Obras no andar de cima

[dropcap]H[/dropcap]á quase quatro semanas que tenho obras no andar de cima. Normalmente, começam por volta das oito da manhã. Mas há dias em que acho que não haverá barulho. Outros há em que acredito que terminarão em breve e nada faço. Nada faço quer dizer não saio de casa, não vou para a Faculdade ou para um café. Como trabalho em casa e estou habituado ao meu habitat, fico desnorteado. Insisto. Já me aconteceu estar horas à espera de que qualquer coisa suceda, que o barulho ensurdecedor pare, que eu consiga finalmente concentrar-me e abafar o barulho. Mas é óbvio nunca nada disso acontece. Num destes sábados, o trabalhador disse-me que ia fazer barulho. Respondi que já estava habituado. Não sei bem se me percebeu, até mesmo porque os trabalhadores das obras devem achar que as pessoas estão fora durante o dia. Pelo menos que podem ausentar-se. Ainda assim, tive o primeiro impacto com ele. Eram para aí umas seis e meia da tarde, quando começa o som do que posso descrever apenas como um matraquear violento. Parecia que era no interior da minha cabeça, não era na divisão acima apenas. Por mais que procurasse abrigo em qualquer uma das divisões da casa, ficava sempre exposto ao barulho ensurdecedor. O som é cacofónico, não tem ritmo ou varia conforme o volume do excessivo para ainda mais excessivo. O som tem um impacto táctil. Sinto mal estar por todo o corpo. Não consigo ouvir os meus pensamentos, nem escutar música nem ler nem ver televisão. Lá fui ao andar de cima e bati com força na porta, porque a campainha estava desligada. O senhor apareceu-me atarantado. Eu disse-lhe que era sábado e era já muito tarde para estar a fazer aquele barulho. Incomoda-me sempre falar com alguém que está a trabalhar. O trabalho é o seu ganha pão. O inconveniente e incómodo são meus. Ele pediu desculpa e terminou o serviço, pelo menos o mais pesado, porque achou que poderia executar outras tarefas não tão ruidosas. Eu não tinha percebido que aquele sábado era apenas o início de um inferno sem tréguas. A qualquer hora do dia, sobretudo de manhã, começava aquele ruído, barulho, manifestação acústica do inferno. É a minha representação acústica do inferno. Obras para sempre no andar de cima, sem que eu possa sair de casa. Não sei bem por quê não poder sair de casa, por que razão havia uma impossibilidade de alterar as hipóteses para sobreviver ao dia-a-dia. O que me faria insistir em estar em casa. Claro que é a casa e é aqui que trabalho, não tenho um local de trabalho, por assim dizer. Mas por outro lado, há tanta gente que vai para um café ou praia ou biblioteca. Por quê ter insistido? Talvez algo de resistente ainda sobreviva. Não quer ser expulso de casa e querer ficar onde é casa, onde me sinto acolhido, onde é familiar trabalhar. E é aqui que as coisas começam a fazer sentido. O meu trabalho como qualquer trabalho de natureza intelectual ou que requeira a concentração absoluta do espírito manifesta-se musicalmente. A música é a agenda, o programa, o calendário e o horário. Noto que não ouço música se não no carro. Mas nunca para trabalhar.

Não foi sempre assim. Costumava ouvir em modo repeat canções que me permitiram tal como mantras entrar em transe. Estudava a ouvir música. Depois, porém, deixei de o fazer. Tal como anos antes tinha deixado de tocar música porque se tornou objetivamente incompatível ler e tocar. Mais tarde tornou-se incompatível ler e escutar música. É que a agenda do estudo era musical. O objectivo era o transe, o fluído, a corrente disposicional que se cria quando estudamos, quando vamos nas horas num voo de sobrevoo, alto, sobre as picos da paisagem do espírito.

Quando estudo, ouço música. Como disse Sócrates não aquela versão popular, acústica, com instrumentos. É uma música idêntica à que se sente vibrar em nós quando vemos um filme ou um espectáculo, quando lemos ou ouvimos ler poesia. O mesmo se passa quando dou aulas. É uma passagem por uma dimensão musical. Era isto mesmo que eu achava que estava a acontecer. A passagem das horas requer a música que é criada ou recriada pelo estudo, pela insistência, pela tentativa de compreender e interpretar passos do pensamento ou formas de traduzir esses mesmos pensamentos. Ler é um acontecimento musical, transporta-nos para outras dimensões com velocidades musicais, ritmos, volumes sonoros, paisagens emocionais, sentimentos, vibrações que nos fazem bem ao corpo. É uma experiência Zen. Era esse feitiço que tinha sido quebrado. O ruído da vida, o barulho, perturba justamente esta dimensão musical que se cria pelo espírito, através do espírito e para o espírito.

Hoje, tem sido um dia bom. Comecei com as pancadas violentas que perturbam o sono às oito horas da manhã de uma noite mal dormida. Pensei que não iria sobreviver. Mas afinal, o barulho violento das batidas incompreensíveis tem sido mais ou menos pacífico. Consegui alinhar estas frases de transe e no transe, quando é bom ouvir lá ao fundo os carros a passar imperturbáveis na ponte 25 de Abril, quando os homens das obras não gritam uns com os outros e eu consigo, sossegado, entrar na dimensão musical da minha agenda.

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