A matilha dos afectos

[dropcap]H[/dropcap]einrich von Kleist, o patriota prussiano, poeta e dramaturgo, escreve entre algumas obras de referência aquela que viria a ser a obra-prima do teatro romântico, «Pentesileia». É uma obra monumental! Não tanto pela opulência ou pelo vírus exacerbado da representação, mas pela temática e virtuosismo em delinear o impossível sem quase nenhum recurso ao comprometimento dos méritos da união, e um fôlego pulverizante que nos coloca diante da tensão máxima dos arquétipos masculino e feminino.

Este vigor é uma oferenda sagrada, embora se leia nele desde o início o mítico desfecho da morte anunciada. Aqui as delícias da aproximação não existem e a junção é banida pela representação da força de cada um, Aquiles e Pentesileia. Depois, há todas as vozes sacerdotais que representam a missão em coro grego e a consciência dos que acarretam as linhas de acção de um empreendimento. Nada de domesticável, até civilizado, do modo como o concebemos, toma as rédeas destes cavalos que ambos fazem relinchar com seus cascos ferozes. É a causa de cada um, que indomável, nos acelera a vontade de ser um deus, mesmo cegando com o brilho das espadas.

Esta peça foi talvez buscar a orientação para a sua liberdade e pujança à derrota prussiana, o que exerceu no autor uma desvinculação nacionalista – ou melhor- uma outra orientação da força, já sem efeitos propagandísticos e saído assim dos círculos daqueles que se barricam nas hostes. Os heróis, são gregos, com observância para uma era matriarcal, essa civilização amazónica que levou à agricultura o quadro de uma ginecocracia com a sua componente dionisíaca que é o da apropriação do macho como servil emblema de combustão, que a obra urge suplantar, pela afirmação da condição apolínea. Parte então: “para este combate amoroso assente no «ódio mortal entre os sexos» a dilacerante ambivalência de um campo de batalha, que bem poderia ser «um leito revolvido».” Avançamos efectivamente pelas superfícies tectónicas que vacilam e se tocam para delinearem a supremacia de uma nova crosta terrestre, e acrescenta: «Pentesileia ferida de morte por ele, surge aos olhos de Aquiles, duplamente bela, e só aqui descobre a plenitude do sortilégio amoroso». Mas, e também, para cumprir a nova ordem cósmica se revela que a morte de Aquiles não foi um assassinato trágico, apenas uma paixão exemplar de que a terra comunga e sobre a qual baixam naturalmente as trevas – um imenso pôr-do-sol sangrento.

Estas esferas simbólicas vêm do fundo dos tempos e congregam-se numa faísca de metal em fusão num ventre titânico e original, quase neolítico, que imprime moderações e metamorfoses a eras que se vão fazendo com mais ou menos resistência. Nós, que em pleno século vinte e um escutamos estupefactos as histórias de terror dos casais, devemos cingir-nos aos mitos fundadores ou estaremos condenados a uma saga imprópria para a posteridade.

Também o tempo do amor paixão se desmoronou e nem por isso deixámos de nos apaixonar, a lenda da felicidade é mais uma fábula, e por vezes carregamos um couro que não sabemos que estamos a ouvir, e as vozes que gritam sem que as oiçamos, atiram-nos para vastas superfícies de infortúnio onde se esgota, por isso mesmo, a sua razão de existir. – E é claro – querer moderar abismos assim calcinados por descaso e desconhecimento, cria hiatos, e vicia-nos também nos nossos próprios embustes de consequências estranguladoras.

Goethe (estamos pois no fim do século dezoito) foi um opositor a esta manifestação, se é que se pode assim apelidar a reacção em face desta abordagem indómita, e foi-o, na sua moderada frequência de homem em busca de uma «educação sentimental» em tudo antagónica a este Kleist -este- seria então a expressão dos obscuros movimentos dos afectos. E não apenas! Kleist demonstra que se pode ser escandaloso a partir na nossa própria natureza. Quem não é escandaloso, é doloso, malsão e até rude, configurando um caso de hábitos adquiridos que lhes empresta naturezas várias, não sendo no entanto cada um praticamente ninguém, face ao sistema vibratório de uma obra tal. “O tal inumano, onde os afectos perderam o seu véu pudico e trespassam os corpos como flechas, nus, crus e incalculáveis”. Para além de um brilhante tratamento de linguagem, é uma recuperação mitológica trabalhando dentro de nós a remota, longínqua, área adormecida, ou mesmo extinta; a linguagem vai então servindo o propósito acelerativo de uma hipnose, e, um homem surge-nos subitamente um ser diferente daquilo que geralmente nomeamos. Estou certa que uma mulher também.

Ainda, e voltando às Amazonas, cujo impulso as projecta para o combate e a captura dos seus vencidos, não lhe poderemos chamar sedução, pois que o Amor está-lhes negado. É mais a continuidade biológica que prepara um terreno cujo domínio é exercitar as armas e propagar a espécie: nenhum homem, mesmo filho, tem qualquer sentido na sua estrutura interna, na medida, em que assentes no mito dionisíaco, o homem é ente utilizável, festim para fruição, onde se vai aqui pressentido já o terror face a esse deus que faltava e que assinala o fim de uma estirpe. O homem que se usa, nunca será igual aquele que comanda: e é este instante que marca as raízes que podem muito bem estar escondidas, até, quem sabe, em algum de nós. Já Marguerite Yourcenar tem, no seu livro «Fogos», esta passagem clássica e definitiva, em conto, e embora bem mais refinada diz isso mesmo: «A viseira levantada descobriu, no lugar de um rosto, uma máscara de olhos cegos que os beijos jamais alcançariam. Aquiles soluçava, segurando a cabeça desta vítima digna de ser um amigo.»

Uma emboscada foi lançada. A força que nos destrói é a mesma que nos constrói, saiba agora do Amor a matilha, que a predação o conduzirá a outra História.

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João Carlos
João Carlos
28 Mar 2021 21:46

Carregamos um couro!!!!…não será…..carregarmos um côro ????