Conhece-te a ti próprio

[dropcap]A[/dropcap] formulação gnôthi seauton, que podemos traduzir por conhece-te a ti próprio é uma máxima que Platão repete na boca Sócrates em diversas instâncias. A versão completa diz também mêden agan: nada de excesso. Importa perceber que o objecto do conhecimento é si mesmo ou si próprio e o verbo é um imperativo aoristo. A fórmula é um convite que diz, pelo menos uma vez na vida, conhece-te a ti próprio ou reconhece quem tu próprio és, e nada de excesso. Que excesso é este? É no conhecimento de si? Podemos conhecer-nos bem de mais? Ou é na própria prática, nas nossas acções? O que quererá dizer “conhecimento” aqui? E quem é esta entidade aparentemente diferente de “mim”, o “si”?

Há várias despistagens possíveis antigas e contemporâneas. A primeira prende-se com o domínio não coincidente do si próprio, self, Selbst, e do eu. Numa crítica a Descartes, Heidegger diz que, se o ego nunca morrer, se repete em cada cogitatio e cada pessoa projecta-se a si mesma como o eu que é para todo o sempre, pelo contrário, o sum, o sou, implica-me no encaminhamento da morte. Eu sou moribundo, sum moribundu: sou aquele que tem de morrer. O ser do sou é diferente do ser do é, do ser do eu. O eu é uma coisa que durará para sempre, que eu não perspectivo fora de mim nunca. Mesmo que eu viva para todo o sempre, o sou é sempre a perder, é sempre a abrir mão de si. O conhecimento que abre para o eu é uma percepção clara e distinta que é coincidente com o aqui e agora em que o eu existe e é também o eu que se desdobra e olha para o próprio eu: eu penso-me a pensar-me coisas pensadas por mim, eu sou o agente da percepção e ao mesmo tempo o conteúdo da própria percepção de mim.

Mas como acedo eu ao sou? A tradição da fenomenologia diz que há uma compreensão não reflexiva, não temática de si. Nós respondemos à pergunta “como tens passado?” com respostas mais ou menos óbvias: bem, mal, assim assim, vamos indo. A resposta dá já conta do modo como nos encontramos. Nós encontramo-nos desde sempre de um determinado modo, nós achamo-nos a nós desde sempre. Encontrar-se e achar-se querem aqui dizer que há um modo de nos surpreendemos sempre num modo de ser, num modo de estar. Há uma melodia que vibra connosco a vida e sentimos estar a ser ou ser de um determinado modo. Os outros que aí estão connosco são também melodias que vibram nas nossas vidas. Não são só eus aos quais acedem por percepções claras e distintas, nem intuições de si mesmos.

Os outros são na sua “fonia” vozes complexas jovens ou velhas, espíritos que sopram nas nossas vidas como o vento nas harpas eólicas. O si próprio de que fala Delfos é este horizonte de melodia em que somos com outros em sinfonia. A música das nossas vidas não é apenas a que Sócrates chamava a versão popular da música. Sócrates achava que tinha feito música a vida inteira para responder à exortação da personagem dos seus sonhos que lhe pediam para fazer música. Achava que tinha feito música a vida inteira e isso era ter feito filosofia, fazer filosofia. Por escrúpulo de consciência tinha composto uma música para acompanhar um poema, mas a verdadeira música que vem da inspiração e do entusiasmo divino tinha sido a filosofia na vida dele.

Conhecer-se a si mesmo é abrir-se à disposição musical em que escutamos e percebemos a nossa própria melodia e a melodia dos outros nas nossas vidas e as melodias das nossas vidas nas dos outros e as dos outros nas nossas. O si próprio em cada um de nós não é um ponto de vista. Os outros não são apenas pontos de vista. O acontecimento humano não é apenas espacial a abrir para um alvo e a definir um horizonte. Nós somos no tempo e distendidos pela totalidade do universo. Cada um de nós é à escala mundial. Não. Cada um de nós é à escala universal. E nós estamos distendidos uns nos outros desde o primeiro homem até ao último homem. O próprio é a dimensão temporal que se desenrola como um manto. O próprio é o agente complexo de todos os protagonistas das suas vidas.

O conhecimento resulta desta forma complexa de abertura a si, como ninguém quer a coisa, sem se saber como pode vibrar sobre todos os eus que nós somos, sobre todos os comités de gente que nós somos, sem saber como é possível reunirmos em nós a cidadela. O si é a cidadela de todas as cidadelas que existem desde os primeiros seres humanos e que pensavam no que havia antes de terem nascido. O Si somos nós na hora da nossa morte, antecipando todas as gerações de pessoas que estão para vir. O si somos nós na hora da nossa morte já sem ninguém a antecipar. Perguntamos quem seremos nós na hora da nossa morte. Perguntamos quem seremos nós depois de termos desaparecido daqui, sem pai nem mãe nem irmãos, sem os nossos amores. O que seremos sem os nossos amores e quem serão os outros sem o nosso amor. Conhece-te a ti próprio é a abertura de amor ao outro como nos temos aberto a nós próprios no concerto difícil da totalidade da vida a ser.

Nada de excessos!

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