca, Lisboa, 14 Março

Outro dos grandes que parte. Recebo a tristeza em mensagem que fala da alegria. Quando me apetecia o silêncio, aceito evocar para as câmaras de televisão o Augusto Cid (1941-2019), que não caberá nunca nas minhas toscas palavras. Vejo-o chegar de mota e blusão de cabedal ou de scooter e chapéu de palha para contar história que nos fazia rir às lágrimas, ou outra que nos comoveria, ou para troca de ideias que nos indignaria. O Cid, como carinhosamente era tratado, foi, antes do mais que foi muito, um homem bom. Em período de pensamento único, arriscou conduzir a alta velocidade em contramão. Em cenários de grande dificuldade manteve-se íntegro e generoso. Era de causas, claro. Sofreu ataques terríveis à sua liberdade de expressão com um sorriso nos lábios e a caneta na mão, desenhando. Foi dos poucos corajosos a tentar ler, com sentido de humor, o que se passava na frente colonial, lá no temível Leste de Angola. Foi dos primeiros a sentir, em democracia, os arremedos da pulsão censória que habita todos os poderes. Riu-se e continuou. Disparava em todas as direcções, embora tendo alvos predilectos, que não lhe perdoaram o apontar dos ridículos (algures na página a desenhar-se em acção). Encolheu os ombros e continuou. Aqui e ali esculpiu, mas desconfio que uma das suas melhores obras acabou sendo a camaradagem. Descobriu o que se escondia na palavra amizade em plena guerra, como haveria de escrever logo nas primeiras páginas das memórias, em que trabalhava, e que tombam incompletas em combate. Levariam por título «Salazar não está cá!» e não resisto a transcrever o por quê.

«O título escolhido para este livro pode sugerir um inquietante apelo saudosista. Sosseguem, porém. Essa não é, de todo, a intenção do autor. Na noite de 29 de Novembro de 1966, o meu destacamento de Caripande, na fronteira de Angola com a Zâmbia, a sul do que se designou chamar o «saliente de Cazombo», foi violentamente atacado por uma numerosa força do MPLA. Entre os vários slogans e palavras de ordem gritados pelo inimigo, «MORTE A SALAZAR!» deixou-nos algo surpreendidos pelo que tinha de inesperado.

Seguiu-se um pesado silêncio que viria a ser interrompido por um soldado que se levantou na trincheira e, numa carregada pronúncia nortenha, ripostou num tom meramente informativo: «SALAZAR NÃO ESTÁ CÁ!…».

Uma sonora gargalhada percorreu a nossa linha de defesa num momento em que, dada a grande desproporção de forças e o enorme poder de fogo do inimigo aliado à impossibilidade de sermos socorridos a tempo, o moral ameaçava começar a fraquejar…»

Ainda fui a tempo de ler muitas histórias que revelavam a dimensão do seu carácter. Escolho uma ao calhas e fugindo ao óbvio. «Aliás seria ao escrever estas memórias que, curiosamente, me dei conta que a ordem mais repetida por mim, em combate, nos meses que se seguiram foi: «NINGUÉM ATIRA!!»…

Esta minha preocupação tinha uma justificada razão de ser, dada a natural impreparação dos nossos homens em combate. Às rajadas do inimigo, tinham uma irreprimível tendência para ripostar na mesma moeda. O problema era só um: a G3, em posição de rajada, devorava as vinte balas do carregador num ápice. O atirador, de carregador vazio, se estivesse num aperto, teria pela frente a complicada tarefa de se socorrer de um dos carregadores de reserva, normalmente empurrados para as costas e inseridos em bolsas nada fáceis de abrir numa emergência, enquanto a frente do cinturão estava “ornamentada” com o cantil, granadas de mão e faca de mato… As minhas ordens em combate, com o tempo, acabaram, contudo, por vingar – arma sempre em posição de tiro a tiro. Só atirar na presença de um alvo. Economizar ao máximo as munições, por forma a estar apto a poder enfrentar um corpo a corpo com a patilha em rajada antes de ser obrigado a recorrer a arma branca.»

Saravá, Augusto.

 

EC.ON, Lisboa, 16 Março

Acorro ao ciclo poético da EC.ON e assisto, com prazer, ao Jaime Rocha desenhar o palco que a Nazaré se tornou para ele, no qual nunca mais deixou de ouvir conversas com mortos, nem de acompanhar figuras de negro a passearem medos e angústias, sem esquecer a íntima observação do mar ininterrupto e o cultivo do silêncio. Vi até uma enxada a passar à beira do café em Benfica e na mão de um semeador de cães e gatos. Ouvi também o dodecassilábico Henrique Manuel Bento Fialho defender acesamente a contaminação entre géneros, a descoberta do verso na prosaica planura da prosa, ou da centelha da ideia em pleno poema. Pensei, por causa disso, que o gesto poético surge que nem aquelas utilíssimas placas de sinalização espalhadas pelo nosso interior. Perdidos, acendemos os faróis para ver melhor a indicação que nos salvará a pele e eis que surge, brilhando, «outras direcções».

 

Horta, Lisboa, 17 Março

A ingrata tarefa de jurado em prémios de poesia, sobretudo se dirigido aos não publicados, serve para medir a temperatura ao nosso lirismo. O panorama surge nevoento e sem que a paisagem ganhe contornos nítidos. Não sem espanto, assinalo a enorme quantidade de veias e espelhos e crepúsculos que pode o poema conter.

20 Mar 2019

Da infância

[dropcap]O[/dropcap]que fazemos da infância? De que nos serve, como usamos esse prefácio de nós mesmos? Demasiadas perguntas retóricas para um início de crónica, talvez. E no entanto.

Sobre a infância e a sua influência no que mostramos que somos muito se pode dizer – sobretudo nesta era pós-freudiana, que justifica análises de personalidade com acontecimentos e memórias dessa época de crescimento. Mas daqui desta varanda só vejo o dia-a-dia, e é isso que me interessa. E desta varanda proclamo: a infância está sobrevalorizada. Um pouco como a juventude, de resto. Mas essa será outra conversa.

O mais importante da infância é garanti-la. Fazer com que exista, com carinho, protecção e amor. Quando isto acontece – o que é uma sorte, diga-se – toda a idealização me parece descabida e menor face ao adulto que somos. Para variar, socorro-me da literatura para dar a perceber duas maneiras antagónicas de enfrentar o nosso inicio: Philip Larkin dizia da sua infância que foi um “tédio esquecido” (“a forgotten boredom”). Conhecendo a biografia do poeta sabemos que estava a exagerar um pouco – mas só um pouco. No outro extremo, outro poeta inglês: AE Housman dedicou belíssimos poemas a esses dias longínquos, e para eles cunhou o seu verso mais célebre: “That is the land of lost content”. O país do contentamento perdido, inalcançável, a que nunca mais iremos regressar. O primeiro, um melancólico; o segundo, um nostálgico. Como de costume, e como em quase tudo, estou com Larkin.

Há algum tempo pude rever alguém com quem partilhei os recreios da escola primária e que desde então não tinha voltado a ver. A vida tem o hábito de desrespeitar qualquer tipo de nostalgias. E se bem que consegui colocar o rosto dessa minha amiga em folguedos e contentamentos perdidos, quem eu conheci foi outra pessoa e foi a essa pessoa a que reagi. De nada me valeram ou interessaram presumíveis momentos dourados de pureza e inocência. Eram fantasmas, por mais amáveis ou bem embalsamados que estivessem; e não é muito interessante conviver com fantasmas.

O que vale mais, uma suposta inocência ou a perda disso mesmo? Eu voto pela segunda. A primeira terá que ser precavida, mas nunca idealizada. As culturas que dão valor à velhice percebem que a infância não é um tempo ideal: apenas uma etapa necessária para uma sabedoria transmissível. Não se pode responsabilizar algo com que crescemos indefesos. É por isso que as nostalgias das reuniões de antigos colegas são falácias suportadas. Ninguém se quer ver como era ou pelo menos comparado com o que é. A infância, embora tenha de ser suportada, é sobrevalorizada.

Compreende-se o culto: por vezes a infância é uma urgência que nos acontece em adultos. Leio o excelente Fotografia Apontada À Cabeça, terceiro livro do mano José Anjos, e pressinto nos versos uma infância entalada na garganta, uma criança que caiu e pede ajuda para se levantar. Interessa-me isto, a infância como motor de criação; mas não como lastro para a vida adulta. A velhice é-me mais grata e bem-vinda porque é sempre sabedoria. E como dizia Píndaro, uma velhice honrada e graciosa é a infância da imortalidade.

 

20 Mar 2019

Conhece-te a ti próprio

[dropcap]A[/dropcap] formulação gnôthi seauton, que podemos traduzir por conhece-te a ti próprio é uma máxima que Platão repete na boca Sócrates em diversas instâncias. A versão completa diz também mêden agan: nada de excesso. Importa perceber que o objecto do conhecimento é si mesmo ou si próprio e o verbo é um imperativo aoristo. A fórmula é um convite que diz, pelo menos uma vez na vida, conhece-te a ti próprio ou reconhece quem tu próprio és, e nada de excesso. Que excesso é este? É no conhecimento de si? Podemos conhecer-nos bem de mais? Ou é na própria prática, nas nossas acções? O que quererá dizer “conhecimento” aqui? E quem é esta entidade aparentemente diferente de “mim”, o “si”?

Há várias despistagens possíveis antigas e contemporâneas. A primeira prende-se com o domínio não coincidente do si próprio, self, Selbst, e do eu. Numa crítica a Descartes, Heidegger diz que, se o ego nunca morrer, se repete em cada cogitatio e cada pessoa projecta-se a si mesma como o eu que é para todo o sempre, pelo contrário, o sum, o sou, implica-me no encaminhamento da morte. Eu sou moribundo, sum moribundu: sou aquele que tem de morrer. O ser do sou é diferente do ser do é, do ser do eu. O eu é uma coisa que durará para sempre, que eu não perspectivo fora de mim nunca. Mesmo que eu viva para todo o sempre, o sou é sempre a perder, é sempre a abrir mão de si. O conhecimento que abre para o eu é uma percepção clara e distinta que é coincidente com o aqui e agora em que o eu existe e é também o eu que se desdobra e olha para o próprio eu: eu penso-me a pensar-me coisas pensadas por mim, eu sou o agente da percepção e ao mesmo tempo o conteúdo da própria percepção de mim.

Mas como acedo eu ao sou? A tradição da fenomenologia diz que há uma compreensão não reflexiva, não temática de si. Nós respondemos à pergunta “como tens passado?” com respostas mais ou menos óbvias: bem, mal, assim assim, vamos indo. A resposta dá já conta do modo como nos encontramos. Nós encontramo-nos desde sempre de um determinado modo, nós achamo-nos a nós desde sempre. Encontrar-se e achar-se querem aqui dizer que há um modo de nos surpreendemos sempre num modo de ser, num modo de estar. Há uma melodia que vibra connosco a vida e sentimos estar a ser ou ser de um determinado modo. Os outros que aí estão connosco são também melodias que vibram nas nossas vidas. Não são só eus aos quais acedem por percepções claras e distintas, nem intuições de si mesmos.

Os outros são na sua “fonia” vozes complexas jovens ou velhas, espíritos que sopram nas nossas vidas como o vento nas harpas eólicas. O si próprio de que fala Delfos é este horizonte de melodia em que somos com outros em sinfonia. A música das nossas vidas não é apenas a que Sócrates chamava a versão popular da música. Sócrates achava que tinha feito música a vida inteira para responder à exortação da personagem dos seus sonhos que lhe pediam para fazer música. Achava que tinha feito música a vida inteira e isso era ter feito filosofia, fazer filosofia. Por escrúpulo de consciência tinha composto uma música para acompanhar um poema, mas a verdadeira música que vem da inspiração e do entusiasmo divino tinha sido a filosofia na vida dele.

Conhecer-se a si mesmo é abrir-se à disposição musical em que escutamos e percebemos a nossa própria melodia e a melodia dos outros nas nossas vidas e as melodias das nossas vidas nas dos outros e as dos outros nas nossas. O si próprio em cada um de nós não é um ponto de vista. Os outros não são apenas pontos de vista. O acontecimento humano não é apenas espacial a abrir para um alvo e a definir um horizonte. Nós somos no tempo e distendidos pela totalidade do universo. Cada um de nós é à escala mundial. Não. Cada um de nós é à escala universal. E nós estamos distendidos uns nos outros desde o primeiro homem até ao último homem. O próprio é a dimensão temporal que se desenrola como um manto. O próprio é o agente complexo de todos os protagonistas das suas vidas.

O conhecimento resulta desta forma complexa de abertura a si, como ninguém quer a coisa, sem se saber como pode vibrar sobre todos os eus que nós somos, sobre todos os comités de gente que nós somos, sem saber como é possível reunirmos em nós a cidadela. O si é a cidadela de todas as cidadelas que existem desde os primeiros seres humanos e que pensavam no que havia antes de terem nascido. O Si somos nós na hora da nossa morte, antecipando todas as gerações de pessoas que estão para vir. O si somos nós na hora da nossa morte já sem ninguém a antecipar. Perguntamos quem seremos nós na hora da nossa morte. Perguntamos quem seremos nós depois de termos desaparecido daqui, sem pai nem mãe nem irmãos, sem os nossos amores. O que seremos sem os nossos amores e quem serão os outros sem o nosso amor. Conhece-te a ti próprio é a abertura de amor ao outro como nos temos aberto a nós próprios no concerto difícil da totalidade da vida a ser.

Nada de excessos!

19 Mar 2019

Trevos e trevas

[dropcap]D[/dropcap]e ora em diante deponho os trevos e quero as trevas, género perfeito. O plural da escuridão é mais que breu, e, ao afirmá-lo, ainda o faço num dia esplêndido de quase Primavera. Thomas Bernhard «Trevas» precisamente. Tão difícil mencioná-lo! Ele anda no entanto por todas as Instituições de Ensino, em palestras, colóquios, debates, e parece a cada abordagem, sempre e mais inacessível. As leituras, essas, são como os feitiços, podem subjugar-nos e por isso temos de ser vigilantes, ao revelar (velar pela segunda vez) tomamos consciência que a forte probabilidade de uma paralisação mundial possa ser feita pela leitura, feita por mentes audazes que testam a frágil inteligência humana tão repleta de anseios que pode muito bem constituir um vasto plasma para testes radicais.

Na vasta gama dos estilos o poeta escapa ileso à urdidura do ditirâmbico manancial de hipnotização colectiva, dado que obedece a leis muito estranhas, cujo objectivo não domina – nem lhe interessa- porém, não raro pode ser o mais agreste dos artesãos feiticeiros, e devolver intactas as leis que todos se amarfanham por esconder. É o irrealista resoluto na marcha da escrita, que lhe escapa, como tudo aquilo que lhe foge. Assim sendo, trabalha num bem, que ao averiguar-se perigoso, será sempre fora da sua estricta vontade de fabricante de alguma calamidade. Já os narradores, os novelistas, os ensaístas, são mais atentos na imodéstia de algum incisivo desnorteio, e alguns, tomam mesmo as rédeas do mais indómito dos poetas na saga de uma obra, que afinal, é a vida e as sociedades que as imploram.

Mas que tem Bernhard a ver com isto? Quase tudo, já que para romances temos a vida de cada um e as descrições quase sempre enfadonhas dos seus méritos, onde cada qual fala de si a partir da urdidura ilusória das múltiplas tentativas, e, é tanta a praga, que devemos ver coragem em desconhecermos tais investidas. Cada coisa destas cresce por dentro de tal forma que precisará de um assassino para que o circuito fechado abra por fim em golfada, esguicho, abertura sanguinária para fora. Por fim, a liberdade que qualquer nado morto desconhece, e muitos acordam nesse instante, exangues e lúcidos, e talvez até quem sabe, mais serenos. Quanto a mim, tocou-me sempre a vida deste homem e a sua natureza. A marca de um nascimento onde existe uma maldição que demonstra a beleza de alguns, saídos de vínculos danados e proibitivos, ao seu avô escritor, a irreverência, o trauma que carregou sublimado em brilho, a superação inigualável de um bem que durará pela vasta obra deixada aos vindouros.

Bernhard teve uma longa prática nos jornais, sabendo como assinalar para o conjunto de uma obra narrativas breves, levando-as para as novelas e peças de teatro. O seu tempo de renome chegou e culminou num grande desassossego ambiental, agreste polémica com Elias Canetti que o faz renunciar à Academia Alemã, e as obras proibidas no seu país, a Áustria, ainda que provisoriamente. «Trevas » têm dentro o seu paradoxismo pela claridade, essa superfície fria que encherá o mundo de terror, o mundo científico, visionariamente entendido nessa lâmina de aço onde a hostilidade será infinitamente mais alta que toda a imaginação: ele fala afinal da brancura que inundará os cegos e de frios muito maiores que o próprio gelo. Não parando jamais de nos interpelar durante o seu instante cósmico face a tudo aquilo que tínhamos por seguro, não foi em definitivo um contador de histórias: “as relações com o próximo? Melhor rompê-las bruscamente.” Não creio que se possa no entanto fugir ao raio de acção da sua força. Subitamente, e só para o fim, se congela em fragmentos nos seus estratos de breu e nada nos aquece mais que a pira da sua alma a arder.

Os nossos dons agonizantes que brilham timidamente no asfalto das Nações, precisam destas manobras sem freio saídas de um homem com rosto de menino a quem o nazismo tanto incomodou, prostrou e enraiveceu.

Devem os escritores reacender este tumulto? Devem, sim. Ateá-lo e continuar atentos. Os ciclos laudatórios, as imagens de bastidor, a fornalha acesa para o nazismo vindouro, a orfandade protelada em cada bocejo, o virtualismo, o virtual, precisam destas Trevas nas consciências para ultimar o propósito a haver. Por qual, ele sempre haverá mais inconsciente que consciente. Colectivo. A consciência é um marco, esse, absolutamente individual. «e seria então necessário que, por si mesmo, tudo se separasse de nós e desaparecesse sem ruído. Seria necessário sair destas trevas que é impossível, que se tornou no fim de contas impossível dominar durante a vida… precipitar a chegada das trevas, fechando os olhos para só os reabrir quando se tiver a certeza de estar absolutamente nas trevas, nas trevas definitivas».

A Europa ainda é uma assinatura de autor.

19 Mar 2019

Lamno -A vila de pescadores esquecida*

[dropcap]M[/dropcap]acaense é símbolo do intercâmbio cultural entre o oriente e o ocidente, e o mesmo acontece no noroeste de Sumatra, na Indonésia, a duzentos quilómetros de Banda Aceh, numa remota vila de pescadores no vasto Oceano Índico, Lamno. Além de ser um local de excelência mundial na produção de lagosta, Lamno destaca-se pela singular existência de um grupo étnico misto de portugueses e indonésios. Os rostos típicos do Sudeste Asiático convivem com um par de olhos azuis cristalinos e de cabelos loiros. Esta aparência especial, que parece expor tranquilamente o seu passado histórico, atraiu também a atenção da imprensa estrangeira.
Infelizmente, Lamno ainda hoje é uma vila desconhecida.

Devido à sua localização, Lamno sempre teve relações com a China desde os tempos antigos e durante o grande período de navegação dos europeus dos séculos XV a XVII. Antes dos portugueses chegarem na procura de especiarias e na ânsia de espalhar a religião católica, o imperador da dinastia Yuan já tinha enviado mensageiros ao local, em 1284. No entanto, existem duas formas para tentar explicar o aparecimento do grupo mestiço português-indonésio local. A primeira é a de que muitos dos marinheiros da frota portuguesa que chegaram à vila optaram por lá ficar tendo muitos deles casado com as mulheres locais. Mas, de acordo com um comunicado oficial, quando os navios portugueses atravessaram a área marítima de Banda Aceh, foram capturados pelo Sultanato de Aceh. Naquela época, os marinheiros portugueses estavam misturados com a tripulação da Andaluzia, Espanha. A Andaluzia é a última dinastia islâmica do território espanhol, “Nasrite”. Devido à semelhança da religião dos dois povos, a tripulação e os habitantes locais facilmente se integraram, e o Jaya Sultan também os ajudou a estabelecer o sultanato “Lamno”. Esta pode ser uma segunda explicação para o surgimento desta mistura peculiar.

A minha viagem para Lamno foi bastante complicada. O avião teve de fazer duas paragens desde Hong Kong até chegar Banda Aceh, e precisei também de contratar um motorista e de alugar um carro no dia seguinte. Devido à falta de alojamento em Lamno, a viagem de ida e volta até Banda Aceh tem que ser feita no próprio dia. Embora estivesse sozinho, a jornada foi tranquila. Felizmente, o motorista que contratei era da organização de socorro às vítimas do tsunami da ONU e nasceu em Lamno.

De Banda Aceh para Lamno, o carro percorreu uma estrada costeira, passando por campos verdejantes, praias lindas e selvagens. O pequeno carro subiu as sinuosas estradas da montanha onde a beira da estrada era coberta de floresta tropical. Durante esta viagem, o cenário ecológico original dos penhascos perto da beira da estrada, era assombroso e mostrava-me o infinito. O Oceano Índico estendia-se diante dos meus olhos.

À tarde, chegámos a um vasto campo, onde se localiza a vila de Lamno. Ao passear no pequeno mercado da aldeia, pude observar vários edifícios com o estilo arquitectónico do sul da Europa e islâmico, que revelavam assim as características culturais locais. O motorista e os aldeões levaram-me para uma casa de madeira onde se sentavam à porta duas mulheres tímidas de meia- idade. Após as apresentações, vim a saber que o marido de uma delas era um homem mestiço luso-indonésio da quarta geração e que a sua filha possui cabelos loiros. O balanço geral da minha jornada foi muito bom, mas fiquei um pouco desiludido por não conhecer pessoalmente estas duas pessoas, que estavam a trabalhar e a estudar noutra ilha.

No entanto, esta viagem encheu-me de satisfação e deu-me a conhecer a vila de “Lamno” registada nos dados históricos chineses, portugueses, ingleses e indonésios.

 

Ritchie Lek Chi, Chan
*Artigo publicado no Macao Daily Newspaper em 14 de Novembro de 2018

 

18 Mar 2019

Os primeiros imperadores Qing

[dropcap]N[/dropcap]urhachi (1559-1626), do clã Aisin Gioro, tribo jianzhou dos nüzhen, nasceu em Hetuala e com 18 anos casou-se pela primeira vez, sendo em 1583 eleito chefe dos jianzhou. Contraiu matrimónio mais quinze vezes e o de 1588 foi com Yele Nara Hala, filha de um príncipe nüzhen que em 1592 lhe deu o seu oitavo filho, Aisin-Gioro Huang Taiji.

Após unificar as tribos nüzhen, em 1616 Nurhachi estabeleceu a Dinastia Da Jin (1616-1636, Grande Jin), tornando-se o primeiro khan (soberano), com o título de reinado Tianming e nome-templo Taizu (1616-1626). Fez a capital em Xingjing (antiga Hetuala), passando-a em 1621 para Liaoyang e em 1625 transferiu-a para Shengjing (Shenyang). Mas logo no ano seguinte morreu, sucedendo-lhe então como segundo khan Aisin-Gioro Huang Taiji (1592-1643) a governar a dinastia de 1627 a 1636 com o título de reinado Tiancong. Herdando o sistema das oito bandeiras (baqi), que organizara os nüzhen administrativamente, tanto no sector civil, como no militar, instituiu-o em 1633 aos han e mongóis sob o seu controlo. Existia já para comunicar a língua man, escrita baseada nas palavras mongóis e pronúncia nüzhen, o que em 1634 levou Shengjing a passar a ter o nome de Mukden e Huang Taiji a ser conhecido por Abahai. Em 1635 mudou a designação de nüzhen para manchu.

Usando o modelo chinês na administração pública desde 1631, Huang Taiji teve o cuidado de colocar nos altos postos de comando não só os nüzhen, como mongóis e chineses han.

O Palácio Imperial em Shengjing, iniciado em 1625 por Nurhachi, só ficou completo em 1636, quando Huang Taiji criou a Dinastia Qing (puro), tornando-se o seu primeiro imperador e tomou o nome de reinado Chongde (1636-1643). Com o fito de conquistar a China investiu num corpo militar forte para a invadir.

Ao grande desenvolvimento a ocorrer no Nordeste, a Dinastia Ming não prestou atenção, de tão ocupada estava com as revoltas dos camponeses e a cobrar cada vez mais impostos à já de si empobrecida população para pagar os luxos dos imperadores, que não se coadunavam com os cofres vazios e disfarçavam as manigâncias dos corruptos eunucos.

Abahai “impõe o seu domínio à Coreia em 1638 e acaba por ocupar toda a Manchúria até ao estreito de Shanhaiguan em 1642, bem como toda a região do Amur (província de Heilongjiang) entre 1636 e 1644”, segundo Jacques Gernet, que refere, a sua política “visa a imitação das instituições chinesas. Os seus conselheiros e os seus generais são chineses e o armamento moderno que possui é-lhe fornecido da China por trânsfugas.”

Apesar de ser o fundador da Dinastia Qing, Huang Taiji não chegou a ser Imperador da China devido à sua morte em Setembro de 1643, uns meses antes de os manchus tomarem Beijing. Com o nome de templo Taizong, o seu mausoléu, Zhaoling, a Norte de Mukden (Shenyang), foi iniciado em 1643, demorando oito anos a ser construído, encontrando-se aí sepultada a Imperatriz Xiaoduan e algumas das suas esposas, entre as quais a favorita Borjigit Harjol (1609-1641), a consorte Minhui.

Huang Taiji morrera sem designar sucessor, tendo um comité de príncipes manchus escolhido o seu terceiro filho Aisin-Gioro Fulin (1638-1661) para lhe suceder e por ter apenas seis anos, nomeou como regentes Jirgalang e Dorgon. A 8 de Outubro de 1643 no Palácio Imperial de Shengjing foi coroado como Imperador Shunzhi (1644-1661), o segundo da Dinastia Qing.

A ocupação de Beijing por um exército de camponeses liderado por Li Zicheng levou a que em 25 de Abril de 1644 o último imperador ming Chongzhen (1628-44) se suicidasse. Para desalojar os rebeldes, foi dada a possibilidade ao exército manchu de transpor a Grande Muralha e em conjunto com os ming combatê-los. Os manchus, encontrando o trono chinês vazio, em 6 de Junho de 1644 instalavam-se em Beijing, tornando-se Shengjing a sua capital subsidiária. Os imperadores desde então deixaram de ter o nome pessoal, que apenas se usava para as orações.

Imperador Shunzhi

Fulin, nascido a 15 de Março de 1638 e filho de Huang Taiji e de Xiaozhuang (1613-1688), já como segundo Imperador Qing Shunzhi foi no dia 1 da décima Lua de Jiashen (甲申), ano sob o signo do macaco, a Tiantan em Beijing oferecer sacrifícios ao Céu e na semana seguinte, a 8 de Novembro de 1644 realizou-se na Cidade Proibida a sua entronização como primeiro Imperador da China da Dinastia Qing (1644-1911). Devido a ser ainda uma criança, tomaram então conta dos assuntos de Estado os regentes Dorgon (1643-1650), 14.º filho de Nurhachi e Jirgalang (1643-1647), sobrinho de Nurhachi. Este último foi em 1647 destituído por Dorgon, que ficou a dominar tanto a política como militarmente a China.

Em Beijing, os manchus ocuparam a Cidade Interior e daí colocaram os han para fora das muralhas que a circundavam, ficando estes a viver na Cidade Exterior. Os casamentos entre ambos os grupos foram proibidos, tal como os han irem viver para o Nordeste [conhecida pelos ocidentais como Manchúria e designada Dongbei pelos chineses, é composta por três províncias: Liaoning, Jillin e Heilongjiang, com as respectivas capitais em Shenyang, Changchun e Harbin].

Os manchus rapavam o cabelo deixando apenas uma trança (bianzi) no topo da cabeça, penteado usado pelos povos nómadas das estepes. Após chegarem ao poder na China, logo em 1645 o tornaram obrigatório aos sedentários chineses han, que tradicionalmente usavam o cabelo comprido apanhado num carrapito. Essa submissão foi entendida como uma humilhação, mas quem não acatasse tal disposição ficava sujeito à pena de morte.

Encontraram no Centro e Sul do território da China uma resistência dos chineses han, a qual Macau apoiou, e só em 1661 os manchus conseguiram pôr fim às pretensões de quem queria restaurar a Dinastia Ming. Contaram com a ajuda militar de alguns generais ming dissidentes, desagradados com a corrupção na corte ainda antes dos manchus obterem o Mandato do Céu e a esses trataram como pertencentes à sua família. A falta de pagamento levou muitos outros, entre oficiais a soldados a uniram-se-lhes, assim como os que se renderam aquando da tomada para Sul das cidades ocupadas pelos ming. Para os manchus, quem não se rendesse era massacrado até à morte e foi o que ocorreu no Verão de 1645, quando durante dez dias oitocentos mil habitantes de Yangzhou morreram às mãos do exército imperial qing, comandado pelo Príncipe de Yu (Aisin-gioro Duoduo). Este seguiu depois com as suas tropas para Nanjing onde a população imediatamente o deixou entrar, terminando com o primeiro regime Ming do Sul, que teve um ano de existência. Fugindo para Sul, a corte ming dividiu-se, formando novas bolsas de resistência, que só iriam terminar já o segundo Imperador Qing tinha morrido.

Shunzhi iniciara com 13 anos a sua governação, após a morte no último dia de 1650 do regente Dorgon, até que com 22 anos morreu de varíola, sendo o sucessor o seu terceiro filho Xuanye, o Imperador Kangxi.

18 Mar 2019

Queirozices

[dropcap]Q[/dropcap]ueira-se ler Eça de Queiroz com algum sobreaviso – chame-se “olhar crítico” para condescender ao linguajar vigente – e depressa ressaltará uma contumaz sobranceria e não pouca petulância por entre os interstícios da magnífica prosódia, da calibrada pulsação narrativa, da mão firme no contorno dos tipos e da acuidade do retrato social.

Eça tinha mundo, andava lá por fora, vira coisas, ao contrário dos borra-botas que aos fins de tarde, encostados à Havaneza do Chiado fofocavam, demoliam umas reputações e lisonjeavam outras, arengavam opiniões, enfim ditavam as modas e os gostos a prevalecer na cediça e periférica Lisboa de oitocentos.

Em “A cidade e as serras” a cena do jantar no 202 dos Champs Elysées é impagável de ritmo e burlesco e só a pode engendrar não quem a imagina em abstracto, mas quem deveras conviveu com as luzes e as modernidades de Paris. A Madame de Todelle que caiu do velocípede, Dornan, “o poeta neoplatónico e místico”, Joban, “o supremo crítico teatral”, fazem conjunto com as elegâncias de Jacinto – “um roupão branco de pelo de cabra do Tibete.”

Mas a quem dirige Eça estas minuciosas descrições, quem quer ele que as leiam, senão precisamente os borra-botas da Havaneza?

Eça não pretendia apenas derrotá-los e calá-los com as graças do seu talento literário, bem acima da nacional-mediania e que mesmo o seu némesis Fialho de Almeida – ou mero candidato a isso, pois nunca pela obra lhe chegaria aos calcanhares – se via forçado a reconhecer. Eça queria esmagá-los, invectivá-los ou até deslumbrá-los com o seu cosmopolitismo. Sabendo-se melhor do que os coevos, porém mal-amado ora por aquele rancor tão portuguesinho ora por um despeito em troco do seu snobismo, Eça ansiava por asseverar uma posição existencial e intelectual superior à deles.

Dizem, e talvez com mais razão do que calculam, que tudo isto é muito contemporâneo.

Emulando a subtileza e a perspicácia inquisitiva de Eça na observação da sociedade em seu derredor é certo e sabido que não falta hoje quem, com o zelo dos escrupulosos, se proponha apostrofar esta choldra que não progrediu um milímetro desde os dias queirozianos, apenas transumou dos umbrais da Havaneza para o caneiro das redes sociais. E em reforço da cumplicidade com quem os ouve, como se reflectíssemos aqui entre nós tão clarividentes que somos, lá vêm as imprecações contra a letargia e a cupidez dos tempos, as cabalas dos poderosos que se não viéssemos acusar ninguém as expunha, a superficialidade e a bruteza do povo que enxameia os hipermercados aos fins-de-semana, a mesmidade dos vendilhões do templo da cultura que se põe com entretenimentos em vez de denunciarem as enfermidades da grei com murros no estômago dos espectadores, o Estado pusilânime que não investe nas radiosas flores que amanhã nos deslumbrarão.

O diabo é que quem se põe com estas faenas acaba por ser parte delas. E ao constituírem-se de motu próprio como fiéis depositários do “sentido crítico” queiroziano, ao apropriarem-se do lugar do narrador que é o de um deus ex machina, estes pretensos videntes afundam-se num pedantismo em que só o génio na escrita de Eça o protegeu de nele escorregar. Descarnados desse dom os imaculados não passam de pernósticos, traço indissociável do ridículo.

É isto um fenómeno patrioticamente luso-nacional-português que Eça ele próprio não desdenharia capturar em prosa. Aqui ninguém enfia carapuças em concreto pois todos crêem que ela cabe melhor na cabeça de outros em abstracto, por isso tantos há que queiram dar uma mãozinha – ou meter a mão pela calada – na troça de assestar carapuças noutrem.

Sucedeu, portanto, que os descendentes dos toscos e ronceiros que resmoneavam diante da Havaneza, sem se arredarem um milímetro das maneiras e da mentalidade dos antecessores, arrogaram para si a sátira e o entono de Eça de Queiroz. Bela partida lhe pregaram, não haja dúvida.

 

15 Mar 2019

Menos, por favor

[dropcap]A[/dropcap]s redes sociais são pródigas na não tão subtil arte da indignação colectiva. São uma espécie de curso de água por onde passam boiando as revoltas do dia. O seu percurso à superfície é normalmente assaz reduzido: vêm de um subterrâneo oculto e anónimo, flutuam no máximo dois ou três dias à vista e na boca de todos, sob o escrutínio atento dos indignados, e regressam rapidamente ao buraco do esquecimento geral.

Pelo que tenho lido nas redes sociais – onde os gatos têm injustamente de dividir o espaço que lhes pertence por direito com toda a espécie de minudências – nestes últimos dias tem-se falado de dois programas televisivos que visam encontrar mulher casadoira para homem medianamente incapaz. Não vi os programas em causa, o que no entanto não me impede de todo de comentá-los – com a vantagem acrescida de evitar uma exposição à mediocridade a que já estamos involuntariamente votados uma grande parte do tempo. Parece que num deles uma das personagens é a mãe dos indivíduos em causa, repetidamente insatisfeita com a parca qualidade doméstica das mulheres de hoje. De facto, o mundo no qual definhamos em relativa simultaneidade tornou-se cada vez menos complacente com a polivalência. Se há quarenta anos se esperava das mulheres, para além das competências que lhe eram naturalmente impostas, do arrumar a casa ao lavar e passar a roupa, sem esquecer cuidar das crianças e amiúde dos sogros acamados, ter ainda um emprego – que de preferência não exigisse muito daquelas cabecinhas já tão gastas pelo excel incessante de compras e contas que lhes cabiam naturalmente em tarefa –, a verdade é que os dias de hoje, crescentemente propensos à especialização, obrigam as mulheres a revelarem as suas infelizes limitações, nomeadamente em termos de ubiquidade e de tolerância ao sofrimento. Cada vez mais embrenhadas nas tarefas profissionais que lhes garantem uma módica quota de independência, as mulheres infelizmente dotadas de apenas dois braços e de uma aborrecida precisão de sono, já não conseguem – ou não querem – ser o pau-para-toda-a-obra voluntarioso a que uma geração não muito distante de homens – e de mulheres – se habituou.

No outro programa o foco são os agricultores do rectângulo, homens bons e sadios como pêros de Monchique que, por vicissitudes da vida no campo (onde é verdade que as mulheres – e já agora, porque não, os homens – são cada vez em menor número), não logram chegar à idade de ver os frutos das suas sementes crescerem vicejantes porque as suas sementes, infelizmente, não caem nunca em chão fértil. É uma espécie de glosa da imagem do rancheiro letrado, apetecível e rico mas na versão minifúndio, escolaridade básica e remediado suficientemente para ter quase os dentes todos.

Sempre achei que existe uma correlação rígida e simples entre a vergonha da exposição neste tipo de baderna televisiva e os ganhos decorrentes da mesma. Tendo em conta de que o Tinder permite um raio de “descoberta de sujeitos passíveis de interesse” de cento e sessenta quilómetros e de que não estamos propriamente nas desabitadas e infindas estepes russas, parece-me que existem ainda demasiadas pessoas a não perceberem a simplicidade da correlação ou a desconhecerem o Tinder. Qualquer dos casos me parece, em todo o caso, lamentável.

A crescente estupidificação em curso só pode na verdade ocorrer porque aparece aos olhos do estupidificado em curso – todos nós, com algumas notáveis mas insuficientes excepções – como outra coisa ou mesmo o seu contrário. A vergonha aparece como fama; a quantidade confusa de informação aparece como esclarecimento; a saloiice aparece como genuinidade, e podíamos continuar maçando página fora.

15 Mar 2019