Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasVida Nova [dropcap]T[/dropcap]anto era tempo de partida que a avó se foi, sem ninguém dar por ela sair da casa habitada durante oitenta e oito anos. Um último Natal e, dois dias depois, uma ida silenciosa e serena, como quem diz: “Vocês cuidaram de mim mas, agora, finalmente, posso levantar-me e ir, vejam, afinal ainda consigo fazer coisas sozinha”. E lá foi, deixando para trás o eco da sua gargalhada inconfundível e todos os bons conselhos que nos deu. Foi sem falar e sem que as máquinas a traíssem. Foi sem que ninguém percebesse. No entanto, ninguém foi mais notado do que ela, entre a outra casa e o hospital. A doença prolongada faz isso. O amor também. E ela espalhou o seu, no mínimo, por mais três gerações. O que será do tempo e do espaço que ela ocupou aos que lhe eram mais próximos? Talvez nem eles saibam ainda. Talvez ainda seja cedo para fazer mais do que contemplar o vazio. Mas desconfio que as crianças ainda vejam a bisa e se riam com ela. Desconfio que as crianças saberão exactamente o que fazer. Que elas, uma e outra vez, ensinarão aos adultos o que é viver. Que é preciso fazê-lo. E que nem as crianças nem a avó terão lido Valéry. É outra vez aquela fase em que toda a gente parece estar com um bebé a caminho ou acabado de chegar. As visitas, os vídeos e as fotos ocupam a agenda e o telemóvel. Dou por mim a pensar em como pôde a vida ser antes destas chegadas que parecem, assim de repente, de quem esteve sempre ali. Poderia ser um grande motivo de preocupação, a ameaça de guerra. Mas um bebé ocupa tanto a barriga da mãe como tudo o resto. Em “Conhecereis a Nossa Velocidade”, uma das personagens de Dave Eggers declara: “Há viagens e há bebés. O resto é trabalheira e morte.” Começa um novo ano e somos obrigados a confrontar-nos com as promessas de falhar à la Pedro Chagas Freitas e a concluir que ele esteve, este tempo todo, a falar das resoluções de ano novo. Em reuniões de trabalho ou no Instagram, as listas são muito semelhantes. Dou por mim a fazer listas para os outros, como todas as pessoas que adoram listas e acham que sabem o que é melhor para alguém. Mas as listas que anunciamos publicamente não são, também elas, para mostrar aos outros? Penso na minha própria lista, evito-a, destruo e refaço-a. Dou por mim a falhar um ou outro aspecto e ainda só passou uma semana da não consensual nova década. O meu último momento vergonhoso de 2019 foi, ao sair de casa no dia 31 para deixar comes e bebes em casa de uma amiga, ter pedido ao motorista da Uber que me esperasse, pois ainda precisaria de ir ao teatro. Ricardo III, de Thomas Ostermeier, no Dona Maria II. A maravilha total. O motorista acedeu. Subi, desci e dirigi-me ao carro cinzento em quatro piscas frente ao prédio. Porta trancada. Bati e nada. Vidro da frente. Bato. O dono desce o vidro e olha-me, muito sério. Peço desculpa, olho para a frente e vejo um carro cinzento em quatro piscas. Entro. Conto o que acabou de acontecer. Rimos até ao teatro. O meu primeiro momento vergonhoso de 2020 foi, continuando com o dramatismo que define quer a minha vida quer a cultura que consumo, ter ido assistir ao querido “Que mal fiz eu a Deus agora?”, ver-me a braços com um menu pipoca mais refrigerante e, tendo chegado cedo ao cinema, em pleno dia 1, pousar a bebida no chão, à falta de suporte, e as pipocas no banco ao lado. Equilíbrio perfeito, até o dito ter tombado, sozinho, para o banco e para o colo da ocupante do banco ao lado, num momento em que, já em modo sala cheia, aquele lugar, ainda para mais no topo, se tornou, de repente, mais cobiçado que o trono mais falado dos últimos anos. Até ao filme começar, tive de desiludir umas cinco pessoas que queriam sentar-se ali. Mas só um senhor conquistou o Popcorn Throne. À saída do filme, pediu desculpa por ter-se sentado nas minha pipocas. Como dizia a alguém de quem gosto muito outro dia, estranhamente, não dei por mim a querer ser menos parva em 2020. Há quem saiba dizer onde se encontra no tempo da sua vida. Eu observei sempre as minhas mãos sem saber ou acreditar que cumpriria o comprimento da linha da vida. Tenho umas linhas bem longas e vincadas. Não sei onde me encontro, se falta muito mais para a frente do que o que esteve para trás. Seria assim, idealmente, não é? No entanto, para tantos e tantas, a dificuldade de viver é tão avassaladora que envelhecer nem é uma hipótese. A mente não chega lá. Quanto a mim, gosto de viver. Apenas nunca me imaginei a envelhecer, como se não fosse lá chegar sem tê-lo imaginado. Como se fosse desenhando a minha existência, ou escrevendo-a, ao longo da própria vida. Independentemente das mãos e de tudo o resto. Penso no que dizer a todos estes bebés. Mas é tão mais bonito e importante o que eles me dizem quando me olham, quando dormem, quando fazem birras e quando sorriem. É maravilhoso e tolo o tempo que podemos passar a olhar para eles. No fundo, precisamos tanto deles como o contrário, ou mais até.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO encontro que nunca mais acontece [dropcap]U[/dropcap]ma das poucas coisas por que ansiava possíveis no meu tempo de vida era finalmente encontrarmos vida inteligente extraterrestre. Quando nasci, em 1974, a última missão tripulada à lua tinha ocorrido há dois anos. A febre das conquistas espaciais, alavancada em grande parte pela guerra fria, dissipava-se lentamente. Ainda assim não faltavam literatura, filmes e séries de ficção científica sobre o tema do espaço e da sua exploração, e sentia-se que de algum modo havia uma equivalência entre a produção de um fantástico aparente irrealizável e os romances de Júlio Verne acerca dos mais incríveis feitos humanos: era uma questão de tempo. Quando se perguntava aos miúdos da minha geração o que eles queriam ser, bombeiros e astronautas estavam no topo das respostas mais frequentes. De algum modo, ambas profissões estavam ligadas por uma espécie de abnegação heróica presente em cada uma delas. A maior parte dos putos conhecia apenas um ou dois astronautas – e provavelmente apenas o nome – e quase certamente nenhum bombeiro. Mas o que fascinava a gaiatada não era o lado concreto e desformalizado destas profissões mas, outrossim, a aura que elas transportavam e que claramente remetia para uma heroicidade com contornos de modéstia: uma propunha-se a salvar o mundo civilizado, uma casa de cada vez; a outra almejava expandir esse mesmo mundo, primeiro dentro dos limites das nossas parcas capacidades tecnológicas “um pequeno passo para um homem, mas um passo de gigante para a humanidade”, nas palavras de Neil Armstrong, mas – e sobretudo – mediante o alargamento ciclópico daquilo que era doravante concebível. Com 45 anos agora e espero que ainda algo longe do dia que sempre chega, já não nutro grande esperança de no meu tempo de vida a espécie humana encontrar qualquer sinal de vida inteligente lá fora. Não é só uma questão de pessimismo estrutural, condição que vai recrudescendo à medida que um tipo se aproxima da morte, mas sobretudo de uma manifesta incapacidade de encontrar quaisquer evidências, sejam estas directas ou indirectas, da presença, nem que seja arqueológica, de uma civilização extraterrestre algures. Apesar da quantidade propriamente astronómica de estrelas no universo que albergam planetas possivelmente habitáveis, não há qualquer notícia de que a vida tenha surgido e evoluído num deles ao ponto de podermos detectá-la. A esta contradição entre termos – biliões de estrelas por um lado, zero notícia de vida inteligente por outro – chama-se paradoxo de Fermi. As razões elencadas para justificar este silêncio ou dormência do universo são muitas. A terra parece ser, de facto, um planeta excepcional, a muitos níveis, e talvez a confluência de motivos pelos quais a vida floresceu neste cantinho não seja facilmente repetível. Talvez as civilizações tenham tendência para se autodestruírem antes de conseguirem explorar o espaço em seu redor – sabe Deus como caminhamos sobre esse fio de navalha há largos anos. Talvez as distâncias cósmicas sejam impeditivas da comunicação: olhar para fora, na perspectiva astronómica, equivale a olhar para trás no tempo, e as distâncias são tão avassaladoras que um pingue-pongue de mensagens trocadas pode facilmente levar mais de mil anos a cumprir-se. Talvez o ponto de vista humano seja tão primitivo que não consegue perceber uma possível presença não tão rara de civilizações extraterrestres evoluídas. Ou talvez estas existam, e em abundância, e nos considerem incapazes de as compreender adequadamente – pelo menos por ora. Talvez sejamos apenas a colónia de formigas de uns tipos que se entretêm a olhar para nós quando não têm mais nada que fazer. Por minha parte, e independentemente da justificação que melhor se adequa ao silêncio do universo, reduzi grandemente as expectativas com a idade e proponho-me a uma tarefa bem mais humilde, ainda que igualmente espinhosa: encontrar vida inteligente aqui mesmo, neste cantinho, coisa que parece ser cada vez mais rara.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasScorsese, It is what it is (Parte II) [dropcap]É[/dropcap] então ao cabo de quase duas horas de “O Irlandês” que se dá O Acontecimento. Durante a caprichosa confecção de uma salada, a salada perfeita, Joe Pesci sugere a De Niro que resolva o caso de Al Pacino. (A história do cinema já nos habituou a que no subgénero dos filmes de gangsters, talvez aquele em que a morte esteja mais exposta, muito poucas ordens sejam dadas. As indicações são insinuadas, ou seja, não há transferência de responsabilidade, cada um é senhor dos seus actos e fica individualmente comprometido com as suas consequências. Mais do que uma estratégia judicial é uma determinação moral.) Pela primeira vez De Niro vê-se agrilhoado a um dilema, vicissitude a que fora escapando por se ter restringido a cumprir as tarefas que lhe eram cometidas sem esboço de objecção ou dúvida. Doravante, decida o que decidir na sua consciência para sempre se ferrará o labéu de Judas. Quem irá o irlandês Frank Sheenan trair? Se não cumprir a incumbência homicida, trairá Joe Pesci, o mistagogo a quem deve, mais do que a vida, o ser e a existência (esse identidade que a filha renega castigando o pai com o infinito silêncio das mulheres das tragédias gregas privadas da palavra. Já agora, poucos actores foram vistos a dizerem tanto de lábios fechados como Anna Paquin em “O Irlandês”). Se, por outro lado, assassinar Pacino trairá a confiança supostamente inviolável daquele que lhe foi afiançado guardar e proteger, com quem estreitara laços de amizade, manchando e penhorando ad aeternum a sua credibilidade. Adensa o dilema que Pesci ilibe De Niro pondo a culpa de lado com uma simples frase: “we did all we could for the man.” Durante 20 minutos seguintes “O Irlandês” transfigura-se por completo, desde a cena da salada até à sequência mais trágica do filme, em que para conquistar e merecer um pouco de respeito da filha, De Niro telefona à mulher de Pacino, e sabendo que só a verdade a consolaria mostra-se incapaz de assumir o seu ónus despenhando-se na mentira com um discurso atropelado e cobarde, tornando-se a seus próprios olhos um ser abjecto – um Judas. Até aqui “O Irlandês” fora um filme de diálogos, firmado em prolíficas e destras tomadas em campo / contra-campo, com os planos muito cingidos ao torso dos atores, quase todo em interiores e bastante nocturno. Neste 20 fulminantes minutos abundam os planos exteriores filmados com uma grande angular que diminui as figuras humanas, apequenadas no espaço e com muito ar à volta. São cenas diurnas e o clima é primaveril. Será especulativo, mas não imprudente, evocar de novo a influência de John Ford – talvez o da “trilogia da cavalaria” – nesta forma de enquadrar na vastidão do mundo as suas personagens tolhidas por um pecado original que tentam superar ou ignorar norteando-se apenas pela missão que têm de cumprir. Houve quem se enfadasse com a demora de Scorsese em chegar a este ponto e aferisse essas duas horas como redundantes em relação a “Goofellas.” Mas o movimento dos filmes é de todo antinómico. O andamento de “Goofellas” é em accelerando para a precipitação. Queda que ratifica a traição final de Ray Liotta, reduzido a um “schnuck” suburbano que vem de roupão recolher o jornal à porta pela manhã. É em sentido contrário que corre “O Irlandês;” o percurso de De Niro não só se consolida num modo de vida prático, estável e perfunctório (oposto à euforia criminal de “Goofellas”) como vai mesmo progredindo até à liderança do sindicato, com direito a concorrido jantar de homenagem e baile. A traição é em “Goofellas” o epílogo consumado por um destino; em “O Irlandês” a traição é a tragédia inerente ao livre-arbítrio. Desde o início de “O Irlandês” que Scorsese se defronta com uma dificuldade diegética: como impulsionar a expectativa dramática e insuflar alento emocional numa história cujo desfecho toda a gente prevê? Mal se apresenta a figura de Jimmy Hoffa quem conheça um bocadinho da História dos EUA – essa História que vai cuidadosamente pontuando o filme – sabe que ele desapareceu sem deixar rasto e embora nunca tenha havido nem cadáver nem factos comprobatórios, saberá também que foi a mafia que o suprimiu. Quem desconheça Hoffa mas esteja a par do repertório de Al Pacino discerne que as suas personagens raro morrem com os sapatos calçados. Mas em “O Irlandês” até os virgens da História e da cinefilia pressentem que aquilo é capaz de não acabar bem. Scorsese sabe, portanto, que a magnitude sísmica do dilema que dilacera a existência de De Niro só será partilhada emocionalmente por todas estas espécies de espectadores se estes se resignarem a presenciar um rosário de peripécias que malgrado o seu defluxo narrativo produzem a sensação de não se orientarem para um climax. Ora no cinema há uma ferramenta privilegiada para causar lassitude e desguarnecer a atenção – dilatar o tempo, de modo aparentemente desnecessário. Que não haja equívoco, “O Irlandês” tem a duração exacta e necessária. Pode é não obedecer à medida do tempo fora dele ou do tempo de um espectador que tem outras coisas que fazer além de ficar 3 horas a contemplar um filme.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAssociação [dropcap]U[/dropcap]m dos factos experimentados por nós na vida é a lembrança imediata de tempos idos provocada por uma percepção actual da realidade. A formulação teórica deste “facto” pode até inibir a facilidade com que fazemos essa experiência. A psicologia fala de “associação”. Mas já Platão tinha construído o argumento para demonstrar a especificidade da lucidez humana nesse facto. O modo como vivemos o que acontece é o de uma contínua tentativa de reconstituição e interpretação do passado, mas também do presente e do futuro, como se os conteúdos da realidade por si sós fossem insuficientes e não trouxessem consigo nenhuma explicação do que são, mas também porque a sua realidade é fluída. Tal como um som só existe distribuído numa sucessão temporal, mesmo quando admite coexistência e simultaneidade de sons (não apenas uma voz mas uma sinfonia de vozes), assim também qualquer manifestação noutro campo sensorial: uma fragrância (o aroma a sardinha grelhada à tardinha num bairro popular em Lisboa), uma configuração (a variação e esbatimento do céu como plano de fundo cromático à forma do sol a pôr-se: azul claro, escuro, laranja, fogo, púrpura, negro), táctil (palma da mão que acaricia o rosto de alguém), paladar (trincar uma maçã, mastigar, engolir). Todos os fenómenos da realidade são distribuídos no tempo para acontecerem. Sem tempo são como os fenómenos exclusivamente acústicos que dependem quase unicamente da dimensão do tempo para ocorrerem e decorrerem. Assim, tudo o que acontece num só dia passa ao fim desse dia, embora haja situações em aberto que demoram meses, semestres, anos, até a vida inteira a concluir. Outras situações há que não são conclusivas. Mas importa frisar isto. No fim do dia, o que estava na nossa agenda, tendo ou não sido tratado, teve o seu momento, passou, está, mal ou bem, teve cumprido ou não, o seu tempo. Daí que, no fim do dia, quando conversamos com alguém sobre o dia que passou, haja uma reconstituição do que se passou. Não é apenas uma invocação por memória que activa uma percepção passada, com um determinado conteúdo, exactamente como se passou tim tim por tim tim. Ao conversar-se no fim do dia sobre o dia que passou comemora-se, isto é, lembramos a dois ou a três, colectivamente ou a sós na calada da consciência, o que se passou. Temos a oportunidade de reviver outra vez o que foi vivido, como se “realizássemos”, “editássemos”, “contássemos pelas nosssa palavras”, “déssemos a nossa versão”, do que se passou. Mas não adoptamos nenhuma atitude correspondente perante o acto de “realizar”, “editar”, “contar uma versão”, “dizer a verdade”, “expressar um sentido”, “invocar o passado”. É assim que habitual e normalmente estamos “by default” ao conversar sobre o dia vivido, ao contar como foi e ao ouvir dizer ao outro o que lhe aconteceu. De memória e percepção como actos psicológicos não temos nenhuma noção. “Estaríamos feitos” se estivéssemos à espera de aprender com a psicologia o modo de aceder ao passado e de contar o que se passou. Despertamos logo com essa possibilidade, com ela “jogamos” desde sempre, está “aberta”, “disponível” para nós e contamos com essa abertura e disponibilidade nos outros. O que não é nada evidente. Quando olho para o outro no seu ambiente perceptivo ao pé de mim e me conta que esteve em agências bancárias, nas Finanças, eu não “vejo” o WhatsApp meio pelo qual “converso” ou o interior do meu carro, onde tenho a conversa, ou a cara do outro com quem estou. Eu sou atirado para o tempo passado com o compacto implícito, complicado, integrado, mas susceptível de ser desdobrado do que se passou. Correu bem no Banco. Mas nas Finanças!… Eu sou transportado para lá. Não sou eu lá, como se fosse a mim. Eu não preciso de me transportar para lá e tentar pôr-me no lugar do outro de modo altamente reflexivo e teórico. Simplesmente, eu capto a realidade total, concreta e maciça, num ápice, do que o outro me está a contar, num “resumo” disposicional, numa abertura que me permite “espreitar” para dentro das horas infindáveis até ser recebido, para depois ter resolvido o assunto em tão pouco tempo e, depois, ter podido seguir com a sua vida. Como também se pode ter a abertura que permite o transporte num abrir e fechar de olhos que tem a percepção de como foram boas as férias de três semanas passadas por alguém que as aproveitou para descansar. Sente-se desanuviamento, tranquilidade, serenidade, sem o ramerame dos dias a passaram nas três semanas, mas sente-se o transporte telepático e telecinético para lá, seja “lá” onde for, seja “três semana” o que for.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasDireito a entristecer [dropcap]E[/dropcap]screvo quando o meu relógio ordena que sejam 1:43 AM do dia 31 de Dezembro de 2019 em Lisboa, Portugal. O relógio tem razão: chegado da rua bem pude observar a efervescência misteriosa que acompanha estes dias e mais ainda a véspera da véspera do que supostamente vemos como final de um ciclo e a esperança de um novo. Sobre isto, pouco a dizer. Em rigor estou grato a esse 24 de Fevereiro de 1582, quando o Papa Gregório XII estabeleceu pela bula Inter gravíssimas o modo artificial como podemos domesticar o tempo, esse monstro que criámos. Provavelmente a minha gratidão seria idêntica se por acaso pertencesse a outra cultura com outros modos de fazer o mesmo. É uma das coisas que nos une, a nós pobres humanos: a percepção do tempo, do que nos atravessa devagar e sem retorno. E sempre é um pretexto, se pretextos forem precisos, de reunir com amigos e em clima festivo fazer o que na verdade deveríamos fazer ao longo do ano. Mas divago. A questão que me atormenta é outra. É a vida, é o que temos. E ao olhar hoje para estes dias que são “emblemas de perfeita felicidade” (para traduzir o poeta que mais me diz) sinto desconforto e estranheza. Tudo parece turvo e desalinhado. Admito: fases da vida, horas que doem mais, disposição melancólica incorrigível. Mas assim mesmo, amigos, mas assim mesmo. Onde ficamos nós, as vítimas de dramas nem por isso dramáticos mas que doem? Para onde podemos ir, nós os que por mistério, sorte ou destino conseguimos escapar às grandes tragédias humanas mas que como todos temos que enfrentar as mais quotidianas? Nestas alturas onde ficamos nós, os exilados da alegria luminosa, os fugitivos dos outros? Onde nos iremos esconder da felicidade, mesmo que ela não exista? Onde podemos expiar os nossos pequenos dramas – tão pequenos que não podem importar face a quem morre ou face a quem não tem abrigo? Que petições existem para os que apenas padecem de um amor que fugiu, de um amigo que desiludiu, de uma vida que muda quando não existem forças para ela mudar ? Que santuário para o tipo que bebe o seu jantar a pensar no que perdeu, para todos e todas que apostaram e perderam? Quem pode aceitar os que estão tristes? Ah, amigos: nestas alturas a vozearia periódica da alegria pode ser insuportável. Corrijo: é insuportável. E ninguém nos deseja, e todos fogem de nós porque entristecer é contagioso, inoportuno, inconveniente. Esta continua a ser a época em que é mais fácil chorarmos globalmente do que enfrentar as lágrimas de alguém próximo. O dom das lágrimas, tão louvado pelo cristianismo primitivo, perdeu-se para uma névoa de compaixão anónima, muito mais confortável. É preciso não ter medo da tristeza. Ainda mais nestas alturas em que não seria suposto enfrentá-la. É preciso lembrar que numa cultura orientada a todo o custo para a perseguição dessa entidade mítica que é a “felicidade” a tristeza vale exactamente o mesmo, até por oposição. Não, amigos: regressado da euforia do que achamos que temos de fazer, reclamo sem medo e com urgência o direito a entristecer.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasProntuário [dropcap]P[/dropcap]rontifiquemo-nos na língua pronta a usar pelos acordes programáticos da ortografia e vejamos como se pode comunicar sem “concordância” alguma, nem no passado, nem no presente, e muito menos no futuro que nos acolhe. O que fazem com a língua é uma questão bastante exaltante, e o que se escuta destas reformas dá-nos que pensar: talvez nem tenhamos já idade para aprender a mesma coisa outra vez da forma que desejam que se saiba. Ditongos e tritongos todos em lista de espera para ser pronunciados enquanto aguardam pela vistoria da norma, hiatos mal plantados, vogais mudas de espanto, e consoantes consoante a norma a sair. Sequências consequências, dobradas… Bem possível que o exercício da poesia nesta língua fuja para remotos locais com as Maiúsculas atrás… Aspas para citações comprometedoras… verbos defectivos e falantes defecáveis, uma imensa confusão se instalou nas mentes das gentes que também não prezam por características cartesianas na sua moldura penal e penosa, de pensamento. Que fazer? Continuar. Se por tudo e por nada tivermos de andar agarrados uns aos outros é certo e sabido que não fazemos nada. A arbitrariedade das normas de cada um para bem de todos é uma demonstração trepidante que pode paralisar as grandes soluções. Temos direito ao silêncio como nos Tribunais, e temos mais direitos ainda: que é o de não reparar. Repare-se nos níveis de trepidação, ou, sejamos claros: as normas existem para ser mudadas, mas mudar a norma equivale a um grande equívoco e as fracturas ao nível metafórico da substância de uma língua equivalem a longos períodos de padecimento. Ao tempo numeral juntámos um vocabulário cada vez mais amputado – para nos entendermos melhor, dizem – gentes que nem nunca falaram connosco e nós falamos uns com os outros em termos cada vez mais acusatórios, ficando assim uma inibidora impressão, de que, e para, que serve a língua. Fica-se triste! Os Pronomes Pessoais são imprecisos e não passam a átonos de forma natural. Há, no entanto, muitas Interjeições, está tudo mais ou menos espantado acerca de tudo e de nada, o que leva a pensar que não estão preparados para as novidades. Um ponto final arrasta-se sempre parecendo uma reticência, que bem encolhida, de novo se aproxima como se nada tivesse acontecido: uma capacidade de perdão sem sentido para uma incapacidade de dialogar que não há memória. Mas ele há sempre Verbos com um duplo particípio passado e formas ortográficas que desmantelam o aparelho fonador a níveis insustentáveis, aliás, este aparelho é um bem que possuímos, daí o atentado à sua geografia física durante séculos – cortando a cabeça solucionava-se assim um problema que a própria transcendência não conseguia resolver- e foi pensando no trauma de uma realidade outrora vivida que a Humanidade começou a gaguejar, arrastando vogais como se nas mãos de seus carrascos ainda estivesse. Há Acordos para estas coisas? Não. Mas elas são consensuais perante os falantes. Os Pronomes Átonos que devido a um socalco de voz passaram a “átomos”? E os factos que passaram a fatos, e os fatos que passaram a andrajos? E o “ir de encontro” em vez de ir ao encontro? De forma subliminar todos chocam de forma agreste, em vez de propor a coisa mais gentil que é rumar para outro. E o pronto e os pronto (s) e o pois e o depois, e o pá e o portanto? Uma grande disformidade por épocas tolhe a língua em grande dimensão que a voz como seu suporte logo nos faz sono e uma turbulência nos aflige. Talvez aulas de dicção, oratória, um Prontuário de palavras em canto… voz nos respectivos palatos e algum secreto amor por uma fonte gasosa que é a língua. O “Sujeito Composto” não chega para dignificar o verbo e os prestidigitadores devem aprender a ultrapassar a barreira da inconsequência. O discurso indirecto não trata da lateralidade, e o discurso directo não é nenhuma verdade sustentável, com pontos vitais e contenção poética se deve então vigiar as margens de uma língua. Para tanto se requer qualidade e graça e uma aturada sensibilidade, nunca esquecendo os seus trabalhadores: a língua nunca foi o dizer coisas. É outra coisa, que requer uma atenção que agora não tem.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasUma asa do além [dropcap]O[/dropcap] filósofo espanhol Miguel de Unamuno viveu obcecado pela figura de Tomás de Taranto durante um período da sua vida, chegando a escrever vários pequenos textos que nunca chegou a publicar por razões misteriosas e que estiveram para vir a lume em dois volumes com o título “Uma Asa no Além – Volumes I e II”. Tomás de Taranto nasceu em Tavira em 1243, quatro anos depois de D. Paio Peres Correia ter conquistado o Castelo de Tavira e expulsado os mouros dessa cidade, e talvez seja por isso que ainda hoje se conheça muito pouco da sua vida e do seu pensamento filosófico e místico, que parece ainda muito dever aos árabes, e que nos anos da sua vida e subsequentes à sua morte deveriam parecer muito desviantes dos dogmas cristãos. De facto, os seus escritos, apesar de religiosos e cristãos eram considerados heréticos e este misto deve ter despertado a atenção de Unamuno, que sempre roçou uma asa pelo além. Mas Taranto não era descendente de árabes, mas de um comerciante do sul de Itália, que se casou com uma fidalga de Tavira e por aí ficou. O seu fascínio pela cultura árabe, segundo Unamuno, deve ter vindo da descoberta da tradução dos textos gregos antigos, especialmente dos estoicos. Livros que o pai lhe terá trazido numa das suas viagens marítimas e comerciais pelo sul de Espanha e norte de África. Independentemente do indiscutível interesse desses textos, para mim este interesse de Miguel de Unamuno por Tomás de Taranto traz os seus melhores frutos se nos detivermos numa tentativa de compreender o que leva alguém a querer entender outro com mais profundidade do que propriamente o sumo que se retira de entender essa figura herética. No fundo, trata-se da reflexão – que percorre muitos desses textos – acerca do que é que nos leva até ao outro, mesmo que seja, não a milhares de quilómetros de distância, mas a um infinito de distância, que é séculos passados. Unamuno, contudo, fascinado pela figura desse medieval português, salienta algumas passagens de Taranto acerca da diferença entre uma pessoa ética e uma pessoa boa, que reproduzo aqui: “Uma pessoa pode ser ética sem ser boa em sentido de afável; é o caso daquela pessoa que não tira de si para dar aos outros, mas jamais tiraria dos outros para dar a si. E uma pessoa boa (em sentido de afável) pode não ser ética; é o caso daquela pessoa que dá muitas vezes de si aos outros, mas nem sempre se comporta de modo correcto.” A pertinência da citação desta passagem, prende-se com o facto de nos mostrar que Taranto entendia o comportamento ético muito mais em sentido de não prejudicar o outro do que em fazer-lhe bem. Uma pessoa ética pode até nem dirigir a palavra a ninguém, ou em muito poucas ocasiões, ser aquilo a que usualmente se chama “pessoa fechada” ou antipática. Em outra passagem, lê-se: “Há muito mais ética no recolhimento do que na festa, no silêncio do que no canto.” E, quer se queira quer não, escutamos ecos do estoicismo. A ética, se não é dependente do recolhimento, é pelo menos sua vizinha próxima. Isso não basta, evidentemente, mas parece ser fundamental. Mas não seria por aqui que o interesse de Unamuno despertaria para as páginas deste português de Tavira, seguramente. Miguel de Unamuno refere acima de tudo o fascínio que a luz causava em Taranto, e são também estes os textos que mais me agradam. São muitas as páginas em que ele discorre acerca da luz de Tavira, do céu, das nuvens, como se de algum modo essa paisagem fosse a antecâmara de Deus ou, expressão feliz que usa num dos seus fragmentos: “uma asa do além”. O céu, que em português tanto pode ser metáfora do paraíso como o limite do planeta Terra – contrariamente à língua inglesa que distingue sky e heaven –, era para Taranto a unificação da natureza e de Deus, a síntese possível e visível da perfeição de Deus e da sua criação. O céu, para além do deslumbramento que causa, escreve Taranto, “lança a alma num desejo de mais que não encontra eco no mundo”. Unamuno, que algumas vezes se refere a Taranto como “o português do céu”, sublinha que essa relação entre céu e terra, sagrado e profano, que ele considera privilegiada, foi comum às povoações costeiras do sul durante séculos, mas que encontra a sua expressão máxima na cidade de Tavira, com Tomás de Taranto.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasNovas instituições em Macau e a indústria dos relógios [dropcap]O[/dropcap]s portugueses de Macau, perante o Vice-Rei de Liangguang (Guangdong e Guangxi) Chen Rui, reconheceram-se vassalos do Imperador do Celeste Império, passando desde 27 de Dezembro de 1582 a ter autorização oficial de permanência em Macau e os padres a possibilidade de poder viver em Zhaoqing. Para tal, muito contribuiu o relógio mecânico de rodas feito de ferro mandado da Europa e entregue pelo padre português Rui Vicente a Ruggieri, que o levou como presente a Chen Rui. Este relógio suscitou o interesse das elites chinesas e foi o primeiro dos muitos que se seguiram a serem enviados para a China, originando logo em 1583 uma produção relojoeira em Macau a cargo dos jesuítas, que continuou ao longo do século XVII. Luís Filipe Barreto refere, “O fabrico de relógios implica a existência de técnicos especializados e, no ano de 1583, um artífice/relojoeiro indiano, que aprendera a fabricar relógios com os portugueses, seguiu de Macau para a China para na Missão de Zhaoqing fabricar um relógio para o governador provincial Wang Pahn” [Chen Rui fora destituído a 6 de Fevereiro de 1583]. Segundo informava Matteo Ricci, os únicos relógios conhecidos dos chineses . Também na Europa, o relógio mecânico de rodinhas, inventado em 947 por Gerberto, um monge francês que em 999 viria a ser o Papa Silvestre II, era pouco usado pois atrasava ou adiantava um par de horas por dia. Apesar de se tornar uma moda, eram pouco precisos e assim continuava-se a utilizar os relógios de água, de sol e as ampulhetas de areia, para tomar conhecimento das horas. Nem a invenção da mola de aço em espiral, criada por volta de 1500 em Nuremberga por Peter Henlein, a substituir o peso [utilizado no relógio de 947, mas ainda sem o pêndulo aplicado nos relógios por Huygens em 1656, que veio dar maior rigor à medição do tempo] como motor do mecanismo registador das horas, trouxe maior fiabilidade. Foi só em meados do século XVI, com o regulador da mola a assegurar uma força motriz constante, que o relógio mecânico ganhou maior precisão. A política da oferta de relógios como presentes por parte dos jesuítas, segundo o padre Manuel Teixeira, ocorrera já em 1551, quando no Japão o Pe. Francisco Xavier ofereceu ao soberano Yamaguchi um grande relógio e oito anos depois, Luís Fróis, S.J., “conseguiu ter uma audiência com o imperador do Japão, vencendo as últimas repugnâncias do grande Kubosama, oferecendo-lhe um relógio que dava as horas.” Novas instituições em Macau Em 1583, “o Vice-rei de Guangdong-Guangxi admitiu publicamente que Macau era uma povoação especial do distrito de Xiangshan. Foi também este governante que introduziu em Macau o regime baojia, para a administração da população chinesa (sistema administrativo, baseado no registo dos residentes por unidade familiar, e no esquema de responsabilidade mútua). Foram erguidas, nas quatro ruas principais que atravessavam o centro da povoação, placas de grande dimensão, com palavras de ordem a inspirar respeito pelas autoridades chinesas”, segundo Victor F. S. Sit, que refere, “Após o reconhecimento chinês do estatuto de Macau, a comunidade portuguesa local, sob a supervisão do Bispo de Macau, fez, em 1583, a eleição do primeiro Senado da Câmara. Eleito por três anos, o Senado era constituído por três vereadores, dois juízes ordinários e um Procurador da cidade. Para a decisão sobre assuntos de importância maior, o Senado tinha que ser presidido conjuntamente pelo Bispo, pelo Capitão de Terra e pelo Magistrado.” Anteriormente, já a povoação elegia quatro vereadores, mas com o rápido desenvolvimento da população foi criado o Senado, tendo o bispo de Macau D. Leonardo de Sá presidido às primeiras eleições do governo municipal de onde surgiu o lugar de Procurador. Este cargo, cujo título oficial era de Regente Ocidental dos Assuntos de Macau, tinha como função gerir as relações com a China e por ser o chefe da administração portuguesa em Macau, em 1584 o Imperador Wan Li atribuiu-lhe o segundo grau de oficial, “com jurisdição sumária sobre os chineses em Macau”, segundo Montalto de Jesus, que refere, “este ‘olho dos bárbaros’ [Yi Mu], como os mandarins lhe chamavam, em casos importantes era substituído pelo prefeito de Xiangshan.” Já Victor Sit refere, “O Imperador decretou igualmente regulamentos sobre as visitas de inspecção dos mandarins a Macau, aos quais o Regente Ocidental tinha obrigação de prestar informações. Quanto ao protocolo oficial, ficou estabelecido que aquando da visita a Macau, os funcionários civis e militares (chineses) ocupam os lugares nobres no Senado e o Regente Ocidental, o lugar secundário. Estes regulamentos confirmaram, de facto, o estatuto de Macau como um fanfang (bairro estrangeiro), com autonomia administrativa interna.” Sob a origem do Governo Municipal (que tomou o nome de Senado da Câmara em 1584), Beatriz Basto da Silva refere, estar “o facto de os portugueses residentes em Macau, receosos de se tornarem simples súbditos espanhóis (união ibérica-1580), terem deliberado em reunião presidida pelo Bispo D. Belchior Carneiro, criar uma forma de administração que lhes desse alguma independência.” Em 1582, o comércio na China deixava de ser feito pela troca de produtos, sendo usada a prata para pagar as mercadorias. A povoação aumentava e a população solicitava “cada vez maior oferta religiosa e educativa”, segundo Rui Manuel Loureiro, que refere, “um número cada vez maior de religiosos passava pelo litoral chinês a caminho do Japão, exigindo adequadas condições de alojamento e de formação. Alessandro Valignano (…) consciente de que seria necessário reforçar a retaguarda operacional, desenvolveu o projecto de construir em Macau um grande colégio, que complementasse o conjunto de edifícios que a Companhia já possuía no porto luso-chinês e que servisse de pólo aglutinador de todas as actividades desenvolvidas pelos jesuítas no Mar do Sul da China.” “Como o ensino crescera até ao nível universitário, a 30 de Novembro de 1594, a Casa da Companhia de Jesus passou a denominar-se Colégio dos Jesuítas e ministrava a 60 alunos lições de Português e Latim, Artes, Casos e Teologia”, segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, a 1 de Dezembro de 1594, “a escola criada pelos jesuítas passou à categoria de Colégio Universitário. O Colégio de São Paulo foi a primeira Universidade ocidental no Extremo Oriente.” O primeiro passo de uma nova expansão missionária na China fora já dado pelos jesuítas Matteo Ricci e Ruggieri que inauguraram em 14 de Setembro de 1583 a missão católica em Zhaoqing, dois séculos depois da saída dos franciscanos aquando da chegada da Dinastia Ming ao trono do Celeste Império.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasO ofício da memória [dropcap]E[/dropcap]sse curioso e imparável tecer subliminar. Que não se resume a arrumar colecções em gavetas distintas. No contínuo ofício da memória, se transcende o objecto da vontade, que na sua resignação própria, se sabe dever ser humilde e aceitar o que que dali nasce. E o que morre e o que se transforma no laborioso elaborar. Um fio subterrâneo de água invisível aos olhos, mas que nunca deixa o seu correr no sentido da nascente. Aquele momento em que se lembra, em que se esquece, ou em que se lembra que se esqueceu. Ou se lembra de uma outra forma. Ou se vê como uma desvanecida poalha de realidade o que foi forte e nítido e se lembra a curiosa dor de uma dor sem sentir. Ou se sente com toda a violência um baque como o de outro momento somente de lembrar. Com erro de paralaxe. Que o retorno da memória não pode deixar de ter. Viajamos todos os dias para pontos diferentes de nós. Mesmo que subtilmente. Somos o observador observado. Mas, espectadores, ao mudar de posição retemos do observado uma localização diferente. Sempre em erro, porque não há uma medida universal para o ponto certo do que somos e onde nos situamos ao revisitar a memória. Estamos em trânsito. Amanhã, logo se vê. Os anos vão passando por nós, nós neles, não se sabe de quando, para quando ou onde. Que rio, este. A Física explica tanto e no entanto não oferece o sentido. Porque é a paralaxe impossível à alma como ângulo rigoroso, mesmo momentâneo e pontual, e porque não é a memória matéria de rigor? E nem toda a matéria é diáfana ao ponto de o que vemos ser, ser exactamente o que é. E os raios dessa luz que nos chega da memória, refractados, a elaborar as imagens fílmicas do que vivemos, e sempre quebradas de uma alteração da forma. Como através de um líquido. Talvez não seja, a memória, um tecido sólido e subaquático. Mas em si, um filtro líquido. Ser uma espécie de multidão, com aquela característica de uma multidão em que ninguém conhece nenhum dos outros, até onde a vista alcança. E onde, mesmo se lá bem no meio houver gente conhecida, não se sabe que ali está. Ou uma multidão de conhecidos não íntimos, sem vidas cruzadas, sem síntese e sem compromissos. O que seríamos sem essa rede da memória a estruturar cada um que fomos no dia anterior ou no que o antecedeu. E assim até ao fim dos tempos que vivermos. Como uma manta tecida de todas as matérias que fomos sendo. Os dias em que estivemos e as noites que esquecemos, todos os lugares que fomos e os minutos que falhamos, todas as portas fechadas e todas as feridas abertas. Ou então, o contrário. Obra. Memória é tempo. É o tempo moldado como por arte de um ofício, com toques de genialidade ou profundos defeitos. Ambas as coisas, talvez. O tempo reelaborado, vivido e organizado. Ou desarrumado. Se a perdêssemos, o alívio que seria. A leveza do eterno presente. A vulnerabilidade. E cada informação, cada notícia que nos tomasse de súbito, que dano voltaria a fazer, sem essa rede de construção que vai progressivamente amenizando mesmo as dores que perduram, e amortece cada retorno. Toda a dor, uma pujança intacta acabada de nascer. De novo cada amor e cada luto, o primeiro impacto de uma grande emoção, a mesma desilusão de uma desilusão, o mesmo golpe de uma palavra cortante. O mesmo susto. A mesma pessoa que fomos. Dessa multidão, de que na memória se faz síntese. Às vezes, as palavras saem-me deixando um golpe doloroso desde lá do fundo e por onde me passam. (E são feitas de quê?). E deixam-me sem fôlego para outras por mais que doces. Produzem rasgos no tecido. Um xaile de lã macia delicada e protectora. Às vezes frágil. Às vezes uma rede do cabelo, às vezes uma de circo. A aparar o erro do trapezista nas acrobacias do sentir. E a queda, mesmo rápida e semelhante, pára naquele ponto suportada pela rede. Que não deixa cair até ao fim. Como um efeito lateral da memória, a quantificar e a comparar nesse confronto da queda, dados, como duas equipas num jogo. Solteiros contra casados, aquele clássico de domingos, no terreiro da vila. Quem ganha? O passado ou o presente? Estabilidade ou expectativa, maturidade ou juventude. Fica-se para saber ou por saber. Que bom, afinal, sermos tocados de mortalidade desde que nos lembramos. E mesmo antes. Já os genes a zelar por esse saber-nos mortais e pela sobrevivência. Se não fôssemos mortais. Seríamos mais insuportáveis. E mais sós. Assim, não há tempo para tudo. Lá vamos deitando fora algum lastro. Não se pode ter melhor amigo do que o tempo que tudo leva. Ou maior inimigo, porque o tempo tudo demonstra ter traído. Claro e transparente no seu lugar próprio – contudo – nem antes nem depois. Tenho visita assídua da memória. Talvez porque gosto de tecidos, de malhas, de estruturas celulares. Mas às vezes o que me apetece é dormir e esquecer. Quero tanto esquecer e tanto. Todas as noites eu custo a ir para a cama como quem não quer morrer. Talvez seja o temor de me esquecer – sei lá – a mim. Somos tão dados ao vazio. Mas não é a memória repleta de ausência e passado, o que melhor o preenche. Somente uma rede de suporte. De baloiço melancólico. Ou de apanhar borboletas. Só o labor do momento. O sim. O agora. Que esse, se não preenche uma parte densa de vazio, é como se não se existisse.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasSíntese passiva III [dropcap]O[/dropcap]s manuscritos de investigação (“Forschungsmanuskripte”) de Husserl constituem a esmagadora maioria do seu legado filosófico à humanidade. O que publicou durante a sua vida, é a ponta do Iceberg da sua actividade produtiva. Husserl pensava a escrever. Escrevia em estenografia, uma forma de escrita rápida, taquigrafia, que procurava acompanhar a rapidez do pensamento com a “pena”. Escrevia tanto que uma das incumbências dos seus assistentes era o de encontrar no meio dos papéis o que tinha escrito sobre os temas recorrerentes: “tempo”, “redução”, “filosofia”, “mundo da vida”, “experiência”, “vivência”, etc. Quando os escritos são levados para Louvaina, é preciso um camião para os levar. Se pensarmos que em cada página escrita em estenografia estão muitas páginas em escrita normal e por maioria de razão muitas mais páginas impressas, não é difícil de compreender porque razão ainda hoje, volvidos mais de 80 anos após a sua morte, os escritos de Husserl estão ainda a ser publicados. Neles encontramos muitas páginas, em que Husserl procura fazer o acompanhamento dos momentos de transição entre estados de consciência descontínuos. A tentativa deste acompanhamento é artificial à primeira vista. Pelo menos, requer que se monte um aparato teórico. Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y. X vem depois de W. Y antecipa Z. W, X, Y, Z são momentos da consciência que podem ser apreendidos num ápice, num instante, num só momento de tempo, num flash! E, contudo, nessa cristalização que fixa, congela e paralisa, o conteúdo fixado, congelado e paralisado é uma sequência: X, Y em que X e Z estão esbatidos mas estão anexados ou mantidos em associação de algum modo, como Husserl diz tecnicamente: Y retém ainda e mantém anexado X. X associa, faz lembrar, cria o prospecto de Y. X e Y, na verdade qualquer momento de tempo isolado tem esta possibilidade relacional constitutiva, não é uma substância. É uma relação “pros ti”, como Simplício bem viu com olhar clínico em Aristóteles. Isto é, todo e qualquer instante no tempo não é nem em si nem absoluto (absolvido do anterior e do ulterior, por exemplo, não será nunca, porque seria sem antes e sem depois). Qualquer instante é sempre constituído por relação com o anterior que foi mesmo há pouco mas não é já e com o seguinte que não é ainda. Todo e qualquer instante é um istmo entre duas negatividades, duas negações da realidade: o passado que, por mais breve que tenha sido a sua cessação não é já e um futuro que por mais iminente que seja, não é ainda. O que é agora mesmo e está a acontecer, a dar-se, a efectuar-se, a efectivar-se, actualmente continuamente a acionar-se na realidade, existe entre um não já e um não ainda. Ora bem, onde é que nós nos encontramos para “compreendermos” esta sequência de “não’s” e de “sim’s”? Pairamos em suspenso sobre a realidade? A representação geográfico do olhar de cima para baixo permite ver à esquerda os não’s do passado que já não são e à direita os não’s do futuro que ainda não são. Como na escola se desenhava o eixo das abcissas no quadro e o menos infinito era à esquerda e o mais infinito era à direita. Então, o instante presente tende para o grau zero. Mas do ponto de vista temporal, a coisa é diferente e altera-se na sua forma. Quantos minutos passaram depois de eu ter escrito “Tentemos perceber o que está envolvido nesta tentativa de acompanhamento, em que se procura dar conta ou perceber o que acontece quando se passa de um momento de consciência X para um momento de consciência Y”? Há momentos que a antecedem e se esfumam. Não se sabe bem o que estava a passar-se na realidade, embora eu consiga ainda invocar o cheiro a pão torrado e a café, o ruído dos aviões a esta hora do dia com muito tráfego aério, mas também que tinha pensado ir treinar e desisti porque tinha coisas para fazer e podia ir ao meio dia, que tinha coisas para ler, mas a crónica era uma prioridade, que tinha antecipado o fim de semana antes de ter antecipado o fim de ano. Momentos houve depois de a ter escrito em que a realidade está fixa em protocolo: todas as frases que escrevi, mas também todos os pensamentos que tive, o mal estar do corpo porque está muito frio nesta manhã de Dezembro, debati-me com formulações e pensamentos sobre como o dia se ia processar e como tenho de ver exames e dar notas, que tenho de puxar persiana (Deus meu: perdi uns bons 30 segundos à procura da palavra “persiana”. Ia escrever só: janela. Mas ninguém puxa janelas). Estamos continuamente a entrar para dentro da “bola de sabão” universal do momento de tempo presente que de cada vez tem a forma do X, do Y, ou do Z, mas que nos envolve também a nós. Sou eu e X, sou eu e Y, sou eu e Z, sou eu e X e Y e Z e nunca a apenas eu e X+eu e Y+eu e Z como se avançasse aos solavancos, e quando X, Y e Z é uma sequência fixa num ápice, tratasse de um lapso de tempo que também me faz escorregar, também me transfigura, me distende, me metamorfoseia de algum modo. Eu tenho de estar distribuído temporalmente por X, Y e Z para perceber que vejo X e Y e Z e que de cada vez que vejo um momento há momentos que não estão lá na realidade mas que eu “faço ser”, que eu “dou como feitos”, que eu “ponho lá”. Quando eu vejo X, não está lá W, mas W tem de lá estar mesmo que seja “absolutamente indeterminado”. O “absolutamente indeterminado” só quer dizer que eu não sei como vim ali parar, quem me trouxe, quem eu sou, o que fiz, onde estou, que horas são, que dia da semana, do mês, que ano, que lugar, local, sítio, país, etc., etc.. Mas é determinável em absoluto. Quando eu me fixo em Y, X está lá copresente em anexo e retido mas não existe já, eu já não consigo fotografar X. Nem ainda Z, que está a aí a rebenter mas não entrou ainda em acção e pode nem sequer entrar, como aqueles jogadores que o treinador chama para substituírem um colega, aquecem e depois voltam a vestir o fato de treino e a sentarem-se no banco. Não entram. Esta dinâmica entre efectivamente real e efectivamente não real, já não e ainda não, é abrangido por nós. Quer dizer nós não estamos esgotados só no momento que nos absorve, de algum modo pairamos em extase estendidos pelo tempo passado há pouco mas não já e pelo tempo futuro daqui a nada mas não ainda. O eu não é um ponto, a consciência não é estigmática, não é uma perspectiva, mas é este existir, sair para fora de si distendio no tempo entre o passado há pouco que de facto vê mas não realidade já não é e o futuro daqui a nada que está já a prometer ou a ameaçar ou a deixar-nos indiferentes por ser neutro de promessas e ameaças mas que “na realidade” não “é”.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO sambista e a vaidade [dropcap]D[/dropcap]iniz, mulato à volta dos quarenta anos vivia na zona norte do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, e ganhava a vida numa auto-mecânica do bairro, como pintor. Vida tranquila, mas que já tinha visto muita miséria. Perdeu pai e mãe em criança e teve de se virar muito cedo na vida. Chegou a Vila Isabel de carona, vindo da cidade vizinha, Duque de Caxias, e conseguiu se virar por causa do samba. Desde moleque que levava jeito para fazer samba. Para ele, samba era vida. E, no caso dele, o samba literalmente salvou-lhe a vida. Quase não pegou escola. Fez o básico, para saber ler jornal e enturmar as contas. Costumava dizer que os sambas que escrevia não vinham do estudo. “É a rua que dá samba.” Na verdade, para Diniz, quase tudo dava samba. Numa conversa, não raro se escutava Diniz dizer “isso dá samba”. E dava. Muito cedo, o caso de Diniz chamou a atenção de alguns jornalistas. Um deles tentou convencê-lo a escrever umas estórias, botar isso em livro. “Vai que dá certo”, dizia para o sambista-mecânico. Mas Diniz rejeitou esse primeira investida, desconfiado. Pensou para si mesmo “posso não ter estudo, mas sei o suficiente para saber que não se faz aquilo que não se sabe; se eu nunca li livro, vou agora escrever um? Aonde é que isso faz sentido?” E assim continuou, de samba no pé e na mão, longe dos livros. Mas jornalista quando encasqueta com uma coisa é como cupim na madeira, não descansa enquanto não corrói tudo por dentro. E um ano depois voltou a atazanar o sambista, que voltou a recusar. As investidas não cessaram e Diniz começou a ficar muito incomodado com aquilo. “Se você não sabe, porque não experimenta? Vai que dá certo”, insistia o jornalista. Mas Diniz não queria nem experimentar, nem que desse certo. Queria que o deixassem em paz com o trabalho na auto-mecânica e com o samba. No fundo, o que o jornalista queria, ainda que não confessasse, era oferecer-lhe os seus serviços como ghost-writer, quando Diniz percebesse que não conseguia escrever. O jornalista tinha entendido que Diniz tinha muitas estórias para contar, que poderiam virar livros e não só sambas. E queria fazer parte disso. Para o jornalista, o Diniz-escritor tinha sido uma descoberta dele, que não largava. Para que isso desse certo era preciso criar a necessidade em Diniz, fazer com que ele quisesse escrever, ou melhor dizendo, que ele quisesse aparecer como sendo escritor. Mas daquele mato não saía coelho. De modo a forçar, e a adiantar trabalho, o jornalista inventou uma matéria a ser publicada no jornal acerca do sambista-mecânico, com autorização deste, mas onde acabou por acrescentar falas que nunca aconteceram, que Diniz nunca disse e nem sequer pensou. Nessa matéria do jornal, Diniz dizia que tinha alguma dificuldade em escrever porque acreditava que na origem da escrita de ficção estava o facto da vida se acabar mais cedo do que se imaginava. O problema não era que a vida acabava, mas que acabava muito antes do que se imaginava. Evidentemente, o termo “imaginava” não era usado por acaso. Era usado como provocação. Para Diniz, continuava o jornalista, só se sabe o que é a vida na primeira pessoa e a morte era imaginada através das mortes dos outros, que nos pareciam sempre cedo de mais. No fundo, o que ele acabava por dizer que Diniz dizia, ao fim de uma longa digressão a que aqui vos poupo, era que o medo de a vida poder não ter o tempo que se pensava ter, acabava por nos pôr a imaginar outras vidas. E era por isso que Diniz não escrevia. Acrescentava que para o sambista-mecânico escrever é ter medo da vida. No samba não há medo. Quem faz samba não se preocupa com a morte. É a morte que se preocupa com o samba. E tudo isto com detalhes do quotidiano de Diniz e duas boas fotos dele, uma na auto-mecânica e outra na roda de samba, além de mais duas do bairro, do barzinho do Juca e da mercearia do Leandro. Quando leu a matéria, Diniz, ao invés de ficar chocado com as palavras que não tinha dito, ficou vaidoso. Nem aquilo fazia muito sentido e nem ele entendia bem. Mas se há algo que as pessoas estão dispostas a aplaudir é o que não entendem bem. As pessoas do bairro parabenizavam-no quando se cruzavam com ele, tinham gostado, do que Diniz dissera, do acompanhamento da vida do bairro e das fotos. “Que bem que ele fala. Poderia ser escritor de papel passado.” E foi assim que Diniz aceitou fazer aquilo que nunca fez e passar-se por quem não era. A vaidade, essa, deu samba.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCanto de Salvação [dropcap]V[/dropcap]oltar solto ao novo Natal do Sol que não vem pernoitar por cima dos altares de uma velada, das suas ceias, que nessa noite muito longa feita de milhares de anos se busca salvação nas lendas de antanho e suas teias. Uma noite muito fria não suporta mais as mil maravilhas em ciclo continuado que é o ciclo sublimado do pecado. Que o Sol nado – encanto da estirpe – nos recobre no recanto deste Universo e não deseja ser cantado no seu carrocel de sombras – Revolução Maior – o Livro de Horas dos sinais dourados. Não tenho Natal, jamais me nasceu algum Messias, todos os que nasceram não me salvaram e tenho aprendido a arte da vida sem alardo onde nunca um Messias é projectado. Seres há que não têm salvação, e nem a luz os cobre nem lhes interessa o perdão. Que as penas, levamo-las no peito transfigurado, que para elas se acendem as estrelas quando todos já estão deitados. Somos servidos na dança (quebram sempre frágeis membros) mas na gruta da festa há sempre a lembrança de que a vida cresce para ser Criança que é tudo o que temos. Que se há de bastar para além das sombras e rasgar o peso das marés altas de suas ondas, que nascerá de novo até ser de si uma outra vez o salvador de um povo. Que vai à lenha buscar o lenhador para fazer de cada dia seu único salvador… seremos assim salvos não porque o queiramos, mas pelos acasos de muitos anos. Já não repartimos nem vamos juntos no vasto mundo, que a Terra gira, dança para nós, e subindo os braços é que estamos presos ao melhor dos dons. Cruxificam sois para os entender, matam a luz porque a noite é longa, e mesmo assim há uma centelha nos rostos mais bonitos que veem o Sol nos seus sentidos. E ficam eternos de braços no ar, sem ter que o saber ou tornar a baixar, e vem o Verão e arde tudo, são as lamparinas dos reflexos do mundo, cruzam os mares carregados de suor – chovem-nos em cima – tiram-nos a paz, mas que são ainda a salvação para o que não fomos capaz. Falarás somente do tempo que te reveste, e sairás vestido em todas as Eras sem essa nudez sagrada que cegou as feras. Veste a alma e coloca-lhe flores, que elas, morrem depressa, e os bichos são lentos a compor as dores, fios que vão abalar os frios e fazer da pele um tecido mais por aquelas margens onde passa um rio. E o Sol virá ainda assim com hora marcada, sem peso, sem dobra, trazendo as sandálias de um astro que chora. Gosto de o ver! É um longo começo, ele é natural em seu adereço: vivendo nas sombras estamos muito sós, nem salvos, nem ungidos; ele faz a progressão, labuta na fornalha, e face ao que governa não tem qualquer sentido. Transforma-se, é Estrela, vive cintilando… De Natais indistintos estão mortos os ouvidos e nada nos diz que escutamos o brilho, são Magos reais os reis que o veneram, vêm dos desertos da claridade, e nascituros somos nesse instante face à eternidade. Magoaram o Sol em seu transformar, é apenas um Sol, longe de outros a tentar, que nós temos frio mesmo nas descidas e nos lares que se preparam para o festejar. A sonda dos tempos permanece igual, eles volteiam – as estrelas, os astros – vamos atrás deles vendo-os passar. Deus vem assim como o viajante, sentimos-lhe o mistério no sangue, e nasce p´ra morrer e para esquecer, e voltar talvez num outro amanhecer. Findo, transformado, morre a causa de tudo ter iniciado, pois dele nada se salvou, apenas uma incerteza do lado em que esteve na Criação, que não criou. É porque temos de passar este Norte, esta voz continuada, que a salvação é a vertente mais sagrada. Mas salvarmo-nos de quê? Estamos encurralados, não há quem nos ajude no que construímos, não há salvação para quem nasce: hás tu, que não foste em vão! Mesmo que o Sol imploda e a Terra arda, a nossa febre continua por outros sois, sempre, e ainda, à espera da tua chegada. Que já se foi a salvação, mas há essa noção, esse legado maior, essa terra prometida, esse leite, essa subida, que a saudade não cobre e de vida padece: há os zimbros e os ossos espalhados, há o pó que retorna a um outro universo mais amado onde não sabemos como fomos buscar estas palavras. Ninguém aqui veio, não há aqui chegada, fomos rodando na estação dos Natais, e somos um ponto entre o seu levante e a sua entrada, se viesse alguém, se viesses um dia, nem a Primavera te cobriria de flores, que os mortos não as veem, nem precisam delas. Ninguém se salvou, a ideia é sê-la.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO Quebra-nozes [dropcap]O[/dropcap] ballet em dois actos O Quebra-nozes, Op. 71, com música do compositor russo Piotr Ilyitch Tchaikovsky e originalmente coreografado por Marius Petipa e Lev Ivanov, estreou no dia 18 de Dezembro de 1892 no Teatro Mariinski, em São Petersburgo, então capital da Rússia imperial. Devido à sua temática, o ballet é tradicionalmente encenado na época natalícia. Embora a produção original do ballet não tenha sido um sucesso, a partitura de Tchaikovsky tornou-se uma das suas composições mais famosas e O Quebra-nozes desfruta de enorme popularidade desde o final dos anos 60 do séc. XX, sendo agora produzido por numerosas companhias de bailado, principalmente durante a temporada de Natal, especialmente na América do Norte. As principais companhias americanas de bailado geram cerca de 40% de sua receita anual de bilhetes com apresentações da obra. A partitura do ballet tem também sido usada em várias adaptações cinematográficas da história de Hoffmann. Tchaikovsky extraiu ainda do ballet uma suite, com três andamentos e a duração de 20 minutos, que teve enorme sucesso. Na sequência do êxito do ballet A Bela Adormecida, também com música de Tchaikovsky, em 1890, Ivan Vsevolozhsky, director dos Teatros Imperiais Russos, encomendou ao compositor um programa duplo constituído por uma ópera e um ballet. A ópera viria a ser Iolanta. Para o ballet, Tchaikovsky iria trabalhar em conjunto com Marius Petipa, com quem tinha colaborado em A Bela Adormecida. O material que Petipa escolheu baseia-se na versão de Alexandre Dumas, intitulada “A História de um Quebra-nozes”, do conto infantil O Quebra-nozes e o Rei dos Ratos de E. T. A. Hoffmann. A trama da história de Hoffmann (e adaptação de Dumas) foi grandemente simplificada para o ballet de dois actos. Petipa deu instruções extremamente detalhadas para a composição de cada número, ao pormenor do andamento e do número de compassos, mas adoeceu antes dos ensaios, o que fez com que Ivanov, seu assistente, tivesse um papel mais decisivo na coreografia. Ivanov terá realçado as cenas do reino do açúcar no segundo acto. Criando um nó de ansiedade e antecipação do futuro, conduziu o conteúdo lírico da música como uma história acerca do destino das personagens e uma reflexão poética sobre o espírito natalício. A conclusão da obra foi interrompida por algum tempo quando Tchaikovsky visitou os EUA durante 25 dias para dirigir os concertos de abertura do Carnegie Hall, em Nova Iorque. Também compôs partes da obra em Rouen, em França. Trata-se de uma história em que a fantasia e a magia, típicas do romantismo, contam as aventuras de um quebra-nozes de aparência humana, vestido de soldado, mas que tem as pernas e a cabeça de tamanho desmesurado. No Acto 1, é véspera de Natal e a família Stahlbaum está-se a preparar para a festa anual. Os pequenos Clara e Fritz aguardam ansiosamente a chegada da sua família e amigos. À medida que os convidados começam a aparecer, a festa ganha vida com muita dança e a excitação aumenta. Chega um convidado misterioso que, com o seu fato escuro, assusta Fritz, mas não Clara, que sabe que é o padrinho Drosselmeyer, fabricante de brinquedos. A festa prossegue, mas é novamente interrompida quando Drosselmeyer revela às crianças que lhes trouxe presentes. As raparigas recebem bonecas de porcelana e os rapazes cornetas. Fritz recebe um bonito tambor, mas Clara recebe o melhor presente de todos, um quebra-nozes. Fritz fica com ciúmes e arranca-lhe o boneco de madeira das mãos, atirando-o para os outros rapazes, acabando por se partir. As lágrimas de Clara só secam quando o seu tio conserta o boneco, com um gesto de magia. A festa termina e Clara deixa o seu Quebra-nozes ao lado da árvore de Natal antes de ir para a cama numa cama improvisada, mas acaba por adormecer debaixo da árvore com ele nos braços. Sem ser visto, Drosselmeyer permanece para trás e lança a sua magia… Ao bater da meia-noite, Clara acorda e depara-se com um cenário assustador. A sala e os brinquedos parecem ter crescido; será que ela está a encolher? Do nada surgem grandes ratos fardados de soldados, liderados pelo Rei Rato, que começam a cercar a sala enquanto os brinquedos e a árvore de Natal ganham vida. O Quebra-nozes, que também ganhou vida, reúne a sua infantaria e cavalaria de brinquedo. Uma grande batalha acontece. Quando o Rei Rato está prestes a dominar e a vencer o Quebra-Nozes, Clara distrai-o, atirando-lhe a sua pantufa e atingindo-o em cheio na cabeça, permitindo assim que o Quebra-nozes desfira o golpe vencedor. Os exército de ratos retira rapidamente o seu rei do campo de batalha. Carla, dominada pelo momento, cai na cama que tinha sido do Quebra-nozes. Então, a cama transforma-se num trenó mágico. Mais uma vez Drosselmeyer invoca a sua magia e o Quebra-Nozes transforma-se num belo príncipe, que sobe para o trenó e, flutuando cada vez mais alto, os conduz através de uma floresta coberta de neve, onde os flocos de neve se transformam em donzelas dançantes. Após a viagem pela floresta de neve, Clara e o príncipe chegam ao seu destino, o maravilhoso Reino dos Doces, iniciando-se o Acto 2. Clara e o Príncipe são recebidos pela Fada Açucarada a quem Clara conta a história da batalha. Em homenagem à bravura de Clara e ao heroísmo do Quebra-nozes, a Fada dá uma grande festa no Castelo dos Doces. Todos dançam em sua homenagem – lindas princesas árabes, cossacos russos, bailarinos franceses e até flores exóticas. Clara começa logo a dançar e só pára para testemunhar a mais bela de todas as danças, pela Fada Açucarada e o seu Cavaleiro. As danças terminam e todos se vêm despedir do príncipe e de Clara. Clara acorda na manhã seguinte debaixo da árvore de Natal com o quebra-nozes de madeira ainda nos braços. Poderá tudo não ter passado de apenas um sonho? Ou foi a magia do Natal? Sugestão de audição: The Nutcracker (Complete ballet) Berliner Philharmoniker, Semyon Bychkov – Decca, 1987
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasMaravilhoso contador das horas [dropcap]D[/dropcap]e Lisboa com destino à Índia partiu a 24 de Março de 1578 a 30ª expedição de missionários jesuítas onde seguiam os padres Michele Ruggieri, Francisco Pasio, Duarte de Sande e ainda sem estar ordenado Matteo Ricci. O Visitador das missões das Índias orientais, o padre Alessandro Valignano chegara a Macau em Setembro de 1578 e “aí, rapidamente se deu conta, por um lado, da vastidão do império da China e da sua importância estratégica, e por outro, das enormes barreiras com que esse mesmo império se defendia de todo o contacto com povos estrangeiros”, segundo Horácio Peixoto de Araújo, que transcreve a visão do Visitador altamente positiva do reino da China, tão diferente de os demais reinos existentes no Oriente, assim como a qualidade das gentes e costumes, “a fertilidade da terra e a perfeição do governo. E tudo isto, acentuava [Valignano], sem o concurso da doutrina cristã.” Vendo as enormes potencialidades que se abriam à evangelização, o Visitador mandou vir da Índia o padre Michele Ruggieri (1543-1607), que chegou a Macau em Julho de 1579 e por ordem de Valignano começou de imediato a estudar a língua dos mandarins, “com o auxílio de um letrado chinês que, depois de reprovar nos exames para alcançar grau se tinha fixado em Macau”, segundo refere Rui Manuel Loureiro, que num aparte relembra, “Quando o padre Francisco Pérez tentou conseguir autorização para permanecer em Cantão em 1565, os mandarins cantonenses tinham-lhe perguntado se dominava a língua chinesa; perante a resposta negativa do jesuíta, o seu pedido tinha sido rotundamente indeferido.” Para Ruggieri, se ler e escrever os carácteres chineses não trazia grandes obstáculos (ao fim de dois anos dominava doze mil caracteres), já os tons exigiam prática no falar. Daí, nada melhor do que acompanhar os comerciantes portugueses à feira de Cantão [iniciada em 1580 e então a durar dois meses] e procurar encontrar algum Mandarim com quem praticar. “Pela Páscoa de 1580 (3 de Abril), o Pe. Miguel Ruggieri, jesuíta italiano aplicado ao Real Padroado de Portugal e com os meios diplomáticos e materiais que este lhe forneceu, dirigiu-se a Cantão e habitou numa casa junto ao Rio Si-Kiang” [em mandarim Xijiang, que significa Rio Oeste]. E continuando com Benjamim Videira Pires S.J., Ruggieri aí voltou em 1581, duas vezes, “a primeira das quais com o Irmão Paes e a segunda, antes de 25 de Outubro com o já Pe. André Pinto, todos jesuítas.” Segundo o padre Domingos Álvares, Superior da residência de Macau, “alguns mandarins o receberam e comunicaram com ele. Demorou-se, uma vez, três meses e, a outra, dois, residindo no palácio do Embaixador do Sião.” A sua fama começava a despertar o interesse entre os mandarins de Cantão. Angústia em Macau Em 1582, o novo Vice-rei de Guangdong e Guangxi Chen Rui mandou uma chapa para Macau a convocar o bispo (desde 1581 D. Leonardo de Sá) e o Capitão-mor (D. João de Almeida) para comparecerem em Zhaoqing. O chamar as mais importantes personalidades de Macau “criou uma certa angústia pois parecia ser mais rápida a saída dos portugueses de Macau do que os padres conseguirem missionar na China”, relatava o Pe. Francisco de Sousa. Segundo o padre Manuel Teixeira, “Os cidadãos de Macau, não achando conveniente a ida das duas supremas autoridades da colónia, enviaram em seu lugar, como delegados de Macau, o Ouvidor Matias Panela, representando o Capitão-mor, e o jesuíta Miguel Ruggieri, representante do bispo”, a quem Valignano ordenou que tratasse de ver se poderia lá quedar. Assim, segundo Benjamim Videira Pires, “em Abril-Maio de 1582, Ruggieri voltou, pela quarta vez, a Cantão e aí ficou mês e meio. No dia 2 de Maio, encontrou-se Ruggieri em Cantão com o Pe. Alfonso Sanchez S.J. e dois franciscanos, um dos quais foi o terciário João Diaz Pardo, que pela segunda vez se aventurava a entrar na China.” Montalto de Jesus refere, por ser “importante para a segurança da colónia, que alguém se dirigisse a Shao-king-foo (Zhaoqing), na altura a sede vice-real”, de Cantão Ruggieri para lá se dirigiu em Junho com o Juiz português Matias Panela, “homem de idade e grande experiência, que sempre se relacionara muito bem com os mandarins.” Na audiência, o novo Vice-rei acusou os portugueses de terem tribunais em Macau, terra sobre alçada do imperador, assim como condenava a permanência de cafres e japoneses, não queridos pelos chineses. “Para poder controlar eficazmente os Portugueses que começaram a ter um comportamento cada dia mais arrogante a partir da repressão dos marinheiros amotinados de Zhelin, serviu-se habilmente da política de ‘garrotes mais cenouras’ para os Portugueses ficarem com medo e respeito da nossa magnanimidade e gratos às nossas acções virtuosas. (…) Através desta convocação, fez saber aos Portugueses que eles estavam a residir em Macau na qualidade de vassalos do Imperador chinês. Este acto reforçou a soberania chinesa sobre Macau”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, que referem, “Durante este processo, os representantes de Macau não perderam a oportunidade de prestar vassalagem política ao vice-rei e, através dele, ao Imperador chinês [Wan Li, 1573-1620], o que agradou sobremaneira a Chen Rui, que representava o Filho do Céu em Cantão.” A delegação levou presentes como sedas e cristais que o Vice-Rei pagou para mostrar que as ofertas não era suborno e deu-lhes alguma prata para fazer compras em Macau. Segundo D. João de Deus Ramalho: “Entrementes Ruggieri vê-se detido por uma doença grave e Matias Panela teve de voltar sozinho a Shiu-Hing [Zhaoqing] a dar conta das suas compras, informando o motivo por que faltava o Delegado Ruggieri. Matias Panela aguçara-lhe a curiosidade e o desejo de rever o Padre na sua corte, porquanto lhe anunciou que outro Padre [o português Rui Vicente] trouxera um raro objecto da Índia. Um relógio maravilhoso que tinha a arte de tanger as horas por si mesmo.” O Vice-Rei mostrou-se muito interessado por esse engenho e por isso convidou-os para uma segunda visita, a fim de lhe trazerem o maravilhoso contador das horas. Ruggieri, depois de restabelecido, partiu a 18 de Dezembro de 1582 para Zhaoqing com o Padre Francisco Pasio, [que com Matteo Ricci tinha chegado a Macau em 7 de Agosto de 1582 proveniente de Goa]. Assim, em 27 de Dezembro de 1582, pelas mãos dos dois padres italianos foi entregue o primeiro relógio mecânico, “uma máquina de aço toda de rodas por dentro, que continuamente se moviam por si mesmas e mostravam por fora todas as horas do dia e da noite e o som de uma campainha dizia o número de cada uma delas”. O Vice-Rei Chen Rui, com o precioso relógio, instrumento nunca visto na China (e ainda muito raro no Ocidente) e a confirmação dos delegados portugueses de Macau reconhecer a soberania chinesa, ficou de tal modo contente que não pôde negar a Ruggieri a ambicionada satisfação de se estabelecer em Zhaoqing, capital dos dois Guangs. Tal viria a ocorrer no ano seguinte.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMais lugares que marinheiros [dropcap]D[/dropcap]ias antes e já a pantalha luminosa se acendia intermitente a deixar ver. As luzes no máximo como para não nos perdermos no caminho. Um prévio cometa Halley a guiar. As pessoas são tão contidas. Em si próprias, muito embora por vezes a exorbitar numa espécie de sudação subliminar. Em que se pressente uma enormidade de inferências, de subentendidos e de consequências que temos que saber aparar no regaço. Estendo a mão. Mas não toco no que não se quer tocado. Nós não somos tristes, somos fundos e por isso não somos simples. Conto. Volto a contar. São as contas do Natal. Porque exorbitaram as continhas vermelhas do azevinho, tão raro, em grandes bolas de árvore de natal? Porque de tão raro, o que era espontâneo quase se extingue. Agora as poinsétias. Grandes e extravagantes estrelas de outro continente. Ceia de Natal. Não há lugares vazios. O tilintar de copos e as conversas inconsequentes, coisas práticas e insignificantes. Também já contamos histórias. Shhhh…é só um pequeno movimento para dentro e oiço-os chegar devagarinho. Como um nó na garganta. Sentar-se sossegados, com as expressões inesperadas que o inconsciente laborioso lhes coloca nas faces antigas. Antigas, mas por vezes tão jovens, afinal. Não se sabe, antes, com que rosto vão surgir. E ficam ali quase luminescentes, a ocupar solidamente um espaço para o qual foram convidados. E ficam. Até que o nó se desfaça e alguém diga um disparate divergente. E eles não suportam o esquecimento. E assim se vão. Mas não muito longe. Vamos olhar uns para os outros, felizes mas secretamente a fazer contas aos que faltam. Ainda não habituados. A ter que contar quantos somos agora, várias vezes porque é um número novo. Um dado novo para este jogo. Mas felizes de ainda nos termos uns aos outros. Os mais velhos foram-se retirando definitivamente da mesa. Ao seu tempo. Deixam-nos como sozinhos em casa para continuar. Mas na verdade, começamos outros de nós, então, a ser os mais velhos e a olhar em volta com desconfiança como quem diz vamos lá a ver se ninguém sai daqui sem autorização. Vamos estendendo a toalha agora comprida demais, pondo a mesa caoticamente e retocando cozinhados e compondo pratos com uma enorme seriedade e como se uma epopeia que não se destinasse somente a nós. Mas sabemos secretamente que ainda há vários lugares vazios, por mais que se não coloquem visíveis à mesa. Que ainda não foram absorvidos pelas ausências que os ocupam. Fingimos que não é nada connosco. Sabe-se lá se cada um reza aos seus santinhos. Que chegam e ficam ali como parceiros discretos a aconselhar sobre o ombro qual a carta a jogar. Depois sentamo-nos. Só nós e quem naquele exacto momento se abeira de cada um à vez e sopra um invisível murmúrio. A saudade é seguramente nossa. Como um altar íntimo e doméstico. Do culto aos que passaram e nos deixaram. Só não temos coragem de deixar laranjas e papéis de queimar visíveis, para não nos entristecermos uns aos outros. Somos tão púdicos. Ninguém vai dizer nada. Já se disse, outras vezes. Mas lá para o final da primeira garrafa, algo um pouco desajeitado há-de surgir. Mal planeado, e irreprimido. Só nós agora. Qualquer coisa assim. Como miúdos à solta. Ainda um pouco desajeitados desta ausência dos mais velhos. Que somos agora nós. A fazer este papel no seu melhor, porque é mais difícil fora da marcação. E precisamos dele. Que nos ligue e continue a ligar. Depois nunca se deixam as velas arder até ao fim. Um pouco de luz possível para o dia a seguir. Reacender. E sobra sempre tanta cera mesmo depois. Aprendi que a única coisa que se esgota demasiado depressa é o pavio, de algodão. Mas substituindo por um novo, há muita cera para arder ainda. Derreter sem arder, moldar a nova forma, pavio novo e nova vela. Sem as cores nítidas da antiga, mas a luz é sempre luz. Família, quando temos, é o que temos. E depois da consoada, ficamos de novo a sós. Meto a chave à porta. Abro a porta de casa e descalço os sapatos para não fazer barulho. Estás aí. Que não gostas do natal. E fazes bem, à falta de melhor. Dispo a roupa simbólica de estar especial e fico para ali, sem nada. E aí sim, essencial. Se estás. Deito-me ao lado exausta. Voltada para ti. Suspiro fundo. Agora só daqui a um ano. Sorri por favor. Vejo-te mesmo no escuro. Tocamo-nos ao de leve e não há nada melhor. Do que a enormidade da distância que se vence, percorre e anula nesse gesto invisível e definitivo em si. Em que se nasce ao espelho táctil do outro ali. Reinado enorme e eu pequena. No simples espaço curto da cama. Não é preciso ser maior. Já basta a amplitude dos temores, das noites, do abandono de deuses. E chega. Chegando de mansinho. Não estou só porque tive a sorte de não nascer só. Solitária, sempre. Uma coisa da espécie. Monticola solitarius. E digo, agora nós. Não digo finalmente sós, o que seria ingratidão. Mas digo. Agora nós. Só. E fico. E porque todos os anos mesmo os temores se renovam como recém-desembrulhados no meio das outras prendas de natal, pergunto como sempre: estás aí? E tudo está certo como sempre, a postos para recomeçar como se do início de tudo. Depois, fim do ano, ano novo e vida nova. Até ver. Naquele escasso momento em que troam e florescem as últimas luzes do fogo-de-artifício. Vistas da janela pequenina. Acordo no dia já bem claro. Encolho as pernas, puxo a roupa e viro-me para o lado a pensar que o dia vem longo. Percorrer o mercado de doces à procura de algo que se aproxime dos sonhos da infância. Leves e cremosos e pastéis de massa estaladiça. Em caixas de cartão para logo. Há que guardar tempo para me arranjar. É preciso que cada um esteja no seu melhor. Um pouco de maquilhagem para a consoada. A família merece. Ou eles, saber que estamos bem. Ou eu.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO rei de Thule [dropcap]V[/dropcap]iver é uma prestação de homenagens, homenageamos os ciclos com festas e até os nossos próprios dias com rituais definidos, andamos talhados no tempo para a prestação da dignificação de aspectos cuja origem desconhecemos, o que não retira nenhum brilho e mérito, antes, o acrescenta, pois que é no mistério deles que reside a sua expressão maior. O selo de uma transposição que defina no tempo a separação de um ambiente para outro, contorna tudo, e molda as nossas naturezas com mais ou menos bem sucedidos frutos. Vem o rei de Thule descrito num belíssimo poema do Fausto de Goethe, lá o vamos encontrar como uma bruma arturiana: mas Thule, onde fica? Em que local o vamos situar ? O nome é belo e leva-nos até a um rei doce e amante de um provável amor tão remoto na nossa lembrança como a própria Ilha, e diz-nos a lenda dos ancestrais iranianos, os zoroastres, como já falavam dela como “pólo norte” estendendo-se até ao mito grego dos hiperbóreos, sendo o grego Piteas a remete-la para a mais setentrional das Ilhas Britânicas próxima do Círculo Árctico, estando nós assim no roteiro da Estrada do Norte que as oscilações da temperatura com o devido arrefecimento foram empurrando para sul ( não vamos excluir o mito da Atlântida e os graus de negação e aceitação nesta matéria). Em 1927 sai uma edição ( Le roi du Monde ) de René Guénon, remetendo a sua existência como o centro da Civilização e relevando para tanto textos védicos: a verosimilhança que relevam disso nos dá conta; Paradesha ou “Coração do Mundo” que passará a Pardes para os caldeus, formando assim, Paraíso. Estamos em Fausto no centro da herança íntima deste mito onde toda a mitologia germânica subliminarmente a integra, o que explica mais tarde uma obscura organização chamada «Sociedade de Thule» ligada ao movimento nazi, mas que Hilter manda extinguir, também, misteriosamente. Efectivamente há uma noção de “raça nórdica-atlante” de uma terra desaparecida no meio do Ártico e toda a lenda navega na mais improvável busca que possamos propor-nos, sabendo no entanto como foram grosseiras as interpretações destas matérias por mentes frágeis sem condições interpretativas. Para entendermos este rei e talvez as coordenadas da sua existência, a alegoria da montanha sagrada deve estar implícita, toda a proximidade se dá por montes e sobe à montanha, o monte Ararat, a montanha Qaf… Alborj, Montsalvat… que muito embora possa mudar de localização devido aos ciclos geológicas continua a ser um eixo fixo em torno do qual tudo gira, estando preservada da humanidade, é o “país supremo” lá para o Pólo Norte. A imensa informação que se encontra numa obra como a de Fausto é o que faz dela (e de outras semelhantes) o seu prodígio civilizacional, os locais esquecidos, ou, os locais que não devem ser dados a conhecer… a conexão de um cérebro como o de Goethe que deve ter transportado milénios de boas ligações internas e destilado tais heranças… a recuperação de um virtuoso rei de amor feito e por amor abatido, é por si mesmo matéria fausta e grave dado que são estes guindastes que nos sustêm longe do asfalto da turbulência irrespirável deste atual mundo. Thule passeia-se muito certamente transversal a todas as épocas, e já a «Utopia» fala dela, e não será agora de estranhar que o primeiro ensaio para uma sociedade assim tenha sido lá para as zonas de Thule, deixando em aberto a memória de tais remotas realidades. Pessoa faz ainda o belo poema das Ilhas Encantadas, podem ser todas elas, sim, mas ele acrescenta “aquela terra de suavidade que na orla esquerda do sul se olvida… é a que ansiamos…” “Il était un roi de Thulé immaculé….” a história trata de um rei que sentido a sua vida aproximar-se do fim, lança a sua possessão mais querida, a sua Taça de Ouro, presente da sua amada, e se:- o rei de Thule ainda existisse não jogaria a sua taça mas sim o seu vinho, pois que ele é mais precioso que o ouro- nos diz Paul Valéry em ” Le vin perdue” e se é verdade que todo o poeta é um rei não é excessivo afirmar que cada poeta é um rei de Thule, o essencial que nunca se transforma: a vitória do tempo continua a ser pronunciar a palavra liberdade sempre em voz baixa. Thule permanecerá um poema ou um labirinto de gelo, mas quando o mundo aquece podemos ainda pegar nas suas chamas para passar a fronteira e transformar um local num maravilhoso país de elementos equidistantes e tão ordenados que certamente será esse o paraíso. A sua taça pode ainda ser a do Graal, esse vestígio de um Banquete ou de uma Ceia para o centro da renovação de uma concavidade há muito programada. Houve em Thule um rei, fiel Até que a morte o levou; A sua amada, ao morrer, Taça de oiro lhe deixou……. … com seus cavaleiros foi-se El- rei à mesa assentar, No salão de seus avós Do castelo à beira-mar… “In- de Fausto”
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO ego satisfeitinho [dropcap]V[/dropcap]i o Into the Wild, filme de 2007, com 33 anos. O meu filho tinha então 5 anos. Eu estava a morar numa casa que tive nos Olivais e estava embarcado naquilo que Kierkegaard definiria como “o estádio estético da vida”. Lembro-me de que o filme, escrito e realizado por Sean Penn, causou um desconforto variável na plateia do cinema e deu azo a múltiplas conversas de café, sobretudo entre as pessoas da minha geração que haviam de algum modo colocado a família no centro da constelação das suas vidas. É óbvio que para sujeitos acabados de embarcar no transatlântico da vida adulta, o quesefodismo da personagem principal de Into the Wild surge como o contraponto do modo de vida em que se encontram, e um contraponto tão inconfessavelmente apelativo como assustador. É bom constituir uma família. Mas é difícil. Nem toda a gente tem competências e disposição para os sacrifícios que exige, para a dedicação que exige. E o Into the Wild não é só um enormíssimo pontapé na boca da confortável média-burguesia a que a maior parte das famílias almejam chegar; é também um chega-para-lá que se estende a todas as relações humanas. É a procura da solidão como forma de completar e assim pacificar o ego. É a natureza enquanto espelho de uma harmonia perdida a que só por meio de um despojamento radical poderemos regressar. É uma espécie de budismo ocidentalizado, uma corruptela funcional. A mim e talvez por ter estudado filosofia, o Into the Wild sempre me cheirou a esturro, pelo menos a nível existencial. O quesefodismo é um grande apelo, sobretudo para quem se instalou na rotina de tal modo que o paroxismo da emoção é o futebol ao fim-de-semana ou um disco novo dos U2. Deixar tudo para trás, comprar uma autocaravana e dormir uma semana em cada sítio, espalhando o amor e a energia positiva por onde quer que se passe, ir ao encontro das pessoas e, por momentos apenas que sejam, iluminar-lhes no rosto a possibilidade de uma vida diferente, à margem das convenções sociais, que valora a natureza na sua perenidade e harmonia e despreza as múltiplas hierarquias do ter à volta das quais as sociedades humanas aprenderam a se conformar. Hippies, new age freaks, amigos do djambé, etc. Been there. É muito fácil apaixonarmo-nos pela distância, para citar novamente Kierkegaard. É a causa palestiniana, os cartões postais para as crianças de África comerem umas malgas de arroz ou frequentarem a escola, o banco alimentar contra a fome, os pirilampos mágicos, etc. Não se infira qualquer crítica à importância destas causas ou destes programas. É a lógica anónima da relação que está em causa, uma lógica a que subjaz uma acção sem compromisso. É esta a lógica do filme até perto do final. A de passar pela vida das pessoas ao modo do toca-e-foge, criando consequências, mas recusando qualquer ligação. O protagonista configura-se, ao olhar alheio de quem está ancorado a um determinado estilo de vida, como um arauto da liberdade, uma espécie de bom selvagem peregrino disposto a fazer o bem por onde passa. O problema é que a relação que o protagonista tem com as personagens das vidas por onde passa não é diferente daquela que alimentamos no modo cartão-postal para a Etiópia: alivia-nos a consciência pensar que estamos do lado certo desde que não tenhamos que ter qualquer relação com o problema em causa que não seja a de passar um cheque ou fazer uma transferência. Ao contrário do que se comummente interpreta, o mandamento bíblico de “amar o próximo” não equivale a tornar, por decreto, todos os homens e mulheres próximos, porque isso seria precisamente torná-los anónimos e incapazes de assim criar qualquer tensão relacional. Amar o próximo é mesmo amar aquele que conhecemos, aquele que não é à partida amável, aquele de mão estendida com quem nos cruzamos a caminho do trabalho ou no regresso a casa. Tudo o resto, como bem viu o dinamarquês, é paixão pela distância, preocupação cujo fundamento é o ego e não o outro. E, no fundo, o filme em grande parte é isso.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias2º Estudo sobre síntese passiva [dropcap]A[/dropcap] excepção à regra, o episódico, algo que não bate certo, a anomalia, o excepcional, o extraordinário são manifestações que indicam o habitual normal. Demos alguns exemplos mais simples de perceber antes de apontarmos aos mais complexos. Salpicos de vinho em camisa branca. Dedadas de humanos infantis impressas nas janelas. Bolas de árvore de Natal amolgadas. Pintura do carro estalada. Vidro do ™ riscado. O normal é o branco da camisa que serve de plano de fundo aos salpicos de vinho tinto, a transparência do vidro que é plano de fundo para a forma das impressões digitais das crianças, a esfera perfeita vermelho brilhante não deixava antecipar, ao rodá-la na mão, que estava amolgada no lado a princípio invisível dela para mim. O ™ estava intacto quando o meti no bolso e agora não. Alguém “riscou” o carro. Há um plano de fundo e uma forma que destoa do plano de fundo. A anomalia dá-se no interior de uma homogeneidade, neste caso determinada opticamente. Mudemos de campo de percepção. Os acordes iniciais e os primeiros versos de uma canção popular são interrompidos. Falhou a electricidade ou no ensaio o som do micro estava desligado, alguém não entrou a tempo. Estou absorvido pelo trabalho, completamente concentrado no que estou a fazer, toca o telefone ou a campainha da porta e apanho um susto. O elemento pode ser o do barulho. Há obras na vizinhança. Há barulho o dia inteiro, de manhã à noite, ao longo dos dias da semana, até ao sábado. Um bem estar súbito aparece não sei bem como. Identifico-o com o silêncio do barulho que não se faz ouvir. A voz de alguém já não se faz ouvir. A voz de alguém nunca mais se cala. Mudemos ainda para campos de percepção sensorialmente diferentes, térmico e áptico. Tomo duche distraidamente. Deixo cair a água sobre a cabeça e depois sobre as costas para as massajar. De repente, sem que nada o fizesse prever fica gelada. Ou então, a água fria aquece sem que me pudesse aperceber de como e queima. Ao passear à beira mar, controlo a distância relativamente à água. Uma onda vem mais rapidamente do que previra e molha-me os pés. Percebo que a roupa estendida sobre o aquecedor central do ginásio a secou e aqueceu num ápice. O vinho vertido no copo é logo bebido. Depois de “abrir” sabe de modo completamente diferente. O Aftershave aplicado ao rosto depois de escanhoado tem uma fragrância diferente da que tem ao fim do dia. Habituamo-nos aos aromas, às fragrâncias, há constelações complexas que de homogeneidade e normalidade. Posso descer do Bairro Alto em direcção ao Cais do Sodré numa noite fria de Inverno e sentir o cheiro a lareira que me transporta para a Floresta Negra. Em todos estes exemplos dos diversos campos sensoriais há homogeneidade que funda uma regra de antecipação que é decepcionada ou frustrada ou desiludida. Percebemos que a interpretação do que não temos visto de um objecto mas pode vir a ser visto depende do que já temos dado dele. Mas ter dado e vir a ser dado estão em momentos de tempo diferentes e não garantem que o que se espera seja efectivamente o que virá a acontecer. O que se erige na mente como forma mental não corresponde ao que vemos à frente dos olhos também como conteúdo mental.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLeitura de Hölderlin [dropcap]«E[/dropcap]l dios tiene sus propias medidas,/ él es solo un instante/ rozando apenas las moradas de los hombres,/ y estos, de hecho,/ no saben lo que es,/ y no pueden saberlo porque permanecen prisioneiros/ del género de saber con el que habitualmente/ conocen las cosas y las circunstancias y a sí mismos.» leio este trecho de Hölderlin em epígrafe, num ensaio do argentino Hugo Mujica. Comentemos: … com o que habitualmente os homens conhecem as coisas e as circunstâncias e a si mesmos: mesmo que ligadas pela copulativa e parecem os termos de relação descosidos, pois não se apresentam ainda organicamente fundidos num nexo. São os deuses quem lhes dá a medida, quem lhes empresta o viés inesperado que os colocará em relação, na sincronia de um exercício respiratório que os transitará para um nível diferente de significação. Contudo esse discernimento – um relâmpago tão afim a Heraclito, Hölderlin e Gonzalo Rojas -, eis a desgraça do homem, só dura um instante. O que coincide com esses raros momentos em que os deuses fazem morada nos homens e permitem que estes acedam ou ascendam ao modo de relação que harmoniza momentaneamente o caos e elucida uma unidade até aí fora do conceito. Não admira que o homem aspire à embriaguez, como diria Nietzsche, um plinto para a intensificação da potência, e que Platão lhe associe o entusiasmo. Sem esse súbito dom que areja a coagulação de um sentido as coisas estarão desligadas das circunstâncias, e o homem delas e de si mesmo, posto que a sua plenitude só se cumpre no âmbito da relação. Mas esta, se organiza os liames, permanece na sombra e antes do engendramento que a ilumina é vivenciada como obliteração, impotência, mistério, até que incarna e se faz presença. Talvez ajude a pensar esta asserção de Hugo Mujica: «Para o conhecimento funcional, para o olhar cativo da utilidade, as coisas não se manifestam, não são na sua liberdade, são o que eu delas capturo, não o que têm de dom. Elas são apenas o que são para mim. Elas não são em e desde si, elas são desde e para mim. Elas são o preço, não a gratuidade.» O preço corresponde ao que é mensurável no “meu” interesse, de ente isolado. Nós capturamos as coisas, as circunstâncias, uma iludida auto-percepção de nós, utilizamo-las, mas numa perspectiva utilitária e parcial – não as captamos. Isto só acontece em deixando que elas se manifestem na sua liberdade, na dança da alteridade. O dom é esse abrir-se à música da relação, abertos os poros à ressonância, à gratuidade que lhes restitui a virtualidade dos possíveis. Antes disso o mundo dorme, as coisas estão lá mas não estão presentes, padecemos das circunstâncias sem as libertarmos, e somos o sonâmbulo de entorpecentes automatismos. A presença é afinal o alheamento de si numa floração para o outro, que o jogo activa, tornando o homem palustre e precariamente despertado para o fragor das imagens que o impelem à escuta. Este é um outro nome para a poesia. Para quem recebe uma vez a visita de um deus, difícil é depois separar-se. Quem conseguiu ler uma vez o padrão que dava uma unidade ao que parecia separado não esquece mais, quer a irradiação que ganhava cada coisa singular, magnificada, quer o fluxo da relação. Mesmo que essa indivisibilidade se manifeste de forma invisível, como no poema de Alberto Pucheu, Incapturáveis: «Desde criança, no Socavão, alguns dos sons que mais me impressionam/ são os dos bugios no alto das árvores das montanhas./ Dizem que eles emitem esses sons reverberantemente graves/quando se aproximam para encontrar água, quando a água falta/ nas distâncias em que vivem. Não sei se é isso mesmo./ Sei, entretanto, que, apesar de frequentar o vale desde que nasci,/ nunca os vi, que, mesmo que já os tenha escutado em bando muito de perto/ quando, uma tarde, caminhava pela mata,/ eles jamais se ofereceram ao meu olhar demasiadamente humano para eles./ Talvez eles estejam me ensinando um outro modo de conviver com eles/ desde o ponto de vista deles: que eu os ouça, mas não os veja./ É mais provável, entretanto, que eles não estejam me ensinando nada,/ que eles apenas estejam lá, vivendo a vida deles,/ res-guardando o afastamento necessário para suas sobrevivências/ em modos minimamente possíveis, pacíficos, incapturáveis./ É mais provável ainda que, incapturáveis,/ não seja nada disso do que digo o que ocorra com eles/ enquanto, mais uma vez, escuto seus urros sobrepostos/ zoando pela floresta dentro de mim.» Mesmo nascido do invisível é a escuta o penhor da confiança, o seu albor. O que pede o retorno a uma certa nudez, a um desencapsulamento dos graus de atenção na palavra; que nos aliviemos de afunilar o olhar como o lenhador que o Tolstoi evocava ao lastimar que há quem atravesse o bosque e nele só veja lenha para o fogo. Mujica corrobora-o, escreve: «Pode-se olhar ou, valha a redundância, fitar com o olhar. O recém-nascido – os olhos que ainda não nomeiam – olha com os olhos ainda corpo, ainda tacto, com a carne inteira; o adulto já não olha, fita, não já com os olhos mas com a intenção, o adulto, como adulto adultera: antecipa… Não conhece, reconhece; não sente, pressente. No olhar descuidado de si, em atenção aberta, em vez de perceber a realidade regida ou/e de a reger pelos nossos interesses e desejos, o olhar libera os laços que a ligam à vontade e também à simples razão e abre-se para acolher o mundo, quase se diria que nasce nele. Calam-se as distinções e suspendem-se as apropriações: expande-se a percepção no acolhimento.» Que medidas tem, pois, o deus? As que a sua visita arma em nós, quando impele nos vasos a abertura das corolas e nós lhe emprestamos o perfume.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasDe que romances gosto? [dropcap]D[/dropcap]izer que se gosta de gatos, de omeletes bem passadas ou de filmes rocambolescos não é algo que aconteça à parte das nossas motivações pessoais. Gostar é concretizar um ânimo; congelá-lo, se for preciso. Na larga maioria dos casos, quando se gosta, a finalidade e o desejo sobrepõem-se ao prazer desinteressado. Se gosto de almoçar no restaurante Carrossel, é porque lá regressarei (nem que seja através da memória). Também é verdade que, ao gostar-se seja do que for, estamos sempre a aspirar a uma partilha. Espera-se sempre do outro lado que haja um acordo, algo em comum ou uma concórdia (ainda que apenas possível) por parte de alguém. Até o gosto pela natureza me parece francamente interessado, porque eu próprio sou a natureza que mais admiro, sejam os pinhais, o mar ou a noite que cai, na medida em que a trago comigo e, na minha intimidade, sou constituído em grande parte pelo que ela imaterialmente me concede. Gostar é um modo híbrido, mas não cognitivo, de exprimir e de enfunar o mundo, pois nele se comprimem afectos, disposições imediatas, tentações, mas também, necessariamente, alguma normatividade (dê por onde der, não existe recanto do universo em que o humano não seja falado através de regras e das linguagens que estão ao seu alcance). Dito isto, confesso que gosto muito de romances. Mas não de todos os romances. Com o tempo, a vontade de ler romances vai-se cingindo cada vez mais a um número muito restrito. Essa impiedosa geometria criada pelo gosto também pressiona – e de que maneira! – a minha oficina, razão por que tenho deixado de lado, por publicar, romances inteiros. Na década que agora termina publiquei cinco (o quinto, intitulado ‘Cálice’, sairá só em Fevereiro do próximo ano), mas deixei seis na gaveta. E nem sei bem porquê. O gosto tem os seus mistérios e há que saber respeitá-los sem grandes inquirições. A razão para este espírito selectivo é uma razão muito diluída, confesso. Mas tenho a certeza de que decorre muito mais dos acenos do gosto do que propriamente de uma sistematização de motivos, princípios ou argumentos literários (operações que, por acaso, cumpro profissionalmente com bastante assiduidade e com o máximo rigor que me é possível). Partindo desta premissa que julgo ser honesta, decidi responder, nesta crónica, à pergunta capital: afinal, Luís Carmelo, de que romances é que tu gostas? Eis as quinze respostas: Gosto de um romance que não se prenda a uma única história e que saiba escapar à navegação costeira. Gosto de um romance que extravase os terrenos para que foi inicialmente imaginado e que insista para além de uma natureza comum, pensável ou mesmo indentificável. Gosto de um romance que não seja apenas um espelho para representar o mundo, ou tão-só o reflexo seja do que for. Gosto de romances densos que sejam redes de linguagem para consertar os declives da finitude. Gosto de um romance em que as frases e as sequências projectem para fora de si tudo aquilo que não são. Isto é: que não higienizem o ânimo e que permitam sobretudo conotar o imponderável. Gosto de um romance que salte no escuro, ou seja: que não se furte ao jogo que coloca face a face segredo e revelação, mas sem deixar de ter como linha de fundo o mistério que nos funda. Gosto de um romance como espaço que se torna parte do sujeito e que com ele se confunda. Nunca acreditei que um romance pudesse ser um simples objecto diante de um sujeito, dele separado. Sujeito e objecto são, ao fim e ao cabo, falácias sem cartilagem. Gosto de um romance que não seja escravo de uma narrativa prévia ou de uma série de episódios, de que tão-só seria o utensílio, o instrumento ou o filtro. Gosto de romances que desrespeitem a obstrução fascista das linguagens e que sejam abertos às vocações geniais da agramaticalidade. Gosto de romances que reunam o irreunível, tal como aqueles eléctrodos invisíveis que soldam a matéria, criando novos arquipélagos imaginativos. Gosto de romances que se afirmam como cidades que já traríamos há muito connosco. Gosto de romances onde habite um fluxo livre (imanente, presente ou ideal) de vivências capaz de tocar no mundo com a arte do prestidigitador. Gosto de romances que sejam ensaios, poemas, crónicas, enfim com limites e teor por decifrar. Gosto de romances enigma. Gosto de romances negros e aquosos que dêem a ver o mundo como ele é (ou como ele seria) antes ainda de haver luz e de haver mundo. Não no sentido alquímico ou de Yourcenar, mas no de “Outrenoir”, a fase final da pintura de Pierre Soulages que tanto explorou a reflexão da luz sobre o mistério de telas absolutamente negras.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasO alvo que lhe deu o ser Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro [dropcap]C[/dropcap]hegam-me ecos de exposições que não verei celebrando o centenário de Alberto Breccia (1919-1993), um dos maiores. Ele, que não gostava de banda desenhada, mas de desenho, por lhe curar as doenças, as suas queridas feridas, acabou sendo um dos maiores da narrativa gráfica. Não por acaso, sobre o traço do muito que desenhada de cidade e paisagem, o que funambulavam eram seres de alta estatura, de múltiplas dimensões. O argentino acrescentou incansavelmente dimensões nas duas que dizem ser as da bd. Desenhava a lâmina, a fósforo, com colagens, das muitas maneiras que temos de nos aproximar do que nos rodeia e mais além. O seu trabalho foi (quase) sempre alimentar, dizia ele no sentido de trabalho confinado e não artístico, mas soube inventar sem pejo múltiplos rostos para a liberdade. As fronteiras parvas e mais fundas impedem que se meça com rigor devido, o da poesia, o alcance de uma obra que contém política e pensamento, Tango e Buenos Aires, mesmo quando aborda Poe ou Batman. Adoro Buenos Aires sem lá ter posto os pés. Antevi os muitos negros do futuro com «Morte Cinder». Acolho com ternura as sombras por causa de «Perramus». (Algures na página vai exemplo solto). Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro Morreu um artista em condições extremas, o José Lopes (1958-2019). Além do explícito, toca-me fundo a notícia por, sem o conhecer, tê-lo conhecido. Afinal, cruzámo-nos vezes sem conta, chegou a estar em lançamentos nossos, partilhámos amigos e espectáculos, aqui e ali, para além de o ter visto em palco, na tela. Ainda assim, era-me invisível. Como pode alguém estar tão opaco na proximidade? Depois a onda de indignação costumeira, com sinceridade que não saberemos nunca medir, no misto habitual de culpa e bandeira erguida por causa cega, falhou o essencial. Na miséria aparente havia qualquer coisa mais, ocorria um homem íntegro incapaz, por díspares razões, de se deixar integrar, apesar dos esforços, que os houve. Esta inteiriça solidão vinha com um preço, que o José Lopes quis pagar. Em altura que sobram marginais de algibeira, viveu entre nós artista assim, que via na arte a única possibilidade de ser. O resto mais não era que isso, sobras. Até estas palavras inábeis pouco mais são que cordas atiradas ao vazio. Como entender ao limite a solidão? Horta Seca, Lisboa, 12 Dezembro O arquivista-mor volta a atacar: «Crime e Castigo – a Ilustração na literatura policial portuguesa». Jorge Silva selecionou, fez enquadramento informado e até se incluiu enquanto ilustrador, ignorando habituais pudores. São várias centenas, sobretudo de capas, muitas das quais podem ainda ser vistas na Casa da Cerca, em Almada, até meados de Fevereiro, que assim tenta integrar a ilustração no âmbito do desenho. Há originais resgatados à desatenção geral, além dos rostos dos livros, também eles cheios de rostos em declinação de medos, violências, enigmas, mas também da sedução e da senhora morte. São muitos os nomes, reconhecidos ou não, que rasgam, ao longo do século XX, os mais variados estilos, perspectivas, imagens. São ringue para muito combate entre luz e sombra, pano de fundo de um vocabulário muito próprio, com destaque para os surrealistas, sem esquecer outras composições de puro drama onde até as letras participam. Nos anos mais recentes temos assistido a uma vertiginosa evolução dos modos de reprodução. Este volume resulta ser uma das nossas primeiras incursões na impressão digital, com qualidade surpreendente. E a vantagem de permitir enormes oscilações de tiragem. Na contracapa, onde o código de barras passou de objecto odiado a cúmplice da grafice, vai escrito: «quando o vírus do crime penetra no indivíduo, uma seta mortífera ganha forma, gravita em torno da ideia e pende, oscila, ondula, antes de ferir, implacável, o alvo que lhe deu o ser.» Substitua-se crime por ilustração, e eis que algumas identidades se revelam. Horta Seca, Lisboa, 13 Dezembro São as palavras que nos esculpem, nos dão forma. Spleen, meu parceiro de viagem, em tango canta-se «esplín», com o seu quê de agulha, amaciada como só na voz. Foi esta canção-navalha que inventou as esquinas, que as desenhou. O acórdão suspirou ruas no meio da criação e a bíblia foi escrita em Buenos Aires. Por aqui se aprende que a raiz se faz antena. Vou de mão dada com a morte ao miradouro do adamastor, não o da minha adolescência. Tanto faz. Nem um nem outro serão o mesmo. «Moriré en Buenos Aires, será de madrugada,/ guardaré mansamente las cosas de vivir,/ mi pequeña poesía de adioses y de balas,/ mi tabaco, mi tango, mi puñado de esplín.» A minha pequena poesia de adeuses e balas, o tabaco que só raramente fumei, achando que a companhia o justificava. Dou-me bem com as más companhias. Horacio Ferrer produz versos como balas: «Hoy que Dios me deja de soñar», fora eu sonho de Deus, portanto capaz de vogar na espera. «Estou fodido», não pára de dizer este irmão, mão dada, apesar de presa. A minha morte continuará migalha da tua, vamos morrendo juntos, doravante a cada dia missa de sétimos dias. O meu penúltimo whiskey terá que ser bebido contigo, em Buenos Aires, digo Lisboa, portanto, Lobito, e a morte quando chegar vai ter que me detestar. Não dançarei. Morreste-nos de madrugada feito tango. Todas as esquinas se vestem de negro, todas as bússolas me cantam ao ouvido, «abrazame fuerte que por dentro/ me oigo muertes, viejas muertes». As mortes não sabem ser velhas, fazem-se perto. Invoco Amelita Baltar, só ela consegue, cavalgando a asma do acordeão Astor e os versos Ferrer, esmagar o tempo na mão, «alma mia». Onde quer que morra será Buenos Aires, digo Lisboa, sendo que interessará a poucos. (Uns quantos, algures em restaurante, quem sabe). Menina e Moça, Lisboa, 14 Dezembro Diz-se FEIO, mas vem do feminino para desembocar em Festa de Escritas Improvisos e Oralidades. Por causa da época, do lugar e das circunstâncias fui ler episódio de «A Noite e o Riso» (ed. Dom Quixote), aquele quando os camones se atreveram a tomar posse de pedaço da orelha de Simão Cara de Cão, empurrando o Nuno Bragança, antes de ser narrador, para o ringue do boxe. O Luís [Carmelo] insiste em orgia de leituras disléxicas, desta vez abrigadas sob o chapéu-de-chuva do desassossego. No cruzamento que se instala, fui atropelado pelo mais negro dos contos para crianças, «Coração com Estrela-do-mar dentro», do Filipe [Homem Fonseca], com ilustrações realistas, e portanto, assustadoras de death_by_pinsher (estou-te a ver!), em edição de mil cuidados. Gozo, que este conto sobre manipulação genética dos imaginários e dos seres não se destina aos petizes, mas devia. Brinco, mas esta mistura de encanto e horror está mesmo a pedir uma infantil maldade. As mesmas mãos me ofereceram «Alta Finança» (ambas by Edições Fundo-da Gaveta), registo do acordar a partir da implantação da cueca masculina de modo tal que perturbará para sempre a interpretação do que cada um poderá ser, do somos, do que vamos sendo, do destino para que acordamos. A língua, qual gordo em desequilíbrio (death_by_pinsher, estou-te a ver!) vai-se fazendo tapete calcado em direcção à estratosfera. «Meu deus – digo em voz alta, e as palavras desenham-se no vidro embaciado, a gozar».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEmergentes ….nós não escondemos o perigo que a alma da humanidade corre, o abismo do qual essa alma está próxima. Mas também não conseguimos esconder que acreditamos na sua imortalidade. Herman Hesse [dropcap]V[/dropcap]ivemos um momento que não prevíramos ainda há poucas décadas, um instante mundial que nos fustiga pela agitação espontânea numa transformação que mais não faz que aumentar o estro da nossa imaginação quase incapaz de projectar os efeitos da circunstância. Parece um “tsunami” face a estruturas mantidas programaticamente de pé e que a força do impacto as deixa sem fundições para reerguerem-se, tomam novas imagens, é certo, e tendem a sacudir as águas literalmente dos seus capotes onde improvisam a sua permanência na escala flutuante dos acontecimentos. Mais do que nunca o caminho faz-se caminhando, e não há nenhum, fazendo-se por isso a andar. A improvisação dos movimentos, os bloqueios sistémicos do quotidiano, fazem dos amanhãs que cantam uma coisa vã, pois que temos mais do que nunca que escutar cada dia e nele aguardarmos as mudanças. Desde os artistas emergentes, que definem a sua marcha com técnicas onde a sua inventividade, cria não só outras estéticas, bem como níveis de observação ainda não contemplados, até aos que se revoltam ( que tudo pode ser em simultâneo) e caminham no dia como numa plataforma mais entre aquilo que dele emerge e possa ser passível de revolucionar as novas estruturas em pleno movimento, à aceleração e à complexidade das formas que fazem com que os pesados aparelhos de Estado não saibam muito bem como lidar neste súbito instante do destino, há outras urgências e emergências que se dão: o clima, a Terra, os arquétipos que se partem e formam um género só, o híbrido ( pondo um fim quase relâmpago ao dois por três) a inteligência artificial, os buracos negros, o capitalismo, os aceleradores de partículas… vão deixando exangues as características da sua identificação. As urnas democráticas afastaram os jovens para as calendas gregas, e, em vez disso, nasceu com eles uma insuportabilidade que vai sendo presenciada em todos os cantos do mundo. Muitos de nós dentro dos sistemas anunciamos obscuras visões de antanho – autoritários, dirigistas – mas não se sabe nada, tal como também nada vimos o que era passível vir hoje a acontecer. Todos os projectos centralizados não são possíveis sem um grande número de voluntários, e quando se participa estamos ainda para lá de nós mesmos. Os jovens projectam-se sempre com o seu próprio corpo rumo ao futuro, dão a vida como fazem os amantes, nunca sabendo o que virá depois, mas se não o fizessem teríamos razões ainda mais fortes para temer. Agarrámos na geração vindoura com sofreguidão num mundo de acentuado envelhecimento, desejámos resolver a perspectivada vida que tínhamos para eles, mas esquecemos que sem dela se separarem o futuro não existe e a transformação silenciar-se- ia. Diz-nos ainda que sistemas com propriedades emergentes podem não seguir os princípios da entropia, pois eles se formam e crescem independentemente da falta de um comando ou controle central, e é a isso que parecemos assistir rasgado o véu da primeira essência dinâmica das definições sociais. Este grande corpo não cessa funções nos bons realizados esforços, ele percorre o ciclo do seu conhecimento, e se o fim do mundo é apenas uma noção, já o fim de um certo mundo é um facto real. Fomos compelidos a tentar perceber, e, não haverá reposições traiçoeiras para uma escalada que parte de dentro do mau estar do próprio organismo, contemplar esta substância pode agora ser um desafio que as nossas certezas começarão por tentar corrigir com o tempo perdido de um antigo voluntarismo. Mas emergem destes dias, também, o estatuto de saber conduzir sem ser conduzido, a desordem que impera na largueza dos gestos, deixar de olhar o mundo como uma escada até à calote mais gelada da inacessibilidade, e se para tanto tiverem que adensar a marcha, foi por que nós ficámos mais parados. Viver neste estado de coisas, parece cada vez mais consensual – não fará sentido – e sem sentido tudo se perde numa propaganda estilística de regime que embalará certamente os mais velhos e mais ricos das Nações. Será que há continentes submersos também a emergir nesta assentada? Ou estrelas e meteoritos que reguem de impacto a Terra num estertor violeta? Abertos que estamos agora para a Galáxia também as águas oceânicas ficarão mais sós, e nem sempre a nossa ausência por aqui se avizinha agora um mau sinal. Emergentes de todo o mundo, Uni-vos! Sem vós, que não serão certamente os bárbaros de Kaváfis, serão pela sua voz agora ainda, a única solução.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasOs Concertos para Violoncelo [dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é descrito como “a figura criativa mais significativa do Século XX na música clássica brasileira”, tornando-se o compositor sul-americano mais conhecido de todos os tempos. Autor prolífico, escreveu numerosas obras orquestrais, de câmara, instrumentais e vocais, totalizando mais de 2000 até sua morte, em 1959. Villa-Lobos teve como primeiro e dilecto instrumento o violoncelo, compondo várias obras para o mesmo, entre as quais dois concertos. Se o seu Primeiro Concerto para violoncelo, o Grande Concerto No 1, Op. 50 não se parece muito com outros trabalhos seus conhecidos, é porque se trata de uma das suas primeiras composições – provavelmente a sua primeira tentativa reconhecida de compor para orquestra –, e porque, em 1913, ainda não tinha desenvolvido um estilo distinto. A imaturidade do compositor é patente tanto no seu manejo inconstante da forma, como no material pouco digno de memória. A obra partilha influências francesas e brasileiras, patentes nas suas longas linhas líricas para o violoncelo derivadas de melodias populares brasileiras, enquanto a orquestração reflecte a influência de Debussy, ainda vivo quando Villa-Lobos deu os toques finais neste concerto. A estreia ocorreu no dia 10 de Maio de 1919 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo solista o violoncelista Newton Pádua, sob a direcção do compositor. Felizmente, o Segundo Concerto, composto no Rio de Janeiro em 1953, é muito superior como obra – agora na veia mais madura do compositor e com uma reminiscência interessante no segundo andamento da suite Bachianas brasileiras nº 5, especialmente quando a extensa cantilena do violoncelo é acompanhada por uma figuração rápida em pizzicato. O Concerto para Violoncelo e Orquestra, N° 2, W 516 foi composto por encomenda do violoncelista, também brasileiro, Aldo Parisot. Foi estreado por Parisot com a New York Philharmonic, sob a direcção de Walter Hendl, no dia 5 de Fevereiro de 1955. O suporte harmónico e o som orquestral lembram a abordagem mais rigorosa e eficaz de Hindemith, um atributo que não é certamente encontrado com frequência em Villa-Lobos. Embora o compositor não cite directamente nenhuns temas populares neste Concerto, a música soa definitivamente brasileira, com elementos e ritmos de dança folclóricos a permear a partitura. O uso de fontes brasileiras é visto como um tributo ao seu compatriota, Aldo Parisot, a quem a obra foi dedicada. Alguns desses elementos foram tirados da música do Nordeste do Brasil (como os padrões rítmicos do “desafio” e do “berimbau”), uma região cuja expressão popular foi muito admirada e estudada por Villa-Lobos. Não por coincidência, Parisot é também originário do Nordeste e desta forma o compositor tencionou provavelmente capturar as suas raízes nativas. Sugestão de audição: Heitor Villa-Lobos: Cello Concertos Nos. 1 & 2 Antonio Meneses (violoncelo), Orquesta Sinfónica de Galicia, Victor Pablo Pérez – Naïve, 1999
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasOs animais e os outros [dropcap]A[/dropcap] noite estava quente como usual nos verões de Floripa e as conversas corriam soltas à volta das várias fogueiras, na praia do Campeche. Havia violões, batuques, cerveja e alegria. Numa das fogueiras, uma rapariga defendia ferozmente os direitos dos animais e a proibição de venda de carne, no que era apoiada pela grande maioria, todos vegetarianos ou vegan. A única voz discordante era a de um garoto argentino – apesar do sotaque falava muito bem português –, que ousava dizer que devíamos ser livres de escolher aquilo que queremos e não queremos comer. Apesar de ser uma postura aberrante para a maioria dos participantes à volta da fogueira, maioritariamente garotas, deixavam-no falar e até se riam. Muitas queriam contrariá-lo, queriam convertê-lo, queriam ser aquela que iria mudar um pouco o mundo ao mudar um homem. Tivesse o garoto as pernas tortas, os dentes fora do lugar e o corpo se parecesse com um eucalipto, há muito que a conversa tinha acabado. Mas o rosto e o corpo do garoto derretia corações, permitindo que o seu liberalismo fosse aceitável. “Argentino e comer carne, não podia ser mais cliché e sem graça”, dizia uma delas, fazendo rir todas as outras. Mas neste caso, no caso do Juan, era até engraçado. Para mais, tocava sax tenor maravilhosamente. Para aquelas garotas – de várias idades – a música e a beleza desculpavam Juan estar no lado errado do mundo. Entre umas melodias e uns sorrisos, dizia que as pessoas deviam ser mais tolerantes umas com as outras. “Imagina que vocês estão certa e eu estou errado! Apesar disso não deveriam ser tolerantes comigo?” Elas sorriam. Era um grupo grande, obviamente havia várias garotas com garotas, a quem a beleza de Juan não influenciava o juízo, mas só Andrea, a namorada de Yara, ousou responder a sério a Juan: “Você acha certo ser tolerante com terrorista?” Juan ficou perplexo e disse que não tinha nada a ver. Mas para Andrea tinha. Para Andrea e para as amigas, que momentaneamente tinham deixado de pensar por causa de um palmo de rosto, de um corpo malhado. “Os animais são seres vivos que merecem viver e serem respeitados como nós. O modo como os criamos e os matamos é mais do que bárbaro, é um ato terrorista. E você quer que eu seja tolerante com terrorista.” Juan continuava a não entender a comparação, continuava a não entender o que movia aquelas pessoas e disse: “Para você até parece que eu mereço menos viver do que um boi.” Ouve um silêncio, que fez curto-circuito na beleza. Juan acrescentou: “Parece que para você o mundo se divide entre os animais e os outros. Qualquer dia os animais também votam.” O ambiente ficou tenso e foi Yara quem veio salvar o momento, abraçando e beijando Andrea. Yara compreendia o fosso enorme que separava Juan de todas elas, e que não era possível nem desejável continuar a conversa. O mundo de quem não come carne por razões éticas é completamente diferente do mundo de quem come carne e não considera a alimentação um acto ético. Noutras fogueiras os risos e os cantos propagavam-se. À volta desta, uma das garotas começou a tocar e a cantar a canção estrangeira que mais conhecida na ilha, “No Woman No Cry”, de Bob Marley, fazendo com que todos cantassem junto e Juan acompanhasse com o saxofone. No final da música, com a conversa já esquecida, a cerveja mais bebida, a beleza do argentino voltaria a fazer efeito e a noite podia ainda salvar-se. Ninguém veio ali para fazer política. Não é por acaso que se chama a Floriopa a ilha da magia.