António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt III [dropcap]O[/dropcap] ser humano existe sob o plano de fundo do grande ano da vida com estações do ano, idades da vida e horas do dia. O corpo é o órgão da existência, o órgão da vida. O tempo meteorológico é uma indicação viva do tempo cronológico. O ser humano existe exposto ao grande ano da vida no interior do qual se gizam fronteiras de teor temporal, cronológico e meteorológico. O ser humano tão exposto ao tempo cronológico como ao tempo meteorológico. Como os gregos diziam o tempo é o céu. O tempo meteorológico é uma indicação do tempo cronológico. Há línguas que usam a mesma palavra para se referirem aos dois tempos. Cada estação do ano existe como fronteira limite relativamente às restantes. É o ano que serve de plano de fundo às estações do ano. É do ano ou dos anos da vida, então, que as estações do ano são estações. Num só ano: primavera, Verão, Outono e Inverno são delimitações temporais, estações, que duram entre as fronteiras temporais de cada estação. O ano manifesta-se de modo diferente no seu decurso. Vê-se como produz diferentes aspectos no planeta no seu transcurso. O ano solar altera o clima num mesmo local, altera a qualidade do ar e das águas, embora, claro está, cada região ou localidade da terra tenham diferentes climas, atmosferas, ares e águas. A própria geografia dos locais é já diferente, consoante é montanha ou planalto, interior ou litoral. Qualquer latitude e longitude está exposta às estações do ano com consequências diferentes. Mas a translação, perfazendo o ano solar, permite perceber o espectro temporal onde se produzem as variações e alterações resultantes das estações do ano. O ser humano está assim exposto ao lugar em que vive. O lugar não é apenas o sítio localizado pelo GPS com as respectivas coordenadas, latitude e longitude. Cada lugar é um aí estrutural complexo que varia ao longo das estações do ano bem como os seus ares, a sua atmosfera, a qualidade das suas águas. Dá-se uma variação ao longo do ano provocada por secas e chuvas, humidade e temperatura. Um lugar tem uma identidade diacrónica com características diferentes e uma personalidade próprias, variáveis ao longo do ano. Basta lembrar-nos da praia da infância como era quando crianças e de como ela agora nos surge. Há uma diferença abissal entre o modo como nos surge um lugar no Verão e no Inverno. Também nós somos diferentes na primavera e no verão, no outono e no inverno, na infância e na velhice.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasAgradeçam a Salazar os filmes legendados [dropcap]R[/dropcap]eza a lenda que Salazar terá ido uma vez ao cinema em 1937 a instâncias de António Ferro, entusiasmado com o “seu” “A revolução e Maio”, filme de propaganda tão apessoado como os que se faziam lá fora. Saiu da estreia com uma cefalalgia e quando soube do custo da coisa desabafou uma das suas enigmáticas sentenças: “O cinema é demasiado caro.” A natureza telúrica do ditador desconfiou daquilo como um passatempo lúgubre, turbulento e um tanto deletério, sobretudo depois da II Guerra Mundial, com a prevalência dos filmes americanos que cultivavam por todos os poros o individualismo e a extroversão anímica, o conforto mundano da classe média, a incontinência quer sentimental quer do consumo – todos os avatares do capitalismo. Contra esta invasão reclamava também a tacanha corporação do cinema nacional, incapaz de produzir filmes que não fossem sumamente toscos, sensaborões, eunucos, assim os néscios que se pretendiam populares quanto os enfatuados de cultura. Como é comum aos indigentes e desabonados, com a benesse de uns tostões estatais os cineastas facilmente se deixavam domesticar pelos requisitos da cultura dominante. Fazendo jus à sua famigerada astúcia, de um golpe Salazar matou então 2 coelhos com a Lei 2027 de 1948: protegia o cinema nacional da comparação e da competição e limitava, tanto quanto controlava severamente, a distribuição de filmes estrangeiros, coactando a sua influência. Tudo isto muito bem-posto no Art. 13º: “Para garantir a genuinidade do espectáculo cinematográfico nacional, não é permitida a exibição de filmes de fundo estrangeiros dobrados em língua portuguesa.” Tratou-se de um gesto consequente na política do “orgulhosamente só” que excluía Portugal das boas práticas aplicadas desde o Caia até ao Oder, dobrando os filmes para que um maior número de pessoas a eles pudesse aceder. Como de costume o mercado aberto revelou-se mais pródigo do que o proteccionismo e no mesmo passo em que o cinema português estagnava as filmografias nacionais europeias floresceram “apesar” da dobragem. Uma terceira vitória obteve contudo esta Lei, sabe-se lá se inesperada para a solércia de Salazar. Dá-se em Portugal um fenómeno pitoresco que é o de certas concepções mudarem de cor e de posição política, sem que se altere a substância. De modo que uma imposição restritiva e supressiva, discriminatória e elitista, reaccionária e anti-cosmopolita, acabou por ser perfilhada com alacridade pelas pessoas de bom-gosto e, sobretudo, cultas (bens de que toda a gente se crê possuidora em altíssimo grau). Ou seja a impante classe média urbana mormente a que dizia repugnar o obscurantismo do regime salazarista. Tem-se baseado em duas presunções, qual delas mais absurda, o seu denodado aplauso ao Art.13º. A primeira afirma que a legendagem é muito instrutiva; promove a literacia porque sujeita o espectador à leitura, e facilita a aprendizagem de idiomas porque o expõe à sua audição. Que melhor refutação do que constatar que em 1968, 20 anos depois da aplicação desta lei, o analfabetismo rondava a taxa hedionda de 30% da população? Salazar acertou: os analfabetos, logo mais permeáveis às “más-influências” pura e simplesmente não iam ao cinema. A sua circulação confinava-se a uma franja social urbana “culta” e de “bom-gosto”. Quanto à proficiência linguística portuguesa, não passa de um mito urbano demonstrado em sucessivas estatísticas. A segunda presunção em defesa da legendagem dos filmes é ainda mais capciosa. Por via dela alega-se alcançar uma essência proporcionada em exclusivo pelas inflexões, pela densidade, pela pronúncia, pelos trejeitos das vozes originais dos actores. Não sendo mentira é ilusão, dado converter em autenticidade o que não passa de um hábito. Traga-se aqui à colação um belo texto de Wim Wenders no qual confessa ter chorado quando descobriu que Brigitte Bardot afinal não falava alemão nem tinha uma voz tão sugestiva. A mocidade dos anos 60 lembrar-se-á do “Wilma, abrá portá, Wilma” do genérico final dos “Flinstones” como um dos ícones sonoros do seu tempo; assim mesmo em brasileiro e se escutarem o original é como se coisa perdesse a graça – experimentem… Argumente-se também ser a legenda um borrão visual na imagem que a estraga, e ao exigir que fixemos o olhar no texto, distrai-nos do conteúdo dramático dos enquadramentos. Estamos condenados à legendagem dos filmes, por efeito de um hábito adquirido, assim inamovível e insuperável. Mas o decreto salazarista de 1948 não deixa de contribuir para uma explicação do estado perpetuamente empobrecido do cinema produzido em Portugal.
Hoje Macau Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [dropcap]O[/dropcap]s sons do jazz tornavam ainda mais agradável aquele fim de tarde na varanda do hotel Riviera. Ezequiel de Campos e Marina Kaplan, sentados, bebiam gin tónico e, de pé, Jin Shixin olhava, com ar nostálgico, para o horizonte, enquanto uma ligeira brisa atenuava o calor húmido. Marina disse: – Saudades de Xangai? – Sempre. – Daqueles tempos em que se prometia o céu e em que chegava o inferno? – Marina, és como aqueles loucos que perseguem sempre a virtude. Ela nunca existiu. Ezequiel levou a mão ao seu impecável fato branco e fingiu afastar um inexistente insecto que julgou ver na manga. Depois, com ar sério, disse: – Em Xangai foi possível juntar o Oriente e o Ocidente. Tal como aqui, em Macau. Jin Shixin voltou a cabeça: – Não será assim, senhor Ezequiel. O Ocidente subjugou o Oriente. Sequestrou-lhe a alma com o vício e o comércio sem regras. E chama a isso irmandade? – Os próprios orientais não estão isentos de culpa, menina Jin. – O que é a culpa, senhor Ezequiel? Pecar muito, rezar e ser, depois, ser absolvido como se nada tivesse acontecido? Marina Kaplan resolveu intervir. Não gostava quando Ezequiel e Jin começavam a discutir. Sabia que tinham opiniões contrárias. E agora, com os tambores da guerra, ainda aumentava a tensão. Nem o som do jazz dançante adoçava o ambiente. Ezequiel levou o copo aos lábios e bebeu mais um gole de gin. Os seus olhos estavam vermelhos. Levou a mão à cicatriz. Marina sabia quando a raiva tomava conta dele. Jin acabou por dizer: – Não há cura para o que o homem faz. Cada acção é absoluta e eternas são as suas consequências. Dito isto voltou a fixar os olhos no horizonte. Entretanto a actuação da Benny Spade Orchestra parecia ter terminado. A música foi substituída pelo som das vozes, algumas delas já descontroladas pelo álcool. Cândido Vilaça aproximou-se deles. E, pelas suas faces, percebeu que alguma discussão acontecera. Era habitual. Perguntou: – Que se passou? Marina, bem-disposta, ripostou: – O habitual. Ezequiel voltou a beber um gole de gin e virou-se para Jin: – Qualquer pessoa com juízo prefere ser tua amiga do que tua inimiga. – Foi isso que disseram a luz e a escuridão uma à outra quando se encontraram pela primeira vez. Cândido deu uma gargalhada. Mas Ezequiel nem um sorriso discreto esboçou. Marina, sempre conciliadora, disse: – Paz, queremos paz! Cândido sentou-se ao lado de Ezequiel e este sentiu que tinha alguém para desabafar: – Meu caro, todo este tempo de incertezas faz-me lembrar sempre uma frase do padre António Vieira, esse grande homem que nem sempre é escutado. Dizia ele que “nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos quando fazemos. Nos dias que não fazemos, apenas duramos.” – É o problema dos portugueses, não é? Perdemos a vontade de fazer. – Também acho. Perdemos o sonho. Repara, os ingleses hoje fazem subornos com coisas grandes, controlam o mundo. Nós, pelo contrário, só fazemos subornos com pequenas coisas. Não deixámos nunca de ser comerciantes, de pimenta, de ouro, de almas. Mas perdemos o sonho. E cingimo-nos à nossa aparente pequenez. Cândido respondeu: – Cada um por si, não é? Cada um com a sua pequena vida, com o seu pequeno negócio, com a sua pequena vida. Falta-nos o sonho de grandeza do passado. – É o mundo, meu caro Cândido. Mas, deixa, um dia o dinheiro deixará de ter valor. Tal como a religião deixou de ter. Olha-se à volta e o que vês? O mundo está refém de ilusões, de alucinações. O que são ilusões? Nada, para além de opiniões. Ora, essas opiniões têm de ser alteradas. O passado ajuda-nos sempre a perceber o presente. Apesar de, no Ocidente, haver um período a que se chamou a Idade das Trevas, havia, nesse tempo, homens chamados alquimistas, que eram desprezados pelos outros porque pensavam transformar metais em ouro. Eles pensavam que eram impossível? Nada é impossível. Havia a possibilidade. É isso que falta agora aos portugueses. Serem alquimistas nestes tempos de trevas. – Ficámos cansados. Ezequiel fez um sorriso irónico. – Sim. E esperamos sempre que alguém resolva os nossos problemas. Como ovelhas que não sabem viver sem pastor. Enfastiada com a conversa, Marina afastara-se e fora ter com Jin. Ambas falavam de outras coisas. Talvez tão sérias como as que motivavam Ezequiel e Cândido. Quando elas se voltaram a aproximar, Marina dizia para Jin: – Quer dizer que já não vais jantar connosco? – Tenho um outro compromisso. Cândido era a desculpa. Ezequiel insinuou: -Todas as princesas quebram as suas promessas? – Eu nunca quebrei uma única promessa. Seja para fazer o bem ou o mal. Estiveram ali até que a noite se pôs. Depois, Jin e Cândido saíram. À porta do hotel Riviera estava um carro, com Potapoff ao volante. Seguiram até ao Porto Interior, onde jantaram frango com arroz numa casa de pasto sombria. Depois seguiram a pé, até chegarem a um edifício sem qualquer luz. Subiram até ao primeiro andar. Dali via-se um pontão. Iam ficar à espera. Jin percebeu o nervosismo dele: – Há-de chegar um barco. Vês aqueles homens ali? São como sombras vivas, e dançam da mesma forma como as sombras o fazem numa floresta. Mas, na floresta, ninguém os vê. Aqui estamos a espiá-los. – À espera de quê? – É o que veremos. Cândido colocou a mão no braço de Jin. Estava quente e o português sentiu um ligeiro arrepio. Diz-me Jin, porque me escolheste? – Se não fosses honesto nunca terias sido escolhido. Se não fizesses sacríficos de vontade própria isso não seria aceitável. Mas ainda há muito para fazer, e os olhos que viveram demasiado tempo na escuridão ficarão cegos com a luz que transmitimos. Aqueles que veem o futuro são sempre fundamentais. – Um estrangeiro não ofende a tua honra, estando tão perto de ti? – Como um pássaro no ar, um homem em sarilhos é um estrangeiro. Eu gosto de sarilhos. Potapoff pediu-lhes silêncio. As sombras moviam-se no porto e, de uma lorcha, saiu um pequeno barco que chegou ao pontão. Vinha cheio de sacas que uma série de carregadores foram transportando para um camião que, entretanto, ali tinha estacionado. Potapoff disse: – Mais arroz. Não param. De onde estavam não conseguiam identificar os homens que se afadigavam a transportar as sacas nem os que, parados, davam ordens. Jin não tinha dúvidas: É o japonês, Toshio Nomura. Sinto-o. Continuam a armazenar arroz. Não é para vender? Não. Têm outro objectivo. Estão a criar postos de abastecimento para as suas tropas, quando a guerra for total. Há-de chegar às costas de Macau. Cândido não ripostou. Jin era a China, o seu coração. Olhou para ela e perguntou: – Quão velha é a tua organização? Jin esboçou um sorriso. E depois disse: – Quão velha é a China? Quantas dinastias pensavam que reinavam? Nada é eterno, querido Cândido. Nem o amor, nem as nossas certezas, nem as ilusões. Nem a nossa vida. Potapoff interrompeu-os: – Estão a ir embora. Vamos segui-los? Jin abanou a cabeça: – Não vale a pena. É um risco. Já sabemos onde eles armazenam o arroz. Atacaremos quando eles não o esperarem.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (II) [dropcap]E[/dropcap]ste ano voltei a mudar de casa e a ter uma televisão. Em criança, era uma das minhas actividades preferidas: via tudo, desde desenhos animados a notícias, enquanto sonhava fazer companhia a Pedro Pinto na CNN ou transformar-me num Thundercat. Ditava as legendas para a minha irmã quando ela ainda não aprendera a ler, e tinha de ver e descrever as cenas assustadoras quando na verdade queria tanto fechar os olhos quanto ela. Depois, deixei de ter tv durante muitos anos, fazendo zapping distraidamente quando ia a casa de alguém com a caixinha mágica, numa época em que o YouTube ocupou essa função. Subscrevi a Netflix uma ou duas vezes, há muito tempo, cancelei, e agora tenho-a na tv (ambas vinham com a casa). Normalmente percorro a oferta sem grande entusiasmo, apenas pela promessa de uma breve distracção, de não pensar para quem é viciada nesta actividade. Diz Stephen King, o autor com mais obras adaptadas a cinema e a televisão, em On Writing, que a televisão faz mal à imaginação do escritor, que deve deitá-la fora e ler em vez disso. Não é um mau conselho, e parece resultar para King, que está na televisão em vez de assistir a ela. A propósito, terminei finalmente “A sangue frio”, de Truman Capote: «É certo ― replicara ele. ― Também não penso noutra coisa. E pode ser que, enquanto falo disto, descubra algo em que ainda não tivesse pensado. Um novo aspecto. (…) Que julgas tu que seria a minha vida se acaso este crime ficasse no ficheiro dos insolúveis? Daqui a muitos anos ainda eu andava a correr atrás de indícios e, de todas as vezes que surgisse na região um assassínio, lá ia eu ver se encontrava nele alguma semelhança com este. Mas não é só isto. O caso é que acabei por ter a impressão de que conheço agora melhor o Herb e a família do que eles talvez se conhecessem a si próprios. Estou obcecado com eles. E acho que isto não me passa até descobrir o que aconteceu.» Por falar em crime, a par de Life overtakes me, uma das produções recentes na Netflix que considero mais marcantes é When they see us (Aos olhos da justiça). A série de Ava Duvernay, complementada por uma entrevista de Oprah Winfrey aos agora denominados “Exonerados 5”, conta a história verídica de cinco rapazes adolescentes acusados injustamente da brutal agressão e violação de uma desportista, Trisha Meili, em Central Park, no final dos anos oitenta. Um caso tão mediático que nem Donald Trump quis faltar à discussão, investindo em publicidade à pena de morte e prestando as declarações boçais do costume, as quais recusou alterar, mesmo após o sucesso da série e o mediatismo que este caso voltou a ter. À entrevista faltam a vítima do crime e a promotora (ambas autoras de best-sellers do New York Times), mas já não falta toda a justiça. Não posso deixar de referir a brilhante actuação de Felicity Huffman, ao retratar alguém tão odioso como parece ser Linda Farstein de forma acutilante. Assistir a esta série, por uma vez não focada na vítima (“branca”) do crime e sim nas vítimas (“de cor”) do sistema, e consequentemente de crimes sintomáticos das suas confissões forçadas, deveria incomodar e fazer-se questionar qualquer pessoa, não apenas negras ou latinas. Servindo de bodes expiatórios de uma série de crimes semelhantes sem solução, aqueles jovens viram a sua liberdade, privacidade e integridade tiradas à força, num processo em que famílias, reputações e vidas foram severamente expostas e lesadas. O quarto episódio será talvez o mais impressionante, quando vislumbramos como foram os tempos de reclusão: as provações, as alucinações. O que é difícil de ver torna difícil não chorar, não ter uma revolta a crescer profusamente. Porque não há filtros em When they see us, e isso é perceptível durante a entrevista a Yusef, Kevin, Raymon, Antron e Korey. Uma série que é quase um documentário, se escutarmos a confissão do actor Michael K. Williams, no papel de Bobby McCray, que era ele próprio um jovem na altura dos factos, e foi também ele vítima da agressão que lhe marcaria o rosto para sempre, numa cicatriz longa e profunda, agressão essa feita por um grupo de jovens wilding, tal como estavam os reais protagonistas no momento em que a desportista foi atacada. Wilding é calão para actividades em grupo, normalmente de jovens, em que os mesmos criam confusão, agridem e assaltam pessoas que se cruzam no seu caminho, sem razão. Há vários níveis para wildling, que pode começar como um inocente convívio, com as tropelias típicas da idade, ou escalar para algo que roça o distúrbio e a criminalidade. Williams descreve como quase perdeu a vida nesse encontro e confessa que, à luz deste caso, alterou até a maneira de vestir, para não ser conotado com este tipo de instigadores delinquentes. Esta era uma Nova Iorque mais perigosa, mais discriminatória, berço de conflitos entre minorias e polícia. Era uma Nova Iorque coberta pelo véu da ignorância a todo o custo, um véu agora menos espesso, um pouco mais levantado, mas que ainda curva o rosto e os ombros a muitos.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs editores do NYT e o monstro de Ravenna [dropcap]N[/dropcap]o início da década de 90, quando estava a terminar o meu doutoramento, descobri em Washington DC um livro que tinha na capa uma figura com escamas na perna e um único olho no ventre*. Tratava-se da terrível e ao mesmo tempo sublime imagem do monstro de Ravenna. Há várias fontes relativas ao aparecimento deste monstro. Uma delas é a interessante descrição do farmacêutico florentino Luca Landucci que, no seu diário de 1512, dá conta do monstro de Ravenna como um facto real. Como se a personagem de carne e osso tivesse nascido na cidade das duas pombas e vagueasse perigosamente entre o Veneto e as cidades da Emília Romana. A autora do livro, Otavia Niccoli, deu o exemplo desta imagem como prova da rápida circulação de figurações deste tipo na época (em duas semanas apenas terá chegado de Ravenna a Valladolid). As guerras itálicas – envolvendo espanhóis e franceses – e o pano de fundo da colisão otomano-cristã eram território fértil para a utilização (dir-se-ia hoje em dia mediática) desta cativante literatura profética, muita dela carregada de imagens com funções de aviso, dissimulação, criação de alarme e, também, naturalmente, de catarse. Há alguns anos, em viagem, fiz propositadamente um desvio para visitar a cidade de Ravenna. Confesso que, ao contrário de muitas outras cidades da região, Ravenna sempre me motivou apenas por causa da singularíssima imagem do monstro. Curiosamente, ao percorrer as ruas, não encontrei a imagem do monstro de Ravenna em nenhum símbolo, ícone ou logotipo do município ou das empresas locais. Estranhei imenso. No posto turismo, uma senhora (academicamente formada) e que sabia imenso da história local nunca tinha ouvido falar da imagem do monstro. Pasmei. Era domingo e, para além da variadíssima literatura sobre a cidade que enchia as prateleiras do posto de turismo, eu apenas dispunha de um recurso para poder provar à senhora que o monstro de Ravenna tinha efectivamente existido: o Google. Ao fim de dois cliques, claro, a senhora maravilhou-se. Pena tive eu de não poder ter feito o mesmo, há um mês, aos editores do New York Times. Ter-lhes-ia mostrado o monstro de Ravenna e, depois, lia-lhes ao ouvido este breve trecho – “Vi um carneiro que estava ali de pé com dois chifres compridos e o último a nascer era o mais comprido dos dois. O carneiro dava marradas para ocidente, para o norte e para o sul.”. Após a leitura, referia-lhes a fonte (Antigo Testamento – Daniel,8) e explicava que o carneiro correspondia ao reino Meda-Persa que, logo a seguir na narrativa, contracena com um “bode” identificado com Alexandre-o-magno. Este tipo de relatos, continuaria eu de modo paciente, era normalíssimo no mundo antigo e medieval: animais simulando impérios, bestialidades denotando submissões, enfim, monstros exagerados – como o de Ravenna – dando a ver dominações. Mesmo sem ponderar o fundamental, o uso da liberdade, com um mínimo de conhecimento destas nossas genealogias simbólicas, jamais os editores do The New York Times teriam tomado a decisão de acabar com a publicação de ‘cartoons’ na sua edição internacional. Atribuir a significação literal de anti-semitismo a uma crítica política óbvia, baseada numa tradição fabular que vem de tão longe, como aconteceu com o agora já famoso cartoon de António (António Moreira Antunes), é, sem dúvida alguma, um acto de assustadora cegueira. Quando foi anunciada a proibição, o editor James Bennet reafirmou que o NYT continuaria “a investir em formatos de jornalismo opinativo, incluindo jornalismo visual” que expressasse “nuance, complexidade e vozes fortes a partir de uma diversidade de perspectivas”. Por mais que esta cegueira se ponha a pensar em voz alta, atirando areia e correcção aos olhos dos leitores, é óbvio que ela funciona bem mais por pressão do que pelo entendimento de um legado de liberdade e de pluralidade, sem esquecer a ignorância simbólica de que adora dar mostras. Ignorar, obliterar ou esquecer a presença de símbolos é coisa triste. Mesmo numa cidade como Ravenna que já morreu por duas vezes (uma vez no ano mil e outra vez, no século XVI, devido à mortandade imposta pelos franceses), a ignorância dos símbolos não deixa de ser um curiosíssimo sinal destes tempos de alojamento local, mochilas e consumo tecnológico de douradinhos. A perda de memória colectiva, aliada a vórtices primários, a pressões e a correcções de todo o tipo dá nisto: a disneylandização do mundo que se entrega de mão beijada à intolerância dos pobres de espírito. Talvez assim consigam desnavegar com o capitão igloo até ao reino dos céus. Putacuspariu. Prophecy and People in Renaissance Italy, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1990; original: Profeti E Popolo Nell’Italia Del Renascimento, GIUS, Laterza & Figli SPA, Roma-Bari, 1987.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasE agora, João? [dropcap]J[/dropcap]á há algum tempo que tinha isto para dizer. Digo-o agora, por razões que mais adiante explicarei. Pode ter relevância para uns, nenhuma para outros; está certo. Mas é a verdade e neste momento a verdade incomoda-me. Explico: quando escrevo uma crónica, mais do que querer dar o meu pequeno olhar sobre as coisas, escrevo na esperança arrogante de honrar um legado. Nunca o esqueço, pelo menos. Falo de uma escola de cronistas de que me sinto próximo – mas que nem por sombras chegarei a uma mísera palavra com a mesma qualidade. Falo de gente como Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Otto Lara Resende, Rubem Braga. Homens que escreviam diariamente – diariamente, por Deus! – e tinham sempre algo para dizer, e sabiam-no dizer com o coração, pegando-nos pela mão e usando a elasticidade da língua portuguesa com uma ternura precisa. Como uma bebida desejada que actua directamente e em simultâneo na cabeça e no coração. Quando escrevo, então, é natural que haja sempre uma pegada, uma sombra de epígono. E quando isso acontece (e acontece sempre) e é detectado, eu fico contente porque é um elogio. Escrevo um dia depois da morte de João Gilberto. Estes homens que acima citei conheceram-no, assistiram ao que aconteceu, alguns foram até cantados por ele (como foi o caso de Antônio Maria), escreveram sobre ele. Por isso, hoje a sombra é maior, porque estes nomes que invoco não chegam nem servem quando quero dizer adeus a um bocadinho de mim. Nesta altura maiores, melhores e sempre merecidas elegias já terão sido escritas e ditas a este génio misantropo e maníaco da perfeição. A minha não irá acrescentar nada. Mas, sendo uma necessidade egoísta, não deixa de ser uma necessidade. Depois de Sinatra, Gilberto é para mim – e suspeito que para muitos – o maior interprete da música popular. Amarro-me a esta analogia forçada e injusta para ambos, sabendo que o estilo e o repertório eram diferentes, apenas porque não consigo melhor para dizer o quanto cabem na minha vida. Mas refugio-me na seminal biografia da Bossa Nova de Ruy Castro, Chega de Saudade, e sei que Sinatra tem uma ligação remota com o movimento – e logo, com João Gilberto. Mas há mais, há tanto que aquele baiano rezingão deixa. A forma doce como canta, as inflexões subtis em determinados versos: oiçam Saudades da Bahia e reparem como é cantado o verso “ai se ter saudade é ter algum defeito/eu pelo menos mereço o direito”, sílaba prolongada e subida na hora certa, o “eu” dito na mesma nota do que “defeito”, uma construção que pulveriza qualquer coração de granito. A falsa simplicidade da guitarra, acordes dificílimos e em suave atraso com a melodia de voz, o que por vezes causa aparente dissonância – daí os puristas (porque são sempre eles, seja qual for o assunto) dizerem que desafinava. Felizmente a resposta veio cantada e é o que sabemos. E depois, tanto, tanto. João Gilberto, como Tom Jobim, é um dos símbolos daquela revolução conservadora, que mudou sem deixar para trás o que tinha de ficar. Uma vertigem musical feita por miúdos de classe média, bonitos e que dividiam o seu tempo entre o amor pela música, a praia e o fascínio pelo sexo feminino. Uma das minhas canções preferidas, Se É Tarde Me Perdoa, é um perfeito exemplo. Com letra de Ronaldo Bôscoli – ele próprio um moço bem-apessoado e com grande popularidade entre as garotas – fala do regresso e do perdão, de alguém que vadiou durante a noite, viu mil amores e mesmo assim regressa, como um Ulisses boémio. O último verso é um achado de economia e comoção: “Vinha só cansado”. João canta isto como ninguém e sempre me emocionou. Só que esta canção e o seu tema vem já de uma tradição da música brasileira: se ouvirem o lindíssimo Camisa Amarela, samba de Ary Barroso feito muito antes da Bossa Nova, verão muitas semelhanças. E os últimos versos, ditos pela mulher que perdoa: “Passada a brincadeira/ele é só para mim”. É, João é isso: passado, presente e futuro da nossa alma, espelho e consolo. O único cantor que fui ver duas vezes seguidas – mesmo que na primeira ele tenha saído a meio do concerto, irritado com a mudança do posicionamento da orquestra. João é a possibilidade da esperança, da redenção através da arte. É dos que deixam vida nas vidas, dos que inspiram. Vai ficar, João, vai ficar sim. Mas agora, João, e nós – como é que nós vamos fazer?
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDa audição dos mapas Metro, Lisboa, 20 Junho [dropcap]G[/dropcap]ostava de o ter lido em Sines, por coisas que nada mudariam. «parágrafo único: salvar da/ devastação. Nomear… objectivar/ o Mundo, prendendo-o por/ liames decentes, ligaduras.» Os mapas só se mexem quando bastamente dobrados, encolhendo-se nos bolsos, recolhendo dos restos, cotão e agrafo, saliva e fiapo de pano, maneiras de reorganizar o horizonte. Anotemos as coordenadas: «Al Berto: A Busca. A Solidão, A Morte. E Sempre este Nosso Idioma [cartas inéditas e outras raridades, transcrição quase diplomática anotada por Paulo da Costa Domingos] (ed. viúva frenesi)». Atirado às feras leitoras para assinalar os setenta e um anos de Al Berto, esta compilação ergue-se testemunho de época, de grupo, até de geografias (coincidentes na santa catarina, quinta e bairro, ambas tornadas vizinhança), mas sobretudo de encontros. Ninguém como o Paulo para dizer política quando afirma o íntimo. Na literatice de hoje respira-se ambiente tóxico, com uma intimidade a ser castigada parvamente apenas por pertencer aos outros, quando se incensa esta tão só por pertencer aos nossos, ainda que os nossos durem fósforo antes de passarem a outros. Neste opúsculo acontece planta que dura um dia, ou antes efêmero insecto, ou, melhor, a extrema combinação de ambos: em torno de versos e sua leitura livre desponta uma amizade que floresceu de mil maneiras antes da morte a cercear. «Dias retorcidos a ferro, alguns com a suavidade/ do tweed, ou em lamúrias de sangue/ mal drogado pelas veias, e depois o tal regresso/ ao noticiário, ao mito, à museologia.» Insisto, só o Paulo para fazer da navalha algo que nos apeteça beijar. Antena 2, Lisboa, 28 Junho Estranho que a morada de um alcatifado silêncio, mesmo por entre as frases dos que falam, sejam os estúdios da rádio. O vermelho luminoso dos «No Ar», dentro por extenso, fora apenas no sonoro vermelho, impõem o respeito devido ao normal funcionamento da mais desabrida curiosidade. No corredor, sussurrados, no aquário, tudo se faz possível – ei-lo, o doméstico animal que cruza idealizado com concreto, bruto que às vezes morde, outras se aconchega para ser a pedir carícias. (Parece gato, assim descrito, mas não nos deixamos enganar). Encontro-me, por acidente e na vez do exterior do vidro duplo, no miolo-estúdio do Paulo [Alves Guerra], enquanto este descasca camadas ao Levi [Condinho]. Assisto, na primeira fila, ao espectáculo em vias de extinção da esclarecida curiosidade: o jornalista a sobrevoar que nem vespa o maduro entrevistado em floresta de memórias e papéis e cd’s e o mais que nos vai ajudando a ser nas obsessões e outras identidades, picando nas carapaças, nas timidezes, nas agendas do que não posso deixar de dizer, até que os voos os soltam a ponto de apenas ser. Para os ouvintes. Dou por mim a pensar que a rádio alarga o especto do silêncio, tal o humano faz à alma, que só ela sabe ser toda em si. Rodo o botão e sintonizo o Filipe Pires do «Canto Ecuménico», e o metal que se dobra de sonora maneira «Para vos falar de toda essa música do Universo/do Universo conhecido e criado na (tua) alma de barro eu digo miosótis…» e estendendo-se até «extensas palpitantes águas». Mas podia apanhar o Mahler em que concordámos, quando chamado à conversa, quando devia a escolha ser um dos jazz. Para sermos, precisamos de rios tornados próximos pela sede e pelo mergulho, nos quais aprender a dança e o detalhe da letra e da melodia. A mesa do almoço acrescenta alguém que vem confirmar os meus laços ao Oeste, o das míticas ressonâncias. Fazendo contas de cabeça, cóbois só dois ou três, o Henrique [Manuel Bento Fialho], o João [Nazário] e, além dos que me escapam, este que agora se ajunta, o Bernardo [Trindade], mestre do laço laçado aos mais brutos animais. (Não vislumbro nem índios nem índias, por agora). O pudor, mais pela lamechice do que pela bruteza, não permite descrever o que aqui aconteceu em torno de Alcobaça e seus mosteiros, altaneiros ou rasteiros, o passado e suas estreitezas, o presente e suas possibilidades. A minha memória diz oboé, diz mamas, diz vanguarda, diz liberdade, tudo com anos de diferença e dores distintas. Falámos, como se ali estivesse, de Tarcísio Trindade, por estas e outras tantas razões: «Doze marcos quilométricos brancos/Actualizam a paisagem// Estáticos na berma da estrada/Ornamentam o itinerário da viagem». Paulo, bota aí Arnold Schönberg, só porque sim e por ser título do poema-mesa onde nos espelhamos, que lemos, no qual viajamos. Artes e Letras, Óbidos, 29 Junho A palma da mão marcava linha em direcção às míticas poltronas, cadeirões, maples que se fazem centro de um universo forrado a lombadas, imagens-fortes, restos de viagens e mapas, dos absolutamente irrequietos. O Luís [Gomes] mudou-se de armas e bagagens – as segundas já descritas, tomando por primeiras os caracteres de chumbo e demais ajudantes de pôr tinta no papel – para o Oeste. Convém distância do centro a certas artes, as de mastigar mistérios como as criar modos de viajar no desconhecido. Agora que nos perdemos nisto da rede, custa mais perceber que cada livraria, em o sendo, se deixa fazer igual às outras. Uma livraria, mais ainda a de fundos, e portanto agravada no caso dos alfarrabistas, ganha o feitio, o recorte, o perfil de quem a alimenta. Em boa verdade, desta ao quilo, que não a engano, freguesa, aplica-se a qualquer comerciante, um vedor de necessidades. Nisto, sinto-me em casa, só de estar por perto da máscara do astrolábio, dos tchokwe, da bússola do colonialista, do velhíssimo símbolo da fertilidade, daquela carta marítima onde os destinos confluem, do cavalo em madeirame parvamente calmo, quando devia ser baleia a esmagar-nos. Trouxe o mobiliário à colação, mas o essencial reside na conversa, no percurso único, no saber disperso e marinheiro, na presença do Luís, o único capaz de trazer o mar e por inteiro às bordas do castelo. Alfa Pendular, algures, 6 Julho Aguardo o momento em que escreva desço a norte, mas não será desta. Projecto comum faz-me subir a Campanhã com o Luiz [Pires dos Reys], que não carecia de pôr y no nome para agravar afinydades. Logo ali na estação, um dos seus autores, Côta Seixas, confessa-se-me devedor de um vinho caseiro, dos de gosto mal-educado. A memória não me ajuda nunca, estou a quase a abdicar da dita, ou pelo menos a castigá-la (não me lembro de como o fazer). Tinha o acontecido raízes nas Correntes da Póvoa. Haja quem faça contabilidade dos encontros e das conversas. Celebro a coincidência de livro na mão, este «Fabulário Amoral de Fauna & Flora» (ed. Edições Sem Nome), pequena colectânea de deliciosas absurdezas, ilustradas por Tiago Seixas, que desenha sobre a quadrícula das latitudes e longitudes. A que esta página contém ilustra o micro-conto «Rosa dos Ventos», que fala da convivência carnal entre as estações. Mas para ilustrar a delícia de desfazer quilómetros no vidro da janela do comboio trago «Adrede». «Por não ouvir, um surdo pede a um absurdo que, por escrito, lhe diga quem é. Com caneta permanente, de tinta extinta, o absurdo que não houve responde ao surdo que não ouve: – sou tudo o que há e não existe, o princípio do nada, o fim do infinito.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasComo o Natal [dropcap]H[/dropcap]á pessoas que lembramos por pequenos gestos, por palavras inusitadas ou pelo simples mistério de ficarem agarradas à rocha da memória sem qualquer explicação. A Mad (Madalena) tinha vinte e cinco anos e apareceu para a audição de bateria com um pacote de 6 cervejas geladas, não fosse aquilo demorar. “Vai que demora”, disse ela com um sorriso. A sua relação com a cerveja era tão próxima, que tinha um suporte no jipe, junto ao volante, para pôr a lata enquanto conduzia. “Dirigir e beber não tem mal, se você souber fazer bem as duas”. Este “não tem mal se você souber” era um lema que aplicava constantemente à sua vida. Por conseguinte, também às relações amorosas. “A vida é muito curta para um só homem por vez.” E depois, a rir, acrescentava “não tem mal se você souber fazer bem os dois”. Se era feminista? Não, particularmente. Mas dizia-me que, no Brasil, ser-se mulher é ser-se vista ou como feminista ou como uma extensão dos desejos machistas. “Não sou feminista, nem sei bem o que isso quer dizer, mas não deixo que homem algum decida a vida por mim. Provavelmente vivo a minha vida como muitos deles gostariam de viver e que se pudessem impediam-me de fazê-lo.” Hoje lembro muito mais a Mad pelo pacote de 6 cervejas com que apareceu para audição do que pelo modo como vivia ou as coisas que me foi dizendo, até porque encontrei muitas jovens mulheres no Brasil que viviam, falavam e bebiam como a Mad, mas só ela me apareceu à porta do estúdio com um pacote de 6 cervejas para uma audição de bateria. E as cervejas são como as cerejas, trazem sempre outras lembranças. Semanas depois da audição, quando tocávamos num pub da ilha, a meio do show vejo a Mad deixar de tocar, levantar-se e ir direito a uma guria (rapariga), que estava em frente ao palco, agarrá-la e beijá-la na boca como se o mundo acabasse. Nós continuámos a tocar, tentámos disfarçar, como se pudéssemos disfarçar a ausência de som numa música, e ela saiu do pub com a guria, sem nos dizer nada. Adaptámo-nos à situação. O nosso baixista, sempre muito espirituoso, disse que por motivos de amor urgente ficáramos sem baterista, pelo que íamos continuar sem “batera”. No dia seguinte, a Mad apareceu-me em casa, depois do almoço, ainda sem ter dormido, pedindo desculpa por nos ter deixado na mão, mas que tinha sido mais forte que ela e que não voltaria a acontecer. Não sabia explicar o que aconteceu. Disse-me que nunca sentira nada assim. Já tinha ficado com algumas gurias antes, mas nada de especial. O que gostava mesmo era de homens – interrompi-a dizendo que nada tinha a explicar-me, mas ela nem tomou nota –, e a Alê (Alessandra) – já tinha nome – despertou-lhe um impulso único e intenso. Jurava que era mesmo como se fosse parte dela, simultaneamente um desejo de possuí-la e de ser amparada, de voltar a casa. “Também pode ter sido uma reacção ao excesso de branca com a cerveja.” E riu-se. Estava visivelmente cansada, mas não preocupada. Perguntei-lhe se queria comer alguma coisa e respondeu-me: “Tem cerveja?” Sorri e disse-lhe que sim. “Então, pode ser.” No terraço, enquanto a Mad comia e bebia, olhava o mar e a ilha do Campeche, pensando em como os humanos são tão diferentes, da impossibilidade de se escrever um manual de instrução. Por fim, volto-me para ela e pergunto: e agora, como fica, vão ficar juntas? “Credo! Não.” Mas não disseste que a guria era como voltares para casa? Ao que me responde: “Portuga, olha bem pra mim, tu me vê muito em casa? Casa é como o Natal, a gente gosta, mas uma vez por ano e olhe lá!” Um dia telefonou a dizer que ia deixar a ilha, que voltava para Porto Alegre. Nunca mais tive notícias dela. Para a Mad, as pessoas são como o Natal. A vida é como o Natal. E não tem mal… se souber fazer bem.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA famosa “Dança do Sabre” [dropcap]A[/dropcap]ram Ilyich Khachaturian nasceu em Tiflis, na Geórgia, no dia 6 de Junho de 1903. O seu pai, Eguia Khachaturian, deixou a Arménia em 1870, estabelecendo-se em Tiflis como encadernador. Aram era o mais pequeno dos cinco irmãos e começou a desenvolver o seu gosto pela música ouvindo a sua mãe cantarolar e escutando músicos de rua. Iniciou os estudos de piano em 1912 num colégio interno. Aos onze anos assistiu pela primeira vez a uma representação de ópera que lhe causou um grande impacto e o deixou fascinado. Em 1921, aceitou o convite do seu irmão que residia em Moscovo, e ali prosseguiu os estudos na universidade. Pese os seus escassos conhecimentos de solfejo e piano, demonstrou ter tanto talento musical que foi admitido no Instituto Pedagógico Estatal de Música Gnésiny, onde estudou violoncelo com Mijaíl Gnesin, iniciando as classes de composição em 1925. Em 1929, foi transferido para o conservatório de Moscovo, onde foi aluno de Nikolái Miaskovski, compositor muito popular na época. Na década de 1930 casou-se com a compositora e companheira de estudos, Nina Makárova e, em 1951, passou a ser professor do Instituto Gnésiny. Manteve importantes debates na União de Compositores, o que, mais tarde, fez com que fosse alvo de graves denúncias sobre algumas das suas obras e mesmo colocado na Lista Negra em 1948, por se considerar que a sua música era uma “música formalista”, como a de Sergei Prokofiev e Dmitri Shostakovich. Não obstante, estes três compositores converteram-se nos denominados “titãs” da música soviética, desfrutando de reputação mundial como compositores destacados do séc. XX. Khachaturian já tinha composto um trio para clarinete, violino e piano em 1932, o qual reflectia a influência de Prokofiev. Em 1933 compõe a Suite para a dança inspirada em todo o tipo de bailes: arménios, azerbeijões, georgianos, na qual se descobre o seu gosto pela música folclórica. Compôs uma sinfonia dedicada ao seu país, em 1935, inspirada na música ocidental e arménia, com a qual obteve o diploma no conservatório. Nesse mesmo ano compôs a música para o filme “Pepo”. A partir desse momento a sua carreira como compositor começou a desenvolver-se, tendo composto mais de quarenta obras para o cinema e o teatro. Dotado de um excelente sentido melódico, Khachaturian destacou-se, sobretudo, pelas suas composições para o ballet e pelo seu sentido de orquestração cheio de colorido, melodioso, sensual e lírico. Foi o primeiro compositor a integrar a música moderna e o ballet clássico. Estava convencido de que o público devia sentir as mesmas emoções e sensações que os bailarinos transmitiam. O bailado em quatro actos Gayaneh foi composto c. de 1939 com base num ballet anterior de Khachaturian, intitulado Felicidade, e revisto em 1941-42 para um libreto de Konstantin Derzhavin, com coreografia de Nina Aleksandrovna Anisimova (mulher de Derzhavin), tendo sido estreado no dia 3 de Dezembro de 1942 em Perm, na Rússia, pelo Kirov Ballet, sob a direcção do maestro Pavel Feldt, durante a evacuação da II Grande Guerra, na presença de Estaline. Gayaneh conta a história de uma jovem arménia cujas convicções patrióticas entraram em conflito com os seus sentimentos ao descobrir a traição do seu marido. As partes mais famosas do ballet são a “Dança do Sabre”, e o “Adagio”, que fez proeminentemente parte da banda sonora do filme de Stanley Kubrick “2001 Uma Odisseia no Espaço”. A obra foi ainda revista 1952 e em 1957, com um novo enredo, que enfatizava mais o romance em vez do zelo nacionalista. A famosa “Dança do Sabre”, um andamento do acto final do bailado, na qual os bailarinos mostram a sua perícia com os sabres, é a composição mais conhecida e mais reconhecível de Khachaturian e é considerada uma das peças de marca da música popular do séc. XX. A secção intermédia baseia-se numa canção popular arménia anónima. Foi popularizada por artistas pop, primeiro nos EUA e mais tarde noutros países, tais como o Reino Unido e Alemanha. A sua utilização numa série de filmes e séries de televisão ao longo de décadas contribuíram significativamente para a sua popularidade. No entanto, Khachaturian sentiu que a sua estrondosa popularidade “desviou a atenção das suas restantes obras.” Sugestão de audição da obra: Aram Khachaturian: Gayaneh Wiener Philharmoniker, Aram Khachaturian – Decca, 1962 José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTraduzir Deus para chinês [dropcap]O[/dropcap]s jesuítas chegaram à China durante a Dinastia Ming e se o padre Francisco Xavier morreu à espera de aí conseguir entrar, ainda Macau não existia como povoação portuguesa, já Matteo Ricci trinta anos depois, pela diplomacia dos relógios e da nova ciência, abria as portas do Celeste Império ao catolicismo. Matteo Ricci nascera em 1552, ano da morte de Francisco Xavier, chegando em 1583 a Macau, na altura a fazer-se cidade e no ano seguinte instalou-se em Zhaoqing, local onde vivia o Vice-rei de Guangdong-Guangxi. O Governador Chen Wenfeng autorizou-o a construir uma igreja e residência junto da torre de Chongning, a Leste de Zhaoqing, primeira igreja de estilo europeu tendo o perfeito Wan Pan oferecido uma tábua horizontal com a inscrição ‘Templo das Flores Santas’, segundo refere Huang Qichen, que acrescenta, nessa missão de Siu-Heng, estabelecida pelos padres Matteo Ricci e Miguel Ruggieri, “em 21 de Novembro de 1584 foi efectuado o primeiro baptismo solene de dois conversos chineses”, e cinco anos mais tarde, em 1589, “décimo sétimo ano do reinado de Wanli, o Governador Li Jiwen quis ficar com a residência de Ricci e este pediu em troca licença para construir nova residência e assim conseguiu um terreno em Shaozhou (Shaoguan) junto ao Rio Beijing” onde em 1590 ergueu igreja e residência. Sob a jurisdição do bispo de Macau, a missão da China foi fundada pelo jesuíta Matteo Ricci ao pregar a fé em muitas províncias. Numa superficial primeira abordagem aos ritos chineses convenceu-se serem supersticiosas as cerimónias confucianas. Daí o estudo para a interpretação das palavras Deus e Céu e tradução pelos conceitos filosóficos e teológicos no idioma chinês a fim de expressarem o conceito católico. Segundo Benjamim Videira Pires, Ricci “escolheu para o vocábulo as expressões Seong-tai (上帝, Governador no Alto) e T’ien-chü (天主, Senhor do Céu); para T’ien-san (天神, Espírito do Céu) e para Leng-wan (灵魂, Espírito que vivifica ou dá vida). Estes termos estavam aprovados desde 1600 pelo Visitador Valignano após uma consulta dos jesuítas em Macau. Longobardo, na China desde 1597, opusera-se a estes vocábulos, levantando dúvidas. Seria o Seong-tai dos chineses um Deus pessoal, uma simples força, ou um antepassado antropomorfizado? Era T’ien o firmamento material ou Deus, Senhor do Céu e da Terra?” Ideia de Céu Segundo Benjamim Videira Pires, “T’IEN (天) designa, antes de mais nada, o céu ou firmamento material” e “originariamente a pintura estilizada ou jeroglífica da (大因) do firmamento, tendo o semicírculo sido encurtado com o tempo e reduzido a uma linha recta horizontal, sobreposta ao carácter 大, grande, dando 天” – Tian em mandarim. Carácter chinês explicado por E. T. C. Werner, no livro China of the Chinese. “No próprio carácter ou ideograma, que no-lo representa em chinês, está incluída a ideia escalonada duma Super-grandeza que domina o homem (人大天), mas com a qual ele está em ligação”, segundo Videira Pires, que segue, “T’IEN (天) representa uma ”, Puros Três do “ ou do .” “Durante as festividades do Ano Novo Chinês e num dia de bodas, o Céu e a Terra são adorados. O nono dia da primeira lua (no calendário chinês) é o nascimento do Céu e o décimo dia o nascimento da Terra. (…) Reservava-se, todavia, ao Imperador, intitulado , a adoração oficial do Céu feita no …” “As duas ideias mais altas, gravadas no espírito dos chineses, soa a deveres de honrar pai e mãe e de adorar o Céu e a Terra, os grandes Pai e Mãe do Universo”, assim escreveu o jesuíta Benjamim Videira Pires. Matteo Ricci gastou anos em permanente estudo sobre os costumes, a língua, o sistema confucionista, até conseguir permissão para ir a Beijing. Aí, em 1598 na Cidade Imperial cativou os sábios e o Imperador Wanli (1573-1620) com as novas teorias da Renascença, sobretudo na área das Matemáticas e Astronomia. Em 1601 voltou à capital onde se estabeleceu e ficou até à morte, a 11 de Maio de 1610. O Imperador deu a concessão do Templo da Bondade aos padres da Missão portuguesa de Beijing e concedeu o Cemitério de Chala para a sepultura de Ricci e para os padres da corte, na altura jesuítas que traduziam para chinês o sistema do calendário gregoriano usado no Ocidente e iniciavam a revisão do calendário então em vigor na China. Fonetizar o vocábulo Deus Para suceder a Matteo Ricci como Superior da Missão da China chegou a Beijing em 1611 o Padre Longobardo, que tinha discordado do vocábulo DEUS encontrado por Ricci como termo adequado em chinês. Quando Longobardo tomou o cargo, requereu ao Visitador Francisco Pasio para reexaminar a questão, mas os intelectuais católicos chineses declararam-se a favor de Ricci e o Visitador Pasio deixou o assunto em aberto. “Assim passou a haver duas facções dentro dos jesuítas que durante anos foram expondo os seus argumentos em prolongadas reuniões de muitas horas e dias com acaloradas discussões.” Por fim decidiram: 1.º que se devia estar pelo costume do mesmo Padre Ricci acerca da doutrina dos letrados da China. 2.º que os Chineses antigamente conheceram a Deos vivo, e verdadeiro, e o significaram pelas vozes Tien e Xonti. 3.º que o mesmo Deos se chamava vulgarmente Tienchú, que quer dizer Senhor do Ceo, e desde então até agora por este nome é conhecido, e chamado comummente na China o Deos dos Christãos. 4.º que a veneração e o culto que os chineses costumam dar a Confúcio, seu grande Mestre, significado pela voz, e letra Ci não era supersticioso, mas só político, e se podia permitir aos chineses cristãos. 5.º que da mesma sorte se permitisse o culto, que os chineses costumam dar aos seus progenitores defuntos. 6.º que se lhes permitisse também suas tabelas ou tabicas, em que costumam escrever os nomes dos seus progenitores defuntos, para sua memória, e veneração política». (Memoria)”, Joaquim Calado Crespo em Cousas da China. Em 1621, nessa consulta em Macau, a maioria dos missionários inclinou-se para a escolha de Ricci, mas Longobardo não se conformou e passados dois anos escreveu um tratado a defender o seu ponto de vista e em 1624 fez uma análise crítica de T’ien-chü. Rejeitava os termos T’ien-chü e Seong-tai, advogando a fonetização do vocábulo latino Deus. Joaquim Calado Crespo refere, “A dificuldade principal versava sobre a palavra Tien, que uns tomavam por «céu material», e outros por «senhor do céu», equivalente a Tienchu; e sobre a palavra Ci, que uns tinham por verdadeiro sacrifício oferecido a Confúcio e aos progenitores, e outros por mera comemoração honrosa.” Os Ritos que Confúcio transmitiu à sociedade chinesa com base nos princípios da Ordem e Harmonia foram estudados e discutidos pelos jesuítas, que após 50 anos na China estavam em desacordo quanto à terminologia do nome de Deus, mas todos de acordo, incluindo Longobardo, quanto à Questão dos Ritos. admin h | Artes, Letras e IdeiasTarde demais [dropcap]D[/dropcap]urante meses percorremos a costa para averiguar o estado do litoral. O nível de erosão geológica, o avanço urbano, a contaminação marítima e, sobretudo, os resíduos sedimentados junto à linha dos mares. Captámos imagens e vídeos com meios tecnológicos avançados, drones e lentes de precisão. Mapeámos o terreno, tornando-o tridimensional aos olhos dos mais leigos. Reputámos o canto dos pássaros. Fizemos gráficos, desenvolvemos um estudo ambiental e, por fim, tirámos conclusões e apresentámos medidas a tomar pelas entidades competentes. Em suma, fizemos o nosso trabalho, sem apoios estatais, sem subsídios públicos. Fizemo-lo porque tinha de ser feito, porque o país precisa destes relatórios. Não nos interessa se é caro ou barato, não é razão que nos impeça de prosseguir. Somos uma equipa pequena, com equipamento próprio e muita formação na bagagem. Se há alguém com recursos na matéria, porque não avançar e apresentar resultados? O planeta agradece. Com o material na mão, fizemos cópias e enviámos para os ministérios, autarquias e instituições. Encaminhámo-lo igualmente para as associações ambientais e para o fluxo de empresas que de algum modo poderiam melhorar práticas e daí tirar mais proveitos. Não esquecemos os que a todo o momento agridem o meio-ambiente e que não são advertidos e colocados de sobreaviso. Apesar das chaminés e descargas para os leitos cândidos dos rios, nada os distingue no papel. Não há penalizações para os transgressores porque a linha de transgressão ainda está por definir. Também eles receberam um postal no correio. O Estado agradeceu-nos o esforço e louvou o nosso trabalho, agendando para mais tarde um encontro para aprofundarmos a matéria e colocar planos em cima da mesa, encaminhando-os para uma linha definida de execução. Há muito para fazer, insistimos. Já vamos tarde. Não interrompemos o trabalho de observação. Aproveitando esta linha primária de comunicação, elaborámos um sucessivo fluxo de notícias frescas e pertinentes sobre a realidade, acrescentando factos para o contexto da situação. Sugerimos leituras, o convite dos maiores talentos na matéria, ciclos documentais para a consciência da população. Orgia iniciática necessária para o volte de face. Do outro lado, o fio contínuo mudo em ecrã escuro de inactividade, como se o coração colectivo tivesse deixado de bater. Outros valores, de pé mais comprido, se intrometiam. Reportando ao paradigma das praias, sobre o qual se debruçou grande extensão da nossa análise. Na sua maioria, a olho nu, encontravam-se limpas. Não há como evitar os detritos que se acumulam no alto-mar, a origem é global, e com teimosia acabam por se albergar na nossa costa. Há escarpas nas zonas não classificadas com os estandartes de qualidade que requerem uma acção prolongada e, acima de tudo, persistem as descargas feitas nos fluxos aquíferos que quebram a harmonia ecológica. Os nossos dejectos diários. Por outro lado, o nível da água subiu vários metros e as marés vivas aproximaram-se da borda das povoações, engalfinhando estradas, parques de estacionamento e pequenos edifícios construídos ao largo da costa, ora para domicílio ilícito ou como baiucas veraneantes para refresco dos turistas. No passado, ignorou-se o cerne da questão, diluindo apenas o imediato. Construíram-se muralhas rochosas para apaziguar o poderio infinito do mar, procederam-se a demolições, transplantaram-se areias delapidadas de outros corpos celestes. Dragaram-se goelas de rios. A curto prazo, dissolveu-se o prurido e as bolas de Berlim voltaram a ser o apetite mais premente. Mas a raiz continuava a avariar. Os primeiros estudos foram efectuados há vários anos. Na enxovia do poder, várias caras foram atravessando os currais das assembleias, sorrisinhos para aqui e para ali, promessas eleitorais. Mas em uníssono, apesar das palmadinhas nas costas e missivas floreadas, nenhum deles puxou a corda. O parlamento discutiu, sim, aprenderam a matéria dada, mas não reunimos com ninguém à altura da mudança, nem sequer com o motorista, para nos ceder passagem. Apesar disso, de olhos bem abertos, continuámos a efectuar o nosso trabalho. Desistir não faz parte da ementa. Até que outros veículos se movimentaram, não temendo a corrente do acelerador. Aparelhos desobstruídos. Trindade caída. Aconteceu de modo natural e intrínseco. Não era propositado o facto de irmos todos juntos, mulheres e homens, de várias origens e lonjuras. Os sinos das igrejas não tocaram, ninguém tocou a rebate. Foi-se confluindo para caminhos análogos, que se uniram num só. Não havia tempo a perder. A luz já tinha despertado em alguns, mas ainda não existia a coragem de nos pormos à estrada. Mas quando aconteceu, foi repentino para a maioria, sobretudo quando a palavra começou a circular de boca em boca. Vamos? Aí soubemos que tinha chegado o tempo certo, de nos manifestarmos, de lutarmos pela importância das coisas. Já não iria existir uma inversão de marcha. Não ia ser como sempre foi. De ouvirmos calados. De deixar a carruagem passar, ao sabor de um nó de gravata ou de um par de óculos de garrafa. O senhor director está ocupado. Sim, erámos pacíficos e tal, mas contra o nosso número, uma união coesa de vontade e revolta, nenhum outro poder teria força para nos impedir. Nem o império do mar. Aconteceu na avalanche, que desce a montanha e faz rebolar o pequeno floco de neve que bate forte dentro do peito, transformando-se a cada rotação em ser distinto, elevando-se e multiplicando-se, para uns metros mais à frente existir num colosso imparável. Irreparável. Como se poderia ignorar tal temor a pulular-nos nas veias? De que valiam os estudos nesta altura, a ignorância, o saber? O nível das águas, a febre a dilatar-se, o granizo fora de época. Os drones e as lentes de precisão. De que servia determinada tecnologia naquela confluência de elementos? Sua excelência o ministro, pedia-lhe encarecidamente, deixo-lhe os meus melhores cumprimentos. A empresa tal desvia os seus esgotos para a ribeira xis. As emissões de carbono atingiram níveis indesejáveis. Alertamos para o perigo imediato. Quadro negro. Pelo resultado atingido, as gavetas dos gabinetes aquartelavam dezenas de estudos como os nossos. O exame não era corrigido. As pautas não eram lançadas. A inclinação tombou. Os pássaros deixaram de cantar. Enquanto o monitor cardíaco se enleava, a direcção passou a um só sentido. A idade ou estatuto não contavam. Deixámos de olhar para as criancinhas como peças soltas com futuro inserto num caldeirão, a chupar refrescos em baiucas de veraneantes. A travessa, a rua, a avenida. Uma injecção. Alunos, professores e pessoal de limpeza. A fauna era variada e pungente. Entre nós, até existiam alguns elementos da autoridade, forças armadas, militares insatisfeitos, polícias desregulados, que tinham deixado o armamento em casa, mas que vinham preparados para tudo. Finalmente, tinha chegado o dia de pôr cobro ao grande circo que rolava sem travões há tempos infindos. Como o mar. A muralha rochosa erguia-se em penedo da antiguidade, no leito cândido dos rios. A História iria ter um volte de face e não era preciso escrevê-la, os papéis estavam todos no ar, despedidos que foram do mofo dos gabinetes. Ainda tentaram colocar-se do nosso lado, os governantes, com o intuito de ganhar tempo e criar um grupo de transição, de onde fariam parte. O povo é sereno, gritavam, quando passámos por cima da linha da frente e os atropelámos. Seríamos nós a ditar as regras do país e as transformações estavam muito bem delineadas. Há imenso tempo que elas eram faladas – dirigido ao senhor coordenador do gabinete do secretário, pedimos deferimento, acaloradamente – era só pôr tudo em prática. As grandes empresas teriam de se reger por princípios rígidos e só assim podiam subsistir. Não havia tempo para encubar mais ideias. Ou financiar espíritos criativos e cimeiras de botõezinhos. O filho pródigo regressava a casa. Seriam os princípios da humanidade e da natureza, era assim que ia ser daí em diante. Não havia tempo a perder. E ninguém diga que gostamos de chegar atrasados. Hoje, já vamos tarde. Hoje Macau Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [dropcap]E[/dropcap]star atento é a prioridade máxima, dissera-lhe Jin Shixin. E Cândido não se esquecera. Agora, mesmo quando se deslocava a pé para casa, tomava atenção aos sons e às sombras. E, também, aos raros transeuntes que passavam por ele. Aquela hora, só se cruzou com chineses e com alguns marinheiros que cambaleavam, sem saberem o destino. A noite estava calma. A brisa que durante a tarde tinha aparecido, extinguira-se e uma lua quase cheia brilhava sobre Macau. Cândido deixou-se dormir quando chegou à cama, mas foi atormentado por um pesadelo. Caminhava numa floresta de bambus, numa confusão de luz e sombra. Era perseguido e durante muitos minutos não conseguia distinguir o caminho que deveria seguir. O sangue escorria do seu corpo. Matara alguém. Quem? Acordou, sobressaltado. Procurou o corpo de Jin, mas nada encontrou ao seu lado. Ela não estivera ali. O suor escorria-lhe da testa. Levantou-se e foi sentar-se junto à janela, que abriu, para ver se entrava algum fresco que o despertasse. Uma ave nocturna cantou. Se não fosse isso, Macau estaria em silêncio. Cândido sabia que as aves não cantam por estarem felizes ou tristes. Fazem-no para contactar com o que as rodeia. De noite cantam de forma mais intensa. E isso serve para confundir os predadores. Os seres humanos talvez não sejam muito diferentes, quando escolhem a noite para soltarem os sentidos. Todos esperavam, pensou Cândido. Ninguém duvidava que estava a caminho uma devastação em escala nunca imaginada. Os pássaros ainda cantavam, mas a contagem final já começara. Cada vez chegavam mais pessoas fugidas da China. Contavam coisas inimagináveis. Pareciam perdidas e alguns, com dinheiro nos bolsos, procuravam uma consolação qualquer, fosse o jogo, o ópio ou as mulheres. Nessa noite, enquanto falava com Prazeres da Costa, Cândido pensara neles. Aquele estava feliz e triste. Amélia pressionava-o, cada vez mais. Queria deixar o marido e ir viver com ele. Ela rezava todos os dias e ia à missa em busca de conforto e de formas de expiar a sua culpa. Mas a infelicidade de Prazeres da Costa vinha-lhe da falta de dinheiro. Já um pouco embriagado, ele disse-lhe: – Deus, para mim, só existe quando olho à volta, para as belezas da natureza. Para as mulheres. A noite estava triste e a aurora ainda longe. Prazeres da Costa era um homem cansado de si mesmo. Nada que espantasse Cândido. Ele próprio, até agora, sempre estivera em guerra comigo próprio, para o bem e para o mal. Na sua cabeça havia uma discussão constante, um reencontro com os seus demónios, sobre ter de decidir, ter de tomar partido. Foi então que Prazeres da Costa lhe perguntou: – Já decidisse? – Já. Prazeres da Costa fez um largo sorriso. – Só precisas de fazer um relatório semanal sobre as actividades de Jin Shixin ou outras coisas que tenhas conhecimento. Mas se houver algo de urgente tens de me contactar. – Assim farei. – Ainda bem. Sabia que poderia contar contigo. Serás recompensado. Nesse momento Marina Kaplan aproximou-se e colocou a mão no ombro de Prazeres da Costa. Disse: – O jogo vai começar. Vens? O português levantou-se e seguiu-a. Cândido foi atrás deles. Na mesa estavam três homens sentados, preparados para uma longa noite de póquer. Cândido olhou para as suas faces. Eram jogadores experimentados, todos ocidentais. Só um tinha olhos orientais. A sua cara não lhe era desconhecida, mas recordava-o noutro ambiente. Só quando os seus olhares se cruzaram, ele recordou. Costumava encontrá-lo, à noite, em Xangai. Mas não como jogador. Vinha fardado. Era polícia, no sector francês. Marina Kaplan, que observara tudo, sussurrou-lhe ao ouvido: – Luc LeFranc. Cândido não disse nada. Voltou para o reservado onde tinha estado a conversar com Prazeres da Costa. Não duvidava que seria mais uma noite de perdas financeiras para ele. Nesse momento voltou a ouvir Jin, que há alguns dias lhe dissera: – É possível ver as pessoas como são, sem fingimentos. Ou são amigos ou inimigos. Ou vencem eles ou nós. Isso simplifica tudo. Era verdade. Todos tentavam comprar a sua invisibilidade. Como se ele não existisse. E ele só tinha de decidir com quem queria alinhar. Despertou dos seus pensamentos madrugadores. Batiam à porta. Era Jin. Ao entrar, beijou-o ternamente na boca. Depois, sem uma palavra, despiu-se defronte dele e arrastou-o para a cama. Quase uma hora depois, Cândido abriu os olhos. Sentiu o corpo quente da chinesa. Os homens que conheciam Jin diziam que ela não dormia. Encontravam-na, muitas vezes, sentada, a meditar, de olhos fechados. Mas só isso. Era um absurdo. Todos os seres humanos têm de dormir. Cândido percebia que, durante o dia, ela se comportava como a grande dama do chá, como era conhecida. À noite, mudava. Era uma agente de Du Yuesheng e dos seus interesses. De noite era como uma flor de lótus que surgia das águas, imponente e bela, para mostrar a renovação. O Mal pode ser substituído pelo Bem, enquanto nos alimentamos do aroma da flor de lótus, ouvira dizer uma vez. Jin despertara e encostara-se a ele. Questionou: – Em que estás a pensar? – No que fiz há algumas horas. – Não penses. Se um homem tem um preço, ele não é alto ou baixo. É apenas o justo preço que tem de se lhe pagar para que ele faça o que queremos.- És uma verdadeira amiga? Ou terei tomado a decisão errada? Ela riu. – Morra já, se não for o caso. – Diz-me: sou teu amigo ou inimigo? Jin hesitou por um momento, mas não respondeu. Ele deu-lhe um beijo nos lábios e disse: – Achas que consigo ler o coração de uma mulher? – Sim. E eu também o consigo fazer. Por isso vim acordar-te. Eu sou de uma região na China onde a piedade é considerada uma fraqueza. Disse isto com um sorriso nos lábios. Como se quisesse mostrar que não tinha fraquezas quando tinha de decidir. Jin não conhecia a piedade. Ele nunca tinha encontrado uma mulher tão sedutora. Cada movimento que ela fazia, excitava-o. Tinha uma aura iluminada, como se fosse sempre iluminada pelo sol, mesmo quando se movia na escuridão. – Vem! Jin disse isso com voz de veludo. E ele foi, novamente. Os seus braços colocaram-se à volta do corpo dela e voltaram a beijar-se. Ainda viu o sol a nascer através da janela, mas ela parecia não ter pressa. Depois de terem feito sexo, ela sorriu e tirou os braços dele do seu corpo. Levantou-se e disse: – Tenho algo para ti. Tirou de um bolso escondido na sua cabaia um anel grosso, de ouro, onde estava uma pedra de jade verde. Agarrou-lhe na mão esquerda e colocou-o no dedo. – Quem pode ser confiado para carregar a minha confiança? Aquele anel, de tão belo, era uma prova de confiança. Mas era também uma espada de dois gumes. Era uma arma que não era mortal, mas estava apontada ao coração dele. Ele sabia o valor daquele anel. Por detrás da tentação de qualquer coisa escondiam-se sempre os dentes de ferro das consequências inesperadas. – Depois de aceitares este anel estou desarmada perante ti. Nada disso, pensou Cândido. Nunca, como naquele momento, ela tivera todas as armas. E ele, sim, estava desarmado. António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt II [dropcap]O[/dropcap] corpo humano aparece-nos, ao longe, nas suas fronteiras físicas como qualquer outro corpo tridimensional, como qualquer planta e qualquer animal. Mas o aspecto relevante para o autor Hipocrático do acerca do ar, águas e locais, é a transcendência do ser humano para além das fronteiras do seu corpo. Não apenas temos uma percepção do próprio corpo dentro das suas fronteiras físicas delimititadas pela epiderme, mas temos uma percepção que vai para além das suas fronteiras: vemos para lá do globo ocular e ouvimos através das paredes, sentimos as fragrâncias no prado e não no nariz como o gosto da comida e não da língua. Mas não apenas assim. O plano de fundo para a existência do corpo humano meteorológica. É o clima do local em que vivemos com os seus ares e águas, é o dia como plano de fundo às horas do dia e à sua passagem, é a vida como plano de fundo às idades da vida e à sua alteração, é o grande ano da existência que serve de plano de fundo às estações do ano e à sua mudança. O corpo humano está exposto a diversas distensões temporais. O corpo humano em que cada um de nós existe, ou melhor, com o qual cada ser humano existe, é o tempo meteorológico. O ano meteorológico divide-se em horas ou estações do ano. O corpo humano existe na dependência do que se passa em cada estação do ano, na mudança de uma para a outra, a cada hora do dia, todos os dias da vida, em cada época da vida. O corpo humano existe neste espaço estrutural, com estas fronteiras no interior do horizonte temporal do ano como metáfora do tempo de duração pelo qual se estende a vida humana. Os autores hipocráticos dizem assim que a medicina tem de estudar a mudança de estações e as estações do ano para se perceber a alteração qualitativa que produzem nos ares, águas e locais. Esta alteração qualitativa dá-se mesmo no mesmo local geográfico. Esse estudo é totalmente relevante para a compreensão medicinal do ser humano, das doenças a que o que está exposto. Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA internet de Aquilino Ribeiro [dropcap]S[/dropcap]erão três os atributos a que os arqueólogos do futuro irão recorrer para descrever o nosso tempo, neste local onde hoje vivemos e respiramos: a ilusão de poder estar em todo o lado ao mesmo tempo, a ilusão de poder aceder – seja ao que for – de modo instantâneo e a ilusão de poder saborear um tempo lúdico e marcado pelo desígnio da juventude eterna. Quando lemos ‘As Terras do Demo’ de Aquilino Ribeiro – e devo referir que tenho na minha frente a segunda edição centenária (1919, Ed. Livraria Aillaud e Bertrand, capa dura) -, vemos que os personagens metem mão à terra e fazem mil coisas ao mesmo tempo (“Era bem ela – a Glórinhas -, por maré de acaso tangendo as vacas para o lameiro, cesta das rendas enfiada no braço, chibata na mão.”), acedendo quase a coisas impossíveis (“Nela, o que mais o detinha era a fábula inesgotável que ao espírito se lhe antepunha”), embora tudo decorra num espaço que, para aqueles personagens, se confundia com o planeta (e até com o universo) inteiro. Uma espécie de aquário telúrico que, para além das suas paredes de vidro, reluzia algo de infinito, o que era uma evidência no quadro humano retratado por Aquilino: “Na serra, não havia mimos e o dinheiro andava caro; embora, o salvador do mundo acolhesse os serranos, sorridente, como se cada um lhe levasse todo o oiro, incenso e mirra dos magos do Egipto” (…) “O carujo vinha descendo dos picotos, e os ladridos dos cães, nos rebanhos, soavam de longe, que nem do cabo do mundo”. A internet de Aquilino e a nossa são realmente muito diferentes. A primeira era vocabular, irradiava um prazer imenso em criar mundos e trepava pela língua como um animal genialmente amestrado (“Gozoso, elevava e derribava seus morouços, e estendia-os em linhas paralelas, obrigados a uma relação de valor e de simetria. Ao mais leve rumor, deitava-se de bôrco sôbre seu haver, sem respirar, sem latejar. Mas nas horas confiadas, sua voluptuosidade expandia-se num trejeitado variado de orate.”). A segunda vale-se de bordões linguísticos e de euforias virais, vive do prazer em reduplicar experiências e trepa por novas linguagens valendo-se de 845 emojis e de palavras de ordem “em modo de” bala tracejada. Nenhuma destas internets é melhor do que a outra. São matérias de natureza tão diversa que nunca se encontrarão (e muito menos se tocarão) no concerto das galáxias. O curioso é que entre estas duas fórmulas de espantar a linguagem passaram apenas cerca de cem anos. Repare-se, por exemplo, que entre a Odisseia atribuída a Homero ou os textos do Primeiro Isaías e O Paraíso Perdido de John Milton (1667) passou um período vinte e cinco vezes maior e a diferença de linguagem, de construção e de tópicos é muitíssimo menor. Entre Alexandre, o Grande que morreu há 2.342 anos (foi a 10 de Junho de 323 a.C.*) e as datas de uma série de textos que continuaram sempre a dá-lo como um ser vivo passaram-se 20 séculos (aconteceu até ao séc. XVI). Foi o caso, entre muitíssimos outros, da Sibila Tiburtina (380 d.C.*) em que Alexandre se converte em figura de imperador-salvador dos últimos dias e foi também o caso, em terras iraquianas, durante o reinado do quinto califa abássida, Harún ar-Rashíd (764-809), do Apocalipse de Bahíra*, texto atribuído a um monge cristão que colocava Alexandre em cena para pôr cobro à emergência islâmica. Na escala humana, sempre foi possível reconhecer nas grandes amplitudes temporais algumas constantes e alguma estabilidade, razão para a existência dos chamados “cânones”, recorrendo à terminologia de Harold Bloom. Ora, a nossa época escapa radicalmente a esta regra, pois faz passar milénios em poucos anos. Nem toda a gente dá por isso, do mesmo modo que ninguém repara que o planeta executa a sua translação ao sol numa velocidade próxima dos 30 quilómetros por segundo. Andamos exaltadíssimos com os vigores da tecnologia, mas tudo o que inalamos é simulado e ilusório. Não damos conta, de facto, do que se passa à nossa volta. Os três atributos com que os arqueólogos do futuro nos revisitarão falam por si a este respeito: (1) imaginamo-nos omnipresentes na rede, (2) acedermos instantaneamente a hemisférios virtuais e (3) vivermos a ilusão lúdica da juventude eterna. Uma era baseada em simulações é, pois, uma era cega para descobrir hipocrisias (relativações sem fim incluídas), falsidades (‘fake news’ incluídas) e traições (o que se difunde metamorfoseia-se logo). Neste aspecto específico, a internet de Aquilino mostrou-se bem mais eficaz no seu tempo, já que foi justamente com a descoberta de uma traição que o romance ‘Terras do Demo’ encontrou o seu desenlace: “Empurrou-a dum alancão e seus olhos presenciaram a monstruosidade: o João Bispo, o homúnculo hediondo, sob seu corpo semi-nu subjugava o corpo semi-nu de Glòrinhas. Bocados de formusura divina confundiam-se com luaceiros de disformidade imunda. Ela debatia-se, o monstro que com uma das mãos lhe tapava a bôca, com a outra tenteava seu lance”. O herói, ou anti-herói, Inácio Miôma, não era um “farçola de varapau”, apesar de ter caído na desonra de “saborear um tal sainete”. Virtual, o tanas, salafrário! *Liparotti, Renan Marques; Plutarco: A fortuna ou a virtude de Alexandre Magno, Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume Editora, http://hdl.handle.net/10316.2/43219 (Cons. 5-Jun-2019 12:00:31). *Profecia do fim do século IV, provavelmente redigida na sequência da derrota militar romana em Adrianople (378). A partir do original grego, variadíssimas traduções permitiram a sua reactualização até ao século XVI (B.McGinn, Visions of End-Apocalyptic Traditions in the Middle Ages, Columbia Un. Press, New York,1983, pp. 53-54). *Abel, Armand, Réflexions comparatives sur la sensibilité médiévale autour de la Méditerranée aux XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII, 1960, pp.23-42. António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Vento [dropcap]D[/dropcap]eus não me tem trazido muito discernimento. Suponho que porque quem me levava à missa na minha infância era uma tia surda. A minha tia Dulce. Esta é uma história que os meus amigos sabem de sobejo e a minha família já vomita. Mas só eu é que a vivi. O meu pai era anticlerical e como a minha mãe insistisse em que eu fosse à catequese e à missa, ao fim de anos de insistência capilar, cedeu, sentenciando: Ele pode ir à missa com a tua irmã. Foi mistério que se me cravou na carne. Naqueles seis meses em que aquela mão calosa me conduzia à igreja, eu pouco ouvia da Palavra de Deus. O que me intrigava até às entranhas era como a Palavra acudia ao olhar beato da minha tia surda. Como é que apesar de tamanha surdez ela fora polinizada? Eu nem sequer olhava o púlpito, fixava-me no rosto sardento dela, alheado, com os olhos embevecidos pelo que não ouvia, e nos seus lábios que mexiam, repetindo as loas e as orações. Ela, de vez em quando, dava conta e num gesto maquinal virava-me a cabeça para a frente. Aí detinha-me, por um minuto, na batina do padre, na taça que o sacristão lhe passava e, atrás deles, no crucificado, e ouvia o fragmento de alguma parábola, antes de voltar a fixar o rosto dela e os seus olhos que, como macias faluas, se desfaziam nos quebra-mares de Deus. É possível que Deus tenha feito nascer um milagre em Salzburgo, no caso de Mozart, no caso da minha tia, negou. Apesar de ter crescido entre irmãs, e de não perder um culto, Deus não lhe depositou uma única palavra no tímpano. Outras coisas sim, e no coração com certeza, que era um poço de afectos, a minha tia Dulce. Porém, inapelavelmente mouca. E parecia-me tão desproporcional a distribuição de fé em Deus, que do seu enigma não me livrava. Raras vezes me distraía dessa ideia fixa. Bom, uma vez distraí-me com uma península de carne que havia no pescoço duma senhora à nossa frente, e que abanava quando abriam a porta da igreja. Se na altura soubesse nomear as coisas, teria interrogado: Um pólipo é filho de Deus? Na altura não havia nome para o que me perturbava, entalado entre a minha tia surda e aquele pólipo que no pescoço à minha frente ouvia a Palavra de Deus. Só eu não achava condições para a escuta. Um dia, farto de tanta inquirição a que me levava a devoção da minha tia e do seu olhar amendoado quando engolia a hóstia, decidi arrumar os mistérios e decidi: o que a minha tia ouve é a voz do vento. O vento tornou-se a primeira categoria transcendental na minha vida. Nunca mais fui à missa e não sei porquê, mas nesse dia deixei de ter medo do vento. Ou não foi logo ali, mas no que lhe esteve ligado. Nunca soube de onde nasceu o meu fascínio com o vento. Terá nascido da intuição de que se componha de sílabas entrecortadas como o meu furado entendimento do mundo, ou de o adivinhar como uma energia jubilatória, idêntica à que à nascença desloca o tempo e sintoniza nos pulmões a modulação do ar? Semelhante ao vento, também a minha relação com a linguagem se enlaça aos sacões, por enfáticas ventosas; as palavras não me chegam quando eu quero traduzir a meu bel-prazer as inscrições da realidade em mim, pelo contrário, são volantes e indomáveis, embora a espaços pousem nas minhas mãos como pássaros num estado propiciatório (mais vizinho da desestabilização que do repouso) que faz vibrar um instante de coincidência entre mim e elas; ou seja, temo que as palavras, no meu caso, recusem a adesão a qualquer decalque e antes premeditam golpes de ventos que me trespassam. Mas tinha medo, até esse dia, no primeiro domingo em que não fui à missa, que troquei por uma ida à pesca com o meu pai. O meu pai pega-me na mão e avançamos pontão dentro, na Ponta da Areia, ele com a cana de pesca no ombro, e eu orgulhoso por ele me ter confiado o baldinho com as minhocas; progredimos direitos ao coração do mar, a despeito dos gritos da minha mãe que roga que regressemos, teme que o vento, irado nesse dia, nos atire às águas, concomitantemente, revoltas. Galgamos o chão de pedras, num passo seguro, o vento eivado de lágrimas do mar endemoninha-se nos cabelos, mas ele só sorri ao medo dela, um sorriso cúmplice entre nós, que prescindimos de palavras e somos íntimos daquela vírgula de pedra, rasando as águas em que adentramos cem metros, cento e cinquenta, de olho fito no extremo adiante, aonde, como o dia está picado, se situa o palpite do meu pai de que na polpa de uma vaga bravia e oleaginosa se apinhem os robalos. E o vento diabólico ameaça, mas não consegue arrancar-nos um sorriso. A minha mãe grita, incansável, nas nossas costas, e só nos importa o som do mar que se engolfa nos nossos tímpanos e o vento que nos impele para diante. O meu pai é um medíocre pescador, não me lembro se o seu palpite estava certo, mas agradecer-lhe-ei eternamente ter afastado de mim o receio ao vento. De ventos solares ouço falar, mas esses não me animam o canto. Só os terrenos, mais breves que o Papa Pepino e que enchiam de penas de anjo a boca da minha tia. Pelo menos era assim que eu imaginava a explicação que nunca me deram. Já morreu, a minha tia que foi amada, e teve cinco filhos. Eu continuo a ser irrigado pelo vento, a matéria de um livro que me preparo para lançar. Entretanto, se nos definimos pelos nossos actos, Deus continua a ligar-me pouco, nem me deu aulas de guitarra. Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (I) [dropcap]L[/dropcap]ife overtakes me (Quando a vida nos atraiçoa), é um documentário na Netflix sobre famílias de refugiados na Suécia, cujas crianças são afectadas pela Síndrome de Resignação, também apelidada de Síndrome de Desistência. Após passarem por uma situação traumática, as crianças começam por entrar num estado depressivo que se vai aprofundando até ser atingida a catatonia. Vão gradualmente perdendo o interesse em quaisquer actividades, deixando de abrir os olhos, comer, falar, mover-se, responder a estímulos. Passam a usar fraldas e a ser alimentadas por via intravenosa pelos pais, que se tornam ainda mais cuidadores, muitas vezes auxiliados por voluntários. Não é incomum que, ao assistir ao estado de deterioração de um dos irmãos/irmãs, outra ou outras crianças da família sucumbam eventualmente à síndrome. Este sono profundo, comatoso, pode durar seis meses ou mais de dois anos, sendo por vezes reversível, não sem que antes decorra um período de tempo considerável entre o resolver da situação instável e o convencerem-se, ou melhor, serem convencidos pelo que parece ser transmitido pelos pais: o sentimento, a certeza de que tudo está bem. Os pais parecem ter substituído o príncipe nas histórias de encantar. A deportação é o monstro/bruxa e o passaporte ou autorização de residência o beijo que quebra o feitiço. Há uma série de crianças e jovens adormecidos, esperando a salvação do asilo, a sua transformação de refugiados em cidadãos. Na sua obra-prima, A sangue frio (D. Quixote, tradução de Maria Isabel Braga, 2006), Truman Capote descreve como a tragédia que dilacerou a mais bem-amada família de Holcomb afectou gravemente quem teve o mínimo contacto quer com a família Clutter, quer com os despojos do seu brutal desaparecimento: “A mulher de Dewey passou pelo sono mas acordou ao senti-lo saltar da cama para atender mais uma vez o telefone. Ouviu também, no quarto onde dormiam os filhos, os soluços de um dos rapazinhos que chorava. «Seria o Paul?» Ele não era rabugento nem chorão, nunca! (…) Porém, nesse dia ao almoço desatara em soluços. A mãe não precisara de lhe perguntar a razão; sabia que, muito embora ele compreendesse vagamente o motivo de toda aquela confusão à sua volta, sentia-se inseguro ante as enervantes chamadas telefónicas, os estranhos que entravam em casa, os olhos fatigados e cheios de preocupação do pai.” Situações de racismo na escola (falamos de famílias arménias ou yazidi, por exemplo), criminalidade testemunhada (agressões e homicídios, as causas da fuga dos pais) parecem ser as causas traumáticas que iniciam este processo de fuga à realidade em crianças anteriormente activas e aparentemente saudáveis. Testes de reacção à dor e ao frio são executados regularmente, sem grande novidade. Ainda há muito para descobrir e confirmar relativamente a esta condição. Como em tudo, há quem questione se se trata de uma doença verdadeira, se os pais não estarão a envenenar os filhos, se não será uma estratégia para conseguir protecção e segurança, ou apenas mais uma distracção dos verdadeiros problemas quer dos suecos quer dos refugiados que acolhem. Ainda considerada uma condição rara e quase exclusiva à Suécia, sem razão aparente, certo é que existem relatos de algo semelhante nos campos de concentração Nazi. Detidos, migrantes, refugiados: esta condição começa a verificar-se também em crianças na Austrália. Quão contagiosos são a tristeza, o medo, o desespero, a falta de esperança? Quão sensíveis são estas crianças à verdade, de tal forma que já não basta ver ou ouvi-la, é fundamental senti-la? Entre a tristeza dilacerante e o pós-terror, é comovente e duro assistir ao definhar de qualquer forma de vida, sobretudo a que é mais promissora, mais cheia de energia, normalmente mais adaptável a mudanças. A perda das funções motoras e biológicas acompanha a perda da inocência. Recordemos o quadro Sleeping, de Paula Rego (1986), exemplo dessa quase imperceptível diferença entre perigo e paz. Crianças dormem junto a um arado, vigiadas por um pelicano (símbolo cristão do sacrifício de Cristo, da sua ressurreição e da de Lázaro). Duas crianças estão acordadas, uma enfrentando a ave e a outra virando costas às que dormem, encostada a uma árvore. Observamos ainda uma tartaruga, símbolo de imortalidade, de concentração, de regresso ao estado primordial. Até onde vamos para sobreviver? Além-fronteiras, fisicamente. Ao mais fundo de nós, mentalmente. Até onde tivermos de ir. Até onde nos levarem. Até não podermos mais. Somos, verdadeiramente, onde os nossos limites podem chegar. Na cama ou acompanhando a família em passeios e refeições, em cadeiras de rodas, a estes jovens são-lhes lidas histórias, cantados os parabéns, exercitados os músculos, escovados os dentes, afagados os cabelos. Só faltava aparecer Thom Yorke declarando I’ll take a quiet life, pedindo No alarms and no surprises, please. Bem que mereciam. Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasTeologia do acaso [dropcap]U[/dropcap]m dos livros mais conhecidos de Paul Auster chama-se A Música do Acaso. Foi publicado em 1990 e de imediato a voz do escritor confundiu-se com este romance que tem uma leve herança da filosofia do Absurdo. Resumidamente, é a história de um bombeiro, Jim Nashe, que por circunstâncias várias se vê livre para prosseguir a sua vida da forma como entender. O livro é marcado por acontecimentos sem causalidade, onde o jogo, sorte, azar ou coincidências são o que determinam o percurso dos personagens. Lembro-me de na altura ter ficado fascinado com o romance e de imediato me ter transformado num convicto adepto da Austeridade (perdoa o pobre trocadilho deste vosso escravo, ó leitor!). Anos depois voltei a lê-lo e as formulações já me pareceram cansadas e previsíveis – um pouco em contradição com o espírito da obra. Então porquê trazê-lo, agora e aqui? Porque senti a sua falta, de outra forma que não literária. Olho à minha volta nestes dias e percebo que o acaso é algo que também é uma espécie em extinção. Deveria haver uma reserva natural para coincidências ou serendipismos neste mundo cada vez mais determinista. A ilusão de proximidade dada pelos algoritmos faz com que possamos saber ou prever com algum rigor passos mais ou menos decisivos das nossas vidas. E pior: que esses passos sejam almofadados por outros que sabemos terem visão semelhantes às nossas, tornando-nos assim ignorantes voluntários de opiniões e mundos distantes da nossa rua. Nem o amor está a salvo. Através de um telemóvel escolhemos com conforto e distância quem achamos que irá preencher as nossas mais apaixonadas ânsias. O risco, a emoção do confronto com o desconhecido está a ser obliterada em nome de uma qualquer forma mais prática e anónima. O acaso, tão fundamental e precioso na emoção humana, tende a desaparecer. Só percebemos o que se nos está a escapar quando somos invadidos pelo que se nos escapa. Há alguns dias, por acaso e sem marcação prévia, fui parar a um bar de jazz onde estava a decorrer uma jam session. De repente, vindo não se sabe de onde, apareceu aquele que considero um dos melhores saxofonistas nacionais – Ricardo Toscano. A noite agigantou-se com o inesperado, aliás em ligação perfeita com o jazz que por definição é uma arte do improviso. E é destes acasos que a alma pode e deve alimentar-se. Voltaire dizia que aquilo que chamamos acaso não é senão a causa ignorada de um efeito conhecido. Acredito. A vida tem mesmo uma ordem secreta e misteriosa que urge preservar cada vez mais, mesmo contra a corrente. Proclamo aqui a necessidade de uma teologia do acaso, algo que nos redima com urgência e doçura. João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasRecessos de cidade Lisboa, 11 Junho [dropcap]T[/dropcap]em armadilhas, a (suposta) diarística. Agravadas a cada degrau pela vida, alheia aos esforços do (suposto) cronista. Alturas há em que a folha se estende qual cemitério na falda da colina. E que dizer descontado o banal, além do bem e do mal, sobre aqueles que partem, mais ou menos próximos, relativizando-se a proximidade por conter intimidades, por ter contribuído, das maneiras mais díspares, para o que fomos sendo? Mal conheci Ruben de Carvalho (1944-2019), mas devo-lhe muita navegação no grande oceano da música, não apenas pelo que foi dizendo, mas por quem programou na Festa do Avante, para dar um exemplo. A América, sem o jazz e o romance policial por ele recontados, não me seria a mesma. Saudades das crónicas! Antigamente, os jornais andavam prenhes de futuro. (Relembro a talhe de foice que a minha infância desaguou em revolução, para a qual ele contribuiu.) Mas Lisboa, a minha tão ausente Lisboa, não me seria a mesma sem Ruben, por milhentas razões, as que se sabem e as outras. Uma delas, talvez despicienda, foi a sua defesa, enquanto vereador, de uma Bedeteca de Lisboa condenada à lenta agonia da indiferença. Saravá, Ruben. Varandão, Lisboa, 15 Junho Apesar dos pesares, Lisboa continua sendo o que jamais deixou de ser: jogo de patamares e vielas onde o encontro floresce que nem enigma. Ramón [Gomez de la Serna] imaginou-a ponte de grande navio prestes a rasgar oceanos. E nela assim me sento, a olhar os nós por desatar do horizonte. Abro parêntesis [recto] nos afazeres e passo a porta, que é janela, do Luís [Gouveia Monteiro] para experimentar o concerto de bolso do Fred Martins, na companhia de cristal da Sandra [Martins]. As linhas do horizonte são agora as cordas de onde se soltam as melodias de estonteante riqueza, conduzindo a voz que nem seta ao coração perfurado pelo violoncelo, mas o órgão do sangue pensa e diz do tempo e da paisagem, da casa e quem nela mora, de ontem e de amanhã. O varandão, com esta dilecta companhia, foi mundo pulsando, levou a gente. «Onde mora a ternura,/ onde a chuva me alaga,/ onde a água mole perfura,/ dura pedra da mágoa,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora.» Santa Maria Maior, Lisboa, 19 Junho A minha cidade tem uma galeria elevadora. Talvez devesse escrever elevatória, mas no contexto cruza-se com voadora. Diz o dito contexto que são «As Lisboas» do Nuno [Saraiva], postas no prédio da Junta de Freguesia que junta o baixo e o alto, Fanqueiros e Castelo, ou quase. Vou ter que voltar (fica até 27 do corrente), pois descobri que não consigo acompanhar o andamento do gabiru. Gabo-me de conhecer o seu corpus como poucos e logo me encontro hirto de surpresa, carapau a pedir o auxílio de alma caridosa na corrida de ver. E o quê? O mais solar dos cruzamentos entre a cidade e as suas personagens. O mais irónico dos mergulhos nos estereótipos, massa movediça da identidade. Um sem fim de suportes, a afirmar que Lisboa podia lá ser apenas de papel! Recapitulando, muito por culpa de sucessivas Festas da Cidade, mas também por ser filho de Alfama, o Nuno tem desenhado as figuras de que Lisboa se faz hoje. E cruza os monumentos, as ruas, os lugares, famosos e nem tantos, queridos ou nem por isso, com os corpos em andamento. E depois mergulha nas tradições, da sardinha à ginjinha, das marchas ao Fado, para colher os elementos com que compõe imagens que respiram sangue na guelra. O meu maravilhamento resultou ainda do encontro com azulejos e garrafões gourmet, mupis e troféus, jornais e muros. E finalmente os esboços, revelando as hesitações, as aproximações, antes do traço definir o corpo, ainda ele, da cidade, sempre ela. (Exemplo algures na página). CCC, Caldas da Rainha, 22 Junho A tarde respira de luz, mas, em obediência ao tema e à combinação, entramos no cubo escuro da sala. Nem por isso o momento deixou de se fazer solar, muito pela simpatia que o Carlos [Querido] suscita nesta sua terra (enfim, por onde passa). «Habeas Corpus» anuncia-se conjunto de micro-contos a bailar à volta da morte, a atazaná-la, empurrando-a, rasteirando-a, na certeza de que lhe cairemos nos braços. Cansados. Mas mesmo os aqui pousam nesta página acreditaram que, pelo riso e outras artes, a faremos mais tonta. Mas outras melodias se tocam nas deambulações destas figuras pelo território fértil do absurdo. E a palavra é uma delas. Os sentidos são tratados como produto da terra, com raízes e regas, cuidados de poda e desbaste. A Ana [Sousa Dias] teve a generosidade de nos oferecer leitura. «Gosto deste livro de caminhos obscuros e muitas vezes absurdos, recheado de citações discretas (ou evidentes) de grandes livros que fazem a história da nossa humanidade, e que recomendo que o leiam (e comprem, previamente). Que se divirtam como eu, sem gargalhadas mas com um sorriso cá por dentro, à espera do desfecho que chega na página seguinte. Que saboreiem a belo domínio das palavras, aquelas que são o fulcro de toda a literatura. Cuidado, que a fome das palavras pode levar a que desapareçam das páginas. E regresso ao início, a um dos temas recorrentes do «Habeas Corpus»: “Sempre que procurou o sentido da vida deparou-se-lhe o denso e indecifrável mistério da morte. Kyrie Eleison”.» Santa Bárbara, Lisboa, 22 Junho Este papel não parece de fibra, a não ser que seja de tempo feita. Não tivemos todo quanto precisávamos, Carlos [Câmara Leme] (1957-2019), para cumprir os projectos, muito conversados, inevitavelmente adiados. Deste prolixo testemunho do teu tempo, do nosso tempo e dos seus actores, perdido algures nos arquivos. Não te deixaste ficar. Procuraste sempre acompanhar em passo de corrida, como convém ao jornalismo, os que pensavam ou escreviam. Que saudades do tempo em os jornais falavam! Saravá, Carlos. Horta Seca, Lisboa, 24 Junho A ritmo mais do lento do que aspira o nosso querer, vão saindo edições internacionais dos nossos autores. Umas mais convencionais, como esta de «O da Joana», do Valério [Romão], que na versão francesa da Chandeigne se fez «Les eaux de Joana», o que me agrada bastante. As águas e o seu romper, na mulher, são fonte inesgotável de fascínio, portanto, de mistério. A saga de Joana é-nos apresentada, na contracapa, como cruzamento impiedoso de estudo clínico sobre a histeria, o cinema de Buster Keaton e a crueza de Louise Bourgeois, celebrando as sinistras núpcias do desespero com o burlesco. Sublinho a presença das referências visuais aplicadas ao texto do Valério, uma das suas forças. Outras publicações resultam da soma de desejos e vontades, como «Chiuso per Inventario», pequena antologia de poemas da Rita [Taborda Duarte], passados a italiano pela Paola [D’Agostino] e acompanhados ao pincel pelo Pedro [Proença]. Destinado, por «Malas Artes», apenas aos sortudos de festival mediterrânico «na terra do pesto», eis inestimável volume, pássaro breve. «Non srivere troppi uccelli nelle poesie: è cosi triste/sentire un uccello che cinguetta nel posatoio del verso le unghie/ che raspano le frasi razzolate della poesia.” Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasFazer rir um poeta [dropcap]E[/dropcap]m Setembro de 2011 conheci em Porto Alegre o poeta Pedro Gonzaga e o grande escritor Aldyr Garcia Schlee – falecido em Novembro passado, com 83 anos – através do editor e amigo Alfredo Aquino. Depois de um jantar, convidaram-me para estar presente num evento em Jaguarão, terra natal de Aldyr, que faz fronteira com o Uruguai. Tratava-se de um encontro de poetas de fronteira. Para além dos brasileiros do Rio Grande do Sul, iriam poetas do Uruguai e da Argentina, para falarem do que os unia e do que os separava. Os dias passaram, regressei à chácara onde vivia, a 50 km a sudeste de Porto Alegre. Um dia antes do evento, Alfredo passou a buscar-me, juntamente com o Pedro, e partimos na direcção de Jaguarão. A distância não chega a 400 km. Grande parte da paisagem é esmagadora pelo horizonte quase infinito, a lembrar os planos de Dovzhenko no seu filme Terra: à nossa frente, uma fina sapatilha de terra e um céu esmagador. A diferença da paisagem gaúcha para os planos do realizador soviético está na cor: ao invés do preto e branco é o azul e branco. Um azul celeste e branco que nos lembra de imediato as cores do equipamento – uniforme, dizem os brasileiros – da selecção uruguaia. Andamos quilómetros em recta, sempre em direcção ao céu. Percebemos com o corpo, que isolamento está em todo o lado. O mundo está cheio de isolamento. Chegados a Jaguarão, e depois de deixarmos as coisas no hotel, atravessámos a pequena ponte da cidade para jantar em Rio Branco, no Uruguai, onde Aldyr nos esperava sentado à mesa. Contente por nos ver ali, tão longe da cidade grande. No dia seguinte, Aldyr abriu o evento. Depois dos agradecimentos, do contentamento de ver na sua terra um evento que considerava muito importante e que se sentia também muito honrado por ser o seu patrono, começou a sua intervenção lendo o fragmento 21 de Novalis: “A filosofia é na verdade uma saudade da pátria, um impulso para se estar em toda a parte em casa.” Depois continuou: “A poesia é também uma saudade da pátria, mas não um impulso para se estar em toda a parte em casa. Não direi que a poesia inverte esta posição, mas ela é muito mais a iluminação do sentimento de se estar perdido onde quer que se esteja do que um impulso para se estar em toda a parte em casa. Para o poeta – aquele que habita temporariamente a poesia como o humano habita a Terra – todo o lugar é inóspito e nenhum esforço vai alterar isso, porque fora da linguagem estamos sempre fora de casa. O próprio poema é a expressão desse fora de casa permanente, dessa guerra que o poeta sente entre o mundo e a linguagem. A linguagem não conforta necessariamente, mas é o elemento do poeta, onde ele se sente o mais em casa que consegue, mesmo que nessa casa haja uma família inteira que não o compreenda. A própria linguagem não compreende o poema. A saudade da pátria, no poeta, é a falta que sente do que não há, que provavelmente nunca houve: um caminho de palavras até que tudo faça sentido. E esta saudade talvez seja a mesma de que fala Novalis. A diferença, parece-me, está em que o filósofo esforça-se por fazer sentido, por arranjar esse caminho perdido de palavras, enquanto o poeta sente – sem que o saiba dizer – que não há caminho. Contrariamente aos versos do poeta Antonio Machado: caminhante, não há caminho, desfaz-se caminho ao andar. O poeta escreve, não para saber ou para saber que não sabe, mas porque sente que o que sabe, muito ou pouco que seja, não o leva a lugar nenhum. O poema é um caminho desfeito em palavras. Um poema é umas férias que se acabam, uma vida que deixa de ser, um lembrar-se de não ter sido. No poema não há esforços ou impulsos, há feridas. O próprio poema poderia ser a voz surda do que não tem cura. E o romance, pelo menos eu quero acreditar que sim, é irmão do poema. O romance é um poema que ainda tem a ingenuidade de tentar explicar. Não quer fazer sentido! Isso não. É irmão do poema, sabe bem que a palavra desfaz-se em palavras e não conduz a nada, mas demora-se mais neste desfazer, como quem retarda um prazer.” Aldyr deve ter dito mais alguma coisa de que não me lembro. Depois do evento, passeando pelas ruas antigas de Jaguarão, confessou-nos – ao Aquino, ao Pedro e a mim – que as palavras não foram o início do mundo. O início do mundo deve ter sido um tremer de frio de que tudo vai acabar. E todos sabemos disso, menos o Novo Testamento. O que disse no evento não tem importância nenhuma, é uma tarefa como sair de manhã para ir trabalhar. O que tem mesmo importância é o tempo que passei comigo a ler e a pensar, até dizer ou escrever o que ali disse. E também o tempo que passo com a minha mulher, com os meus filhos, com alguns amigos e com os meus cães. O que é tem mesmo importância? A poesia? Isso seria de fazer rir um poeta. Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO enigma de Elgar [dropcap]A[/dropcap]ssinala-se hoje o 162º aniversário do nascimento do compositor britânico Sir Edward Elgar. Filho de um afinador de pianos e rodeado de música e instrumentos musicais na loja do pai na High Street, em Worcester, no Worcestshire, o jovem Edward William foi auto-didacta em música. Deixando a escola aos 15 anos, começou por trabalhar com um advogado local, mas após um ano enveredou por uma carreira musical, aprendendo piano e violino. Aos 22 anos tornou-se chefe de banda no Worcester and County Lunatic Asylum. Foi primeiro violino nas orquestras dos festivais de Worcester e Birmingham, e chegou a tocar a Sexta Sinfonia e o Stabat Mater de Antonin Dvořák, sob a direcção do próprio compositor. Aos 29 anos de idade, conheceu a sua futura mulher, Caroline Alice Roberts, filha de um oficial do exército britânico e poetisa e escritora, oito anos mais velha. Casaram-se três anos depois contra a vontade da família dela, e a prenda de Edward para Caroline foi a famosa peça para violino e piano Salut d’amour, op. 12. Após o seu casamento, os Elgars passaram a residir em Londres, centro da vida musical inglesa. Após algum tempo, constataram que não podiam subsistir apenas com o trabalho de compositor de Edward, pelo que ele retomou o ensino de música. Durante a década de 1890, a reputação de Elgar como compositor cresceu gradualmente, especialmente com obras vocais para os grandes festivais corais das Midlands. The Black Knight (1892), King Olaf (1896), The Light of Life (1896) e Caractacus (1898) constituíram êxitos modestos, mas valeram-lhe a publicação dos seus trabalhos pela famosa editora Novello & Co. por muito tempo. Vários críticos observam que, embora Elgar seja recordado como um compositor inglês característico, a sua música orquestral tem muitos pontos em comum com a tradição musical da Europa central, tipificada naquele tempo por Richard Strauss. O compositor sentia-se um forasteiro, não apenas numa perspectiva musical, mas socialmente. Nos círculos musicais dominados por académicos, era um compositor auto-didacta; num Reino Unido protestante, o seu catolicismo era visto com alguma desconfiança. No entanto, Elgar viria a compor o seu primeiro grande trabalho orquestral, as famosas Variações Enigma, apenas aos 42 anos de idade, em 1899. A obra intitula-se Variations on an Original Theme (Enigma) e é constituída por uma série de catorze variações musicais. É uma das composições mais conhecidas de Elgar, dedicada aos seus amigos nela retratados; cada variação constitui um retrato emotivo de algumas das suas relações sociais mais próximas. Conta-se que, num dia de 1898, depois de uma cansativa jornada de ensino, Elgar começou a improvisar ao piano. Uma das melodias que improvisou chamou a atenção de Caroline, que lhe pediu que a repetisse. Então, para entretê-la, Elgar começou a improvisar variações sobre essa melodia, cada uma imitando o estilo de algum amigo ou amiga íntimos. Algum tempo depois, Elgar expandiu essas variações, num total de catorze, e orquestrou-as, transformando-as nas Variações Enigma. A obra inicia-se com o tema, uma bela melodia confiada principalmente às cordas. A primeira variação, dedicada a Caroline, é um prolongamento delicado e romântico do tema. A segunda, com rápidos movimentos das cordas, revela as características brincalhonas do seu amigo Stuart-Powell. Na terceira, o oboé e o pizzicato das cordas ajudam a representar a buzina da bicicleta de Baxter Townshend. A quarta variação, dedicada a um proprietário de terras local, é forte e pomposa. Na quinta, a alternância entre triste e alegre representa as oscilações de humor do amigo Penrose Arnold, filho do poeta Matthew Arnold. Na sexta, a viola solo representa um papel especial, uma vez que é dedicada a Isabel Fitton, estudante de viola. A sétima, dedicada ao arquitecto Troyte Griffith, é extremamente enérgica. A leveza da oitava variação remete aos momentos prazerosos que Elgar passou na bela casa de Winifred Norbury. A nona, “Nimrod”, a mais profunda de todas, é dedicada ao amigo August Jäger, que lhe deu apoio nos momentos difíceis (Nimrod é um personagem bíblico, descrito como um poderoso caçador; Jäger significa “caçador” em alemão). A décima variação, extremamente delicada, homenageia a amiga e biógrafa Dora Penny. A décima primeira, uma das mais animadas, é dedicada ao amigo e organista Robertson Sinclair. Na décima segunda, dedicada ao violoncelista Basil Nevinson, os violoncelos dominam a cena. A décima terceira, dedicada à amiga Lady Mary Lygon, guarda lembranças da primeira variação, principalmente na doçura do carácter. A décima quarta variação, dedicada ao próprio compositor, fecha o ciclo majestosamente. As Variações Enigma foram apresentadas em Londres, no St. James’s Hall, no dia 19 de Junho de 1899, sob a direcção do maestro austríaco Hans Richter. Recebendo aplauso geral, iriam fazer com que Elgar se tornasse o compositor britânico mais conhecido da época. Elgar reviu a obra pouco tempo depois, estendendo o final a fim de criar uma forma mais simétrica. A nova peça recebeu o título de “Variações Enigma” graças a uma carta do compositor, logo após a estreia, dizendo que havia um segundo tema, misterioso, que perpassava todas as variações, não perceptível a ninguém. “O enigma”, disse Elgar, “eu não explicarei”. Esse tema, escondido nas profundezas do tecido musical, deu início a inúmeras especulações. Até hoje, o enigma não foi solucionado! Sugestão de audição da obra: Edward Elgar: Variations on an Original Theme (Enigma), Op. 36 Hallé Orchestra, Sir Mark Elder – Hallé, 2002 Hoje Macau Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá Por Fernando Sobral [dropcap]A[/dropcap] porta não tinha número. Só uma luz fosca, que vinha do interior de uma lanterna vermelha que se agitava ao sabor da brisa nocturna, deixava entender que ali havia uma casa comercial. Daqueles muito comuns na Rua da Felicidade, onde os donos nem vendiam nem compravam produtos. Eram fachadas para o jogo e para o consumo de ópio que se fazia no interior, algo que não inquietava ninguém, nem mesmo as autoridades policiais. Cada um vivia no seu mundo, como sempre acontecia em Macau. Cada casa daquelas escondia segredos muito próprios, tal como as pessoas que ali entravam. Quando Du Yuesheng entrou naquele local anónimo pediu aos seus guarda-costas para ficarem à porta. Nada o espantava, nem o fumo intoxicante, nem as luzes difusas, nem as prostitutas de olhar cansado que circulavam no interior em busca de clientes, nem os homens que, concentrados no jogo do fan-tan, não olhavam para quem entrava. Sabia que, mais escondidos, estavam os salões de ópio e os divãs onde alguns homens procuravam um pouco de amor e sexo. Até ali havia alguma discrição. Era um local para os mais pobres e marinheiros que não conseguiam entrar nos melhores bordéis e casas de jogo da rua de todas as perdições. Du caminhou calmamente em busca do seu objectivo. Tossiu, ao sentit o cheiro misturado do tabaco e do ópio de pouca qualidade. Num canto, com pouca luz, viu-o. Estava sozinho, com cartas na mão. Olhava para as que estavam sobre a mesa e para as que tinha entre os dedos. Jogava poker consigo próprio. Tinha um espelho na mesa, para onde olhava fixamente de vez em quando. Estudava a postura da sua cara, treinando uma das componentes principais do poker, o bluff. Algo que muitos diziam que era errado e imoral. Mas, que, de facto, era admirado como forma de sucesso. Luc LeFranc estava assim, concentrado ou, pelo menos, abstraído de tudo o que o cercava. Du aproximou-se e ficou perto dele. Depois sentou-se à sua frente. Nem assim Luc desviou os olhos das cartas. O seu ar era um pouco oriental, o que era natural num filho de uma chinesa e de um francês. Conhecedor da língua chinesa, e também do francês, singrara rapidamente na polícia do quarteirão francês de Xangai. Fora lá que se tinham conhecido. Luc era conhecido pela sua razoável honestidade, algo que também era importante num mundo onde todos pareciam ser corruptos ou desejosos de o ser. Du devia-lhe algo. Era uma época sangrenta, sem muitas regras. Nessa altura o chefe dos serviços secretos de Chiang Kai-shek, Dai Li, matava todos os suspeitos de serem comunistas em Xangai. E estes retaliavam como podiam. Du alinhava com Dai Li, e o seu Bando Verde era conhecido pela sua ferocidade. Quando tentaram raptar uma das amantes de Du, na Rue Lafayette, Luc vira e anotara a matrícula do carro que a levava. Fizera com que ela chegasse a Du. E este enviara os seus fiéis em busca dos raptores, que tinham sido mortos com uma violência inimaginável. Du agradecera-lhe, mas talvez cansado de tudo o que acontecia por esses dias, Luc LeFranc fugira de Xangai e refugiara-se em Macau. Ou talvez tivesse seguido uma mulher. Nunca se soube. Du, que não esquecia certos gestos, protegera-o discretamente de todos os que tinham contas a ajustar com LeFranc. Escondera o facto de ele viver em Macau e ganhar a vida a jogar. Mas sabia o que ele fazia. E viera ter com ele. Porque Luc LeFranc tinha olhos e ouvidos em todo o lado. Quem quisesse ganhar a guerra da informação em Macau tinha de contar com ele. Ao fim de algum tempo, Luc levantou os olhos das cartas, sorriu, e disse: – O que o traz a Macau, senhor Yuesheng? – Podes tratar-me por Du. Sempre o fizeste em Xangai. Fez uma pausa antes de prosseguir: – Não sabes porque estou aqui? O olhar de Luc enfrentou o de Du. Continuava igual, irónico e mordaz, tal como o gangster o tinha conhecido em Xangai. – Eu sei que és perseguido, mas não é isso que te traz aqui. Não estás com medo. Que queres saber, Du? – Como está a correr a tua vida pacata. – Só isso? É pouco. Não te incomodarias em vir até este sítio sebento só para saberes isso. – É verdade. Não vale a pena mentir-te. Jin Shixin. Lembras-te dela, de Xangai? Como se tem comportado ela? – Não é isso que queres saber. Queres saber quem ó o português, não é? Du olhou à volta, para aquele ambiente escuro e encardido. Um dos que não era frequentado por ocidentais. Ali dentro só estavam chineses e Luc. Mesmo assim não era completamente seguro. Poderia haver comunistas ou agentes japoneses. Mas estava mais tranquilo. Lera no “South China Morning Post” uma notícia sobre ele que o deixara confiante. Dizia que tinha sido avistado em Hong Kong. Era bom que os seus inimigos e os japoneses acreditassem. Assim estava mais seguro em Macau. Voltou a olhar à volta, por precaução. Todos estavam com atenção ao jogo e não a eles. Luc deu uma gargalhada. – Não te preocupes, Du. Todos eles estão aqui pelo fan-tan e pelas mulheres. Ninguém sabe quem tu és. Du Yuesheng olhou para as cartas que estavam em cima da mesa. – Continuas a jogar, Luc? – Todos temos as nossas maneiras de ganhar a vida. Eu tenho o jogo. Chega-me para viver feliz. O Du tinha poder. Mas, já viu, o que é o poder? Os olhos de Luc pareciam imersos numa abstracção sombria, olhavam para as cartas num jogo solitário. Vinha para ali abstrair-se antes de sair para ir jogar, e ganhar, nos hotéis e salas de jogo frequentados por ocidentais. – Já não tenho tempo para sentimentos, Du. Tenho relações comerciais. Luc falava pouco. Sabia o perigo que era, nesses dias, dizer o que se pensava ou se sabia. Agora todos se abstinham de confidências junto das pessoas que tinham conhecido pouco antes, pois num bar de hotel todos poderiam estar a soldo de alguém ou de um serviço secreto. Macau já estava cheio deles. Todos desconfiavam de todos. Du percebeu: – Aqui até a lealdade tem um preço, não é verdade, Luc? – Sim, é isso. Por isso é que este lugar é seguro. Aqui só vêm os que pouco têm. Por isso neste local imundo ouve-se o que mais ninguém escuta. Que desejas afinal? – Informações. Saber o que todos fazem em Macau. – É possível. E em troca? – Tenho uma informação que te interessa. – Não sabes nada que me interesse, Du. Tudo o que sabes, eu sei. Tal como acontecia em Xangai, mas ao contrário. Aí tu é que sabias tudo. Mas serás informado. Sobre os japoneses. Sobre os negócios. Du sorriu. Luc aprendera o valor da informação. Perguntou-lhe: – Não tens medo de perder todo o teu dinheiro ao jogo? – Não, Du. Nunca perderei ao jogo porque não tenho nada a perder. José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasZhuge Liang, o Dragão Adormecido [dropcap]C[/dropcap]omo grande estratega militar, só comparável com Sun Zi do século V a.n.E., Zhuge Liang (181-234) tinha o nome literário Kongming e era conhecido pela alcunha do Dragão Adormecido. Potência à espera de ser acordada pois, pouco antes da sua existência se criara da Filosofia do Dao o Daoísmo religioso como contrabalanço às religiões estrangeiras que chegavam à China. Em 207, o próprio Liu Bei, descendente da família imperial dos Han, veio a casa de Zhuge Liang pedir para, como homem de Estado e criativo inventor, se tornar o seu conselheiro militar e organizar o exército do que viria a ser o Reino Shu Han, no Período dos Três Reinos (220-280). Nos finais do século II, a dinastia Han (206 a.n.E.-220) tinha governantes fracos e corruptos, havendo contínuas lutas dentro da corte, sendo a população oprimida e explorada. Em 184, trezentos mil camponeses em muitas partes do país levantarem-se contra o Governo, no que ficou conhecida pela Revolta dos Turbantes Amarelos. Três anos antes, no ano 181 nascera Zhuge Liang em Yangdu de Langya, hoje vila de Yinan, pertencente ao distrito de Linyi situado na parte Sul da província de Shandong. A sua mãe morreu quando tinha três anos (184) e devido à morte de seu pai, Zhuge Gui, que fora magistrado no distrito de Taishan, ainda criança, com oito anos (189) ficou à guarda do tio, Zhuge Xuan. O general Yuan Shu, um senhor da guerra que mais tarde em 197 se auto proclamou imperador da curtíssima dinastia Zhong, enviou Zhuge Xuan para tomar conta de YüZhang, pequena localidade a Norte da actual província de Jiangxi, próximo de Nanchang. Como a nomeação não teve a aprovação dos oficiais Han, Zhuge Xuan foi ter com o seu amigo Liu Biao, o perfeito (governador) da província de Jing (Jingzhou em Hubei), que no ano 190 mudara a capital de Hanshou para Xiangyang. Assim em Xianyang ficou a viver, acompanhado pelo sobrinho Zhuge Liang, tendo este estudado durante três anos numa escola, talvez na Academia fundada por Liu Biao pelo ano de 196. Ao mesmo tempo, Liang escolheu Pang Degong para ser seu mestre. Zhuge Xuan morreu em 197 e após a morte do tio, Zhuge Liang com dezassete anos foi viver para a aldeia Longzhong, actualmente próximo de Xiangyang, província de Hubei, onde se dedicou à agricultura. O seu tempo livre passava a ler, assim como gostava de conversar com os mestres Pang Degong e Xü Shu, pessoas mais velhas ensinando-lhe coisas da vida e com quem trocava ideias sobre as convulsões que ocorriam pelo país. Zhuge Liang passou mais ao menos dez anos em Longzhong, onde fez muitos amigos entre os locais, mantendo relações de amizade com intelectuais como Sima Hui e Huang Chengyan. Certa vez, Huang Chengyan sabendo Zhuge Liang andar à procura de esposa para se casar, propôs-lhe a filha. Avisou-o ser ela feiosa, apesar de dotada de muitos talentos, que bem se complementaria com os atributos dele. Concordando, casou-se com Huang YueYing, apesar de no registo histórico local Xiangyang Ji, onde vem narrado tal episódio, o nome da esposa nunca ter sido mencionado. Pérola da imortalidade É preciso lembrar pouco se saber sobre Zhuge Liang, figura para além de histórica tem a complementá-la várias lendárias e mitológicas narrações a envolvê-lo num ser misterioso e de grande poder. Se a maior parte da sua vida apenas vem narrada no Romance dos Três Reinos (San Guo Yanyi 三国演义) escrito por Luo Guanzhong (1330-1400), há outras histórias que nem aí foram contadas e uma delas, a mais estranha de todas, refere-se a como Zhuge Liang se torna um Imortal. Registada após via oral ter passada de geração em geração e só escrita muito tempo depois nas Histórias de Longzhong. Nessa mitológica lenda sobre a sua juventude explica-se a razão de Zhuge Liang se apresentar sempre com um leque de penas na mão e uma túnica de mestre daoista. Ainda criança, durante o dia trabalha numa loja de chá e à noite estuda em casa. Certo dia, à loja, cheia de gente a beber, chega um idoso daoista e sentando-se, logo começa a falar sobre assuntos deveras muito interessantes, colocando as pessoas a escutar com atenção. Vem desde então diariamente à casa de chá, sentando-se de manhã até à hora do fecho, aparecendo cada vez mais gente para o escutar e com ele falar. Parece saber de tudo, desde o passado histórico até aos dias que correm, de astronomia à geografia, de política aos assuntos militares. Como empregado Zhuge Liang muito aprecia aquelas sessões e cada vez mais a admiração cresce perante aquela prodigiosa figura, mas, devido à sua juventude e posição, não lhe é permitido questionar a distinta personagem. Assim aumenta a curiosidade sobre aquele estranho ser. Certa vez Zhuge Liang encontra a oportunidade de saber onde ele habita pois, usando inteligente solução, enquanto o ancião entusiasmado fala, consegue apoderar-se da bengala de bambu que sempre o acompanhava. Pegando no bastão, faz um buraco na última sessão e aí coloca uns pós de incenso. Bengala no lugar, sem que o orador desse por nada. Após este sair da casa de chá, Zhuge Liang, para não ser apanhado a segui-lo, espera, pois, apenas tem de perseguir o rasto desse pó deixado pelo caminho e assim pôde chegar ao local onde o idoso estará. A marca do pó desaparece em frente a um pequeno pinhal, sem haver casa alguma. Estranho! De repente o som do ressonar e olhando de onde vem, repara num ninho colocado no alto de uma dessas árvores, onde dorme um grande crane. Devagar aproxima-se para melhor analisar o ninho e já por baixo, continuando a olhar para cima, de repente do bico cai uma gota de saliva em forma de pérola na boca de Zhuge Liang, que a engole. De repente o crane acorda e com a pérola desaparecida, cai do ninho e ao chegar ao chão, logo se transforma no nosso conhecido ancião. Este desabafando refere trabalhar na pérola há milhares de anos e ter ela o poder de saber fazer muitas coisas. Transmitida quando ele a engoliu, agora podia deixar a vida. Ao ouvir tal, Zhuge Liang assustado e pesaroso pelo que provocara, logo escuta do ancião, ter acontecido porque tinha que ser (yuanfan). Então relatou-lhe ter ali vivido milhares de anos, sem ninguém o ter encontrado. – Hoje tu viste-me, por isso és uma pessoa especial. Assim, após eu passar desta vida e transformado em crane, tu retiras sete penas de cada uma das minhas asas para fazeres um leque e ofereço-te as minhas roupas de mestre do Dao que te protegerão. Quando tiveres algum problema, abanas o leque e a pérola dentro do teu corpo dar-te-á a solução. Terminada a conversa o idoso finou e transformou-se de novo num crane a jazer no chão. Assim, estes dois adereços, roupa e leque, passaram a acompanhar Zhuge Liang durante toda a vida. Ana Maria Amaro refere sobre “a pérola que todos os dragões transportam e que não podem perder, para manterem a imortalidade, pérola que é formada pela sua própria saliva e tem a propriedade de satisfazer todos os desejos se for apanhada por algum feliz mortal”. António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt I [dropcap]O[/dropcap] ser humano para a medicina antiga não era o corpo humano desligado anatomicamente do meio ambiente, do milieu físico, da Umwelt. Não é o interior somático delimitado pelas fronteiras físicas do corpo humano. Podemos conceber o corpo humano como a configuração mecânica com que nos surge. É como o aspecto físico que um profiler esboça a partir da descrição que alguém faz de um suspeito. Nesse sentido, as características: sexo, idade, etnia, compleição física, tamanho, envergadura, peso, altura, aspecto do rosto, etc., etc., são determinações que apontam para uma morfologia mais ou menos complexa, mas exterior do ser humano. A percepção do corpo humano é igual à percepção de qualquer corpo. Capta só superfícies, isto é, o lado visível do objecto dentro da nossa perspectiva. Não vemos nada do que está tapado. Para lá da epiderme não vemos nada. Nenhum horizonte interno é captado à vista desarmada. Assim, compramos roupa, ocupamos espaços públicos e privados, temos lugar ou não em transportes públicos, restaurantes, espectáculos, etc., etc.. É inegável que cabemos ou não cabemos com outras pessoas em aviões e que sentimos mais ou menos as dimensões simpáticas e acolhedoras do tamanho de apartamentos, roupa, camas, cadeiras, etc., etc.. Isto é, nós somos o tamanho do corpo que temos. Temos também uma percepção do que se passa no nosso interior. Sentimo-nos mais ou menos enfartados, pesados, leves, com o comemos, se muito, se pouco. Sabemos da nossa altura, se somos mais ou menos altos. Somos, portanto, o que achamos ser a configuração mecânica do corpo. O nosso corpo está continuamente sob acção de um radar interior. O corpo não se reduz nunca apenas a músculos, tendões, articulações, ossos, carne, órgãos e aparelhos. Há sempre um sobredeterminação funcional a dar sentido ao conteúdo estritamente percepionado. Sabemos como puxar e empurrar, agarrar e soltar, porque há uma acção do corpo todo, com uma maior solicitação de uns músculos do que de outros. A própria pele — que cobre toda a extensão do nosso corpo — sente-se diferente ao vento, ao frio e ao calor, dentro e fora de água. Sentimos também o bater do coração, o fluxo sanguíneo, a falta de ar, dores musculares e de cabeça, tudo no nosso interior por assim dizer. Não damos conta dos músculos solicitados habitualmente. Há actividades físicas que, às vezes, solicitam músculos que nem sabíamos que tínhamos. O texto sobre o ar, as águas e os lugares esboça uma concepção do corpo humano a existir para lá do interior das suas fronteiras físicas. O ser humano é mais do que um volume tridimensional. É mais do que um vulto com um determinado aspecto. Por um lado, cada pessoa é igual a si própria e diferente de qualquer outra. Cada um é como cada qual. Para a medicina, cada caso é um caso. Por outro lado, podemos apurar características semelhantes e diferentes entre indivíduos: rostos, compleições físicas. Um asiático é diferente de um europeu. Mas há asiáticos e europeus parecidos e diferentes entre si. José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasUma noite como as outras [dropcap]N[/dropcap]o reverso do estafado aforismo “uma imagem vale 1000 palavras” pode entender-se que uma imagem será capaz de inspirar e desencadear 1000 palavras. Atente-se no instantâneo anexo. É cativante como captura os presentes no seu normal, ou seja, na atitude que deles se popularizou. Ella Fitzgerald, à esquerda, provavelmente a pessoa mais bem-educado do mundo, era de uma timidez compulsiva e tinha pavor a entrevistas com medo de cometer gaffe ou simplismo. Só se sentia livre e no seu elemento debaixo dos holofotes e diante de um microfone – ei-la aqui muito compostinha. Segue-se Georgiana Henry, sua prima e dama de companhia, solicitamente virada para ela embora atenta às circunstâncias. Depois está o saxofonista Illinois Jacquet, menos conhecido conquanto fosse uma personalidade nas entrelinhas do jazz, não apenas pelo seu talento musical como pelo seu activismo, a mostrar um módico de compostura e atenção. Por fim o extrovertido e jocoso Dizzy Gillespie exibe uns à-vontades de perna traçada e uma expressão que, vendo bem, dá uns ares de insolente. Repare-se no vestido de tafetá e na estola de raposa de Fitzgerald, atavio que a indumentária dos companheiros não contraria. Presume-se, então, que vêm do palco ou estarão prestes a subir a ele. Não é hiperbólico afirmar que por esta altura a celebridade de Dizzy e Ella seria planetária. Pelo menos nas capitais europeias a intelligentzia autóctone idolatrava-os como grandes artistas, apesar de ser restrita a sua aceitação pelos públicos domésticos. De qualquer modo em 1955 as autoridades civis de Houston, onde agora os vemos, ainda os tinham na conta de uns pretos saídos da casca e armados em vedetas. Observando melhor o cenário, o banco corrido, o chão de pedra fria, a parede crua e, sobretudo, as grades nas janelas, depressa se percebe que o grupo não assenta em camarim ou bastidores – está no calabouço de uma esquadra. O produtor Norman Granz chegara a Houston com esta troupe em mais uma digressão do seu afamado e esplêndido Jazz at the Philharmonic. Cidade rica, os magnatas que nela punham e dispunham tinham bem atada e subserviente a polícia, famigerada pelo seu intrépido segregacionismo. Granz fazia ponto de honra que nos seus concertos não houvesse discriminação racial, quer em palco, quer na plateia. De modo que exigiu não se venderem bilhetes senão no dia do concerto, assim evitando compras em bloco, e mandou retirar as tabuletas que designavam os sectores da sala de “white” e “negro.” A vingança não se fez esperar. Ia terminando a actuação de Gene Krupa quando uns chapas à paisana irromperam de revólver em punho no camarim de Ella, sossegada a comer uma fatia de tarte enquanto Jacquet e Gillespie entretinham a espera jogando aos dados. Granz correu a interpor-se entre os agentes e a casa de banho, não fossem eles plantar alguma droga para dar mais substância à rusga, no que viu o cano de uma arma ser-lhe encostado à barriga. “Dispara se és capaz” rosnou – mas o chui não foi. Isto vai tudo de cana por jogo ilegal, bradou o chefe da brigada, ao que Granz lhe retorquiu que subisse ele ao proscénio para anunciar aos 3.000 pagantes que o concerto estava cancelado. Com receio de um motim – de espectadores maioritariamente brancos… – os polícias resolveram que os flagrados iriam à esquadra para lhes ser levantado auto mas regressariam a tempo da segunda parte. À chegada esperavam-nos uma bateria de repórteres evidenciando a premeditação da emboscada. Um deles teve o despautério de pedir um autógrafo a Ella Fitzgerald que choramingava – na foto fica agora evidente a sua tensão. Gillespie porém, insurrecto como sempre, ao ser-lhe pedida identificação declarou chamar-se Louis Armstrong. O Houston Post publicou a reportagem no dia seguinte. À fotografia juntou com toque de ignóbil condescendência o comentário: “a senhora mais bem vestida que alguma vez apareceu numa esquadra de Houston.” Norman Granz teve de esportular $2000 para que o processo se arquivasse, mas o despautério acabou por sair barato. A ocorrência deu escândalo nacional e nunca mais em Houston se realizaram concertos segregados. «1...42434445464748...108»
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTraduzir Deus para chinês [dropcap]O[/dropcap]s jesuítas chegaram à China durante a Dinastia Ming e se o padre Francisco Xavier morreu à espera de aí conseguir entrar, ainda Macau não existia como povoação portuguesa, já Matteo Ricci trinta anos depois, pela diplomacia dos relógios e da nova ciência, abria as portas do Celeste Império ao catolicismo. Matteo Ricci nascera em 1552, ano da morte de Francisco Xavier, chegando em 1583 a Macau, na altura a fazer-se cidade e no ano seguinte instalou-se em Zhaoqing, local onde vivia o Vice-rei de Guangdong-Guangxi. O Governador Chen Wenfeng autorizou-o a construir uma igreja e residência junto da torre de Chongning, a Leste de Zhaoqing, primeira igreja de estilo europeu tendo o perfeito Wan Pan oferecido uma tábua horizontal com a inscrição ‘Templo das Flores Santas’, segundo refere Huang Qichen, que acrescenta, nessa missão de Siu-Heng, estabelecida pelos padres Matteo Ricci e Miguel Ruggieri, “em 21 de Novembro de 1584 foi efectuado o primeiro baptismo solene de dois conversos chineses”, e cinco anos mais tarde, em 1589, “décimo sétimo ano do reinado de Wanli, o Governador Li Jiwen quis ficar com a residência de Ricci e este pediu em troca licença para construir nova residência e assim conseguiu um terreno em Shaozhou (Shaoguan) junto ao Rio Beijing” onde em 1590 ergueu igreja e residência. Sob a jurisdição do bispo de Macau, a missão da China foi fundada pelo jesuíta Matteo Ricci ao pregar a fé em muitas províncias. Numa superficial primeira abordagem aos ritos chineses convenceu-se serem supersticiosas as cerimónias confucianas. Daí o estudo para a interpretação das palavras Deus e Céu e tradução pelos conceitos filosóficos e teológicos no idioma chinês a fim de expressarem o conceito católico. Segundo Benjamim Videira Pires, Ricci “escolheu para o vocábulo as expressões Seong-tai (上帝, Governador no Alto) e T’ien-chü (天主, Senhor do Céu); para T’ien-san (天神, Espírito do Céu) e para Leng-wan (灵魂, Espírito que vivifica ou dá vida). Estes termos estavam aprovados desde 1600 pelo Visitador Valignano após uma consulta dos jesuítas em Macau. Longobardo, na China desde 1597, opusera-se a estes vocábulos, levantando dúvidas. Seria o Seong-tai dos chineses um Deus pessoal, uma simples força, ou um antepassado antropomorfizado? Era T’ien o firmamento material ou Deus, Senhor do Céu e da Terra?” Ideia de Céu Segundo Benjamim Videira Pires, “T’IEN (天) designa, antes de mais nada, o céu ou firmamento material” e “originariamente a pintura estilizada ou jeroglífica da (大因) do firmamento, tendo o semicírculo sido encurtado com o tempo e reduzido a uma linha recta horizontal, sobreposta ao carácter 大, grande, dando 天” – Tian em mandarim. Carácter chinês explicado por E. T. C. Werner, no livro China of the Chinese. “No próprio carácter ou ideograma, que no-lo representa em chinês, está incluída a ideia escalonada duma Super-grandeza que domina o homem (人大天), mas com a qual ele está em ligação”, segundo Videira Pires, que segue, “T’IEN (天) representa uma ”, Puros Três do “ ou do .” “Durante as festividades do Ano Novo Chinês e num dia de bodas, o Céu e a Terra são adorados. O nono dia da primeira lua (no calendário chinês) é o nascimento do Céu e o décimo dia o nascimento da Terra. (…) Reservava-se, todavia, ao Imperador, intitulado , a adoração oficial do Céu feita no …” “As duas ideias mais altas, gravadas no espírito dos chineses, soa a deveres de honrar pai e mãe e de adorar o Céu e a Terra, os grandes Pai e Mãe do Universo”, assim escreveu o jesuíta Benjamim Videira Pires. Matteo Ricci gastou anos em permanente estudo sobre os costumes, a língua, o sistema confucionista, até conseguir permissão para ir a Beijing. Aí, em 1598 na Cidade Imperial cativou os sábios e o Imperador Wanli (1573-1620) com as novas teorias da Renascença, sobretudo na área das Matemáticas e Astronomia. Em 1601 voltou à capital onde se estabeleceu e ficou até à morte, a 11 de Maio de 1610. O Imperador deu a concessão do Templo da Bondade aos padres da Missão portuguesa de Beijing e concedeu o Cemitério de Chala para a sepultura de Ricci e para os padres da corte, na altura jesuítas que traduziam para chinês o sistema do calendário gregoriano usado no Ocidente e iniciavam a revisão do calendário então em vigor na China. Fonetizar o vocábulo Deus Para suceder a Matteo Ricci como Superior da Missão da China chegou a Beijing em 1611 o Padre Longobardo, que tinha discordado do vocábulo DEUS encontrado por Ricci como termo adequado em chinês. Quando Longobardo tomou o cargo, requereu ao Visitador Francisco Pasio para reexaminar a questão, mas os intelectuais católicos chineses declararam-se a favor de Ricci e o Visitador Pasio deixou o assunto em aberto. “Assim passou a haver duas facções dentro dos jesuítas que durante anos foram expondo os seus argumentos em prolongadas reuniões de muitas horas e dias com acaloradas discussões.” Por fim decidiram: 1.º que se devia estar pelo costume do mesmo Padre Ricci acerca da doutrina dos letrados da China. 2.º que os Chineses antigamente conheceram a Deos vivo, e verdadeiro, e o significaram pelas vozes Tien e Xonti. 3.º que o mesmo Deos se chamava vulgarmente Tienchú, que quer dizer Senhor do Ceo, e desde então até agora por este nome é conhecido, e chamado comummente na China o Deos dos Christãos. 4.º que a veneração e o culto que os chineses costumam dar a Confúcio, seu grande Mestre, significado pela voz, e letra Ci não era supersticioso, mas só político, e se podia permitir aos chineses cristãos. 5.º que da mesma sorte se permitisse o culto, que os chineses costumam dar aos seus progenitores defuntos. 6.º que se lhes permitisse também suas tabelas ou tabicas, em que costumam escrever os nomes dos seus progenitores defuntos, para sua memória, e veneração política». (Memoria)”, Joaquim Calado Crespo em Cousas da China. Em 1621, nessa consulta em Macau, a maioria dos missionários inclinou-se para a escolha de Ricci, mas Longobardo não se conformou e passados dois anos escreveu um tratado a defender o seu ponto de vista e em 1624 fez uma análise crítica de T’ien-chü. Rejeitava os termos T’ien-chü e Seong-tai, advogando a fonetização do vocábulo latino Deus. Joaquim Calado Crespo refere, “A dificuldade principal versava sobre a palavra Tien, que uns tomavam por «céu material», e outros por «senhor do céu», equivalente a Tienchu; e sobre a palavra Ci, que uns tinham por verdadeiro sacrifício oferecido a Confúcio e aos progenitores, e outros por mera comemoração honrosa.” Os Ritos que Confúcio transmitiu à sociedade chinesa com base nos princípios da Ordem e Harmonia foram estudados e discutidos pelos jesuítas, que após 50 anos na China estavam em desacordo quanto à terminologia do nome de Deus, mas todos de acordo, incluindo Longobardo, quanto à Questão dos Ritos.
admin h | Artes, Letras e IdeiasTarde demais [dropcap]D[/dropcap]urante meses percorremos a costa para averiguar o estado do litoral. O nível de erosão geológica, o avanço urbano, a contaminação marítima e, sobretudo, os resíduos sedimentados junto à linha dos mares. Captámos imagens e vídeos com meios tecnológicos avançados, drones e lentes de precisão. Mapeámos o terreno, tornando-o tridimensional aos olhos dos mais leigos. Reputámos o canto dos pássaros. Fizemos gráficos, desenvolvemos um estudo ambiental e, por fim, tirámos conclusões e apresentámos medidas a tomar pelas entidades competentes. Em suma, fizemos o nosso trabalho, sem apoios estatais, sem subsídios públicos. Fizemo-lo porque tinha de ser feito, porque o país precisa destes relatórios. Não nos interessa se é caro ou barato, não é razão que nos impeça de prosseguir. Somos uma equipa pequena, com equipamento próprio e muita formação na bagagem. Se há alguém com recursos na matéria, porque não avançar e apresentar resultados? O planeta agradece. Com o material na mão, fizemos cópias e enviámos para os ministérios, autarquias e instituições. Encaminhámo-lo igualmente para as associações ambientais e para o fluxo de empresas que de algum modo poderiam melhorar práticas e daí tirar mais proveitos. Não esquecemos os que a todo o momento agridem o meio-ambiente e que não são advertidos e colocados de sobreaviso. Apesar das chaminés e descargas para os leitos cândidos dos rios, nada os distingue no papel. Não há penalizações para os transgressores porque a linha de transgressão ainda está por definir. Também eles receberam um postal no correio. O Estado agradeceu-nos o esforço e louvou o nosso trabalho, agendando para mais tarde um encontro para aprofundarmos a matéria e colocar planos em cima da mesa, encaminhando-os para uma linha definida de execução. Há muito para fazer, insistimos. Já vamos tarde. Não interrompemos o trabalho de observação. Aproveitando esta linha primária de comunicação, elaborámos um sucessivo fluxo de notícias frescas e pertinentes sobre a realidade, acrescentando factos para o contexto da situação. Sugerimos leituras, o convite dos maiores talentos na matéria, ciclos documentais para a consciência da população. Orgia iniciática necessária para o volte de face. Do outro lado, o fio contínuo mudo em ecrã escuro de inactividade, como se o coração colectivo tivesse deixado de bater. Outros valores, de pé mais comprido, se intrometiam. Reportando ao paradigma das praias, sobre o qual se debruçou grande extensão da nossa análise. Na sua maioria, a olho nu, encontravam-se limpas. Não há como evitar os detritos que se acumulam no alto-mar, a origem é global, e com teimosia acabam por se albergar na nossa costa. Há escarpas nas zonas não classificadas com os estandartes de qualidade que requerem uma acção prolongada e, acima de tudo, persistem as descargas feitas nos fluxos aquíferos que quebram a harmonia ecológica. Os nossos dejectos diários. Por outro lado, o nível da água subiu vários metros e as marés vivas aproximaram-se da borda das povoações, engalfinhando estradas, parques de estacionamento e pequenos edifícios construídos ao largo da costa, ora para domicílio ilícito ou como baiucas veraneantes para refresco dos turistas. No passado, ignorou-se o cerne da questão, diluindo apenas o imediato. Construíram-se muralhas rochosas para apaziguar o poderio infinito do mar, procederam-se a demolições, transplantaram-se areias delapidadas de outros corpos celestes. Dragaram-se goelas de rios. A curto prazo, dissolveu-se o prurido e as bolas de Berlim voltaram a ser o apetite mais premente. Mas a raiz continuava a avariar. Os primeiros estudos foram efectuados há vários anos. Na enxovia do poder, várias caras foram atravessando os currais das assembleias, sorrisinhos para aqui e para ali, promessas eleitorais. Mas em uníssono, apesar das palmadinhas nas costas e missivas floreadas, nenhum deles puxou a corda. O parlamento discutiu, sim, aprenderam a matéria dada, mas não reunimos com ninguém à altura da mudança, nem sequer com o motorista, para nos ceder passagem. Apesar disso, de olhos bem abertos, continuámos a efectuar o nosso trabalho. Desistir não faz parte da ementa. Até que outros veículos se movimentaram, não temendo a corrente do acelerador. Aparelhos desobstruídos. Trindade caída. Aconteceu de modo natural e intrínseco. Não era propositado o facto de irmos todos juntos, mulheres e homens, de várias origens e lonjuras. Os sinos das igrejas não tocaram, ninguém tocou a rebate. Foi-se confluindo para caminhos análogos, que se uniram num só. Não havia tempo a perder. A luz já tinha despertado em alguns, mas ainda não existia a coragem de nos pormos à estrada. Mas quando aconteceu, foi repentino para a maioria, sobretudo quando a palavra começou a circular de boca em boca. Vamos? Aí soubemos que tinha chegado o tempo certo, de nos manifestarmos, de lutarmos pela importância das coisas. Já não iria existir uma inversão de marcha. Não ia ser como sempre foi. De ouvirmos calados. De deixar a carruagem passar, ao sabor de um nó de gravata ou de um par de óculos de garrafa. O senhor director está ocupado. Sim, erámos pacíficos e tal, mas contra o nosso número, uma união coesa de vontade e revolta, nenhum outro poder teria força para nos impedir. Nem o império do mar. Aconteceu na avalanche, que desce a montanha e faz rebolar o pequeno floco de neve que bate forte dentro do peito, transformando-se a cada rotação em ser distinto, elevando-se e multiplicando-se, para uns metros mais à frente existir num colosso imparável. Irreparável. Como se poderia ignorar tal temor a pulular-nos nas veias? De que valiam os estudos nesta altura, a ignorância, o saber? O nível das águas, a febre a dilatar-se, o granizo fora de época. Os drones e as lentes de precisão. De que servia determinada tecnologia naquela confluência de elementos? Sua excelência o ministro, pedia-lhe encarecidamente, deixo-lhe os meus melhores cumprimentos. A empresa tal desvia os seus esgotos para a ribeira xis. As emissões de carbono atingiram níveis indesejáveis. Alertamos para o perigo imediato. Quadro negro. Pelo resultado atingido, as gavetas dos gabinetes aquartelavam dezenas de estudos como os nossos. O exame não era corrigido. As pautas não eram lançadas. A inclinação tombou. Os pássaros deixaram de cantar. Enquanto o monitor cardíaco se enleava, a direcção passou a um só sentido. A idade ou estatuto não contavam. Deixámos de olhar para as criancinhas como peças soltas com futuro inserto num caldeirão, a chupar refrescos em baiucas de veraneantes. A travessa, a rua, a avenida. Uma injecção. Alunos, professores e pessoal de limpeza. A fauna era variada e pungente. Entre nós, até existiam alguns elementos da autoridade, forças armadas, militares insatisfeitos, polícias desregulados, que tinham deixado o armamento em casa, mas que vinham preparados para tudo. Finalmente, tinha chegado o dia de pôr cobro ao grande circo que rolava sem travões há tempos infindos. Como o mar. A muralha rochosa erguia-se em penedo da antiguidade, no leito cândido dos rios. A História iria ter um volte de face e não era preciso escrevê-la, os papéis estavam todos no ar, despedidos que foram do mofo dos gabinetes. Ainda tentaram colocar-se do nosso lado, os governantes, com o intuito de ganhar tempo e criar um grupo de transição, de onde fariam parte. O povo é sereno, gritavam, quando passámos por cima da linha da frente e os atropelámos. Seríamos nós a ditar as regras do país e as transformações estavam muito bem delineadas. Há imenso tempo que elas eram faladas – dirigido ao senhor coordenador do gabinete do secretário, pedimos deferimento, acaloradamente – era só pôr tudo em prática. As grandes empresas teriam de se reger por princípios rígidos e só assim podiam subsistir. Não havia tempo para encubar mais ideias. Ou financiar espíritos criativos e cimeiras de botõezinhos. O filho pródigo regressava a casa. Seriam os princípios da humanidade e da natureza, era assim que ia ser daí em diante. Não havia tempo a perder. E ninguém diga que gostamos de chegar atrasados. Hoje, já vamos tarde.
Hoje Macau Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá [dropcap]E[/dropcap]star atento é a prioridade máxima, dissera-lhe Jin Shixin. E Cândido não se esquecera. Agora, mesmo quando se deslocava a pé para casa, tomava atenção aos sons e às sombras. E, também, aos raros transeuntes que passavam por ele. Aquela hora, só se cruzou com chineses e com alguns marinheiros que cambaleavam, sem saberem o destino. A noite estava calma. A brisa que durante a tarde tinha aparecido, extinguira-se e uma lua quase cheia brilhava sobre Macau. Cândido deixou-se dormir quando chegou à cama, mas foi atormentado por um pesadelo. Caminhava numa floresta de bambus, numa confusão de luz e sombra. Era perseguido e durante muitos minutos não conseguia distinguir o caminho que deveria seguir. O sangue escorria do seu corpo. Matara alguém. Quem? Acordou, sobressaltado. Procurou o corpo de Jin, mas nada encontrou ao seu lado. Ela não estivera ali. O suor escorria-lhe da testa. Levantou-se e foi sentar-se junto à janela, que abriu, para ver se entrava algum fresco que o despertasse. Uma ave nocturna cantou. Se não fosse isso, Macau estaria em silêncio. Cândido sabia que as aves não cantam por estarem felizes ou tristes. Fazem-no para contactar com o que as rodeia. De noite cantam de forma mais intensa. E isso serve para confundir os predadores. Os seres humanos talvez não sejam muito diferentes, quando escolhem a noite para soltarem os sentidos. Todos esperavam, pensou Cândido. Ninguém duvidava que estava a caminho uma devastação em escala nunca imaginada. Os pássaros ainda cantavam, mas a contagem final já começara. Cada vez chegavam mais pessoas fugidas da China. Contavam coisas inimagináveis. Pareciam perdidas e alguns, com dinheiro nos bolsos, procuravam uma consolação qualquer, fosse o jogo, o ópio ou as mulheres. Nessa noite, enquanto falava com Prazeres da Costa, Cândido pensara neles. Aquele estava feliz e triste. Amélia pressionava-o, cada vez mais. Queria deixar o marido e ir viver com ele. Ela rezava todos os dias e ia à missa em busca de conforto e de formas de expiar a sua culpa. Mas a infelicidade de Prazeres da Costa vinha-lhe da falta de dinheiro. Já um pouco embriagado, ele disse-lhe: – Deus, para mim, só existe quando olho à volta, para as belezas da natureza. Para as mulheres. A noite estava triste e a aurora ainda longe. Prazeres da Costa era um homem cansado de si mesmo. Nada que espantasse Cândido. Ele próprio, até agora, sempre estivera em guerra comigo próprio, para o bem e para o mal. Na sua cabeça havia uma discussão constante, um reencontro com os seus demónios, sobre ter de decidir, ter de tomar partido. Foi então que Prazeres da Costa lhe perguntou: – Já decidisse? – Já. Prazeres da Costa fez um largo sorriso. – Só precisas de fazer um relatório semanal sobre as actividades de Jin Shixin ou outras coisas que tenhas conhecimento. Mas se houver algo de urgente tens de me contactar. – Assim farei. – Ainda bem. Sabia que poderia contar contigo. Serás recompensado. Nesse momento Marina Kaplan aproximou-se e colocou a mão no ombro de Prazeres da Costa. Disse: – O jogo vai começar. Vens? O português levantou-se e seguiu-a. Cândido foi atrás deles. Na mesa estavam três homens sentados, preparados para uma longa noite de póquer. Cândido olhou para as suas faces. Eram jogadores experimentados, todos ocidentais. Só um tinha olhos orientais. A sua cara não lhe era desconhecida, mas recordava-o noutro ambiente. Só quando os seus olhares se cruzaram, ele recordou. Costumava encontrá-lo, à noite, em Xangai. Mas não como jogador. Vinha fardado. Era polícia, no sector francês. Marina Kaplan, que observara tudo, sussurrou-lhe ao ouvido: – Luc LeFranc. Cândido não disse nada. Voltou para o reservado onde tinha estado a conversar com Prazeres da Costa. Não duvidava que seria mais uma noite de perdas financeiras para ele. Nesse momento voltou a ouvir Jin, que há alguns dias lhe dissera: – É possível ver as pessoas como são, sem fingimentos. Ou são amigos ou inimigos. Ou vencem eles ou nós. Isso simplifica tudo. Era verdade. Todos tentavam comprar a sua invisibilidade. Como se ele não existisse. E ele só tinha de decidir com quem queria alinhar. Despertou dos seus pensamentos madrugadores. Batiam à porta. Era Jin. Ao entrar, beijou-o ternamente na boca. Depois, sem uma palavra, despiu-se defronte dele e arrastou-o para a cama. Quase uma hora depois, Cândido abriu os olhos. Sentiu o corpo quente da chinesa. Os homens que conheciam Jin diziam que ela não dormia. Encontravam-na, muitas vezes, sentada, a meditar, de olhos fechados. Mas só isso. Era um absurdo. Todos os seres humanos têm de dormir. Cândido percebia que, durante o dia, ela se comportava como a grande dama do chá, como era conhecida. À noite, mudava. Era uma agente de Du Yuesheng e dos seus interesses. De noite era como uma flor de lótus que surgia das águas, imponente e bela, para mostrar a renovação. O Mal pode ser substituído pelo Bem, enquanto nos alimentamos do aroma da flor de lótus, ouvira dizer uma vez. Jin despertara e encostara-se a ele. Questionou: – Em que estás a pensar? – No que fiz há algumas horas. – Não penses. Se um homem tem um preço, ele não é alto ou baixo. É apenas o justo preço que tem de se lhe pagar para que ele faça o que queremos.- És uma verdadeira amiga? Ou terei tomado a decisão errada? Ela riu. – Morra já, se não for o caso. – Diz-me: sou teu amigo ou inimigo? Jin hesitou por um momento, mas não respondeu. Ele deu-lhe um beijo nos lábios e disse: – Achas que consigo ler o coração de uma mulher? – Sim. E eu também o consigo fazer. Por isso vim acordar-te. Eu sou de uma região na China onde a piedade é considerada uma fraqueza. Disse isto com um sorriso nos lábios. Como se quisesse mostrar que não tinha fraquezas quando tinha de decidir. Jin não conhecia a piedade. Ele nunca tinha encontrado uma mulher tão sedutora. Cada movimento que ela fazia, excitava-o. Tinha uma aura iluminada, como se fosse sempre iluminada pelo sol, mesmo quando se movia na escuridão. – Vem! Jin disse isso com voz de veludo. E ele foi, novamente. Os seus braços colocaram-se à volta do corpo dela e voltaram a beijar-se. Ainda viu o sol a nascer através da janela, mas ela parecia não ter pressa. Depois de terem feito sexo, ela sorriu e tirou os braços dele do seu corpo. Levantou-se e disse: – Tenho algo para ti. Tirou de um bolso escondido na sua cabaia um anel grosso, de ouro, onde estava uma pedra de jade verde. Agarrou-lhe na mão esquerda e colocou-o no dedo. – Quem pode ser confiado para carregar a minha confiança? Aquele anel, de tão belo, era uma prova de confiança. Mas era também uma espada de dois gumes. Era uma arma que não era mortal, mas estava apontada ao coração dele. Ele sabia o valor daquele anel. Por detrás da tentação de qualquer coisa escondiam-se sempre os dentes de ferro das consequências inesperadas. – Depois de aceitares este anel estou desarmada perante ti. Nada disso, pensou Cândido. Nunca, como naquele momento, ela tivera todas as armas. E ele, sim, estava desarmado.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt II [dropcap]O[/dropcap] corpo humano aparece-nos, ao longe, nas suas fronteiras físicas como qualquer outro corpo tridimensional, como qualquer planta e qualquer animal. Mas o aspecto relevante para o autor Hipocrático do acerca do ar, águas e locais, é a transcendência do ser humano para além das fronteiras do seu corpo. Não apenas temos uma percepção do próprio corpo dentro das suas fronteiras físicas delimititadas pela epiderme, mas temos uma percepção que vai para além das suas fronteiras: vemos para lá do globo ocular e ouvimos através das paredes, sentimos as fragrâncias no prado e não no nariz como o gosto da comida e não da língua. Mas não apenas assim. O plano de fundo para a existência do corpo humano meteorológica. É o clima do local em que vivemos com os seus ares e águas, é o dia como plano de fundo às horas do dia e à sua passagem, é a vida como plano de fundo às idades da vida e à sua alteração, é o grande ano da existência que serve de plano de fundo às estações do ano e à sua mudança. O corpo humano está exposto a diversas distensões temporais. O corpo humano em que cada um de nós existe, ou melhor, com o qual cada ser humano existe, é o tempo meteorológico. O ano meteorológico divide-se em horas ou estações do ano. O corpo humano existe na dependência do que se passa em cada estação do ano, na mudança de uma para a outra, a cada hora do dia, todos os dias da vida, em cada época da vida. O corpo humano existe neste espaço estrutural, com estas fronteiras no interior do horizonte temporal do ano como metáfora do tempo de duração pelo qual se estende a vida humana. Os autores hipocráticos dizem assim que a medicina tem de estudar a mudança de estações e as estações do ano para se perceber a alteração qualitativa que produzem nos ares, águas e locais. Esta alteração qualitativa dá-se mesmo no mesmo local geográfico. Esse estudo é totalmente relevante para a compreensão medicinal do ser humano, das doenças a que o que está exposto.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA internet de Aquilino Ribeiro [dropcap]S[/dropcap]erão três os atributos a que os arqueólogos do futuro irão recorrer para descrever o nosso tempo, neste local onde hoje vivemos e respiramos: a ilusão de poder estar em todo o lado ao mesmo tempo, a ilusão de poder aceder – seja ao que for – de modo instantâneo e a ilusão de poder saborear um tempo lúdico e marcado pelo desígnio da juventude eterna. Quando lemos ‘As Terras do Demo’ de Aquilino Ribeiro – e devo referir que tenho na minha frente a segunda edição centenária (1919, Ed. Livraria Aillaud e Bertrand, capa dura) -, vemos que os personagens metem mão à terra e fazem mil coisas ao mesmo tempo (“Era bem ela – a Glórinhas -, por maré de acaso tangendo as vacas para o lameiro, cesta das rendas enfiada no braço, chibata na mão.”), acedendo quase a coisas impossíveis (“Nela, o que mais o detinha era a fábula inesgotável que ao espírito se lhe antepunha”), embora tudo decorra num espaço que, para aqueles personagens, se confundia com o planeta (e até com o universo) inteiro. Uma espécie de aquário telúrico que, para além das suas paredes de vidro, reluzia algo de infinito, o que era uma evidência no quadro humano retratado por Aquilino: “Na serra, não havia mimos e o dinheiro andava caro; embora, o salvador do mundo acolhesse os serranos, sorridente, como se cada um lhe levasse todo o oiro, incenso e mirra dos magos do Egipto” (…) “O carujo vinha descendo dos picotos, e os ladridos dos cães, nos rebanhos, soavam de longe, que nem do cabo do mundo”. A internet de Aquilino e a nossa são realmente muito diferentes. A primeira era vocabular, irradiava um prazer imenso em criar mundos e trepava pela língua como um animal genialmente amestrado (“Gozoso, elevava e derribava seus morouços, e estendia-os em linhas paralelas, obrigados a uma relação de valor e de simetria. Ao mais leve rumor, deitava-se de bôrco sôbre seu haver, sem respirar, sem latejar. Mas nas horas confiadas, sua voluptuosidade expandia-se num trejeitado variado de orate.”). A segunda vale-se de bordões linguísticos e de euforias virais, vive do prazer em reduplicar experiências e trepa por novas linguagens valendo-se de 845 emojis e de palavras de ordem “em modo de” bala tracejada. Nenhuma destas internets é melhor do que a outra. São matérias de natureza tão diversa que nunca se encontrarão (e muito menos se tocarão) no concerto das galáxias. O curioso é que entre estas duas fórmulas de espantar a linguagem passaram apenas cerca de cem anos. Repare-se, por exemplo, que entre a Odisseia atribuída a Homero ou os textos do Primeiro Isaías e O Paraíso Perdido de John Milton (1667) passou um período vinte e cinco vezes maior e a diferença de linguagem, de construção e de tópicos é muitíssimo menor. Entre Alexandre, o Grande que morreu há 2.342 anos (foi a 10 de Junho de 323 a.C.*) e as datas de uma série de textos que continuaram sempre a dá-lo como um ser vivo passaram-se 20 séculos (aconteceu até ao séc. XVI). Foi o caso, entre muitíssimos outros, da Sibila Tiburtina (380 d.C.*) em que Alexandre se converte em figura de imperador-salvador dos últimos dias e foi também o caso, em terras iraquianas, durante o reinado do quinto califa abássida, Harún ar-Rashíd (764-809), do Apocalipse de Bahíra*, texto atribuído a um monge cristão que colocava Alexandre em cena para pôr cobro à emergência islâmica. Na escala humana, sempre foi possível reconhecer nas grandes amplitudes temporais algumas constantes e alguma estabilidade, razão para a existência dos chamados “cânones”, recorrendo à terminologia de Harold Bloom. Ora, a nossa época escapa radicalmente a esta regra, pois faz passar milénios em poucos anos. Nem toda a gente dá por isso, do mesmo modo que ninguém repara que o planeta executa a sua translação ao sol numa velocidade próxima dos 30 quilómetros por segundo. Andamos exaltadíssimos com os vigores da tecnologia, mas tudo o que inalamos é simulado e ilusório. Não damos conta, de facto, do que se passa à nossa volta. Os três atributos com que os arqueólogos do futuro nos revisitarão falam por si a este respeito: (1) imaginamo-nos omnipresentes na rede, (2) acedermos instantaneamente a hemisférios virtuais e (3) vivermos a ilusão lúdica da juventude eterna. Uma era baseada em simulações é, pois, uma era cega para descobrir hipocrisias (relativações sem fim incluídas), falsidades (‘fake news’ incluídas) e traições (o que se difunde metamorfoseia-se logo). Neste aspecto específico, a internet de Aquilino mostrou-se bem mais eficaz no seu tempo, já que foi justamente com a descoberta de uma traição que o romance ‘Terras do Demo’ encontrou o seu desenlace: “Empurrou-a dum alancão e seus olhos presenciaram a monstruosidade: o João Bispo, o homúnculo hediondo, sob seu corpo semi-nu subjugava o corpo semi-nu de Glòrinhas. Bocados de formusura divina confundiam-se com luaceiros de disformidade imunda. Ela debatia-se, o monstro que com uma das mãos lhe tapava a bôca, com a outra tenteava seu lance”. O herói, ou anti-herói, Inácio Miôma, não era um “farçola de varapau”, apesar de ter caído na desonra de “saborear um tal sainete”. Virtual, o tanas, salafrário! *Liparotti, Renan Marques; Plutarco: A fortuna ou a virtude de Alexandre Magno, Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume Editora, http://hdl.handle.net/10316.2/43219 (Cons. 5-Jun-2019 12:00:31). *Profecia do fim do século IV, provavelmente redigida na sequência da derrota militar romana em Adrianople (378). A partir do original grego, variadíssimas traduções permitiram a sua reactualização até ao século XVI (B.McGinn, Visions of End-Apocalyptic Traditions in the Middle Ages, Columbia Un. Press, New York,1983, pp. 53-54). *Abel, Armand, Réflexions comparatives sur la sensibilité médiévale autour de la Méditerranée aux XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII, 1960, pp.23-42.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Vento [dropcap]D[/dropcap]eus não me tem trazido muito discernimento. Suponho que porque quem me levava à missa na minha infância era uma tia surda. A minha tia Dulce. Esta é uma história que os meus amigos sabem de sobejo e a minha família já vomita. Mas só eu é que a vivi. O meu pai era anticlerical e como a minha mãe insistisse em que eu fosse à catequese e à missa, ao fim de anos de insistência capilar, cedeu, sentenciando: Ele pode ir à missa com a tua irmã. Foi mistério que se me cravou na carne. Naqueles seis meses em que aquela mão calosa me conduzia à igreja, eu pouco ouvia da Palavra de Deus. O que me intrigava até às entranhas era como a Palavra acudia ao olhar beato da minha tia surda. Como é que apesar de tamanha surdez ela fora polinizada? Eu nem sequer olhava o púlpito, fixava-me no rosto sardento dela, alheado, com os olhos embevecidos pelo que não ouvia, e nos seus lábios que mexiam, repetindo as loas e as orações. Ela, de vez em quando, dava conta e num gesto maquinal virava-me a cabeça para a frente. Aí detinha-me, por um minuto, na batina do padre, na taça que o sacristão lhe passava e, atrás deles, no crucificado, e ouvia o fragmento de alguma parábola, antes de voltar a fixar o rosto dela e os seus olhos que, como macias faluas, se desfaziam nos quebra-mares de Deus. É possível que Deus tenha feito nascer um milagre em Salzburgo, no caso de Mozart, no caso da minha tia, negou. Apesar de ter crescido entre irmãs, e de não perder um culto, Deus não lhe depositou uma única palavra no tímpano. Outras coisas sim, e no coração com certeza, que era um poço de afectos, a minha tia Dulce. Porém, inapelavelmente mouca. E parecia-me tão desproporcional a distribuição de fé em Deus, que do seu enigma não me livrava. Raras vezes me distraía dessa ideia fixa. Bom, uma vez distraí-me com uma península de carne que havia no pescoço duma senhora à nossa frente, e que abanava quando abriam a porta da igreja. Se na altura soubesse nomear as coisas, teria interrogado: Um pólipo é filho de Deus? Na altura não havia nome para o que me perturbava, entalado entre a minha tia surda e aquele pólipo que no pescoço à minha frente ouvia a Palavra de Deus. Só eu não achava condições para a escuta. Um dia, farto de tanta inquirição a que me levava a devoção da minha tia e do seu olhar amendoado quando engolia a hóstia, decidi arrumar os mistérios e decidi: o que a minha tia ouve é a voz do vento. O vento tornou-se a primeira categoria transcendental na minha vida. Nunca mais fui à missa e não sei porquê, mas nesse dia deixei de ter medo do vento. Ou não foi logo ali, mas no que lhe esteve ligado. Nunca soube de onde nasceu o meu fascínio com o vento. Terá nascido da intuição de que se componha de sílabas entrecortadas como o meu furado entendimento do mundo, ou de o adivinhar como uma energia jubilatória, idêntica à que à nascença desloca o tempo e sintoniza nos pulmões a modulação do ar? Semelhante ao vento, também a minha relação com a linguagem se enlaça aos sacões, por enfáticas ventosas; as palavras não me chegam quando eu quero traduzir a meu bel-prazer as inscrições da realidade em mim, pelo contrário, são volantes e indomáveis, embora a espaços pousem nas minhas mãos como pássaros num estado propiciatório (mais vizinho da desestabilização que do repouso) que faz vibrar um instante de coincidência entre mim e elas; ou seja, temo que as palavras, no meu caso, recusem a adesão a qualquer decalque e antes premeditam golpes de ventos que me trespassam. Mas tinha medo, até esse dia, no primeiro domingo em que não fui à missa, que troquei por uma ida à pesca com o meu pai. O meu pai pega-me na mão e avançamos pontão dentro, na Ponta da Areia, ele com a cana de pesca no ombro, e eu orgulhoso por ele me ter confiado o baldinho com as minhocas; progredimos direitos ao coração do mar, a despeito dos gritos da minha mãe que roga que regressemos, teme que o vento, irado nesse dia, nos atire às águas, concomitantemente, revoltas. Galgamos o chão de pedras, num passo seguro, o vento eivado de lágrimas do mar endemoninha-se nos cabelos, mas ele só sorri ao medo dela, um sorriso cúmplice entre nós, que prescindimos de palavras e somos íntimos daquela vírgula de pedra, rasando as águas em que adentramos cem metros, cento e cinquenta, de olho fito no extremo adiante, aonde, como o dia está picado, se situa o palpite do meu pai de que na polpa de uma vaga bravia e oleaginosa se apinhem os robalos. E o vento diabólico ameaça, mas não consegue arrancar-nos um sorriso. A minha mãe grita, incansável, nas nossas costas, e só nos importa o som do mar que se engolfa nos nossos tímpanos e o vento que nos impele para diante. O meu pai é um medíocre pescador, não me lembro se o seu palpite estava certo, mas agradecer-lhe-ei eternamente ter afastado de mim o receio ao vento. De ventos solares ouço falar, mas esses não me animam o canto. Só os terrenos, mais breves que o Papa Pepino e que enchiam de penas de anjo a boca da minha tia. Pelo menos era assim que eu imaginava a explicação que nunca me deram. Já morreu, a minha tia que foi amada, e teve cinco filhos. Eu continuo a ser irrigado pelo vento, a matéria de um livro que me preparo para lançar. Entretanto, se nos definimos pelos nossos actos, Deus continua a ligar-me pouco, nem me deu aulas de guitarra.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (I) [dropcap]L[/dropcap]ife overtakes me (Quando a vida nos atraiçoa), é um documentário na Netflix sobre famílias de refugiados na Suécia, cujas crianças são afectadas pela Síndrome de Resignação, também apelidada de Síndrome de Desistência. Após passarem por uma situação traumática, as crianças começam por entrar num estado depressivo que se vai aprofundando até ser atingida a catatonia. Vão gradualmente perdendo o interesse em quaisquer actividades, deixando de abrir os olhos, comer, falar, mover-se, responder a estímulos. Passam a usar fraldas e a ser alimentadas por via intravenosa pelos pais, que se tornam ainda mais cuidadores, muitas vezes auxiliados por voluntários. Não é incomum que, ao assistir ao estado de deterioração de um dos irmãos/irmãs, outra ou outras crianças da família sucumbam eventualmente à síndrome. Este sono profundo, comatoso, pode durar seis meses ou mais de dois anos, sendo por vezes reversível, não sem que antes decorra um período de tempo considerável entre o resolver da situação instável e o convencerem-se, ou melhor, serem convencidos pelo que parece ser transmitido pelos pais: o sentimento, a certeza de que tudo está bem. Os pais parecem ter substituído o príncipe nas histórias de encantar. A deportação é o monstro/bruxa e o passaporte ou autorização de residência o beijo que quebra o feitiço. Há uma série de crianças e jovens adormecidos, esperando a salvação do asilo, a sua transformação de refugiados em cidadãos. Na sua obra-prima, A sangue frio (D. Quixote, tradução de Maria Isabel Braga, 2006), Truman Capote descreve como a tragédia que dilacerou a mais bem-amada família de Holcomb afectou gravemente quem teve o mínimo contacto quer com a família Clutter, quer com os despojos do seu brutal desaparecimento: “A mulher de Dewey passou pelo sono mas acordou ao senti-lo saltar da cama para atender mais uma vez o telefone. Ouviu também, no quarto onde dormiam os filhos, os soluços de um dos rapazinhos que chorava. «Seria o Paul?» Ele não era rabugento nem chorão, nunca! (…) Porém, nesse dia ao almoço desatara em soluços. A mãe não precisara de lhe perguntar a razão; sabia que, muito embora ele compreendesse vagamente o motivo de toda aquela confusão à sua volta, sentia-se inseguro ante as enervantes chamadas telefónicas, os estranhos que entravam em casa, os olhos fatigados e cheios de preocupação do pai.” Situações de racismo na escola (falamos de famílias arménias ou yazidi, por exemplo), criminalidade testemunhada (agressões e homicídios, as causas da fuga dos pais) parecem ser as causas traumáticas que iniciam este processo de fuga à realidade em crianças anteriormente activas e aparentemente saudáveis. Testes de reacção à dor e ao frio são executados regularmente, sem grande novidade. Ainda há muito para descobrir e confirmar relativamente a esta condição. Como em tudo, há quem questione se se trata de uma doença verdadeira, se os pais não estarão a envenenar os filhos, se não será uma estratégia para conseguir protecção e segurança, ou apenas mais uma distracção dos verdadeiros problemas quer dos suecos quer dos refugiados que acolhem. Ainda considerada uma condição rara e quase exclusiva à Suécia, sem razão aparente, certo é que existem relatos de algo semelhante nos campos de concentração Nazi. Detidos, migrantes, refugiados: esta condição começa a verificar-se também em crianças na Austrália. Quão contagiosos são a tristeza, o medo, o desespero, a falta de esperança? Quão sensíveis são estas crianças à verdade, de tal forma que já não basta ver ou ouvi-la, é fundamental senti-la? Entre a tristeza dilacerante e o pós-terror, é comovente e duro assistir ao definhar de qualquer forma de vida, sobretudo a que é mais promissora, mais cheia de energia, normalmente mais adaptável a mudanças. A perda das funções motoras e biológicas acompanha a perda da inocência. Recordemos o quadro Sleeping, de Paula Rego (1986), exemplo dessa quase imperceptível diferença entre perigo e paz. Crianças dormem junto a um arado, vigiadas por um pelicano (símbolo cristão do sacrifício de Cristo, da sua ressurreição e da de Lázaro). Duas crianças estão acordadas, uma enfrentando a ave e a outra virando costas às que dormem, encostada a uma árvore. Observamos ainda uma tartaruga, símbolo de imortalidade, de concentração, de regresso ao estado primordial. Até onde vamos para sobreviver? Além-fronteiras, fisicamente. Ao mais fundo de nós, mentalmente. Até onde tivermos de ir. Até onde nos levarem. Até não podermos mais. Somos, verdadeiramente, onde os nossos limites podem chegar. Na cama ou acompanhando a família em passeios e refeições, em cadeiras de rodas, a estes jovens são-lhes lidas histórias, cantados os parabéns, exercitados os músculos, escovados os dentes, afagados os cabelos. Só faltava aparecer Thom Yorke declarando I’ll take a quiet life, pedindo No alarms and no surprises, please. Bem que mereciam.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasTeologia do acaso [dropcap]U[/dropcap]m dos livros mais conhecidos de Paul Auster chama-se A Música do Acaso. Foi publicado em 1990 e de imediato a voz do escritor confundiu-se com este romance que tem uma leve herança da filosofia do Absurdo. Resumidamente, é a história de um bombeiro, Jim Nashe, que por circunstâncias várias se vê livre para prosseguir a sua vida da forma como entender. O livro é marcado por acontecimentos sem causalidade, onde o jogo, sorte, azar ou coincidências são o que determinam o percurso dos personagens. Lembro-me de na altura ter ficado fascinado com o romance e de imediato me ter transformado num convicto adepto da Austeridade (perdoa o pobre trocadilho deste vosso escravo, ó leitor!). Anos depois voltei a lê-lo e as formulações já me pareceram cansadas e previsíveis – um pouco em contradição com o espírito da obra. Então porquê trazê-lo, agora e aqui? Porque senti a sua falta, de outra forma que não literária. Olho à minha volta nestes dias e percebo que o acaso é algo que também é uma espécie em extinção. Deveria haver uma reserva natural para coincidências ou serendipismos neste mundo cada vez mais determinista. A ilusão de proximidade dada pelos algoritmos faz com que possamos saber ou prever com algum rigor passos mais ou menos decisivos das nossas vidas. E pior: que esses passos sejam almofadados por outros que sabemos terem visão semelhantes às nossas, tornando-nos assim ignorantes voluntários de opiniões e mundos distantes da nossa rua. Nem o amor está a salvo. Através de um telemóvel escolhemos com conforto e distância quem achamos que irá preencher as nossas mais apaixonadas ânsias. O risco, a emoção do confronto com o desconhecido está a ser obliterada em nome de uma qualquer forma mais prática e anónima. O acaso, tão fundamental e precioso na emoção humana, tende a desaparecer. Só percebemos o que se nos está a escapar quando somos invadidos pelo que se nos escapa. Há alguns dias, por acaso e sem marcação prévia, fui parar a um bar de jazz onde estava a decorrer uma jam session. De repente, vindo não se sabe de onde, apareceu aquele que considero um dos melhores saxofonistas nacionais – Ricardo Toscano. A noite agigantou-se com o inesperado, aliás em ligação perfeita com o jazz que por definição é uma arte do improviso. E é destes acasos que a alma pode e deve alimentar-se. Voltaire dizia que aquilo que chamamos acaso não é senão a causa ignorada de um efeito conhecido. Acredito. A vida tem mesmo uma ordem secreta e misteriosa que urge preservar cada vez mais, mesmo contra a corrente. Proclamo aqui a necessidade de uma teologia do acaso, algo que nos redima com urgência e doçura.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasRecessos de cidade Lisboa, 11 Junho [dropcap]T[/dropcap]em armadilhas, a (suposta) diarística. Agravadas a cada degrau pela vida, alheia aos esforços do (suposto) cronista. Alturas há em que a folha se estende qual cemitério na falda da colina. E que dizer descontado o banal, além do bem e do mal, sobre aqueles que partem, mais ou menos próximos, relativizando-se a proximidade por conter intimidades, por ter contribuído, das maneiras mais díspares, para o que fomos sendo? Mal conheci Ruben de Carvalho (1944-2019), mas devo-lhe muita navegação no grande oceano da música, não apenas pelo que foi dizendo, mas por quem programou na Festa do Avante, para dar um exemplo. A América, sem o jazz e o romance policial por ele recontados, não me seria a mesma. Saudades das crónicas! Antigamente, os jornais andavam prenhes de futuro. (Relembro a talhe de foice que a minha infância desaguou em revolução, para a qual ele contribuiu.) Mas Lisboa, a minha tão ausente Lisboa, não me seria a mesma sem Ruben, por milhentas razões, as que se sabem e as outras. Uma delas, talvez despicienda, foi a sua defesa, enquanto vereador, de uma Bedeteca de Lisboa condenada à lenta agonia da indiferença. Saravá, Ruben. Varandão, Lisboa, 15 Junho Apesar dos pesares, Lisboa continua sendo o que jamais deixou de ser: jogo de patamares e vielas onde o encontro floresce que nem enigma. Ramón [Gomez de la Serna] imaginou-a ponte de grande navio prestes a rasgar oceanos. E nela assim me sento, a olhar os nós por desatar do horizonte. Abro parêntesis [recto] nos afazeres e passo a porta, que é janela, do Luís [Gouveia Monteiro] para experimentar o concerto de bolso do Fred Martins, na companhia de cristal da Sandra [Martins]. As linhas do horizonte são agora as cordas de onde se soltam as melodias de estonteante riqueza, conduzindo a voz que nem seta ao coração perfurado pelo violoncelo, mas o órgão do sangue pensa e diz do tempo e da paisagem, da casa e quem nela mora, de ontem e de amanhã. O varandão, com esta dilecta companhia, foi mundo pulsando, levou a gente. «Onde mora a ternura,/ onde a chuva me alaga,/ onde a água mole perfura,/ dura pedra da mágoa,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora,/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora.» Santa Maria Maior, Lisboa, 19 Junho A minha cidade tem uma galeria elevadora. Talvez devesse escrever elevatória, mas no contexto cruza-se com voadora. Diz o dito contexto que são «As Lisboas» do Nuno [Saraiva], postas no prédio da Junta de Freguesia que junta o baixo e o alto, Fanqueiros e Castelo, ou quase. Vou ter que voltar (fica até 27 do corrente), pois descobri que não consigo acompanhar o andamento do gabiru. Gabo-me de conhecer o seu corpus como poucos e logo me encontro hirto de surpresa, carapau a pedir o auxílio de alma caridosa na corrida de ver. E o quê? O mais solar dos cruzamentos entre a cidade e as suas personagens. O mais irónico dos mergulhos nos estereótipos, massa movediça da identidade. Um sem fim de suportes, a afirmar que Lisboa podia lá ser apenas de papel! Recapitulando, muito por culpa de sucessivas Festas da Cidade, mas também por ser filho de Alfama, o Nuno tem desenhado as figuras de que Lisboa se faz hoje. E cruza os monumentos, as ruas, os lugares, famosos e nem tantos, queridos ou nem por isso, com os corpos em andamento. E depois mergulha nas tradições, da sardinha à ginjinha, das marchas ao Fado, para colher os elementos com que compõe imagens que respiram sangue na guelra. O meu maravilhamento resultou ainda do encontro com azulejos e garrafões gourmet, mupis e troféus, jornais e muros. E finalmente os esboços, revelando as hesitações, as aproximações, antes do traço definir o corpo, ainda ele, da cidade, sempre ela. (Exemplo algures na página). CCC, Caldas da Rainha, 22 Junho A tarde respira de luz, mas, em obediência ao tema e à combinação, entramos no cubo escuro da sala. Nem por isso o momento deixou de se fazer solar, muito pela simpatia que o Carlos [Querido] suscita nesta sua terra (enfim, por onde passa). «Habeas Corpus» anuncia-se conjunto de micro-contos a bailar à volta da morte, a atazaná-la, empurrando-a, rasteirando-a, na certeza de que lhe cairemos nos braços. Cansados. Mas mesmo os aqui pousam nesta página acreditaram que, pelo riso e outras artes, a faremos mais tonta. Mas outras melodias se tocam nas deambulações destas figuras pelo território fértil do absurdo. E a palavra é uma delas. Os sentidos são tratados como produto da terra, com raízes e regas, cuidados de poda e desbaste. A Ana [Sousa Dias] teve a generosidade de nos oferecer leitura. «Gosto deste livro de caminhos obscuros e muitas vezes absurdos, recheado de citações discretas (ou evidentes) de grandes livros que fazem a história da nossa humanidade, e que recomendo que o leiam (e comprem, previamente). Que se divirtam como eu, sem gargalhadas mas com um sorriso cá por dentro, à espera do desfecho que chega na página seguinte. Que saboreiem a belo domínio das palavras, aquelas que são o fulcro de toda a literatura. Cuidado, que a fome das palavras pode levar a que desapareçam das páginas. E regresso ao início, a um dos temas recorrentes do «Habeas Corpus»: “Sempre que procurou o sentido da vida deparou-se-lhe o denso e indecifrável mistério da morte. Kyrie Eleison”.» Santa Bárbara, Lisboa, 22 Junho Este papel não parece de fibra, a não ser que seja de tempo feita. Não tivemos todo quanto precisávamos, Carlos [Câmara Leme] (1957-2019), para cumprir os projectos, muito conversados, inevitavelmente adiados. Deste prolixo testemunho do teu tempo, do nosso tempo e dos seus actores, perdido algures nos arquivos. Não te deixaste ficar. Procuraste sempre acompanhar em passo de corrida, como convém ao jornalismo, os que pensavam ou escreviam. Que saudades do tempo em os jornais falavam! Saravá, Carlos. Horta Seca, Lisboa, 24 Junho A ritmo mais do lento do que aspira o nosso querer, vão saindo edições internacionais dos nossos autores. Umas mais convencionais, como esta de «O da Joana», do Valério [Romão], que na versão francesa da Chandeigne se fez «Les eaux de Joana», o que me agrada bastante. As águas e o seu romper, na mulher, são fonte inesgotável de fascínio, portanto, de mistério. A saga de Joana é-nos apresentada, na contracapa, como cruzamento impiedoso de estudo clínico sobre a histeria, o cinema de Buster Keaton e a crueza de Louise Bourgeois, celebrando as sinistras núpcias do desespero com o burlesco. Sublinho a presença das referências visuais aplicadas ao texto do Valério, uma das suas forças. Outras publicações resultam da soma de desejos e vontades, como «Chiuso per Inventario», pequena antologia de poemas da Rita [Taborda Duarte], passados a italiano pela Paola [D’Agostino] e acompanhados ao pincel pelo Pedro [Proença]. Destinado, por «Malas Artes», apenas aos sortudos de festival mediterrânico «na terra do pesto», eis inestimável volume, pássaro breve. «Non srivere troppi uccelli nelle poesie: è cosi triste/sentire un uccello che cinguetta nel posatoio del verso le unghie/ che raspano le frasi razzolate della poesia.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasFazer rir um poeta [dropcap]E[/dropcap]m Setembro de 2011 conheci em Porto Alegre o poeta Pedro Gonzaga e o grande escritor Aldyr Garcia Schlee – falecido em Novembro passado, com 83 anos – através do editor e amigo Alfredo Aquino. Depois de um jantar, convidaram-me para estar presente num evento em Jaguarão, terra natal de Aldyr, que faz fronteira com o Uruguai. Tratava-se de um encontro de poetas de fronteira. Para além dos brasileiros do Rio Grande do Sul, iriam poetas do Uruguai e da Argentina, para falarem do que os unia e do que os separava. Os dias passaram, regressei à chácara onde vivia, a 50 km a sudeste de Porto Alegre. Um dia antes do evento, Alfredo passou a buscar-me, juntamente com o Pedro, e partimos na direcção de Jaguarão. A distância não chega a 400 km. Grande parte da paisagem é esmagadora pelo horizonte quase infinito, a lembrar os planos de Dovzhenko no seu filme Terra: à nossa frente, uma fina sapatilha de terra e um céu esmagador. A diferença da paisagem gaúcha para os planos do realizador soviético está na cor: ao invés do preto e branco é o azul e branco. Um azul celeste e branco que nos lembra de imediato as cores do equipamento – uniforme, dizem os brasileiros – da selecção uruguaia. Andamos quilómetros em recta, sempre em direcção ao céu. Percebemos com o corpo, que isolamento está em todo o lado. O mundo está cheio de isolamento. Chegados a Jaguarão, e depois de deixarmos as coisas no hotel, atravessámos a pequena ponte da cidade para jantar em Rio Branco, no Uruguai, onde Aldyr nos esperava sentado à mesa. Contente por nos ver ali, tão longe da cidade grande. No dia seguinte, Aldyr abriu o evento. Depois dos agradecimentos, do contentamento de ver na sua terra um evento que considerava muito importante e que se sentia também muito honrado por ser o seu patrono, começou a sua intervenção lendo o fragmento 21 de Novalis: “A filosofia é na verdade uma saudade da pátria, um impulso para se estar em toda a parte em casa.” Depois continuou: “A poesia é também uma saudade da pátria, mas não um impulso para se estar em toda a parte em casa. Não direi que a poesia inverte esta posição, mas ela é muito mais a iluminação do sentimento de se estar perdido onde quer que se esteja do que um impulso para se estar em toda a parte em casa. Para o poeta – aquele que habita temporariamente a poesia como o humano habita a Terra – todo o lugar é inóspito e nenhum esforço vai alterar isso, porque fora da linguagem estamos sempre fora de casa. O próprio poema é a expressão desse fora de casa permanente, dessa guerra que o poeta sente entre o mundo e a linguagem. A linguagem não conforta necessariamente, mas é o elemento do poeta, onde ele se sente o mais em casa que consegue, mesmo que nessa casa haja uma família inteira que não o compreenda. A própria linguagem não compreende o poema. A saudade da pátria, no poeta, é a falta que sente do que não há, que provavelmente nunca houve: um caminho de palavras até que tudo faça sentido. E esta saudade talvez seja a mesma de que fala Novalis. A diferença, parece-me, está em que o filósofo esforça-se por fazer sentido, por arranjar esse caminho perdido de palavras, enquanto o poeta sente – sem que o saiba dizer – que não há caminho. Contrariamente aos versos do poeta Antonio Machado: caminhante, não há caminho, desfaz-se caminho ao andar. O poeta escreve, não para saber ou para saber que não sabe, mas porque sente que o que sabe, muito ou pouco que seja, não o leva a lugar nenhum. O poema é um caminho desfeito em palavras. Um poema é umas férias que se acabam, uma vida que deixa de ser, um lembrar-se de não ter sido. No poema não há esforços ou impulsos, há feridas. O próprio poema poderia ser a voz surda do que não tem cura. E o romance, pelo menos eu quero acreditar que sim, é irmão do poema. O romance é um poema que ainda tem a ingenuidade de tentar explicar. Não quer fazer sentido! Isso não. É irmão do poema, sabe bem que a palavra desfaz-se em palavras e não conduz a nada, mas demora-se mais neste desfazer, como quem retarda um prazer.” Aldyr deve ter dito mais alguma coisa de que não me lembro. Depois do evento, passeando pelas ruas antigas de Jaguarão, confessou-nos – ao Aquino, ao Pedro e a mim – que as palavras não foram o início do mundo. O início do mundo deve ter sido um tremer de frio de que tudo vai acabar. E todos sabemos disso, menos o Novo Testamento. O que disse no evento não tem importância nenhuma, é uma tarefa como sair de manhã para ir trabalhar. O que tem mesmo importância é o tempo que passei comigo a ler e a pensar, até dizer ou escrever o que ali disse. E também o tempo que passo com a minha mulher, com os meus filhos, com alguns amigos e com os meus cães. O que é tem mesmo importância? A poesia? Isso seria de fazer rir um poeta.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO enigma de Elgar [dropcap]A[/dropcap]ssinala-se hoje o 162º aniversário do nascimento do compositor britânico Sir Edward Elgar. Filho de um afinador de pianos e rodeado de música e instrumentos musicais na loja do pai na High Street, em Worcester, no Worcestshire, o jovem Edward William foi auto-didacta em música. Deixando a escola aos 15 anos, começou por trabalhar com um advogado local, mas após um ano enveredou por uma carreira musical, aprendendo piano e violino. Aos 22 anos tornou-se chefe de banda no Worcester and County Lunatic Asylum. Foi primeiro violino nas orquestras dos festivais de Worcester e Birmingham, e chegou a tocar a Sexta Sinfonia e o Stabat Mater de Antonin Dvořák, sob a direcção do próprio compositor. Aos 29 anos de idade, conheceu a sua futura mulher, Caroline Alice Roberts, filha de um oficial do exército britânico e poetisa e escritora, oito anos mais velha. Casaram-se três anos depois contra a vontade da família dela, e a prenda de Edward para Caroline foi a famosa peça para violino e piano Salut d’amour, op. 12. Após o seu casamento, os Elgars passaram a residir em Londres, centro da vida musical inglesa. Após algum tempo, constataram que não podiam subsistir apenas com o trabalho de compositor de Edward, pelo que ele retomou o ensino de música. Durante a década de 1890, a reputação de Elgar como compositor cresceu gradualmente, especialmente com obras vocais para os grandes festivais corais das Midlands. The Black Knight (1892), King Olaf (1896), The Light of Life (1896) e Caractacus (1898) constituíram êxitos modestos, mas valeram-lhe a publicação dos seus trabalhos pela famosa editora Novello & Co. por muito tempo. Vários críticos observam que, embora Elgar seja recordado como um compositor inglês característico, a sua música orquestral tem muitos pontos em comum com a tradição musical da Europa central, tipificada naquele tempo por Richard Strauss. O compositor sentia-se um forasteiro, não apenas numa perspectiva musical, mas socialmente. Nos círculos musicais dominados por académicos, era um compositor auto-didacta; num Reino Unido protestante, o seu catolicismo era visto com alguma desconfiança. No entanto, Elgar viria a compor o seu primeiro grande trabalho orquestral, as famosas Variações Enigma, apenas aos 42 anos de idade, em 1899. A obra intitula-se Variations on an Original Theme (Enigma) e é constituída por uma série de catorze variações musicais. É uma das composições mais conhecidas de Elgar, dedicada aos seus amigos nela retratados; cada variação constitui um retrato emotivo de algumas das suas relações sociais mais próximas. Conta-se que, num dia de 1898, depois de uma cansativa jornada de ensino, Elgar começou a improvisar ao piano. Uma das melodias que improvisou chamou a atenção de Caroline, que lhe pediu que a repetisse. Então, para entretê-la, Elgar começou a improvisar variações sobre essa melodia, cada uma imitando o estilo de algum amigo ou amiga íntimos. Algum tempo depois, Elgar expandiu essas variações, num total de catorze, e orquestrou-as, transformando-as nas Variações Enigma. A obra inicia-se com o tema, uma bela melodia confiada principalmente às cordas. A primeira variação, dedicada a Caroline, é um prolongamento delicado e romântico do tema. A segunda, com rápidos movimentos das cordas, revela as características brincalhonas do seu amigo Stuart-Powell. Na terceira, o oboé e o pizzicato das cordas ajudam a representar a buzina da bicicleta de Baxter Townshend. A quarta variação, dedicada a um proprietário de terras local, é forte e pomposa. Na quinta, a alternância entre triste e alegre representa as oscilações de humor do amigo Penrose Arnold, filho do poeta Matthew Arnold. Na sexta, a viola solo representa um papel especial, uma vez que é dedicada a Isabel Fitton, estudante de viola. A sétima, dedicada ao arquitecto Troyte Griffith, é extremamente enérgica. A leveza da oitava variação remete aos momentos prazerosos que Elgar passou na bela casa de Winifred Norbury. A nona, “Nimrod”, a mais profunda de todas, é dedicada ao amigo August Jäger, que lhe deu apoio nos momentos difíceis (Nimrod é um personagem bíblico, descrito como um poderoso caçador; Jäger significa “caçador” em alemão). A décima variação, extremamente delicada, homenageia a amiga e biógrafa Dora Penny. A décima primeira, uma das mais animadas, é dedicada ao amigo e organista Robertson Sinclair. Na décima segunda, dedicada ao violoncelista Basil Nevinson, os violoncelos dominam a cena. A décima terceira, dedicada à amiga Lady Mary Lygon, guarda lembranças da primeira variação, principalmente na doçura do carácter. A décima quarta variação, dedicada ao próprio compositor, fecha o ciclo majestosamente. As Variações Enigma foram apresentadas em Londres, no St. James’s Hall, no dia 19 de Junho de 1899, sob a direcção do maestro austríaco Hans Richter. Recebendo aplauso geral, iriam fazer com que Elgar se tornasse o compositor britânico mais conhecido da época. Elgar reviu a obra pouco tempo depois, estendendo o final a fim de criar uma forma mais simétrica. A nova peça recebeu o título de “Variações Enigma” graças a uma carta do compositor, logo após a estreia, dizendo que havia um segundo tema, misterioso, que perpassava todas as variações, não perceptível a ninguém. “O enigma”, disse Elgar, “eu não explicarei”. Esse tema, escondido nas profundezas do tecido musical, deu início a inúmeras especulações. Até hoje, o enigma não foi solucionado! Sugestão de audição da obra: Edward Elgar: Variations on an Original Theme (Enigma), Op. 36 Hallé Orchestra, Sir Mark Elder – Hallé, 2002
Hoje Macau Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA grande dama do chá Por Fernando Sobral [dropcap]A[/dropcap] porta não tinha número. Só uma luz fosca, que vinha do interior de uma lanterna vermelha que se agitava ao sabor da brisa nocturna, deixava entender que ali havia uma casa comercial. Daqueles muito comuns na Rua da Felicidade, onde os donos nem vendiam nem compravam produtos. Eram fachadas para o jogo e para o consumo de ópio que se fazia no interior, algo que não inquietava ninguém, nem mesmo as autoridades policiais. Cada um vivia no seu mundo, como sempre acontecia em Macau. Cada casa daquelas escondia segredos muito próprios, tal como as pessoas que ali entravam. Quando Du Yuesheng entrou naquele local anónimo pediu aos seus guarda-costas para ficarem à porta. Nada o espantava, nem o fumo intoxicante, nem as luzes difusas, nem as prostitutas de olhar cansado que circulavam no interior em busca de clientes, nem os homens que, concentrados no jogo do fan-tan, não olhavam para quem entrava. Sabia que, mais escondidos, estavam os salões de ópio e os divãs onde alguns homens procuravam um pouco de amor e sexo. Até ali havia alguma discrição. Era um local para os mais pobres e marinheiros que não conseguiam entrar nos melhores bordéis e casas de jogo da rua de todas as perdições. Du caminhou calmamente em busca do seu objectivo. Tossiu, ao sentit o cheiro misturado do tabaco e do ópio de pouca qualidade. Num canto, com pouca luz, viu-o. Estava sozinho, com cartas na mão. Olhava para as que estavam sobre a mesa e para as que tinha entre os dedos. Jogava poker consigo próprio. Tinha um espelho na mesa, para onde olhava fixamente de vez em quando. Estudava a postura da sua cara, treinando uma das componentes principais do poker, o bluff. Algo que muitos diziam que era errado e imoral. Mas, que, de facto, era admirado como forma de sucesso. Luc LeFranc estava assim, concentrado ou, pelo menos, abstraído de tudo o que o cercava. Du aproximou-se e ficou perto dele. Depois sentou-se à sua frente. Nem assim Luc desviou os olhos das cartas. O seu ar era um pouco oriental, o que era natural num filho de uma chinesa e de um francês. Conhecedor da língua chinesa, e também do francês, singrara rapidamente na polícia do quarteirão francês de Xangai. Fora lá que se tinham conhecido. Luc era conhecido pela sua razoável honestidade, algo que também era importante num mundo onde todos pareciam ser corruptos ou desejosos de o ser. Du devia-lhe algo. Era uma época sangrenta, sem muitas regras. Nessa altura o chefe dos serviços secretos de Chiang Kai-shek, Dai Li, matava todos os suspeitos de serem comunistas em Xangai. E estes retaliavam como podiam. Du alinhava com Dai Li, e o seu Bando Verde era conhecido pela sua ferocidade. Quando tentaram raptar uma das amantes de Du, na Rue Lafayette, Luc vira e anotara a matrícula do carro que a levava. Fizera com que ela chegasse a Du. E este enviara os seus fiéis em busca dos raptores, que tinham sido mortos com uma violência inimaginável. Du agradecera-lhe, mas talvez cansado de tudo o que acontecia por esses dias, Luc LeFranc fugira de Xangai e refugiara-se em Macau. Ou talvez tivesse seguido uma mulher. Nunca se soube. Du, que não esquecia certos gestos, protegera-o discretamente de todos os que tinham contas a ajustar com LeFranc. Escondera o facto de ele viver em Macau e ganhar a vida a jogar. Mas sabia o que ele fazia. E viera ter com ele. Porque Luc LeFranc tinha olhos e ouvidos em todo o lado. Quem quisesse ganhar a guerra da informação em Macau tinha de contar com ele. Ao fim de algum tempo, Luc levantou os olhos das cartas, sorriu, e disse: – O que o traz a Macau, senhor Yuesheng? – Podes tratar-me por Du. Sempre o fizeste em Xangai. Fez uma pausa antes de prosseguir: – Não sabes porque estou aqui? O olhar de Luc enfrentou o de Du. Continuava igual, irónico e mordaz, tal como o gangster o tinha conhecido em Xangai. – Eu sei que és perseguido, mas não é isso que te traz aqui. Não estás com medo. Que queres saber, Du? – Como está a correr a tua vida pacata. – Só isso? É pouco. Não te incomodarias em vir até este sítio sebento só para saberes isso. – É verdade. Não vale a pena mentir-te. Jin Shixin. Lembras-te dela, de Xangai? Como se tem comportado ela? – Não é isso que queres saber. Queres saber quem ó o português, não é? Du olhou à volta, para aquele ambiente escuro e encardido. Um dos que não era frequentado por ocidentais. Ali dentro só estavam chineses e Luc. Mesmo assim não era completamente seguro. Poderia haver comunistas ou agentes japoneses. Mas estava mais tranquilo. Lera no “South China Morning Post” uma notícia sobre ele que o deixara confiante. Dizia que tinha sido avistado em Hong Kong. Era bom que os seus inimigos e os japoneses acreditassem. Assim estava mais seguro em Macau. Voltou a olhar à volta, por precaução. Todos estavam com atenção ao jogo e não a eles. Luc deu uma gargalhada. – Não te preocupes, Du. Todos eles estão aqui pelo fan-tan e pelas mulheres. Ninguém sabe quem tu és. Du Yuesheng olhou para as cartas que estavam em cima da mesa. – Continuas a jogar, Luc? – Todos temos as nossas maneiras de ganhar a vida. Eu tenho o jogo. Chega-me para viver feliz. O Du tinha poder. Mas, já viu, o que é o poder? Os olhos de Luc pareciam imersos numa abstracção sombria, olhavam para as cartas num jogo solitário. Vinha para ali abstrair-se antes de sair para ir jogar, e ganhar, nos hotéis e salas de jogo frequentados por ocidentais. – Já não tenho tempo para sentimentos, Du. Tenho relações comerciais. Luc falava pouco. Sabia o perigo que era, nesses dias, dizer o que se pensava ou se sabia. Agora todos se abstinham de confidências junto das pessoas que tinham conhecido pouco antes, pois num bar de hotel todos poderiam estar a soldo de alguém ou de um serviço secreto. Macau já estava cheio deles. Todos desconfiavam de todos. Du percebeu: – Aqui até a lealdade tem um preço, não é verdade, Luc? – Sim, é isso. Por isso é que este lugar é seguro. Aqui só vêm os que pouco têm. Por isso neste local imundo ouve-se o que mais ninguém escuta. Que desejas afinal? – Informações. Saber o que todos fazem em Macau. – É possível. E em troca? – Tenho uma informação que te interessa. – Não sabes nada que me interesse, Du. Tudo o que sabes, eu sei. Tal como acontecia em Xangai, mas ao contrário. Aí tu é que sabias tudo. Mas serás informado. Sobre os japoneses. Sobre os negócios. Du sorriu. Luc aprendera o valor da informação. Perguntou-lhe: – Não tens medo de perder todo o teu dinheiro ao jogo? – Não, Du. Nunca perderei ao jogo porque não tenho nada a perder.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasZhuge Liang, o Dragão Adormecido [dropcap]C[/dropcap]omo grande estratega militar, só comparável com Sun Zi do século V a.n.E., Zhuge Liang (181-234) tinha o nome literário Kongming e era conhecido pela alcunha do Dragão Adormecido. Potência à espera de ser acordada pois, pouco antes da sua existência se criara da Filosofia do Dao o Daoísmo religioso como contrabalanço às religiões estrangeiras que chegavam à China. Em 207, o próprio Liu Bei, descendente da família imperial dos Han, veio a casa de Zhuge Liang pedir para, como homem de Estado e criativo inventor, se tornar o seu conselheiro militar e organizar o exército do que viria a ser o Reino Shu Han, no Período dos Três Reinos (220-280). Nos finais do século II, a dinastia Han (206 a.n.E.-220) tinha governantes fracos e corruptos, havendo contínuas lutas dentro da corte, sendo a população oprimida e explorada. Em 184, trezentos mil camponeses em muitas partes do país levantarem-se contra o Governo, no que ficou conhecida pela Revolta dos Turbantes Amarelos. Três anos antes, no ano 181 nascera Zhuge Liang em Yangdu de Langya, hoje vila de Yinan, pertencente ao distrito de Linyi situado na parte Sul da província de Shandong. A sua mãe morreu quando tinha três anos (184) e devido à morte de seu pai, Zhuge Gui, que fora magistrado no distrito de Taishan, ainda criança, com oito anos (189) ficou à guarda do tio, Zhuge Xuan. O general Yuan Shu, um senhor da guerra que mais tarde em 197 se auto proclamou imperador da curtíssima dinastia Zhong, enviou Zhuge Xuan para tomar conta de YüZhang, pequena localidade a Norte da actual província de Jiangxi, próximo de Nanchang. Como a nomeação não teve a aprovação dos oficiais Han, Zhuge Xuan foi ter com o seu amigo Liu Biao, o perfeito (governador) da província de Jing (Jingzhou em Hubei), que no ano 190 mudara a capital de Hanshou para Xiangyang. Assim em Xianyang ficou a viver, acompanhado pelo sobrinho Zhuge Liang, tendo este estudado durante três anos numa escola, talvez na Academia fundada por Liu Biao pelo ano de 196. Ao mesmo tempo, Liang escolheu Pang Degong para ser seu mestre. Zhuge Xuan morreu em 197 e após a morte do tio, Zhuge Liang com dezassete anos foi viver para a aldeia Longzhong, actualmente próximo de Xiangyang, província de Hubei, onde se dedicou à agricultura. O seu tempo livre passava a ler, assim como gostava de conversar com os mestres Pang Degong e Xü Shu, pessoas mais velhas ensinando-lhe coisas da vida e com quem trocava ideias sobre as convulsões que ocorriam pelo país. Zhuge Liang passou mais ao menos dez anos em Longzhong, onde fez muitos amigos entre os locais, mantendo relações de amizade com intelectuais como Sima Hui e Huang Chengyan. Certa vez, Huang Chengyan sabendo Zhuge Liang andar à procura de esposa para se casar, propôs-lhe a filha. Avisou-o ser ela feiosa, apesar de dotada de muitos talentos, que bem se complementaria com os atributos dele. Concordando, casou-se com Huang YueYing, apesar de no registo histórico local Xiangyang Ji, onde vem narrado tal episódio, o nome da esposa nunca ter sido mencionado. Pérola da imortalidade É preciso lembrar pouco se saber sobre Zhuge Liang, figura para além de histórica tem a complementá-la várias lendárias e mitológicas narrações a envolvê-lo num ser misterioso e de grande poder. Se a maior parte da sua vida apenas vem narrada no Romance dos Três Reinos (San Guo Yanyi 三国演义) escrito por Luo Guanzhong (1330-1400), há outras histórias que nem aí foram contadas e uma delas, a mais estranha de todas, refere-se a como Zhuge Liang se torna um Imortal. Registada após via oral ter passada de geração em geração e só escrita muito tempo depois nas Histórias de Longzhong. Nessa mitológica lenda sobre a sua juventude explica-se a razão de Zhuge Liang se apresentar sempre com um leque de penas na mão e uma túnica de mestre daoista. Ainda criança, durante o dia trabalha numa loja de chá e à noite estuda em casa. Certo dia, à loja, cheia de gente a beber, chega um idoso daoista e sentando-se, logo começa a falar sobre assuntos deveras muito interessantes, colocando as pessoas a escutar com atenção. Vem desde então diariamente à casa de chá, sentando-se de manhã até à hora do fecho, aparecendo cada vez mais gente para o escutar e com ele falar. Parece saber de tudo, desde o passado histórico até aos dias que correm, de astronomia à geografia, de política aos assuntos militares. Como empregado Zhuge Liang muito aprecia aquelas sessões e cada vez mais a admiração cresce perante aquela prodigiosa figura, mas, devido à sua juventude e posição, não lhe é permitido questionar a distinta personagem. Assim aumenta a curiosidade sobre aquele estranho ser. Certa vez Zhuge Liang encontra a oportunidade de saber onde ele habita pois, usando inteligente solução, enquanto o ancião entusiasmado fala, consegue apoderar-se da bengala de bambu que sempre o acompanhava. Pegando no bastão, faz um buraco na última sessão e aí coloca uns pós de incenso. Bengala no lugar, sem que o orador desse por nada. Após este sair da casa de chá, Zhuge Liang, para não ser apanhado a segui-lo, espera, pois, apenas tem de perseguir o rasto desse pó deixado pelo caminho e assim pôde chegar ao local onde o idoso estará. A marca do pó desaparece em frente a um pequeno pinhal, sem haver casa alguma. Estranho! De repente o som do ressonar e olhando de onde vem, repara num ninho colocado no alto de uma dessas árvores, onde dorme um grande crane. Devagar aproxima-se para melhor analisar o ninho e já por baixo, continuando a olhar para cima, de repente do bico cai uma gota de saliva em forma de pérola na boca de Zhuge Liang, que a engole. De repente o crane acorda e com a pérola desaparecida, cai do ninho e ao chegar ao chão, logo se transforma no nosso conhecido ancião. Este desabafando refere trabalhar na pérola há milhares de anos e ter ela o poder de saber fazer muitas coisas. Transmitida quando ele a engoliu, agora podia deixar a vida. Ao ouvir tal, Zhuge Liang assustado e pesaroso pelo que provocara, logo escuta do ancião, ter acontecido porque tinha que ser (yuanfan). Então relatou-lhe ter ali vivido milhares de anos, sem ninguém o ter encontrado. – Hoje tu viste-me, por isso és uma pessoa especial. Assim, após eu passar desta vida e transformado em crane, tu retiras sete penas de cada uma das minhas asas para fazeres um leque e ofereço-te as minhas roupas de mestre do Dao que te protegerão. Quando tiveres algum problema, abanas o leque e a pérola dentro do teu corpo dar-te-á a solução. Terminada a conversa o idoso finou e transformou-se de novo num crane a jazer no chão. Assim, estes dois adereços, roupa e leque, passaram a acompanhar Zhuge Liang durante toda a vida. Ana Maria Amaro refere sobre “a pérola que todos os dragões transportam e que não podem perder, para manterem a imortalidade, pérola que é formada pela sua própria saliva e tem a propriedade de satisfazer todos os desejos se for apanhada por algum feliz mortal”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUmwelt I [dropcap]O[/dropcap] ser humano para a medicina antiga não era o corpo humano desligado anatomicamente do meio ambiente, do milieu físico, da Umwelt. Não é o interior somático delimitado pelas fronteiras físicas do corpo humano. Podemos conceber o corpo humano como a configuração mecânica com que nos surge. É como o aspecto físico que um profiler esboça a partir da descrição que alguém faz de um suspeito. Nesse sentido, as características: sexo, idade, etnia, compleição física, tamanho, envergadura, peso, altura, aspecto do rosto, etc., etc., são determinações que apontam para uma morfologia mais ou menos complexa, mas exterior do ser humano. A percepção do corpo humano é igual à percepção de qualquer corpo. Capta só superfícies, isto é, o lado visível do objecto dentro da nossa perspectiva. Não vemos nada do que está tapado. Para lá da epiderme não vemos nada. Nenhum horizonte interno é captado à vista desarmada. Assim, compramos roupa, ocupamos espaços públicos e privados, temos lugar ou não em transportes públicos, restaurantes, espectáculos, etc., etc.. É inegável que cabemos ou não cabemos com outras pessoas em aviões e que sentimos mais ou menos as dimensões simpáticas e acolhedoras do tamanho de apartamentos, roupa, camas, cadeiras, etc., etc.. Isto é, nós somos o tamanho do corpo que temos. Temos também uma percepção do que se passa no nosso interior. Sentimo-nos mais ou menos enfartados, pesados, leves, com o comemos, se muito, se pouco. Sabemos da nossa altura, se somos mais ou menos altos. Somos, portanto, o que achamos ser a configuração mecânica do corpo. O nosso corpo está continuamente sob acção de um radar interior. O corpo não se reduz nunca apenas a músculos, tendões, articulações, ossos, carne, órgãos e aparelhos. Há sempre um sobredeterminação funcional a dar sentido ao conteúdo estritamente percepionado. Sabemos como puxar e empurrar, agarrar e soltar, porque há uma acção do corpo todo, com uma maior solicitação de uns músculos do que de outros. A própria pele — que cobre toda a extensão do nosso corpo — sente-se diferente ao vento, ao frio e ao calor, dentro e fora de água. Sentimos também o bater do coração, o fluxo sanguíneo, a falta de ar, dores musculares e de cabeça, tudo no nosso interior por assim dizer. Não damos conta dos músculos solicitados habitualmente. Há actividades físicas que, às vezes, solicitam músculos que nem sabíamos que tínhamos. O texto sobre o ar, as águas e os lugares esboça uma concepção do corpo humano a existir para lá do interior das suas fronteiras físicas. O ser humano é mais do que um volume tridimensional. É mais do que um vulto com um determinado aspecto. Por um lado, cada pessoa é igual a si própria e diferente de qualquer outra. Cada um é como cada qual. Para a medicina, cada caso é um caso. Por outro lado, podemos apurar características semelhantes e diferentes entre indivíduos: rostos, compleições físicas. Um asiático é diferente de um europeu. Mas há asiáticos e europeus parecidos e diferentes entre si.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasUma noite como as outras [dropcap]N[/dropcap]o reverso do estafado aforismo “uma imagem vale 1000 palavras” pode entender-se que uma imagem será capaz de inspirar e desencadear 1000 palavras. Atente-se no instantâneo anexo. É cativante como captura os presentes no seu normal, ou seja, na atitude que deles se popularizou. Ella Fitzgerald, à esquerda, provavelmente a pessoa mais bem-educado do mundo, era de uma timidez compulsiva e tinha pavor a entrevistas com medo de cometer gaffe ou simplismo. Só se sentia livre e no seu elemento debaixo dos holofotes e diante de um microfone – ei-la aqui muito compostinha. Segue-se Georgiana Henry, sua prima e dama de companhia, solicitamente virada para ela embora atenta às circunstâncias. Depois está o saxofonista Illinois Jacquet, menos conhecido conquanto fosse uma personalidade nas entrelinhas do jazz, não apenas pelo seu talento musical como pelo seu activismo, a mostrar um módico de compostura e atenção. Por fim o extrovertido e jocoso Dizzy Gillespie exibe uns à-vontades de perna traçada e uma expressão que, vendo bem, dá uns ares de insolente. Repare-se no vestido de tafetá e na estola de raposa de Fitzgerald, atavio que a indumentária dos companheiros não contraria. Presume-se, então, que vêm do palco ou estarão prestes a subir a ele. Não é hiperbólico afirmar que por esta altura a celebridade de Dizzy e Ella seria planetária. Pelo menos nas capitais europeias a intelligentzia autóctone idolatrava-os como grandes artistas, apesar de ser restrita a sua aceitação pelos públicos domésticos. De qualquer modo em 1955 as autoridades civis de Houston, onde agora os vemos, ainda os tinham na conta de uns pretos saídos da casca e armados em vedetas. Observando melhor o cenário, o banco corrido, o chão de pedra fria, a parede crua e, sobretudo, as grades nas janelas, depressa se percebe que o grupo não assenta em camarim ou bastidores – está no calabouço de uma esquadra. O produtor Norman Granz chegara a Houston com esta troupe em mais uma digressão do seu afamado e esplêndido Jazz at the Philharmonic. Cidade rica, os magnatas que nela punham e dispunham tinham bem atada e subserviente a polícia, famigerada pelo seu intrépido segregacionismo. Granz fazia ponto de honra que nos seus concertos não houvesse discriminação racial, quer em palco, quer na plateia. De modo que exigiu não se venderem bilhetes senão no dia do concerto, assim evitando compras em bloco, e mandou retirar as tabuletas que designavam os sectores da sala de “white” e “negro.” A vingança não se fez esperar. Ia terminando a actuação de Gene Krupa quando uns chapas à paisana irromperam de revólver em punho no camarim de Ella, sossegada a comer uma fatia de tarte enquanto Jacquet e Gillespie entretinham a espera jogando aos dados. Granz correu a interpor-se entre os agentes e a casa de banho, não fossem eles plantar alguma droga para dar mais substância à rusga, no que viu o cano de uma arma ser-lhe encostado à barriga. “Dispara se és capaz” rosnou – mas o chui não foi. Isto vai tudo de cana por jogo ilegal, bradou o chefe da brigada, ao que Granz lhe retorquiu que subisse ele ao proscénio para anunciar aos 3.000 pagantes que o concerto estava cancelado. Com receio de um motim – de espectadores maioritariamente brancos… – os polícias resolveram que os flagrados iriam à esquadra para lhes ser levantado auto mas regressariam a tempo da segunda parte. À chegada esperavam-nos uma bateria de repórteres evidenciando a premeditação da emboscada. Um deles teve o despautério de pedir um autógrafo a Ella Fitzgerald que choramingava – na foto fica agora evidente a sua tensão. Gillespie porém, insurrecto como sempre, ao ser-lhe pedida identificação declarou chamar-se Louis Armstrong. O Houston Post publicou a reportagem no dia seguinte. À fotografia juntou com toque de ignóbil condescendência o comentário: “a senhora mais bem vestida que alguma vez apareceu numa esquadra de Houston.” Norman Granz teve de esportular $2000 para que o processo se arquivasse, mas o despautério acabou por sair barato. A ocorrência deu escândalo nacional e nunca mais em Houston se realizaram concertos segregados.