Cidade material

[dropcap]M[/dropcap]acau. Cidade mental. Penso. Perguntar se um dragão voa. E a pergunta certa para setenta milhões de patacas ou de pessoas, inesperadamente não ser se existem, os dragões, mas qual. Ou se Luís de Camões visitou. Ou o dragão amarelo. E se algum dia um deles voltará.

A pensar em Calvino e as suas Cidades invisíveis. Interiores ao viajante. Como se não o fossem todas. Imaginárias ou inventadas. Há sempre uma distância. Entre nós e uma cidade qualquer. Há uma cidade mental. Há uma cidade material. E há uma cidade brutal. Mas os dados estão lançados. Há muito. Com o esmagador peso do futuro atroador, em passadas de gigante.

A China, o país, uma ideia de si e não se conforma sem que todas as reunificações se fechem numa identidade nacional, possessiva, invasiva, num projecto político, económico e funcional. A palavra cultura aparece, porque é bonito, a enfeitar. Mas desta se moldou de forma tão única a Macau de macaenses, portugueses e chineses e tantos outros viajantes. Tão pequena que era, e tão murada. Cidade em camadas difíceis, como velaturas de segredos. Culturas de gueto, num cadinho fervilhante. De sabores. E nas sombras que nos seguem pelo chão, uma memória de aventura ancestral. Com que pouca profundidade se desenvolveu o interesse destas culturas, umas pelas outras. Comparando com o que se poderia ter sonhado, podia ter sido paradigmático, o cruzamento de tolerâncias e paixões e Histórias. E séculos a perder de vista. Macau foi um pequeno ponto longínquo de encontro. De essências, modos de vida e culturas. O momento maior na definição do humano. Mas que tende a diluir-se na solidez dos valores económicos que mais altos se levantam.

É o que é. Mas não o que poderia ter sido. Uma mistura coerente de tradição, cultura e modernidade em que tudo poderia ser guardado e acrescentado. Mas Portugal não teve jeito e a China não tem vocação.
Macaense, um povo e cultura como se produzidos pelos deuses numa noite de jogo, para um futuro impreciso de dias contados nas políticas de grandiloquência, em afastamento, como placas tectónicas de um eixo identitário. Chame-se-lhe pátria, chame-se-lhe terra, identidade, ou declaração conjunta, mas no horizonte: diluição. Muita nostalgia fica para homenagear o que foi.

Cultura não é o investido nesta cidade. É o que se compra, o que se joga. O destino. O querer fazer-se da aparência adquirida, ou numa mão de cartas, traiçoeira ou prometedora. Depois há que continuar a ir a jogo ou reduzir a ambição ao resultado obtido. Há quem arrisque e há quem desista. Os que desistem podem ganhar. Os que arriscam, perder tudo. Ou não. Tudo o resto, é rame rame no caminho inevitável.

A pensar para que crescem as cidades e em que parte do corpo. É uma pergunta que neste final da segunda década, me assola. Neste meu descontentamento da mudança. Mas do sentido. Para que cresce o corpo da cidade, senão para se travestir de uma outra vida, de outros habitantes, mais do que nunca, de passagem por uns dias. A quem agradar. É por eles que o coração das cidades mal amadas se vai adulterando e vendendo. E desabitando, sobrepovoadas. Como parque de diversões fora de horas. A montanha russa em descanso, finalmente. E as galerias as livrarias os cafés as lojas bonitas de design os cinemas e tudo o mais que não há, tudo fechado e invisível.

Há um recorte poético na naturalidade com que um território irrompe das águas circundantes e que lhe deu uma vida de passeio marginal que tantos habitaram e de tantas maneiras, um remate digno e bucólico a abraçar a cidade e um rosto ao longo da Praia Grande. E um outro escondido, no Porto Interior.

Quando se lhe muda a face, numa geometria que em nada imita a realidade espontânea da terra, se recolhe o lugar que era marginal a uma interioridade forçada, desfasada, em que sufoca sem a respiração do rio, mudam os passeios, mudam os passeantes e passam de carro sem passear. Simplesmente a caminho. Carro grande, caminho pequeno. Para que se quer um carro grande numa cidade tão curta… Pela mesma razão se compra um fato de marca e não o de um bom alfaiate. A peso de oiro, tudo pesa demais nesta cidade em que se veem lingotes nas montras de ourives. Os poucos edifícios com uma personalidade de época, sobreviventes, perdem a escala. Já tão poucos e sufocados. Uma cidade encerra em si todos os tempos que a construíram, e assim os deveria manter. É desse convívio que se faz a memória. Não é de geração espontânea.

Os aterros deveriam ser desenhados com amor. E não cortados à faca ao desenho das águas, em qualquer lugar. Orgânicos e naturalistas, com margens amplas para passear. Bancos de jardim, esplanadas para estar. Árvores em quantidade. Falta espaço e natureza. Mas num jardim não se gasta dinheiro. Por isso não se gasta dinheiro num jardim. A margem é o que permite aos olhos um horizonte, beber a luz do rio, fugir à vertigem e visão atravancada de uma cidade em altura. O que é o ordenamento sem a poesia lenta e amadurecida dos anos a moldar passos, hábitos. E à sua dimensão. O que é senão isso. E, não sendo, há que inventar com brilho e poesia. Espaço. Edifícios belos. E bons de habitar. Arte pública. Ou que tóxica se torna uma cidade. Tudo em trânsito. O trânsito ditatorial.

Se pensar na explosão do corpo do território como um disparate das células em forma como que cancerígena em que se perde a natural harmonia inicial que se cristalizou em hábitos e rituais, é triste. Sem o lirismo de uma bela valquíria a arredondar em formas barrocas de encanto e a crescer em luminosidade. A nova sedução a despertar emoções. Mas foi a loucura das células ou da ganância ou do dinheiro. Sei lá. Mas que se pode amar mesmo assim, se bem que de forma estranha. Ou é a memória. A amar a cidade mental e tentar revisita-la na cidade material. Tudo se cruza.

Mas tão mal amada. Sinto. Usada. De passagem. Mas eu estou tão longe. Que sei eu? Tão longe e tão perto. É a mente, que se na fantasia não mente, alimenta. Cidade interior. Como tudo e todos em nós. Cada vez mais, para percorrer no isolamento de veículos, para abstrair do passo, para se viver entre vidros que coam a realidade do ar e ares condicionados que agridem as estações, tudo meio invisível ao tacto e aos sentidos todos. A tornar-se cada vez mais exterior. Fora dos vidros, do ar condicionado e do conforto. Lá fora.

E lá fora, como num flashback revejo a porta de casa, à rua de S. António, e avanço para o jardim do poeta. Algo lírico paira por ali. No largo, os mesmos velhos do meu tempo, com os seus pássaros de sempre, levados a apanhar ar, a passeio. A mesma calma, o mesmo silêncio, a folhagem a produzir sombras nos muros. No meio do bulício magicamente camuflado. Logo ali. Tão perto e tão longe do centro. Uma certa forma de vida ainda mora ali. Mas outras já não. As casas de chá, antigas e imutáveis, as velharias de valor discutível, empilhadas e atravancadas mas autênticas testemunhas, as tascas de rua, abundantes, sujas e deliciosas, o barulho das pedras do mah jong noite adentro a circular entre as janelas abertas de toda a cidade, para entrar calor e humidade. Omnipresentes a ocupar, noite fora. O sapateiro inventor da rua do campo. E outros ofícios. Outras vidas. Tenho saudades em qualquer sítio.

Sento-mo no muro da praia grande, esse resto obsoleto de um conceito de marginal que deixou de o ser – não se passeia muito por aqui – enquanto penso em tudo o que prende uma pessoa a um lugar sem as raízes de si. Antes. Do encontro. E em como algo fica depois indivisível e secreto, enraizado num lugar invisível, que só cada um sabe. E como depois se fica a pertencer. O teimoso feitio da linguagem, a fermentar fantasia e proximidade e distância. A distância necessária num lugar apertado. E tanta gente que passa. Desaguei da rua da palha, em fuga. Aquele derramar vertiginoso em que os pés tropeçam nos calcanhares da frente, sem a fluidez do passo porque não há ar. Entre nós e os outros. A cidade não tem pulmão. Mas ali descem noivas, também, com os seus vestidos açucarados e a corte engalanada, vindos da fotografia em frente ao estranho sintoma de cultura. Em ruínas e reduzido a uma fachada. Mas com janelas para o céu. Às vezes azul.

Como o grande dragão que paira sobre a cidade. Símbolo da transformação pela destruição, para que nasça o que é novo. Assim é a intempestiva forma que a China já praticou, em contraste com a enorme paciência com que planeia a longo prazo a inexorabilidade do futuro. E a cidade, região e diluída nela, como é feitio habitual. Diluir para reinar. Etnias, culturas, vidas, famílias, laços. A aniquilação do indivíduo desde dentro. É o que não perdoo à revolução cultural.

Assim esta progressiva e diária espécie de lavagem da cidade, por enxurradas de pessoas – paradigma em expansão por toda a região e que será a Grande Baía – do que tenha sido a alma ímpar da cidade. A memória, por exemplo. Cidade, território, lugar. Uma célula única. A pulsar do seu núcleo, identidade. Real, afectiva ou ficcional. Nunca pedaço de um país, aquilo que de tão longe de tudo, não tinha dono. Não a vi assim. Ao fim de umas quantas gerações, o erro de retomar a posse é equiparável ao da apropriação. Mais grave numa cidade adulta. Feita de pessoas com vida e história. O grande dragão soube esperar. Mas a identidade cultural entra na roda gigante e não pode apear-se. No parque.

E é neste conceito que se funda a Grande Baía. Do futuro. Um vórtice maior. Mais tudo, transportes e circulação, negócios, dinheiro e pessoas e tão pouco sentido de estar e habitar. Uma grande ponte que liga três cidades é a metáfora deste tempo. Cada vez mais rápido e de passagem. Um dia, a cidade diluída numa grande baía, que não será a Baía da Praia Grande. Simplesmente a Grande Baía. Grande de mais para passear à noite.

16 Dez 2019

Cristãos em guerras

[dropcap]A[/dropcap] Guerra das Religiões (1517-1648) ia já a meio quando Portugal passou a ser governado por Filipe I, soberano católico espanhol dos habsburgs contra quem desde 1568 os Países Baixos (Holanda), após se converterem ao protestantismo, lutavam pela sua independência, na que ficou conhecida por Guerra dos 80 Anos. Uma das muitas guerras entre cristãos que se desenrolavam na Europa, dividida entre os países do Norte, ligados ao protestantismo e os do Sul, a manterem-se católicos. Mas a questão ultrapassava largamente os problemas da fé e debaixo dessa capa os senhores da terra procuravam levantar revoltas nas regiões que dominavam para se libertarem do julgo espanhol e do Sacro Império e formar novos países.

Esta Guerra das Religiões ocorreu apenas dentro do Cristianismo [pela visão chinesa do século XIX, o catolicismo e o protestantismo são duas religiões diferentes] cuja divisão começou em 1517 quando o monge Martinho Lutero (1483-1546) afixou as suas 95 teses à entrada da igreja do Castelo de Wittenberg (Saxónia), onde denunciava o tráfico de indulgências pelas autoridades eclesiásticas em Roma. Tal estava relacionado com o Papa Júlio II (1503-1513), que usou parte desse dinheiro para pagar a Miguel Ângelo as pinturas da Capela Sistina.

[Interessante é ver na actualidade os povos que abraçaram o protestantismo viverem no mais forte materialismo ao ponto de fazerem do dinheiro o seu Deus]. Em 1520 foram publicados os principais escritos de Lutero e o Papa Leão X excomungou-o. Em 1530 ocorreu a Profissão de fé de Augsburgo, onde ficaram traçados os princípios da religião cristã reformada. Para a reforma luterana a única autoridade está na Palavra de Deus escrita na Bíblia e não aceita a supremacia papal e dos sacramentos, a contrariar a doutrina católica, que segue a tradição da Igreja, no poder do magistério, do Papa e clero, os seus dogmas e culto dos santos. Próximo das teses de Lutero, João Calvino (1509-1564) fugiu de França em 1536 para se refugiar em Genebra e aí publicou A Instituição da Religião Cristã, mas sendo perseguido, em 1541 regressou à sua terra natal. Assim foi criado o calvinismo, sendo os leigos a exercer a autoridade no interior da Igreja, não reconhecendo o episcopado, a única diferença para com o luteranismo.

Na Alemanha, em 1525 Lutero colocara-se ao lado dos príncipes contra os camponeses, quando estes entraram em guerra contra a exploração pelos seus senhores, pois para ele a religião do príncipe é a religião vigente no seu território. O luteranismo desde 1530 expandiu-se à Alemanha e à Europa do Norte e a reforma calvinista a partir de 1541 começou a estender-se à Suíça, a França, aos Países Baixos e à Escócia. Também inserido na família protestante, a Igreja Anglicana, apesar do inicial pendor católico, separou-se em 1534 da Igreja Católica Romana pois Henrique VIII pretendia divorciar-se de Catarina de Aragão para que o seu casamento com Ana Bolena ficasse legítimo. O Papa Clemente VII não acedeu e por isso, no que ficou conhecido por Acto de Supremacia, rompeu oficialmente com a Santa Sé, confiscando em Inglaterra todos os bens da Igreja Católica e tornando-se o chefe supremo dos anglicanos.

Ainda em 1534, Inácio de Loyola e os companheiros pronunciavam votos em Montmartre (Paris), que levará à fundação da Companhia de Jesus em 1540.

O Concílio de Trento (1545-1563) fecha a Idade Média e deu início à Contra Reforma da Igreja Católica.
Em França, a guerra religiosa entre católicos e protestantes atingiu o auge em Paris no massacre da noite de São Bartolomeu a 24 de Agosto de 1572.

Com a assinatura da Paz de Vestefália em 1648 (o primeiro tratado moderno), terminava a Guerra dos 30 Anos, um conjunto de devastadoras guerras ocorridas sobretudo na Alemanha e com ela findava (não totalmente) a Guerra das Religiões na Europa, cujos reflexos pelo resto do mundo se continuou a fazer sentir nas colónias europeias ultramarinas. Emergiu então lentamente uma nova organização de estados, com as monarquias a transformarem-se nas modernas nações-estado. Mas ninguém venceu, apenas essas diferentes igrejas abriram mão do seu controlo sobre o julgamento do indivíduo e quem melhor preparado para o agarrar do que René Descartes (1596-1650) com a sua geometria cartesiana de projecção, centrando o observador em si mesmo como padrão.

Estatuto de Macau

Com a Dinastia dos Filipes no trono de Portugal, a notícia da união das duas coroas chegou a Macau a 31 de Maio de 1582 através do padre Alonso Sanchez, S.J., enviado de Manila a 12 de Janeiro de 1582 pelo Governador das Filipinas D. Gonçalo Ronquilho para promover nesta cidade a aclamação de Filipe II. O navio que transportava este emissário foi desviado por uma tempestade para as costas de Fujian e vários contratempos ocorreram com as autoridades chinesas no seu caminho até Cantão e só no fim de Maio conseguiu entrar em Macau. A 18 de Dezembro de 1582 na Casa da Companhia, então o Colégio de S. Paulo, Macau prestava juramento de fidelidade a Filipe II de Espanha, mas como a China não permitia que os espanhóis aqui exercessem a sua autoridade, Macau continuou com a bandeira portuguesa e nunca a substituiu pela espanhola.

A Dinastia Ming (1368-1644) tinha já então mais ou menos definida uma política para Macau e os vice-reis de Cantão fechavam os olhos à situação consumada da presença portuguesa. Em Cantão começaram a aparecer barcos espanhóis provenientes de Manila para tentar obter uma base de comércio, o que causou apreensão às autoridades chinesas.

O novo Vice-rei de Guangdong e Guangxi Chen Rui em 1582 mandou uma chapa para Macau a convocar o bispo e o capitão-mor para comparecerem perante o seu tribunal em Zhaoqing (capital da província), pois pretendia esclarecer o estatuto de Macau, ainda não reconhecida legalmente pelo Governo de Cantão. No entanto, os mandarins do distrito de Huengshan aqui tinham já os seus funcionários chineses nos serviços alfandegários, mas estes magistrados “só interferiam nos assuntos internos de Macau quando era absolutamente necessário”, segundo Tien-Tsê Chang, que refere, “Durante os primeiros 25 anos após 1557 os mandarins mais importantes de Cantão pouca importância deram ao estabelecimento português em Macau.”

Outro motivo para o vice-rei de Cantão convocar os portugueses era averiguar a razão dos “espanhóis entrarem tantas vezes clandestinamente no território chinês, contra as leis proibitivas marítimas. Só através dos portugueses, podia ele obter informações para confirmar as acusações” de irem tomar posse da China. E continuando com Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “A intervenção de Chen Rui é exactamente a prova da lealdade com o cargo para que fora nomeado. Como é que ele poderia deixar de intervir tendo notícias sobre uma possível invasão da China pelos Castelhanos?”

Segundo Victor F. S. Sit, tal intenção de conquistar a China existia como se constatou nos planos apresentados pelos jesuítas Francisco Cabral em 1584 e dois anos depois por Alonso Sanches.

16 Dez 2019

Os dias do Fólio

[dropcap]1[/dropcap]2 de Outubro de 2019, 21:30. Entro para o palco do Auditório Municipal Casa da Música na companhia da Ana Sousa Dias e de Mathias Énard para participar numa mesa do Festival Fólio 2019 cujo tema é a Oriente do Oriente. Este é o problema dos factos: mesmo que minuciosamente enumerados, eles são mudos para a constelação de significados que só as relações e as suas estruturas conseguem adequadamente convir.

Eu faço anos a 12 de Outubro. O Mathias Énard é dos escritores franceses actuais que mais me desassossega. Se me tivessem dito, há quatro ou cinco anos, que ia ter a oportunidade de estar numa sessão com ele num festival literário como o Fólio, no dia do meu aniversário, teria despedido a hipótese com as costas da mão. Mais a mais o tema: O Mathias Énard fala farsi (persa) e árabe, viveu em diversos locais do médio oriente antes de se estabelecer em Barcelona, onde reside actualmente; por outra parte, eu estou a aprender chinês e no dia da sessão estava a três semanas de viajar para Macau para lá passar um mês e meio em residência literária. O oriente a oriente do oriente. O oriente enquanto matrioska. Nada de mais adequado e certeiro.

O Mathias escreveu um livro notável chamado Zona. É um livro que se divide em vinte e quatro capítulos ou cantos desprovido de qualquer sinal de pontuação excepto vírgulas. Cada uma das suas 528 páginas corresponde um quilómetro da viagem que o narrador faz de comboio de Milão para o Vaticano, em Roma. É um livro que parece querer exumar os mortos que a barbárie humana resultante da guerra tem vindo a semear pela Europa e Médio Oriente. Mas não é um livro de factos; é um livro de relações. De invocações. Narrado ao modo de stream of conciousness, é uma espécie de epopeia caleidoscópica, onde ecoam as vozes de Zeus, de Atena ou de Ares no intervalo das rajadas de Kalashnikov. É um livro que não nos deixa esquecer que o estado de guerra – que a maior parte de nós não conhece – é um acontecimento humano tão natural como recorrente. E é nesse contraste que o livro se instala e cresce: entre a Europa pós-união europeia e os mortos sobre a qual a paz foi edificada. É um livro arriscadíssimo que podia falhar a qualquer momento – não é fácil manter aquele fôlego narrativo ou as dinâmicas que dão amplitude ao relato e não o deixam cair numa banalidade gore ou mesmo o interesse continuado do leitor. E se há uma coisa que aprecio acima de todas as restantes num escritor é o seu voluntarismo em correr riscos. Je vous tire mon chapeau, Mr. Énard.

Acabámos por falar dos nossos métodos de escrita, dos nossos livros editados, dos nossos projectos futuros. O Mathias adora investigar. Se vai escrever um livro sobre Istambul numa determinada época, instala-se numa biblioteca até conseguir fechar os olhos e ver aquela Istambul de que ele quer falar. É também isso que faz dele um escritor extraordinário: enquanto eu me deixo levar pela corrente, ele aprendeu a bolinar no mar do tempo.

Eu sou instintivo, pouco metódico, interesso-me mais pela profundidade do que pela latitude e tenho pouca sensibilidade para a cenografia. Eu toco guitarra sozinho no quarto, ele conduz orquestras. A cada um o seu elemento.

Despedimo-nos com um abraço. Eu dei-lhe um livro meu em francês, O da Joana, na esperança que ele um dia o leia. O Fólio deu-me esta prenda, uma das melhores da minha vida. Obrigado à Ana Sousa Dias, ao José Pinho, à Raquel, à Susana, ao Pedro e até àquele sacana que não parava de encher o copo de ginja.

13 Dez 2019

Estudo sobre síntese passiva I

[dropcap]Q[/dropcap]uando olhamos para uma coisa, achamos que a temos aí, inteira, toda ela, tal como ela é. Edmund Husserl voltou a ensinar-nos que o destino dos grandes problemas da filosofia se encontra nas maiores trivialidades. Haja olhos para topar-se com elas. O que vemos de uma coisa é o lado que está virado para nós, melhor: o lado que está entre os nossos olhos que funda a nossa perspectiva, no caso da percepção óptica, e o objecto para lá da superfície dos seus contornos. O lado do objecto que está visto é uma estrutura não é real. É como a piada que procura saber dos lados de uma bola. Tem dois: o lado de fora e o lado de dentro. Todas as coisas têm dois lados: o lado que está virado para nós e o lado que está de costas para nós. Estes lados mudam.

São formas variáveis. Posso ver as costas da cadeira, depois o assento, depois as pernas, depois, a cadeira de pé, de frente, de lado, de cima, de baixo, sentado nela e quando dela me levanto. A cadeira tem sempre os seus lados objectivamente os mesmos, reais, mas os lados visíveis para mim, tocados por mim, sentidos por mim, são determinados pelo espaço estruturante do contacto. Husserl põe este problema de diversas maneiras ao longo do seu encaminhamento filosófico. Há uma diferença entre o que está à vista, alguém que eu vejo de frente, e o que não está à vista mas que é pre-suposto: o seu interior: órgãos internos, aparelhos, sistemas, epiderme revestida pela roupa, a nuca, as costas, a parte de trás do corpo que eu não vejo. Se vir alguém de costas eu pressuponho que a pessoa tem rosto, barriga, parte da frente no seu todo. O mesmo se passa de lado. Quando alguém gira em torno de si, vai dando a ver de si lados para fazer desaparecer outros, que logo vai fazer aparecer para deixar desaparecer. Só vemos sempre a presença que vem à nossa presença. O estranho é que o que não vemos, o que desaparece não é como se não fosse e desaparecesse do universo, está lá de alguma maneira. Mas qual é compreensão que temos desta maneira como alguma coisa que não se manifesta, que está desaparecida, que não está lá, que está ausente, não está presente, de alguma maneira ainda é, existe, pode aparecer?

Podia acontecer que, ao contornar alguém que vejo de costas, para ver se é alguém que me pareceu ter conhecido, não tivesse rosto, nem barriga, nem parte da frente, fosse côncavo no seu todo. Do mesmo modo, podia acontecer que se eu abraçasse alguém que vejo de frente, não sentisse as suas costas. O que existe entre a nossa perspectiva e os objectos que tocamos com o olhar são as superfícies dos objectos. Não vemos para lá da pele dos objectos, não vemos para lá da casca dos frutos, das árvores, do revestimento de qualquer coisa. Não conseguimos antecipar o que será para lá da camada superficial, epidérmica do que quer que se apresente, mesmo que seja logo a seguir a esse contorno.

13 Dez 2019

Scorsese, tradição e memória (I)

[dropcap]É[/dropcap] de reter na memória e guardá-la tanto quanto esta o permitir a última sequência de “The Irisman” de Scorsese.

A enfermeira acaba de medir a tensão arterial ao decrépito De Niro assegurando-lhe que não está mal e ele graceja por ter a confirmação clínica de que ainda está vivo. A câmara sai atrás da enfermeira no seu demorado percurso até ao guichet da enfermaria. Para nossa surpresa não se passa nada e o travelling retrocede rumo à porta do quarto. Percebemos então ter havido uma elipse de tempo. De Niro está agora à meia-luz a terminar uma oração com o padre. O diálogo não acrescenta qualquer informação ao que anteriormente fora dito entre ambos a não ser que o Natal se aproxima e De Niro não sabia. À saída do padre De Niro pede-lhe para deixar a porta entreaberta. Será por essa frincha que o veremos pela última vez, lá dentro na penumbra a olhar para cá.

Esta sequência é simétrica na forma de outra executada horas antes, quando a câmara segue o guarda-costas que abandona o seu protegido na barbearia indo pelo corredor fora onde se cruza com os matadores, volvendo atrás deles até ao ponto de partida. Mas não entra, fixa-se num vivíssimo ramalhete de flores e deixa ouvir os tiros e os subsequentes gritos de pânico que já esperávamos escutar, porque tal movimento, de tão invulgar e redundante, entrega-se à inteligência e à sabedoria do espectador experiente que sabe muito sabe que um plano assim, a dilatar e suspender o tempo, anuncia uma eclosão.

Mas se nesta primeira versão temos a descrição de um dia como os outros na vida de um mobster, a posterior e conclusiva variante, embora decalque o processo, conduz-nos a outra instância.

No mais fordiano dos seus filmes Scorsese redarguiu com este final, de maneira explícita, ao célebre desfecho de “The searchers.” Aqui, com a família enfim reunida, enquadrado pelo umbral, John Wayne fica fora de casa, sozinho e à torreira do sol, afastando-se para a vastidão do continente enquanto a porta se fecha e a música canta “ride away.” Em “The irishman” a porta não se escancara porque nenhuma família reconciliada entra por ela, apenas o padre a transpôs de saída, mas também não se fecha porque De Niro se queda encafuado na penumbra de um canto do quarto. Não há música.

Uma revisão retrospectiva de “The irishman” à luz deste desenlace, se não condescendermos em entende-lo como uma trivial citação, artifício que na sua pobreza diegética margina-se estreitamente entre o paródico e o panegírico, concede-nos observar como Scorsese nos fora conduzindo a ele pontuando o filme com uma iconografia propriamente fordiana. São repetidas com persistente intenção as sequências litúrgicas, sublinhadas por planos hieráticos, silentes e despojadamente solenes do coro de wise guys, num friso que dir-se-ia retirado das adorações da pintura florentina do renascimento. Composição grupal que pode sem esforço ser assacada como um dos mais característicos códigos da narrativa fordiana. Scorsese apropria-se do vocabulário dos mestres, incrusta o seu filme numa linhagem que faz sua, porque sente que a velhice – o tema que só tarde compreendemos ser o central de “The irishman” – e a obra anterior lhe consente pertencer a essa tradição.

13 Dez 2019

Dicionário infernal

[dropcap]E[/dropcap]m dois mil e dois saía na Cavalo de Ferro, logo às primeiras edições da então jovem editora, uma obra de grande ousadia e interesse maior em forma de lenda dos medos, explicando muito da psique social de uma Europa que os arrasta e conserva em outras frentes, e, cujo interesse, parte desse magma identitário de superstição e superação de um Continente onde o fantástico e o horror coabitaram quase sempre como forma cultural. Tem a tradução de Ana Harherly, bem como introdução e notas, sendo, para que se realize tal proeza, um fôlego, só equiparado à sua qualidade literária. Não é fácil pegar-se numa coisa assim num mundo que baniu os restos mortais de um velho inconsciente colectivo e que se vê a braços para estabelecer a sua fantasia perversa com a tirania das imagens e dos conteúdos que fabricam espectros; deseja-se uma certa contextualização do abominável, por vezes, até, com apelos estéticos quase sempre caídos no logro brutal da sua manobra.

O seu autor é um tal Collin de Plancy, francês, nascido em 1793 em plena Revolução, onde o ribombar dos tambores activaram a sua mente talvez delirante, ou tão só de uma robustez de conhecimento simbólico que sabe dos disfarces que são necessários para tudo afinal ter o mesmo fim. Sade nesta altura também se “passeava” entre duas eras, e nem uma nem outra o conseguiu tragar, sobretudo Collin seria aquilo a que apelidamos hoje de mágico, mas à época, exaltado pelo canto da guilhotina, pode ter desenvolvido uma tendência paranoide que não é mais que um estado de terror que desagua em interessantes formulações que não devemos abandonar com displicência: aqui tudo o que é humano interessa e não anda pendurado na razão daqueles códigos de honra dos pensamentos dos regimes. Herdeiro de todos os terrores o seu género literário chamar-se-ia de “género frenético” o que é sinónimo hoje de Literatura do Fantástico. Influenciado pelo “romance negro” inglês, mas com mudanças de construção que cobrem um espectro pagão, era simpatizante do Demo, mas mais tarde converter-se-ia num católico fervoroso, essa não menos belíssima religião que ergueu os pilares devocionais de todos os suplícios que desejamos esquecer.

Tal qual como o próprio Diabo, Collins inventou para si bastantes nomes, o chamado heteronimizador compulsivo, que a nevrose sempre alimenta com identidades paralelas, ele escrevia com a avidez de uma necessidade monetária que nunca o abandonou mesmo na sua conversão, onde por todas as esquinas via o diabo de quem tentava fugir, e já na primeira metade do século dezanove a sua escrita social tinha a sua marca deixando aflorar este comprometimento satânico. Foi prolífico até ao fim. Nesta altura andava no ar a leitura estética de choque de assinatura inglesa, mas que se misturou aos atributos locais e fez por si só uma corrente nova, reforçada.

Começa esta obra que estamos analisando com ditirambos de muitos escritores e pensadores de renome e méritos conhecidos que não encontram nenhuma razão para a inocência consentida e desferem juízos capciosos por toda a lógica da vida: entre eles estão, Goethe, Baudelaire, Blake, Poe, Dante, Goya, Sade, Milton… ficando esclarecidos, nós, das suas “fabricações” onde cresce um Belzebu em todos reinventado. Ou não? Se eles assim o descreveram é por que naturalmente se sentiram habilitados a fazê-lo até à perfídia máxima que é a sua auto- negação a partir da conhecida frase de Goethe, depois escreve Fausto e tudo se provou que era apenas uma frase conspirativa; – entretanto as vozes calam-se – e começam alfabeticamente as explicações (é um Dicionário) que bem pode ser um compêndio de saberes pois tudo o que se lê tem sempre uma sombra que nunca é a de um atrevido Peter-Pan… é outra coisa que pode despertar incautos e reconhecimentos vários lá para a esfera dos «Encantamentos» : a maior parte dos encantos fazem-se assim, através de palavras, e Plínio diz-nos ainda que por meio deles se extinguem os incêndios, se estanca o sangue, isto tudo em verso grego e latino. São sortilégios! Quanto aos judeus, metem-nos na categoria dos ciganos e colocam-nos a envenenar as águas dos poços tendo havido então um massacre na Germânia (primeiro nazismo) indo em fuga refugiarem-se nas florestas medonhas daqueles locais onde arranjaram subterrâneos só saindo passados cinquenta anos onde se ocupariam após este interregno das artes divinatórias. Vimos por isso que a História dos povos não pode jamais ser feita sem recurso a estas referências e que os ódios são também eles um reflexo social transportados de século para século.

Entre nós temos a recolha etnográfica de Trindade Coelho onde toda uma tradição popular está plasmada deixando livre trânsito para saber que a tal “literatura frenética” se encontrava também entre nós « Senhor Sete»: são os agouros, rezas, superstições, ladainhas, os recursos “hídricos” desta água memorável que vem afinal de uma Hidra comum. A polissemia da palavra «praga» disso nos dá conta, que as naturezas que habita designam várias coisas, recorrem a muitos nomes, Gil Vicente nessa «Barca do Inferno» adjetiva-as com delícia linguística…

A primeira edição deste Dicionário data então de 1818, outras se lhe seguiram, 1825 e 1826, 1863, sem dúvida para a época um verdadeiro “best seller” fornecendo ao seu autor já em fase de abjuração alguma secreta riqueza. Afinal o Diabo não brinca em serviço!

12 Dez 2019

Um poeta esquecido

[dropcap]O[/dropcap] Raul de Carvalho (1920-1984), pessoalmente, era um chato. Comprava-me sobretudos e telefonava-me às sete e meia da manhã a contar-me, quando o telefone lá em casa estava no quarto paterno e o meu pai havia chegado do serviço às quatro e meia da madrugada. Irritado, este agredia com o nó dos dedos a porta do meu quarto e gritava, Telefone. Meio minuto depois, muito estremunhado, encostava o alto-falante ao ouvido e enfrentava aquela voz grossa e espessa de quem tem crude na língua: António, é o Raul, o teu pai é muito simpático, comprei-te um sobretudo… E eu, embaraçado, na mira do meu pai, A que propósito, Raul? Vai-te fazer falta… Bom, encontramo-nos logo às dezassete no Monte Carlo e então explicas-me… Estávamos em Agosto. Às cinco da tarde lá lhe rejeitava a prenda, pela enésima vez, porque no carinho dele cabia uma ponta de venalidade.

Na semana seguinte voltava ao mesmo, mas como a ansiedade ia crescendo telefonava meia-hora mais cedo: António, comprei-te uma gabardina… É Agosto!, respondia eu. Vai-te fazer falta…

Era assim desde que, saído da Escola de Cinema, lhe telefonara a sugerir um documentário sobre ele. Projecto para o qual não consegui financiamento mas que me faria objecto de um assédio ininterrupto durante dois anos: o Raul cria firmemente que quem não fosse homossexual acabaria por vir a sê-lo, inapelavelmente. E o facto de ter sido publicado pelo Al Berto – aos olhos dele – só o confirmava: esse gesto não poderia ter acontecido sem uma cama de permeio.

Em nova tentativa de lhe inibir as intenções levei a minha noiva (uma jovem arquitecta e tão bonita que eu costumava dizer que a cantora Sade era a irmã feia dela) a uma festa em casa dele. Recebeu-nos à porta. Tomou-me a mão e olhou-a de alto a baixo, circunspecto, para no fim soltar a sua estentórea sentença (ele era surdo e falava sempre cinco decibéis acima): Ó António, ela não te merece!

De outra vez combinei ir ao lançamento de Mágico Novembro, obra que seria apresentada pela Natália Correia. Ele levar-me-ia uns materiais de que eu precisava para acabar o guião. Quando chegou passou-me um saco e pediu-me, António, se não te importas aí no saco vão também uns livros para dar a um amigo, depois peço-tos…

Foi nesse lançamento, coberto pela RTP, que ele assumiu a sua homossexualidade com uma franqueza desassombrada: Eu sou homossexual porque gosto de rapazinhos, não é verdade? Ainda ecoava a sua declaração quando uma cabeça assomou na porta, e ele tergiversou: Joaquim, ainda bem que vieste, trouxe os livros para ti, importas-te António de dar já os livros ao meu amigo? E a câmara da reportagem galgou o anfiteatro para dar um grande-plano do jovem infante, esbelto e escanhoado, que tanto podia ter dezassete como vinte e dois, a retirar do saco os livros pedidos. Não sei se na reportagem aproveitaram esse plano em que fui o centro das atenções mas durante anos passei por ter sido o rapazinho do sessentão Raul de Carvalho.

Duas anedotas, de entre as muitas que poderia contar e que rechearam o nosso relacionamento.
Estava-me nas tintas para a minha reputação e quando ele se esquecia dos objectivos últimos tínhamos encontros e conversas de alguma voltagem, tendo aprendido com essa amizade – obrigatoriamente, de convívio sazonal.

Há trinta anos que não o relia. Descobri que a biblioteca do Camões, em Maputo, tinha o volume onde se reúne toda a sua obra editada, um tomo com mil páginas (- o segundo volume com a obra inédita seria igual, mas nunca saiu), e requisitei-o.

Reli-o de fio a pavio. Mantem-se a opinião que já tinha: é um poeta muito irregular mas com picos extraordinários, e não merecia ser conhecido só por causa de Vem, serenidade, és minha… Estas mil páginas reduzidas a duzentos e cinquenta dava um livro de assombros.

E, no entanto, este é o paradoxo que o mina, isso seria traí-lo.
O Raul escrevia todos os dias das seis às nove, dez horas, e a sua obra seguia uma pulsão diarística, de preferência e gradualmente imersa no que ele professava como estética da banalidade (assim chegou a intitular um livro), atitude que nos anos noventa teria o seu avatar nos poetas sem qualidade, epíteto com que provocatoriamente Manuel de Freitas imporia uma geração. No seu projecto, muito pasoliniano, o sujo, o quotidiano, a vida, infiltravam o artifício e as sublimidades a que “a poesia” propende: em vez da maturação alquímica, Raul perseguia o fulgor do imanente, num desapego crescente e de enorme coragem, que preteria à obra a vida. E nisso estava à frente do seu tempo. Inexplicavelmente, não terá sido entendido cabalmente nem reivindicado, o que é tanto mais estranho quanto nele as euforias e disforias associadas ao corpo, ao desejo e à sua (homos)sexualidade estão presentes desde muito cedo: «Aos morenos marcianos com olhos cor de oiro/ dedico este poema/ feito no intervalo dum beijo ou dum crime.», lê-se num poema editado em 55.

Dois poemas dos últimos anos, ambos de 1983: DAMIARDO: «Damiardo, um anjo que para ser ladrão/ foi roubar às vindimas cachos de uvas, /aciduladas uvas que o rodeiam na cela./ Cheiram ao perfume das claras serras, dos claros vales/ adornados de perdizes, rolas, pedras/ velhas, covas rubras, cobras bravas,/ limoeiros, rebeldia./ Damiardo deita-se de rastos, tarde acorda./ De bruços Damiardo se deita./ Beija com alguma doçura./ Coitado do Damiardo, jovem cão./ Todos se riem dele, à sucapa./ Todos lhe vão ao cu./ Damiardo se deita e se levanta com a sua cruz: /Ser, ter sido, uma criança amaldiçoada.» E já que estamos em Macau: CLEPSIDRA: Mastigando ossinhos, pedacinhos de ossos./ Transitivamente. / Um copo de vinho. Uma laranja./ A paz do olvido.”

12 Dez 2019

Da imortalidade literária às tentações digitais

[dropcap]D[/dropcap]aqui a uns anos, vamos digitalizar o nosso cérebro, pô-lo num raio laser e lançá-lo em direcção às estrelas. Chegaremos à Lua num segundo, a Plutão em oito horas. Na Lua, um CPU vai descarregar as informações do nosso genoma, contidas no laser, e transferi-las para um avatar. O nosso avatar vai explorar a Lua. Acordamos em Nova Iorque, paramos em Marte para um brunch, e à tarde saímos do sistema solar.” A afirmação é de Michio Kadu, professor de Física na Universidade da Cidade de Nova Iorque.

Este quase sentido de imortalidade foi também objecto de outra recente intervenção, desta feita pela voz do investigador Salvador Macip da Universidade de Leicester: “A imortalidade é real, já existe no planeta. Temos animais que são imortais, como algumas medusas e um pequeno animal chamado “hidra”. Esses animais são imortais. Portanto, a imortalidade é biologicamente possível. Resta saber se um organismo complexo como nós pode alcançar a imortalidade. E eu não sei. Neste momento é apenas uma hipótese. Mas se realmente entendermos por que envelhecemos, não há nada que nos possa impedir de realmente reverter esses mecanismos”.

Tiremos o chapéu a estas investidas, mas, convenhamos, que a imortalidade literária nunca ficou atrás destas (ainda) utopias digitais. Se se pensar bem, a figura do narrador é uma invenção que deixa até deus (com D grande) a um canto. Benjamin já se referira à insolência do narrador e Magris relembrou-o numa crónica escrita há década e meia em que constatou o modo como esta figura está de tal modo enraizada em todos nós que até a morte, “para ela, não representa um escândalo ou um limite”. O narrador omnisciente é, pois, por excelência, a nossa maior aposta na imortalidade até aos dias de hoje.

A interiorização da figura do narrador, como um ser que transcende toda a existência humana, é um fenómeno ancestral que sempre foi aceite com a maior das normalidades. Escutemos os dois primeiros versos da segunda estrofe da Odisseia: “Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada/ se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar”. Esta voz que nos fala ‘de cima’ corresponde realmente a uma estranha omnipresença que se faz ouvir a partir de um gravitas incerto. As gramáticas narrativas e todo o elegante torso teórico que se debruça sobre a literatura propuseram múltiplas conjecturas e designações para responder a esta pergunta simples: quem fala num texto ficcional? As respostas têm sido variadíssimas, engenhosas e agradáveis de estudar. Mas raramente se constatou existir uma pausa que fosse capaz de suspender a reflexão (e o mundo) para tentar perceber de que galáxia provém a transcendência do narrador.

A existência do narrador omnisciente foi sempre tida como uma coisa dada, adquirida e inquestionável. Estuda-se o que ele implica na narrativa, lado a lado com os narradores autorais, mas não de onde procede e de que antecâmara (anterior à experiência e à vida) será originário. Mesmo quando se exprime na segunda pessoa, exibindo uma familiaridade excessiva para com o mundo dos mortais e seus fantasmas, tudo parece ser-lhe permitido. Ora veja-se: “Fala-me Musa do homem astuto que tanto vagueou…” (primeiro verso da primeira estrofe da Odisseia)”.

A Odisseia recorre a muito material anterior ao século VIII a.C. e deve ter sido fixada em texto escrito não muito depois. Parte dos mais antigos fragmentos dos chamados “Textos Proféticos” são da mesma época, por exemplo o Primeiro Isaías. Mas aí, o aludido profeta (anónimo e a várias mãos) preferiu recorrer à primeira pessoa para se referir a si próprio, enquanto evocava Deus na terceira pessoa verbal (um ‘Ele’ que era situado no seu mundo próprio e não no obscuro ‘Além’ que é atribuído ao narrador). Apenas no período apocalíptico, mais de meio milénio depois, é que aparece o elemento intermediário (o anjo) a recentrar as relações entre o humano e deus e, desse modo, a aumentar ainda mais a distância entre a esfera da terra e a dos sete céus.

Sem geografias celestiais ou coisa parecida onde tivesse ancorado, o narrador esteve sempre para além da descrição, dos lugares e de todas as abstrações escriturais. Nunca houve topografia que se lhe conhecesse. O narrador limitou-se a surgir nas narrativas como origem da origem de uma voz que a tudo se sobrepõe, mesmo quando, ao fim de quase mil páginas, o Quijote de Cervantes decide dar o dito pelo não dito e se confessa cansado de ficcionar, deixando os seus circunstantes pasmados. Aproveitou então o narrador o ensejo e, vindo de cima – sabe-se lá de onde! -, logo esclareceu: “Olharam-se uns aos outros, admirados das razões de Dom Quixote, e, ainda que em dúvida, quiseram crer nele; e um dos sinais por onde conjecturaram que morria foi o haver tornado com tanta facilidade de louco a discreto…”.

O narrador omnisciente é efectivamente o sinal mais óbvio de que existe uma imortalidade literária. E é claro que olha de cima para baixo – e com o maior desdém – para as aventuras digitais expostas por Michio Kadue e por Salvador Macip. Platão previu o imbróglio e inventou os diálogos para evitar que este vírus da eternidade – o narrador – fizesse sombra ao seu enigmático mundo das “Ideias” e pudesse dar entrada nos textos de um modo inadvertido. Dois mil anos depois, More fez o mesmo.

Ensaiando proximidades a esta perigosa figura do narrador, houve tentativas modernas de o dominar, através do chamado “discurso indirecto livre” que tornou ambígua a origem da voz nos textos (é como se proviesse, ao mesmo tempo, do narrador e de um personagem). As polifonias de Faulkner e dos seus sucessores (mesmo dos mais afamados lobos lusitanos) não andaram longe dessas infrutíferas tentativas, próprias de quem seria capaz de trocar a imortalidade pelo diabo à moda do senhor Fausto.

Bem se pôde no Fédon ou, mais tarde, pelas vozes de um Cícero ou mesmo de um Montaigne, repetir a máxima segundo a qual ‘filosofar é aprender a morrer’. Para fazer frente a tais dislates, a figura do narrador sempre se expôs ao mundo (e não apenas ao mundo dos textos) como uma arma letal, invencível e certeira, muito mais incisiva do que aquelas que a eternidade digital nos está agora ingenuamente a propor.

P.S. – Michio Kadue foi entrevistado por Carlos Fiolhais no Público de 2 de Dezembro (pp.32/33), enquanto, no mesmo jornal, Salvador Macip foi entrevistado por Andrea Cunha Freitas a 23 de Novembro (p. 25). O livro de Claudio Magris, referido no início desta crónica, é Arquipélagos (Quetzal, Lisboa, 2013, pp.345-49).

12 Dez 2019

A Inquisição que veio do frio

[dropcap]A[/dropcap]pesar de tudo, uma pessoa vem para esta vida com algumas esperanças. Uma delas, pelo menos no meu caso, era não ter de assistir ao que se está a passar na Noruega desde há algum tempo. Discute-se, coisa extraordinária e assustadora, o que é ou não permitido escrever num livro. Sim, a coisa chegou a esse ponto. No caso norueguês, pilar do socialismo-porque-temos-petróleo, agrava-se: nada de escrever na primeira pessoa do singular. A literatura não deve – não deve, reparai ! – dizer “eu” porque toda a cultura política e social se inclina para a diluição do indivíduo face ao colectivo. Ora isto, politicamente, já teve e tem exemplos. Quem quiser que os adopte. Mas não deixa de ser assustador que haja ainda quem pense que a arte deva ser sujeita a uma ortodoxia, seja ela qual for. Pior ainda quando essa ideia nasce numa democracia liberal. Estamos longe dos artistas de regime. E mesmo esses… Lembro a conhecida anedota, contada pelos russos, sobre a morte de Maiakosvki, poeta futurista maior e entusiasta da revolução bolchevique. Até que um dia deixou de o ser. A história diz que se suicidou; o povo, arguto e impiedoso, conta que as suas últimas palavras foram “Não disparem, camaradas”.

Na Noruega a chamada “literatura da realidade” ou no original virkelighetslitteratur (rótulo vago, como todos) está sob ataque há pelo menos quatro anos. Este fenómeno voltou a ganhar força muito à conta do sucesso dos livros autobiográficos de Karl Ove Knausgard, seis volumes sob o título A Minha Luta (todos publicados em português pela editora Relógio de Água).

É uma luta antiga e futura: gente que se revê nas personagens de romances e que fica indignada. Que o autor não tem direito, porque ninguém perguntou nada, porque a fotografia não fica bonita. Percebe-se, porque nenhum escritor escreve a partir do nada. Que haja um debate em que uma das partes diga que isso não é eticamente correcto (o que implica naturalmente outra coisa muito sintomática destes dias: toda a arte tem de reflectir uma ética) , isso,volto a dizer, é que é preocupante. Há gente, neste debate, que reclama um código ético para a literatura, uma espécie de livro de estilo de comportamento que não se pode transgredir. Uma vez que o faça, o autor é maldito. E pior: deixa de ser literatura. Sim, eu sei: nobody expects the norwegian Inquisition.

Nem vou falar do desconhecimento da história da literatura: haverá gente melhor para isso e eu não passo de um leitor inquieto. Mas escuso de invocar todos os escritores que se basearam em pessoas reais para criarem ficção. Que haja quem se reveja e se aborreça é coisa normal e já tratada (é rever o As Faces de Harry, de Woody Allen). Azarinho. Há e haverá sempre um autor, vivo, pulsante, individuo que olha, regista e cria. E o que cria é parte dele, e o que faz é parte legítima da sua auctoritas – autor, autoridade. Negar oficialmente e de forma proibitiva essa possibilidade é negar toda a criação. Por mim, se a coisa continua assim, estou pronto para a resistência e pegar em armas. Ou então talvez não: estou tão cansado destes dias em que a arte e a vida têm de ser um panfleto que há dias em que me apetece contradizer Maiakovski e implorar: disparem, camaradas!

11 Dez 2019

Adornar

CCB, Lisboa, 1 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]utra folha no calendário, se as tivesse, amarfanhando a miserável anterior, com a tristeza pingando para a deste mês. As linhas são pequenas ondas de maré, quem nota perceberá a chuva miudinha? É que me espera, finda esta conversa, tarefa lutuosa. À mesa beira-Tejo do Obra Aberta sentaram-se engenheiro e ilustrador, ambos senhores de outros ofícios. O mano Tiago [Ferreira], da Conserveira de Lisboa e da Academia versão robótica, inclusão de última hora a substituir poeta adoentado, trouxe mão-cheia de questões prementes e desafiantes: a sustentabilidade do comércio tradicional, a inteligência artificial e o absurdo delirante do quotidiano. André [Letria], muito a pretexto do seu – na ilustração, e do pai, José Jorge Letria, no texto –, «Guerra» (ed. Pato Lógico), pintou nuvens ainda mais negras do que as que pontuavam a paisagem e encharcavam camones ao de leve. Bastou trazer as leituras de «O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig (ed. Assírio & Alvim), e de «Sobre as Falésias de Mármore», de Ernst Jünger (ed. Vega). O testemunho de uma Europa a cair para dentro, a cavar precipícios no seu coração, ressoa nos nossos dias como nunca. E a brutal alegoria de um Jünger esquecido parece querer ganhar corpo de verdade um pouco por todo o lado. Como bem sabe qualquer objector de consciência, a guerra jamais nos abandonou, apesar dos momentos de ilusão pacificadora. Pior: insecto insidioso, mancha os mapas em inúmeros lugares, faz-se subtil que nem bota da tropa e morde-nos os calcanhares.

Mymosa, Lisboa, 3 Dezembro

Valha-nos Santa Coincidência! Meio a despropósito, partilhava com velho amigo a minha admiração pelo trabalho sobre a memória, em prosa estilhaçada e vibrante, que o João Paulo Borges Coelho entreteceu em «Ponta Gea» (ed. Caminho). Eis senão quando o escritor atravessa as mesas ao meu encontro. Demorei uns nanosegundos a fazer-me crer no que os meus olhos viam. Um nada, mas que me iluminou o dia. Adiámos prolongamento da conversa e não estou seguro que tenha levado a sério aparvalhada estória. A maré dos pensamentos levou-me depois a uma das personagens maiores do romance, publicado muito antes da Beira, em Moçambique, se liquefazer. «É a primeira e mais persistente lembrança: a água como substância da cidade. Uma água quieta, no mangal como nos capinzais, nos tandos de arroz e nos baldios urbanos cuja noite o monótono som dos grilos trespassava; insidiosa também, na onda paciente que escavava a areia grossa e se espraiava até lamber a raiz torturada das casuarinas, enchendo os corvos de maus presságios e de indignação; e avassaladora, nas chuvadas súbitas e no ar carregado que toldava o horizonte e nos pesava, derrotados, sobre os ombros. Uma água cálida onde nadam todos, aqueles de cujo rasto ainda a espaços me vou apercebendo, e os outros, os que vogam em círculos como peixes aprisionados no aquário do esquecimento.»

Barraca, Lisboa, 4 Dezembro

A ditadura das circunstâncias foi empurrando a apresentação dos «Poemas», de Georg Trakl, em Lisboa. Para mais queríamos incluir um pequeno concerto dos «No Precipício Era o Verbo», abrindo apetites para novo projecto que se avizinha, todo ele em torno deste poeta do soturno. E foi um dos momentos da noite, o caminho dedilhado do Carlos [Barretto] em direcção a paisagens sonoras graves e pujantes, a corpo a fundir-se com instrumento e a prolongar os versos, deixando-os a ecoar algures no mais íntimo. «Tu regressas sempre, melancolia,/ Oh, doçura da alma solitária./ Um dia dourado abrasa até ao fim.// Humildemente, o paciente curva-se perante a dor/ Ressoando harmonia e uma leve loucura.» Quem, como Trakl o farmacêutico, canta a contumaz melancolia? Esperava que o mano António [de Castro Caeiro], dissertasse um pouco esse obscuro objecto de desejo, mas conteve-se ao mínimo. O Fernando [Pinto do Amaral] encenou belo e cabal enquadramento para o poeta e a época, a vida e os temas, enfim, as paisagens, no fora da geografia como no dentro dos versos. Vão rareando, mas ainda se encontram bons leitores.

Nacional, Lisboa, 5 Dezembro

Palco soprado bola de cristal dá nisto. «O Futuro Próximo» não apazigua ninguém, antes perturba e desinquieta. Depois dos vibrantes, e bastante mais espelhados, «Presente» e «Futuro Distante», sempre baralhando os tempos, encontro-me prisoneiro de asilo de velhos. Em apneia, estendo as mãos e só toco línguas. Avancemos por entre o patético e o angustiante, com passagem pelo ignominioso. À terceira, o Gonçalo [Waddington] fez entrar «O Nosso Desporto Preferido» definitivamente no campo do negro, ou este cinza-escuro da nuvem que a Ângela Rocha estacionou sobre o lar-palco, sistema vital que ora configura volutas de intestino ora circunvoluções do cérebro. (Ver foto de cena de Filipe Ferreira algures na página). Cérebro-intestino, eis o reflexo maior de uma civilização sem necessidades. Tudo se torna chão, os prazeres e os dissabores. Mas chão enlameado de tanto sentido espezinhado, de tanta ideia perdida, de egos purulentos, de gargalhadas hiperbólicas, de lágrimas tóxicas. De novo: a gargalhada e a lágrima podem bem ser excrescências espremidas na lamela do dia, sem direito a serem vistas ao microscópio. O humano está reduzido a uma erecção, inextinguível priapismo. Até a poesia foi reduzida a automatismo, aqui laudatório, além sentimentalista, sempre nauseabundo. As máscaras, queridos caretos da Antropologia, surgem como sinal gritante da decadência, sem nisso tolherem a expressividade das Carlas [Bolito e Maciel], da Teresa Sobral, do Tónan Quito ou do Gonçalo-Michel, apesar deste, uma vez morto, ter ganho direito ao seu rosto. No envelhecer perdemos individualidade, todos os velhos de manhã serão iguais? Escrito isto, estou ansioso pelo desenlace, que este final soa-me a falso. Um peido.

Salitre, Lisboa, 7 Dezembro

Em preparação de projecto próximo, o Álvaro [Rosendo] põe-me no complexo sistema mãos-olhos um enormeno catálogo. Pequeno no formato, fechado em mais de cinco dezenas de dobras, mas enorme nos metros desdobrados. E nos instantes que dá a ver. «Tempografias», oriundo de exposição no século passado em galeria sobrevivente e por isso Monumental, capturou o movimento de modelos e estruturas. Não estão nas fotografias a fazer nada, estão a acontecer, mesmo quando um túnel subterrâneo brinca com a luz ou um armário de chaves dança e envelhece a olhos vistos. Mais uma máquina de contar tempo, o mesmo é dizer, gente.
Bem que gostaria de ter visto o alvarolhar sobre opíparo jantar de trufas brancas, servido pelo querido Tanka Sapkota, no Come Prima. Desprezamos o peso do perfume. Na mão, no olhar.

Tejo, Lisboa, 8 Dezembro

Dois pés de cada lado, nunca um no cais, outro na embarcação. O mestre grita, mas soa a sussurro. Nenhum dos três periga, nem marujo ou cais, menos o casco que me recebe com gemido de madeira. Aceitei o elogio e tentei retribuir com vigorosa ternura quando lhe pus a mão, com indirecto respeito, no leme. Fixo o olhar no bugio e o balanço atravessa-me a floresta estúpida de burocracias, temendo que sejam infestantes, inúteis até para chá; e a mortandade inquieta a pedir horizonte de quietude, ou melhor, a gestão dos quedos a trazê-lo à babugem dos dias; mai-lo ego de próximos sorridentes espraiado lago fétido, balde pequeno de vírgulas e embirrações, sinais parados, mortiços, logo antes da mordedura. Atento às profundidades, diz o mestre, foge das margens. Um dos marinheiros de água doce passou repete vezes sem conta, sem ponta de narcisismo: Que belo espelho!
E está. Espreito para me ver nas urgências esquecendo o importante. Portanto, adorno.

11 Dez 2019

Intervalos de paisagem

[dropcap]D[/dropcap]e novo esta cartografia que se filtra como uma rede invisível na articulação das palavras.
E das sombras.

Camadas de realidade. Como velaturas, no crescendo da complexidade, em que coincidem em sobreposição virtual, pequenos corpos de sentido, formas humildes e individualizadas de um todo. Mas não caídas. Folhas.

Adoro estes caminhos de sombras. Recortadas em manchas, já nada dizem do que lhes deu origem. Esta filigrana bidimensional que só o é por ilusão do que vemos. Sem intenção, o resultado de uma cadeia de níveis face à luz, das folhas que habitam as árvores, entretendo-se sem sair do seu lugar, com um teatro a dominar o caminho.

Fios invisíveis e verticais a cair paralelos, dos raios solares. Teatro de sombras. Bem observado, nele se encontra tudo. Histórias de encantar e filmes de terror. Os desenhos recombinados tudo permitem. Ao olhar. E, bem junto aos pés, camadas de sombras sobre a própria sombra de quem caminha. Pela ordem lógica das coisas, do espaço e das prioridades da luz.

Afirmações. Cada árvore, pontuada na verticalidade, sem temor à luz, Outra de incrível intensidade, esta. Um meio-dia sobre as árvores e chovem todas as folhas a brincar com o chão sem se dignarem mexer um cabelo sequer. Em camadas, empilhadas como folhas de livro acabado. Provisórias, contudo. As sombras mutantes.

Mapa curioso de linhas novas sem revelar que segredos e sobreposições por debaixo do foco solar, ocultaram formas unindo-as a outras. Cada exclamação natural a exclamar sombras como palavras virtuais.

Uma outra realidade. Recuando ao estúdio. Coloco uma folha branca no ecrã luminoso. Quem diria que 13 kilobytes é o tamanho de uma página vazia. O que pesa no espaço etéreo ocupado. Como 21 gramas, o peso de uma alma que se foi. Nem é muito, pensando em tanto que leva. Mas da página, atendendo a que mil palavras depois, não foi proporcional o aumento de peso, penso que é como se dela resultasse, em vazio prévio, o peso intenso de todas as possibilidades que nos abalroam a alma quando olha. Do que ali não está mas é subliminar.

O medo de todas as frases devastadoras que se podem vir a instalar ali. De todos os segredos que, sem querer, podem fugir por entre a cartografia de linhas das mãos e vir a ocupar espaço entrelinhas. Das que se recusam a ser usadas. Aquilo que de nós pesa em tudo o que está, com aquilo que não está, nem mesmo visível, ou perceptível. Ou tudo o que se elabora no nada, imaculado e por dizer, da página. Como uma camada mais sobre as camadas de impossibilidade e pesar. No cadinho de invisíveis, que já parecem pesar tanto. Quanto pesará em gramas ou kilobytes a sombra de uma folha de árvore? E, na verdade, quanto pesa uma palavra não dita. Ou não pensada. Qual a diferença de peso-massa entre ambas?

Na sombra das árvores, um mapa. Desenhado pela íntima colaboração de todas as palavras ditas, em cada folha de cada uma. A mestria da luz a orquestrar a complexa sinfonia, de desenhos tremeluzentes, com a orgânica mudança de contornos que a aragem agita. E que a luz não pára de reescrever. Amena estabilidade – ilusória – do caminho. Essa pantalha luminosa em que os pés progridem sem ferir. Não se fere a luz e não se magoam as sombras por debaixo dos pés. Não nos magoam acima.

Quando M. Foucault, no encadeado das suas “similitudes” referia essa tentação enorme de o mundo se dobrar sobre si próprio, duplicando-se ou reflectindo-se, “a terra repetindo o céu”, poderia estar a caminhar sobre estas sombras e a levantar os olhos para o que as representou no traçado do caminho.

A afastar os olhos encandeados do fogo vectorial da luz, para os projectar no fogo implícito interior à terra. E pelo meio estas camadas de sombras entre as quais um registo de superfície acontece, mas entre camadas de irrealidade.

As palavras e os seus silêncios que não são mais que os intervalos de paisagem. Não são mais e contudo são, neles, tudo. O não dito que se insinua, às vezes discreto, suave e claro. A luz branca dos silêncios. Que têm palavras pelo meio. A habitar. Melódicas, suficientes e inacabadas.

Assim, ainda lembrando as similitudes que nos permitem rever no mais ínfimo da escala do visível ou do perceptível um reflexo do que é enorme, reflito neste espaço impreciso e intocável, que se dimensiona entre as camadas de sombras que se sobrepõem nesta teia leve em cinzentos abaixo de mim e acima de mim e como isso me torna intangível camada, também, entre outras. A meio caminho entre uma visão macro, ou uma visão micro.

Na insignificância que em qualquer delas me define, sobra o descanso de tudo ser relativo e elástico como o olhar psíquico que sobre tudo se pode estender ou puxar para nós. E, com disse F. “Por imensa que seja a distância do microcosmo ao macrocosmo, ela não é infinita.“. Encerra os limites impossíveis num olhar de devaneio.

Caminho então no meio de sombras. A camada do meio. É bonito. O recorte. Essa impressão, como uma existência. Entre as que me assentam e as que assento. Entre o céu, longínquo e etéreo e a mais funda pulsação da terra, este, o caminho do meio, de dentro. O do meio das árvores, que não vão a lado nenhum mas nós nele.

E nele, como dançam, estáticas, sóbrias e sólidas.
Do indizível se faz uma cartografia de questões e esperas. As árvores exclamações, mas as sombras, entrelinhas. Camadas entre silêncios. E silêncios entre paisagens. Como intervalos de respiração em que cabe o universo.

10 Dez 2019

Valdisney

[dropcap]V[/dropcap]aldisney, cujo nome se deve a Walt Disney, mas cuja pronuncia do W se leu V, tem 28 anos e traz todos os dias a sua vida atrelada a uma carroça até ao mercado, por mais de dez quilómetros, carregada de frutas e legumes. Não há dinheiro para comprar um animal que faça o lugar dele. Quando leva para casa 50 reais de vendas é uma alegria, para ele e para a mulher, que fica a cuidar do Sítio e dos filhos, quatro, entre os nove anos – o mais velho – até aos 4 anos. Não chegou sequer a terminar o ensino fundamental, começou a trabalhar na roça com 13 anos. Conheceu a sua mulher, Thalita, aos 16, quando ela tinha ainda 14, e um ano depois casaram-se. Frequentam uma pequena igreja evangélica. Tirando os ensinamentos para o cultivo, na bíblia está tudo o que se precisa de saber.

O seu sonho era que os filhos estudassem, desde que não se afastem dos ensinamentos da bíblia. Gostava de conseguir dinheiro para pô-los a estudar numa das muitas escolas particulares que há no Paraná, onde se ensina o criacionismo. Estava convicto de que por muito que se saiba, se não seguirmos a palavra de Deus nada se sabe.

Todo o conhecimento é vão se não servir a Deus. Tinham um televisor, evidentemente só com os canais abertos, e mesmo assim não se via a maioria dos programas por serem considerados uma ofensa à palavra de Deus.

Deitavam-se cedo. Raramente se via luz artificial no casebre da família. Deitavam-se e acordavam com a luz do sol, ou quase. O frio do Inverno convidava a isso mesmo, mas durante o Verão ficavam no alpendre da casa a olhar as estrelas, a complexidade, o mistério de Deus, que tinha criado o escuro da noite e o pintalgado de pequenas luzinhas, para nos maravilhar, pensado naqueles que vivem sozinhos, arrastando um fardo maior do que uma carroça cheia de frutas e legumes.

Valdisney não bebia álcool, pelo que não frequentava o único barzinho do Lucas, único das redondezas. O seu tempo era para o trabalho, para a família e para Deus. Vivia no interior do estado do Paraná como se noutro século. Mas o que é um século ou dez para Deus? Para o homem dez anos é muito tempo, para Deus é menos que um sopro.

Valdisney era aquilo a que se chama um homem bom, um homem responsável por si e pela família, e não queria pactuar com um mundo sem Deus. Tudo o que fazia era por convicção, excepto carregar a carroça, que era por falta de dinheiro para comprar um animal que o fizesse por ele. Mas não se queixava desse infortúnio. Queixava-se da falta de Deus na vida das pessoas, quando testemunhava no mercado com alguns comportamentos. Um dia, ouviu alguém comentar que a tecnologia está a evoluir de tal maneira, a cada dia, que já nasceu a pessoa que não irá morrer. Riu-se e pensou para consigo, se Deus quisesse que não morrêssemos não havia morte. Os disparates que as pessoas inventam! Os disparates em que as pessoas acreditam! Parece até que Deus não pôs juízo em todos os homens… Riu-se e lá voltou para casa, puxando a carroça, com as frutas e os legumes que não conseguiu vender.

10 Dez 2019

Parting is such a sweet sorrow

[dropcap]P[/dropcap]reocupa-me a morte. Não tenho credo religioso, pelo que a minha ideia da morte é um contra-senso, dado fundar-se na impossibilidade de um acompanhamento do próprio. Morrer é deixar de ser e deixar de ser não é propriamente concebível. A consciência, como a natureza, tem horror ao vazio. Até no suicídio se alimenta de algum modo a ideia romântica de que “isto é o melhor para mim”, quando na verdade, o “melhor” exclui o “mim”.

A nossa obsolescência programada não dá sinal de vida frequentemente. Na maior parte das vezes a morte é apenas uma coisa entre outras que acontece exclusivamente aos outros. E ainda bem que é assim. O nosso sistema operativo não lida bem com esta peculiar noção de termo certo, dado não ser uma experiência capaz de ser vivida ou transmitida. Já a mortalidade é toda outra coisa, um emaranhado complexo de teses pelas quais vivemos afastando-nos tanto quanto possível da morte e sentido o fluxo do tempo como a ventania que pouco a pouco desfaz uma duna.

Quando se tem um filho, vive-se a mortalidade de outra forma. É a mesma imagem aterradora mas um pouco mais calibrada. Um filho é uma espécie de vitória de Pirro sobre a morte. É uma forma de enganá-la e de lhe alimentar o rebanho ao mesmo tempo. Cada gesto nosso traça uma tangente à morte; cada respiração, cada garfada de comida, cada sinfonia escutada ou produzida, cada livro lido ou escrito. E, como no Sétimo Selo de Bergman, basta perder uma vez. Entramos no jogo sem qualquer preparação e sem margem para falhar e, para apimentar a coisa, a maior parte das variáveis que influem sobre o nosso destino não são controláveis.

Dou por mim a pensar mais na morte quando viajo. Não por ter medo de andar de avião, não tenho. Talvez porque associo a maravilha da descoberta de novas coisas à fugacidade da nossa permanência por aqui. Há tanto para ver, tanto para ler, tanto para experimentar. Somos crianças numa loja de brinquedos a que estamos condenados a ver só uma ínfima parte. Ou leitores curiosos numa biblioteca infinita. A morte devia ser uma opção.

Os animais, cujos sistemas operativos são fundamentalmente diferentes dos nossos, não albardam com este peso. A morte, não estando prestes a acontecer, não é um problema. Não fazem oferendas para evitá-la ou para aplacar a fúria dos mortos, não constroem igrejas através das quais esperam salvar as suas almas, não edificam quaisquer monumentos para perpetuar as suas memórias, não escrevem, não pintam, não celebram o sagrado ou o profano. Ao contrário de nós, estão completos desde o momento que chegam até ao momento em que partem. Um tigre não acrescenta nada à “tigreza”, não a revoluciona, não a modifica. Os animais, vistos aqui do lado do humano, parecem ser apenas elementos decorativos do cenário incrivelmente complexo para onde fomos atirados.

Prestes a partir de Macau, onde estive um mês, não consigo evitar de pensar em tudo quanto não vi, em tudo quanto, num momento de excepcional fortuna, poderia ter acrescentado facetas perenes ao poliedro de memórias que cada um de nós é. Não estou preparado para partir. Não estou preparado para ficar. Talvez seja essa a definição mais adequada de humano: uma criatura eternamente em trânsito e levando-se a si própria ao colo.

9 Dez 2019

O romance diante do espelho

[dropcap]O[/dropcap] grande problema do romance é instruir-se dentro dos limites que a linguagem (gerada para o efeito) lhe dita. Não me estou a referir ao desaguisado do tempo das vanguardas, nem à despolarização do mundo pós, muito menos a teorias literárias, a códigos rígidos ou a cânones.

Instruir significa pontificar, descobrir e compreender-se a si mesmo dentro de certas fronteiras. Por exemplo: existe uma pedagogia para se saber olhar de alto a baixo diante de um espelho. É uma disciplina de que o romance é excelente aluno há já alguns séculos: conseguir criar uma pose e um dado ângulo para poder ser lido, contemplado e convenientemente interpretado.

Os romancistas seguem o ângulo e o rasto sem perceberem a sua invisibilidade (invisível é o fio do marionetista). Tal como os pintores do paleolítico que orientavam a tinta – ou o sangue – seguindo as fissuras e as falhas das rochas mais escarpadas, assim os romancistas perseguem o seu rasto.

Seguir o ângulo e o rasto não é copiar ou navegar apenas paralelamente à costa. Seguir o rasto pode ser transgredir, reinventar, descolar ou jorrar a tinta à Pollock para cima do nada. Seja de que modo for, os romancistas progridem sob a sombra do rasto. Sentam-se continuadamente ao espelho. Investem na pose para cada circunstância concreta da navegação. Agarram-se copiosamente ao leme para melhor captarem o que a linguagem (para aquele efeito) lhes dita.

Uma página de um romance tem que se sentir fielmente dentro do seu aquário, com a temperatura ambiente e a luz apropriadas aos seres vivos que apresenta, preserva e põe em acção. Não há um lado de fora, só existe um lado de dentro. Há muito que se sabe que representar é um logro, sobretudo num mundo em que as identidades se esbatem e em que tudo é cada vez mais um simulacro (e não um reflexo ‘real’ seja do que for).

O rasto é afinal o plano inclinado que empurra silenciosamente a escrita para o lado de dentro desse aquário com paredes de vidro que tão bem simula o infinito ou, se se preferir, um indefinido – mas tão aparente – espectro de possibilidades.

Essa página (que são todas as páginas de todos os romances do mundo) sabe que foi treinada para criar alguns impactos, de acordo com o seu próprio DNA que lhe concede uma matéria e um modo específico para a poder moldar. Enfim, essa especificidade possibilita rotações de diversos tipos, mas não deixa de ser uma especificidade.

Por exemplo, estamos a ler ‘Devoção’ de Patti Smith, é ainda de noite, Eugénia tem uma espingarda nas mãos e Alexandre está nu, meio a dormir, deitado no colchão. Acorda mais divertido do que alarmado e, ao ver Eugénia aos pés da cama com o cano virado para si, repete três vezes a palavra “Philadelphia” antes de levar o tiro e de, ao amanhecer, o seu corpo ser colocado “debaixo de terra”.

A acção é atravessada por uma inevitabilidade. Já vinha de trás, como sempre sucede. Um ou outro imponderável (ou deslocações aparentemente inesperadas) complementam esse caminho inevitável, caso da reiterada palavra “Philadelphia” que se ‘ouve’ ou da sensação de ‘divertimento’ imputada a Alexandre. Há que dar voz ao acaso, sabendo-se que o que lhe equivale na escrita não passa de um belo felino com a cauda de fora (mais um simulacro com as devidas unhas à mostra). Constata-se, por fim, uma certa rudeza que acompanha os actos, no sentido em que o guião sugerido se cumpre sem digressões. A economia lexical cria conotações bem mais produtivas, já se sabe (questão de oficina, pois há coisas que realmente se aprendem no ginásio literário, basta exercitar qb. e ter alguma humildade).

Tal como a ave de rapina se agarra à sua presa, também a gramática ata sempre os nós à rede de factos que (potencialmente) pareceria querer libertar-se e disseminar-se. É superior às suas próprias forças. Uma mancha de óleo que se disperse em alto mar acabará igualmente por se limitar aos seus contornos. Em oceanografia, existem modelos que simulam a circulação das manchas de óleo tendo em conta a composição química dos elementos, as correntes, o vento e as ondas. Mas uma coisa é certa: estas manchas geradas pelas (criminosas) injecções dos petroleiros não sobem pela estratosfera acima criando aí uma cinematografia aérea. Há gramáticas e forças (como a da gravidade) que não o autorizam.

A narrativa literária também está comprimida à sua fatalidade chã: não se descomprime de modo a permitir interpretar Alexandre independentemente da espingarda, ou de modo a permitir interpretar Eugénia independentemente de estar aos pés da cama a olhar para Alexandre. O que se lê já está vincado pela sua própria ciência oceanográfica. O leme do escritor exercita a pulsão e o poder até de comover os leitores, mas fá-lo apenas no interior do seu aquário (para dentro do qual saltamos na nossa operação de leitura).

Ler é, pois, uma descida às águas de um aquário, porventura de um oceanário. Mas é uma descida com instrutores que somos nós próprios a criar a temperatura e o cromatismo do romance (e até o tipo de algas que desejamos reconhecer ao longo desse mergulho algo alucinogénico). O que ele nos empresta é um modelo de simulação que permite respirar dentro de água. Assim se efectiva a instrução dos efeitos: o romancista pontifica, a obra ejecta o seu produto e o leitor explica-se (e compreende-se) a si mesmo dentro da invisibilidade das fronteiras que lhe são dadas.

Não é uma má experiência, convém sublinhar. Por vezes pode incendiar os sentidos ou até dar sentido a uma vida inteira. Há quem acredite nisso piamente. Mas é uma experiência problemática e sobretudo frágil como o são todos os submarinos que cruzam as águas em profundidade. Uma falha, um corte de energia, algum tempo fora de prazo ou uma brevíssima explosão e o livro logo é atirado para o canto da prateleira.

Diferente seria um projecto literário que fosse capaz de transformar o aquário discursivo numa cinematografia aérea e assim atrair os leitores para um voo tão desconforme quanto absolutamente irrrealizável. Como sou um escritor ainda jovem, não perdi a esperança de vir a realizá-lo.

5 Dez 2019

Dos labirintos: um diálogo

[dropcap]O[/dropcap] homem foi o primeiro ready-made de Deus: eis como agora parece começar a desalentadora História da Humanidade. Mas o inesperado pode interceder e aliviar-nos, como na felicidade de ter baixado um livro de Charles Simic, O Monstro Ama o seu Labirinto (na tradução espanhola) e lê-lo de rajada. E entra assim:

«Muito tarde na noite, na rua MacDougal. Acerca-se um velho e diz: “Senhor, estou escrevendo a história da minha vida e preciso de uma moeda de dez centavos para acabá-la”. Dei-lhe um dólar.»
Com o que sobra ao centavo o velho vai ter com que reencarnar, para contar outra história de vida. O que me lembra a regra de Canetti para identificarmos a arte: quando encontramos mais do que aquilo que foi perdido.

Este é um livro de notas diarísticas, de ímpetos e aforismos, de comentários ao jogo da escrita e à esgrima desta com os seus leitores e críticos, num magma heteróclito e permeado de breves, deliciosos, flashes de infância ou doutros recantos da memória.

«Mentia um pouco? – diz Simic, sobre si mesmo – Claro. Dir-se-ia que havia vivido anos na Rive Gauche e que por hábito me senta.va nas mesas dos cafés famosos, de olho preso nos debates apaixonados dos existencialistas. O que justificava tais exageros aos meus olhos era a possibilidade real de que poderia ter vivido algo assim. Tudo na minha vida parecia o produto do acaso, encadeava uma série de eventos improváveis, então, no meu caso, a ficção não me soava mais estranha do que a verdade. Como quando eu contei à mulher no trem de Chicago que era russo. E descrevi-lhe o nosso apartamento em Leningrado, os horrores do longo cerco durante a guerra, a morte de meus pais diante de um pelotão de fuzilamento alemão, na nossa presença, os filhos, os campos de deportação na Europa. Nalgum momento daquela longa noite não tive outro remédio senão ir à casa de banho rir a bandeiras despregadas. Ela engoliu as minhas petas? Quem sabe? Na manhã seguinte, deu-me um longo beijo de despedida, que alguma coisa haveria de significar»

Para Brodsky, “a história da consciência inicia-se com a primeira mentira”, e acrescentava: “acontece que eu recordo a minha.” Não recordo a minha primeira mentira, mas adoraria mentir sobre isso, pois não me custa a acreditar que ele tenha razão. Como combinar o “direito de mentir” e a ética – é a questão que se segue.«O poema que quero escrever é um impossível. Uma pedra que flutua.»

Completamente, por isso me atrai a metamorfose. E o quotidiano só me interessa como superfície porosa, onde por trás do familiar irrompa o estranho, o neutro que antecede a intensidade, o amorfo que acicata os elementos a mudarem de natureza e figura.

Duas outras notas em que me revejo: «Se trato tudo ao mesmo tempo como uma piada e como um assunto sério, é porque honro o eterno conflito entre a vida e a arte, o absoluto e o relativo, o cérebro e estômago, etc. Nenhuma filosofia pode nos faz esquecer uma dor de dente … algo assim.»; «Impulsos contraditórios no fazer do poema: deixar as coisas como são ou voltar a imaginá-las; representar ou recriar; submeter-se ou afirmar, artifício ou natureza, e assim por diante. Como a vaca, o poeta deveria tem mais de um estômago».

Eis o que nos atraía em jovens: «”Tem imagens estupendas”, dizíamos, e o que queríamos dizer era que o poeta não nos deixava de surpreender-nos pela natureza selvagem das suas associações. O nosso ideal naquele tempo era a liberdade total da imaginação. Isto é o que amávamos e o que exigíamos da poesia que nos propúnhamos escrever.»; daí que me fatigue verificar como hoje a imaginação se tornou suspeita. Voltaram o recato e as regras. Talvez daqui a vinte anos o Michaux apenas seja lido por um grupo de fanáticos.

«O inventor da metáfora moderna, Arthur Rimbaud, considerava-se um vidente. Soube ver que a ambição secreta de uma metáfora radical é metafísica. Podia abrir novos mundos. Podia tocar o absoluto. Abandonou a poesia quando começou a duvidar desta verdade.»

Cada poeta assemelha-se ao mestre budista que em jovem pensava que as montanhas eram montanhas e os rios rios, e que depois de anos de estudo e devoção decidiu que as montanhas não eram montanhas nem os rios rios, para no fim da vida, já era mais velho e sábio, ter logrado compreender que as montanhas são montanhas e os rios rios. O Rimbaud só compreendeu pela metade, nem pressentiu o que monge budista calou: que depois da última travessia do deserto talvez voltem os símbolos a ser «deidades momentâneas».

Outra nota espantosa: «Nietzsche: “Um pequeno animal exausto com os dias contados” propõe “o objeto do seu amor”. Disto se ocupam os meus poemas.» De como dotar de dignidade os perecíveis, portanto – é difícil achar melhor projecto.

«A forma é “sentido do ritmo”, essa medida exacta de silêncio entre palavras e imagens que as torne significativas. Os cómicos sabem muito bem de que falo.»

Também me palpita que, amiúde, a forma é apenas a sábia exploração de um irrepetível sentido do timing entre os elementos da relação que o texto aflora, coloca em presença. Por isso quando me perguntam o que ocupa mais na escrita de um romance eu invariavelmente respondo: o ritmo.

«O que a esquerda e a direita políticas têm em comum é o seu ódio à literatura e à arte modernas. Agora que o penso, todas as Igrejas compartilham esse ódio, o que nos deixa sem muitos apoios. Por um lado, temos o rico imbecil que colecciona latas de sopa de Andy Warhol, e por outro o pobre rapaz enamorado dos poemas de Russell Edson e Sylvia Plath. Deus nos valha!»

E aonde isto nos conduz? Talvez a este estado merencório da actualidade: «”Ela fingia um orgasmo de cada vez que se masturbava”, escreve um gracioso anónimo num tabloide.”

5 Dez 2019

O lugar das estacas

[dropcap]V[/dropcap]oltei ao lugar das estacas, expressão popularizada pela apresentadora Cristina Ferreira em 2016 quando declarou, emocionada: “Mesmo que eu um dia tenha de voltar à feira, ainda sei o lugar das estacas”. Considero este um dos grandes momentos da televisão portuguesa, com laivos de Scarlett O’Hara na sua saudosa Tara, declarando a Deus que jamais voltará a passar fome. Ao contrário de Cristina, que muitos consideram a figura deste ano que encerra, eu nunca vendi na feira, mas recordo-me bem de uma entrevista em que ela dizia só ter andado de avião pela primeira vez aos trinta.

Há anos que não visitava a Feira do Relógio, a qual tenho descoberto ser ainda um mistério para alguns residentes lisboetas. Também eu me tenho esquivado, por preguiça e por ter vivido três anos na rua contígua à Ladra, a voltar à mãe de todas as feiras. Tolice. Nada faz passar a melancolia dominical como uma ida ao Relógio.

Cresci em Alverca do Ribatejo, uma das muitas cidades onde há uma feira, no mínimo, todos os sábados. O ritual de sair para passear, normalmente em família, reencontrar toda a gente, ver coelhos e pintainhos à venda, voltar para casa com saias a dois euros e farturas no bucho em qualquer altura do ano, é parte da qualidade de vida que perdi quando me mudei. Que me perdoem os farmer’s markets, mas esta é uma liga superior: dos lugares mais mágicos, surreais e divertidos, em estímulo exagerado e contínuo de todos os nossos sentidos. Nada se faz pela metade a não ser, talvez, o preço. Há alguns domingos, depois de uma primeira desistência por causa da chuva na semana anterior, lá me dispus a percorrer novamente a Avenida de Santo Condestável.

Abre o olho! Vá lá, vá lá, vá lá! Muito artigo bom e barato. Dois a um euro! Três a um euro. E há a quatro euros, também! Uma mulher usa um megafone e sobe a um pequeno escadote e há quem suba à própria banca onde tem os artigos. Desde que não chovam pedras!, repete alguém. Há quem cante Ciiiiinco euros, em falsete de fazer corar o Prince. Cinco, cinco, cinco é o mantra repetido em tom gutural. “Because I love you”, canta um homem que por mim passa, reclamando entredentes que o saco vai muito pesado para o seu gosto. É tão fácil existir aqui. Por todo o lado, sacos de plástico com desenhos de Pai Natal envolvem cuecas e tomadas eléctricas. Uma banca está protegida por uma toalha que reconheço: um padrão de ursinhos, que me remete de imediato para um primeiro date, há quase um ano. Já acreditávamos, mas isto confirma o seu lugar como a melhor toalha do mundo. Reparo ainda num belo avental, ostentado por uma feirante, com a inscrição “Deus te abençoe e te guie” pintada.

Andem mal vestidas, andem. Não gastem o dinheiro, não. Ó jeitosas! Ó jovem! Ó menina, pode mexer à vontade. Um euro cada, se comprar cinco leva seis. Leva um oferecido. Já não é quinze, é a dez! A dez a dez a dez, é para a criança andar bem vestida na rua, na escola, para ir à missa! Cheguem-se para cá! É três por dez! Artigos de loja, artigos de marca! Para homem, para mulher: coisa linda! Leve tudo, leve tudo! É coisa boa, não é Primark, não é lixo. É da Loja das Meias! Pode abrir e ver. Aproveitem, Carolina, Francisca! Venham ver! Vá lá, princesa! Três collants! Olha a mala! Pode levar maiores e mais pequeninas, está bem, querida?

Olhem que eu tenho luxo! Ó Teresa, esta menina diz para eu não a provocar. Vocês hoje estão uns chatos do caraças! É de roer! Andem bonitas, mulheres!

Parar não é permitido. A feira pulsa, ribomba em sons e línguas diversos, e quem está nela deve acompanhar os seus movimentos. Cães a passeio e carrinhos de bebé são levados com cautela pelo mar de gente em constante desvio, uns dos outros e das estacas de metal que seguram as tendas com fios grossos e coloridos. Por aqui, há quem ande de patins em linha, quem branda pijamas-escalpe do Pikachu, quem fale com abacates, quem declare que é o próprio homem, o próprio ser humano quem está a dar cabo disto tudo.

Delicio-me com um pastel de vento, clássico brasileiro de massa tenra com recheio de carne e queijo, que mal cabe no prato. Bifanas, garrafões de vinho, ervas aromáticas frescas e secas. Águas de colónia, bolas de futebol, a genialidade da expressão “jogo de cama”. Buzinas, serras, flores falsas e verdadeiras. Encanto-me com giló, malagueta em forma de rosa, pitaya de polpa roxa. Há pássaros, plantas, ovos em caixas intermináveis e bem organizadas. Com sorte até cassetes e disquetes. Soldados de brincar, porquinhos-mealheiro, mantas multiusos, um pinguim verde de louça que me acena, facas, bálsamo chinês, cola e escovas de dentes convivem num caos irónico que me tranquiliza. Posso comprar um sofá, um pente fluorescente, uma toalha de praia com golfinhos, um relógio do SLB, um baralho de UNO, pensos rápidos, brincos, uma Nossa Senhora que brilha no escuro ou pães chamados bebés. Não há limites. São ou não são os melhores, estes domingos de manhã na cápsula do tempo, no museu vivo de todas as coisas tuga?

4 Dez 2019

Ladrar à maresia

Cabo Ruivo, Lisboa, 25 Novembro

[dropcap]C[/dropcap]hovia, de maneira que derrapagens eram permitidas. Antes, e na companhia do Afonso de Melo e do tu-Barão da Brandoa, experimentámos no Calcutá, entre outros condimentos, alguns acabados de chegar do Índico, sublimes fígados de frango, e, arrisco dizê-lo, o melhor kebab de borrego que me foi dado provar. Regado, já agora, na justa medida por um Vinhas Velhas assinado Paulo Laureano.

Aquele recanto do meu coração será sempre ruivo, por milhentas razões, e lá nos postámos no estúdio treze da Antena três, aguardando hora. Estávamos abrigados em território Indiegente, sob comando do Nuno Calado, que disparava em boas direcções. Às segundas também se arranja alvo, nas barbas de Anjos-o-José, para a palavra por cantar, a sobrar ao canto do lábio. Vai de dizer inéditos dos buques que se avizinham cá em casa, o da Inês [Fonseca Santos], de par com o do Henrique [dodecassílabo Fialho], mai-lo Paulo [José Miranda] e o Miguel [Martins], que puxei para o meu regaço para o dirigir à noite escura a ver se acertava em alguém. Disse no mais alto sussurro que alcancei: «A vida é impossível, não importa/ o Vicks VapoRub, o que nos fazem/ ou o que nós fazemos, se ou quando./ Desde que o primeiro homem se lembrou/ de que não era cão, ficámos condenados/ a saltérios e musas e juros com fermento,/ à sina de gravatas e aprestos./ Que mal tinha ser cão, além do bem/ de comer carne crua e cheirar cus/ e vaguear pelas estações do mundo?/ Mas não: havia que salgar a focinheira/ do porco, pôr rosmaninho nas virilhas/ e inventar a cadeira rotativa,/ moribundelirar amores obtusos/ e de tudo intentar a mais-valia,/ composta e previdente e pequenina./ Ora, acontece que, seja dia ou noite,/ só me apetece ladrar à maresia.»

Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro

Devia a prosa, segundo ditames do bem cronicar, coser-se pelos fios do óbvio dos dias que tombam mal o sol ascende. Ou seja, nenhuma razão para falar agora de sardinhas. Excepto para mim, que não as gramo da maneira pópulare a debitar a gordurinha na brasa faiscante, agudizando os graus das festas ou de um inferno qualquer, apesar de regado a carrascão ou cerveja, valha-nos Santa Greta! Mão amiga oferece-me o deleite de 500 + 500 sardinhas/sardines (ed. EGEAC|Imprensa Nacional). Por várias vezes estive para tomar o pulso aos volumes evocativos das décadas que se dobraram sobre o fenómeno. Logo na primeira, o mastermind [Jorge] Silva previa-o: «o Galo de Barcelos que se cuide, que a sardinha ganha-lhe aos pontos.» E comeu-o mesmo, e assim para a alface ou o corvo, o Pessoa-poeta o ou António-santo. Assoprem as brasas académicas, que alguma explicação se devia colocar no assador para este assombro: bicho de somenos, alimento do pobre, a ganhar corpo enfezado de gourmet, mas gordalhão do marquetingue, forma maior para cidade, que digo?, país. Não salgo a redacção com números, mas crede, irmãos, que sobem ao absurdo. O que me diverte e celebro está na forma longilínea que acolhe a cidade, não apenas Lisboa, mas a ideia cosmopolita de centro, virtual e intangível, o ícone que nos faz ser mais nós aqui e agora, brincando. Brilha intensidade de sinal que parece farol, maneira de vir à tona, o arrepio de que fala o saudoso [José] Sarmento [de Matos]. «Este ritual cria à superfície das águas uma vibração detectável a olho nu, espesso em ebulição, saudando em comunhão colectiva o bafo quente e luminoso que lhe regula o ritmo de vida.» Promete ser ritual, esta ida à lota destes livrinhos para cheirar a experimentação vivíssima, ó freguês!, de um cabide linha aos braços dados de cores distintas celebrando a junteza das festas. Simples e detalhado, poético e narrativo, delirante e obscuro, nada escapa a este mínimo corpo: notas de vinte e o zorro, episódio de História e a pen, vegetais e sorvetes, o reino animal e ídolos rock, fado e a Luza, azulejos e os muitos mundos do mundo. Cheirei o nascimento da primeira, espalmada no escanner, amarela depois e um detalhe verde, indivíduo perdido em cartaz (algures na página). Assisti depois à explosão do cardume. Continuo por perceber, maravilhado, o milagre da multiplicação das espécies em uma só.

Fundação Saramago, Lisboa, 27 Novembro

Queria que mais gente tivesse ouvido o Pedro Mexia dissertar sobre a trilogia dita da criação, do Paulo [José Miranda], na atinente apresentação. O essencial de cada volume e figura foi apresentado com reflectida lucidez, com atenção ao detalhe, mas mormente colhendo ideias, gesto apropriado a romances que são árvores. Ficou-me a ética da alegria e a estética da tristeza aplicada que nem autocolante, dos transparentes. Nos pontos cruzados que andamos fazendo em tricot simbólico era ali, nos Bicos e perto da oliveira, que fazia sentido celebrar os vinte anos do primeiro Prémio José Saramago, mas as mastigadas agendas regurgitaram aquele dia e hora, com interesse mínimo de quem de direitos e consequências modestas. Ainda assim não por perdido o tempo.

Fundação Saramago, Lisboa, 29 Novembro

Escorre do monte próximo das leituras, após noite basta afectiva, o voluminho «Uma só volta do sol», da Mónia Camacho (ed. Nova Mymosa). O conto distópico parece conter ingredientes suficientes para insuflar fôlego romanesco, mas não deixa de nos levar, de mão dada, por entre cacos de vidro e personagens, a um «momento anti-mundo sem notas de rodapé.» Esta melancolia, que resulta de uma universal e doentia ausência de sentimentos, possui as matizes, lá está, de pedaço de cristal. Não nos apazigua, não nos desespera, tomba apenas sobre a leitura como tecido, aqui denso, além vaporoso. Que me sobra? «Uma saudade elementar dos dias em que nada acontecia. Em que ficávamos a desperdiçá-los. A usá-los em nada.

Porque podíamos. Juventude, essa ilusão de que há tempo. Agora, a minha vida é apenas uma cicatriz ao espelho. O medo de já não sentir vem fazendo sombra no meu olhar. Parte de mim nega essa possibilidade. Afasta-a para um canto morto.

Há um lado fêmea nas dores que sentimos. É daí que vem a resiliência.»

Santa Bárbara, Lisboa, 30 Novembro

Trouxe espólio da surtida a Pisa. «Walt, o il freddo e il caldo», de [Fernando] Assis Pacheco (ed. Urogallo), por exemplo e o mais. Tomem nota que o romanzetto – gémeo divertido de noveleta – foi acontecendo, pela mão da Valeria [Tocco], em laboratório de tradução. Que melhor exemplo de escola de traditori?

Aceito a mercê de Santa Coincidência, de quem sou devoto menor, e corro a reler essa notável peça de teatro do absurdo que leva nome do narraferes, «Walt», misto de pistola e autor de imaginários animados. Não era essa intenção, mas de vez em quanto fui espreitar o modo de desfazer nós que me pareciam cegos. E alegrei-me. Chafurdei, isso sim, em bela coboiada, de toada mais melancólica que as de quiosque, embora.

Havia enfrentado o bicho por primeira vez na adolescência, momento dado a moralidades de treta, de sabor a sardinha. Terá nascido aqui o pós-modernismo de ponta e mola, com o narrador metido no fio da meada, a intrigar-se, a despir-se, a lixar-se? A nossa guerra está pra ali sem estar, o exército inteiro apresentando-se no cais, entalado entre o bater de palas e botas, para comer e beber e foder e o mais, marinheiros de não saber nadar que nunca partiram bem e em mil pedaços retornarão. Raio de prosa faiscante e malabarista que cruza tempos e lugares, concretos e imaginários, erudições escritas e falas vivas! E nisto constrói um chão que se pode tocar, mas a grande altura. O narrador-alferes armado em polícia sinaleiro de todos os múltiplos sentidos, mesmo o da crítica, que se apresentava vindo debaixo. Cada homem atirado em direcção ao Apocalyse, navio merdoso atracado na gare bêbedomarítima, foi mundo implodido. Percebem, ó caras pálidas?!

4 Dez 2019

De que vale o tempo

[dropcap]D[/dropcap]e que vale o tempo, de que nos valerá essa entidade criadora e criatura inventada por nós, mesmo que a tentativa de a domesticar tenha falhado? “Time must have a stop”, diz um personagem de Shakespeare no seu desespero lúcido. Mas não há paragens, só passos irreversíveis. E por vezes, quando temos sorte, há tempos que se cruzam e que fazem com que compreendamos o que antes não seria possível porque pura e simplesmente ainda não tínhamos tempo suficiente dentro de nós.

Para bem do leitor tentarei explicar o parágrafo anterior, entre o místico e o críptico, com o que sempre norteia estas crónicas: o quotidiano, princípio e fim de tudo. Melhor ainda, recorrendo à música popular, arte próxima, palpável e que medra dentro dos dias. Pela audição de dois discos três tempos encontraram-se: o meu e o dos dois autores e compositores. O primeiro disco chama-se Thank You For The Dance, legado póstumo mas desejado de Leonard Cohen. Prossegue o caminho de You Wanted It Darker, o derradeiro disco que o canadiano editou em vida (viria a morrer dezanove dias depois do disco ver a luz). É mais um acerto de contas com a vida e sobretudo com a morte mas ainda mais frágil. As canções de Thank You For The Dance foram compostas por vários músicos a partir das gravações da voz de Cohen, já muito debilitado e em reclusão domiciliária. São pequenas pérolas negras, algumas de alegria, outras de raiva, outras ainda de resignação irónica de alguém que vê o seu tempo terminar e está preparado para isso. No extraordinário um minuto e doze segundos que demora a canção The Goal, ele resume o seu estado e o que fica: “No one to follow /And nothing to teach/ Except that the goal /Falls short of the reach”. A visão do finito – que de resto sempre passeou pela obra de Cohen – ganha aqui o último acabamento de uma catedral de beleza.

Mas para o tempo de Cohen já estava preparado. O espanto veio com a descoberta de Bookends, disco de Paul Simon e Art Garfunkel, editado em 1968. Sendo o que vos escreve admirador de Paul Simon, nunca tinha ouvido este disco como deve ser. Por misteriosas razões ( provavelmente porque agora era o tempo certo, quando o posso compreender na plenitude, “no meio do caminho da nossa vida”, para citar o padroeiro desta coluna) peguei nele. E perdoai a recensão tardia mas tenho que a fazer: é um disco extraordinário, conceptual. Os temas são a velhice, a mortalidade, o tempo. Mais extraordinário ainda quando se sabe que foi escrito por um jovem de vinte e tal anos – num tempo de inícios. O tempo está por toda a parte: Overs, por exemplo, é uma canção de separação que me fez lembrar do célebre sermão de António Vieira sobre o tempo e o amor: “O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.” A colagem de vozes de velhos (Voices Of Old People, feita por Art Garfunkel) é ainda mais explícita sobre o que se pode ver no final desta nossa corrida. Old Friends e Bookends são elegias melancólicas ao que passou e ao que está inexoravelmente por passar.

A parte conceptual do disco dura apenas um lado. Depois seguem-se canções de temas mais ou menos sortidos. Ou não: Hazy Shade Of Winter, que conta com um dos melhores riffs que conheço, abre com as palavras “Time time time, see what’s become of me/ While I looked around for my possibilities” – e não é reconfortante que pelo meio o narrador afirme “Hang on to your hopes, my friend/ That’s an easy thing to say/But if your hopes should pass away/Simply pretend/ that you can build them again”.

Não é por acaso que o nosso olhar não está preparado para assimilar o muito que nos é dado quando nos é dado pela primeira vez. É preciso que a vida nos atravesse e atravesse as coisas. Que haja tempo, e que esse tempo que não irá parar possa por momentos demorar-se em nós. Do tempo vem o espanto, o entendimento e a desilusão. Todos são preciosos. Até porque como escreveu um ainda mais jovem Paul Simon (a lembrar Beckett) “Hello, hello, hello, hello/ Goodbye, goodbye, goodbye, goodbye/That’s all there is /And the leaves that are green turn to brown.”

4 Dez 2019

Bachianas brasileiras: os Concertos de Brandeburgo

[dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é autor de um catálogo de proporções colossais, com cerca de duas mil composições que abarcam todos os géneros, sendo a figura essencial da música clássica brasileira.

Filho de mãe indígena, recebeu as suas primeiras lições de música do seu pai, violoncelista aficionado. O violoncelo, precisamente, ia ser o seu primeiro e dilecto instrumento; mais tarde aprendeu a tocar piano e vários instrumentos de sopro. Formado musicalmente à margem das instituições e dos conservatórios oficiais, foram determinantes as viagens que realizou ao interior do Brasil a partir de 1906, em que conheceu os cantos tradicionais dos índios da selva amazónica, que exerceriam uma influência decisiva na formação do seu estilo, caracterizado por uma absoluta originalidade formal e harmónica, livre das convenções do nacionalismo mais académico, mas no qual a recriação, mais do que a alusão directa de melodias e ritmos indígenas, ocupa um lugar preferencial.

Em 1915 deu-se a conhecer, não sem polémica, num concerto celebrado no Rio de Janeiro e integrado todo ele pelas suas próprias composições, cuja novidade chocou com o conservadorismo do público assistente.

Uma bolsa concedida em 1923 pelo governo brasileiro permitiu-lhe financiar a sua formação em Paris. Ao regressar ao Brasil, exerceu o ensino em centros distintos, enquanto a sua música conquistava reconhecimento nacional e internacional.

Da sua abundante produção sobressaem as nove Bachianas brasileiras (1932-1944), nas quais Villa-Lobos se propôs sintetizar o contraponto de Johann Sebastian Bach com as melodias populares da sua pátria, a quinta das quais conquistou merecida fama.

As Bachianas brasileiras foram compostas entre 1930 e 1945. O conjunto de suites, escrito para formações diversas de instrumentos e vozes, funde material folclórico brasileiro (em especial a música sertaneja) e as formas pré-clássicas ao estilo de Johann Sebastian Bach, tencionando o compositor construir uma versão brasileira dos Concertos de Brandeburgo do compositor alemão. Representam não apenas uma fusão da música popular brasileira, por um lado, e o estilo de Bach, por outro, como uma tentativa de adaptar livremente uma série de procedimentos harmónicos e contrapontisticos barrocos à música brasileira. Esta homenagem a Bach também foi feita por compositores contemporâneos como Igor Stravinsky.

As Bachianas brasileiras resumem a preocupação do compositor com o seu antecessor barroco – que ele considerava “um mediador entre todas as raças” – e compreendem uma série amplamente abrangente de nove suites. A palavra “suite” é especialmente adequada aqui, pois em cada uma Villa-Lobos alude à terminologia das suites instrumentais barrocas de Bach nos títulos compostos que dá à maioria dos andamentos: a primeira parte do título evoca o mundo de Bach (Prelúdio, Ária, Fuga, etc.), enquanto a segunda sugere um contexto brasileiro (como em Embolada, Modinha, Ponteio, Martelo, etc.).

Algumas das Bachianas são para forças de câmara (a No 4 foi escrita para piano solo, mas depois orquestrada), enquanto outras exigem uma grande orquestra. A No 5, a mais conhecida da série, composta para oito violoncelos (o instrumento de Villa-Lobos) e soprano, usa tanto o canto falado como o vocalizo. Os seus dois andamentos foram compostos, respectivamente, em 1938 e 1945. O primeiro, Aria (Cantilena), de enorme beleza e lirismo, evoca o carácter melodioso requintado de um andamento lento de Bach, ao tecer a entoação da soprano no conjunto de violoncelos que tocam em compasso de 5/4. A sua secção central incorpora a sensibilidade da música folclórica no andamento usando um poema da escritora brasileira Ruth Valadares Corrêa (também uma soprano, que cantou a estreia mundial da ária). O poema é uma ode à suave ascensão da lua de encontro ao “firmamento sonolento e belo”. Dança (Martelo) é o título do segundo andamento (“martelado”), referindo-se à persistência do ritmo caracteristicamente brasileiro da “embolada”, observa o compositor. O poema de Manuel Bandeira aborda um pássaro cujo “canto vem das profundezas da floresta, como uma brisa que amacia o coração”.

Sugestão de audição:
Heitor Villa-Lobos: Bachianas brasileiras No 5
Victoria de los Ángeles (soprano), Orchestre Nationale de la Radiodiffusion Française, Heitor Villa-Lobos – Warner Classics, 1958

3 Dez 2019

Palestra na universidade

[dropcap]O[/dropcap] homem tinha à volta dos cinquenta anos e era um destacado poeta do Rio Grande do Sul, embora não fosse conhecido no eixo Rio – São Paulo. A dimensão geográfica do Brasil tem destas coisas, que se agrava com a natural tendência dos humanos em se agarrarem aos grandes centros e ao que é mais conhecido.

O homem tinha chegado à cidade de Curitiba para falar de poesia, num evento criado por um dos jornais literários da cidade em conjunção com a universidade, onde decorria o evento. Começou por dizer: “Há poesia que nasce, não de uma relação profunda com a linguagem, mas de uma atenção profunda à melancolia da existência. É o caso dos poetas da dinastia Tang, na China.” Situou o período em que essa poesia ocorreu, citou alguns nomes de poetas e por fim disse que iria ler dois curtos poemas de Li Bai, que ele mesmo traduzira, “Entretendo-me” e “Sozinho Olhando a Montanha”:

“É impossível não olhar o vinho, a noite cai sem que me dê conta.
As folhas, descem do céu e cobrem-me as vestes.
Ergo-me bêbado e vou até à lua, no riacho.
Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.”

Depois de ler o primeiro poema e de uma curta pausa, parecendo emocionado com a leitura, leu o segundo:

“Pássaros levam suas asas para longe,
Deixando uma nuvem no céu, que se afastará.
Ficamos sós, montanha e eu,
Olhando-nos frente a frente, sem fim.”

Fez uma pausa, escutaram-se os aplausos e ele disse: “É impressionante como um poema tão antigo” – estamos no século oito da nossa era – “e de uma civilização tão estranha a nós, mexe tanto connosco. Em ambos os poemas não há um verso que se destaque, não há gota de lirismo incendiário.” E riu-se, antes de continuar. “Mas no final de ambos os poemas não conseguimos evitar a melancolia. E é o nosso reconhecimento da solidão, que é descrita nos poemas, que espoleta essa melancolia. Em ambos, o poeta – o ‘eu poético’, como é de bom tom dizer – está profundamente só. No segundo poema perdido entre a montanha e o céu; no primeiro entre vinho e a lua, que é reflexo no lago. E se ligarmos os dois finais, amplificamos a solidão: ‘Montanha e eu, olhando-nos frente a frente, sem fim’ / ‘Ao longe pássaros, sem que se avistem pessoas.’ A melancolia espoleta, porque a solidão do poeta faz-se sentir em nós. A solidão que é o que nos resta, quando restar apenas uma nuvem no céu, que também se afastará. A solidão do poeta transforma-se na solidão do mundo, da existência, uma solidão que começa em nós, pelo sentimento dos poemas, e se expande muito para alem de nós. Até um não se sabe bem o que é, mas que dói. Estes poemas, sem versos marcadamente líricos, são máquinas perfeitas de fazer doer, de criar ou desenterrar dores, que nos eram estranhas ou estavam apenas adormecidas.”

Aquilo que o homem queria mostrar aos estudantes que ali estavam para o ouvir, resumia-se nesta frase, com que – meia hora depois – acabou a sua intervenção: “Num grande poema, a poesia nem sempre se encontra na mecânica dos versos.” Escutou os aplausos, agradeceu, respondeu a algumas questões e lá foi embora, de volta para casa, perto da fronteira com a Argentina, para junto dos seus animais e da solidão verdejante que o rodeava, convicto de duas coisas: que se sabe tão pouco de poesia quanto de si mesmo ou do mundo; e que temos o dever de partilhar todo o desconhecimento que sejamos capazes de anotar.

3 Dez 2019

A cidade que não dorme

[dropcap]E[/dropcap] agora, isto.

Sibilinas e de uma força imparável. Dizem sem a delicadeza possível do dizer e logo invadindo. A escorrer na minha recente vigília impotente. Fecho as janelas e as portadas como cílios ou doces velaturas a assumir o fim de um dia. O temor de que o sono não venha, calmo, a redimir.

O acordar é coisa de um destempero. Quase que é, a insónia, amiga. Porque das outras vezes eu saio do sono num turbilhão, em que me pergunto de que descanso saiu tamanho vórtice de palavras elaboradas, como de geração espontânea. À espera à beira da cama com o rosto bem colado ao meu a soprar ao ouvido direito e a sair-me pela alma adiante, perturbada e perplexa mas passiva, como simples veículo. Um filtro através do qual se me desprendem para cair de imediato, de tantas e tão rápidas, no confuso esquecimento.

Acordo – cedo, tarde, nem sei dizer se tenho como referência ontem ou amanhã, ou a terra do nunca. E depois volto a acordar. Acordo a proferir frases para dentro. Num mutismo completamente imbuído dessa frescura de um dia novo mas já contaminado. Como se fugidas, elas, de um resumo qualquer de vida em espera, das horas antes do sono. E furibundas da abrupta interrupção, num ímpeto de vingança, à espreita do acordar incauto. E inundação surreal porque delas nada sei. Estou inocente e fico a vê-las enfileirar-se rápidas, fugidias, de inocente que estou sem nada lhes poder acrescentar ou uma vírgula, sequer, mudar.

Passam por mim, na realidade. E a correr. Desisti do caderno de capa azul à beira da cama. Aliás desaparecido. Fugido, talvez. Não admira, perante tamanho assédio. Dentro de mim e sem testemunhas.
Não. Nem me pergunto que palavras são estas. Seguramente serão sobras. E a propósito, acabo por me lembrar que ando com esta sensação indefinida. Este hotel serve-me sobras. E eu ao relento de bolsa dourada e sapato de salto, não sei. Sonho mais alto.

Ao acordar, assim, tudo parece monstruoso e exagerado. Nos cheios e vazios.
Vejamos, planos para o dia: Abrir as portadas com um determinado gesto de revelação. As palavras, entontecidas, já para trás ao descer da cama. Que me querem, sobretudo deitada, informe e indefesa. Mas depois, fogem elas sem coragem de permanecer. Sei onde encontrá-las. No dicionário dos anos oitenta.

Sonsas, ali arrumadinhas por ordem alfabética. Que o mesmo é dizer desarrumadas, dos sentidos que haviam insinuado. Não são de confiança. Mas gosto delas, talvez ou afinal. Serão um amor?

Acordar assim, como se alguém me tivesse contado uma história inquietante antes de dormir, sem o embalo calmo do que está bem e a aterrorizar-me o sonho sem sonhos e a ter que sair por algum lado. Desprevenida ao acordar de mente lúcida, é por ai que saem as palavras esbaforidas.

Mas porque é que não hei-de acordar com borboletas calmas a esticar as asas, a esvoaçar delicadamente por ali na semiobscuridade da manhã a esgueirar-se por entre as portadas mal fechadas de propósito, para entrar o dia, depois. Ou Joaninhas, como tantas vezes aparecem nas plantas da varanda intervaladas do anjo exorbitado que me assola. Um dia destes acordei a contar de dez em dez. Coisa absurda, eu sei. Mas estou inocente, como disse. Fico simplesmente a ver. Como se não fosse nada comigo e não é. Juro. Já contei toda a história da minha vida em versão dark, nestes acordares. Felizmente que ninguém ouviu. Os pormenores precisariam de ser retocados.

Acordo. E como sempre mesmo se de noite profunda e dormida, encadeamentos estranhamente lúcidos de presente, demasiado presente. Mas isso foi sempre assim. Conto de dez em dez e apercebo-me de que uma insólita opção subliminar, despoletou essa cadeia de números religiosamente rezados para dentro, com firmeza e sem mais fantasia do que o abstracto contexto de coisa nenhuma. De onde me vieram os números – e continuo a recitar de dez em dez – senão do instantâneo reconhecer, talvez, que nada haja a esperar de mais interessante. Acordo pois de alma poética em punho, em registo contemporâneo e já irónico. Isto, bem defendido, poderia valer algo, penso um pouco triste. Mas será arte isto de nos deixarmos consumir de vertigem? Tomados de coisas estranhas que o cérebro elabora sem autorização nem intenção clara? É talvez a tela universal que se apresenta no momento inicial um pouco demasiado em branco. Ou um pouco ao negro. Antes de o dia, com as horas, engolir qualquer capacidade de abstracção. Pessoas e vozes por demais. Aqueles seres bizarros de mão levantada e equipamento digital acoplado. Que atravessam as ruas de cabeça baixa. E eu, deitada ainda, se isso o pudesse ser, cabeça mais baixa que a minha, não poderia haver. Contando. Quarenta sessenta oitenta. Minto. Era de dez em dez.

Porque a noite é uma cidade que nunca dorme. A oferecer um eterno presente de Kayros, uma downtown em Tóquio no restrito lugar de um ecrã. Ilusórias luzes. Néons que nunca se apagam, em praças repletas de insones ávidos de qualquer coisa que coloque o dia, a noite, no mapa do acontecido e a que só a língua inglesa faz jus na sua expressão after hours. Ou porque o crânio, é um lugar a fervilhar de agitação num submundo que nunca pára nem de produzir questões e enumerações insólitas à beira do acordar para se derramarem em consternação.

Sim, somos reféns de um lugar depois das horas, uma espécie de parêntesis rectos que custamos arduamente a tornar curvos e sabe-se lá quando os retiramos de facto desse lugar aprisionante que é a insónia. You are here. Aquele ícone de localização nos mapas online. Devo acreditar?

A insónia é o novo black. Mas uma insónia de andar pela casa a acender e apagar luzes – please – para afugentar monstros improváveis, escrutinar sentidos em cada canto dos objectos a esconder intenções vagas, planos, mapas de vida por desenhar.

Mas não. Palavras. Podemos enlouquecer de palavras a mais.

3 Dez 2019

Portugal sob domínio dos Habsburgs

[dropcap]A[/dropcap]té 1581 Portugal manteve-se fora das devastadoras guerras europeias e vivia em outro mundo ainda não existente para a Europa, então bárbara comparada com as grandes civilizações do Oriente.

Tudo se precipitou quando o Rei D. Sebastião (1554-1578), procurando conquistar os territórios interiores de Marrocos, entrou na Batalha de Alcácer-Quibir aliado ao muçulmano Rei de Fez Mulei Muhammad Al-Mutawakkil, que fora destronado pelo seu tio Mulei Abd al-Malik, apoiado pelos turcos de Argel. Saiu derrotado a 4 de Agosto de 1578, apesar de todos os três chefes morrerem, ficando Portugal sem o seu rei, que não tinha descendência. Em algumas fontes históricas consta não ter morrido em Marrocos, mas conseguira chegar a Espanha onde por ordem de Filipe II passou os últimos tempos na prisão, sendo a sua identidade escondida e tratado como mais um falso D. Sebastião, dos muitos que apareceram a fazer-se passar por ele.

D. Henrique (1512-1580), o Casto, por ser filho de D. Manuel I e de D. Maria, filha dos Reis Católicos, subiu ao trono em 28 de Agosto de 1578, sendo o único, após a morte de D. Sebastião, a ter direito por sucessão directa ao trono de Portugal. Entre 1562 e 1568 fora regente durante a menor idade do Rei D. Sebastião, tendo substituído a rainha viúva D. Catarina (1507-1578), filha de Filipe I de Espanha, tutora do neto desde o falecimento a 11 de Junho de 1557 do seu marido, o Rei D. João III. D. Catarina trazia total conhecimento dos assuntos do reino, pois o seu conjugue com ela se aconselhava e partilhava tanto a governação como os negócios. Talentosa na política, impusera casar os filhos, D. Maria com o príncipe Filipe II e D. João com a infanta D. Joana de Áustria, filha de Carlos V. Devido à fraca saúde do príncipe D. João, considerava-se a infanta D. Maria como a provável herdeira do trono e por isso muitas vozes “defendiam que se casasse com o infante D. Luís, para que os reinos peninsulares se não juntassem”, segundo Joaquim Romero Magalhães, que refere, D. Catarina dava “seguimento a uma política que já vinha de trás, e de que a sua própria pessoa também fora objecto. Para apagar ligações quase incestuosas bastavam as dispensas papais.”

A princesa Joana deu à luz D. Sebastião a 20 de Janeiro de 1554, tendo dezoito dias antes ficado viúva do infante D. João. Quando o jovem rei D. Sebastião partiu para o Norte de África, o seu tio-avô Cardeal D. Henrique, Inquisidor-Mor do Reino e arcebispo de Évora e de Lisboa, recusara a regência do reino e mostrara-se contra a empresa, tal como o seu tio Filipe II o tentara dissuadir, mas a expedição teve a concordância do Papa Gregório XIII.

O Cardeal D. Henrique, durante os dois anos em que foi rei, apesar da sua avançada idade, em 1578 pediu dispensa das ordens sacras ao Papa para poder casar e conseguir descendência, mas morreu a 31 de Janeiro de 1580.

Herdeiros ao trono

D. Teodósio (1568-1630), filho do VI Duque de Bragança D. João [irmão de D. João III e de D. Henrique] e da infanta D. Catarina (1540-1614), era um dos mais bem colocados herdeiros à coroa portuguesa. A duquesa de Bragança D. Catarina tinha o direito de representação por ser filha do infante D. Duarte, o único filho varão com descendência sobrevivente de D. Manuel. D. Teodósio com dez anos participara na Batalha de Alcácer Quibir e feito prisioneiro foi libertado pelo próprio Rei de Marrocos, impressionado com a sua bravura. Sendo um dos principais sucessores ao trono após a morte do Rei D. Sebastião, o rei de Espanha só o deixou regressar a Portugal quando conseguiu aí ser aclamado rei. Filipe II propusera casamento a D. Catarina, que assumira a chefia da Casa de Bragança devido à tenra idade do filho, mas ela não aceitou para preservar o direito de D. Teodósio II [em 1583 VII Duque de Bragança] à coroa portuguesa. Se o casamento se realizasse era sinal da aceitação da Casa de Bragança à aclamação de Filipe II como rei de Portugal.

Sucedeu assim D. António (1531-1595), prior do Crato, neto do Rei D. Manuel e filho bastardo do infante D. Luís, por isso fora da linha de sucessão. Quando D. António regressou de Alcácer-Quibir, D. Henrique desprezou-o e ele colocou-se sob protecção de Filipe II, prometendo apoiá-lo para a sucessão do trono de Portugal se aí fosse colocado como Governador, pretensão recusada pelo monarca espanhol. O sentimento anti-castelhano levou o povo a 19 de Junho de 1580 em Santarém a aclamar rei D. António e então, Filipe II decidiu conquistar Portugal. Segundo Francisco Bethencourt, “os pedidos de auxílio dirigidos por D. António e por D. Catarina à França e à Inglaterra chamam a atenção para a posição de Portugal no xadrez europeu e para as dificuldades levantadas pelas guerras de religião em França, onde a própria coroa se debate com o poderoso fenómeno da Liga apoiada por Filipe II. Embora a guerra castelhana nos Países Baixos fosse um factor favorável aos projectos de resistência, a impossibilidade de uma aliança entre a Inglaterra e a França para o apoio a Portugal contra a invasão de Filipe II veio enfraquecer ainda mais as forças que lutavam por um rei .”

Junto a Lisboa, a 25 de Agosto de 1580 deu-se a Batalha de Alcântara entre as tropas de D. António e o exército comandado pelo experiente duque de Alba, sendo o rei português derrotado e por isso, Filipe II tornou-se rei de Portugal. D. António exilou-se primeiro em Inglaterra e depois em França, onde com o apoio francês chegou em 1582 à Ilha Terceira, nos Açores, que continuava a não aceitar o domínio espanhol. Em 1589, ajudado pelo corsário Francis Drake, que estava ao serviço da Rainha Isabel I de Inglaterra, desembarcou em Peniche e tentou que o povo o aceitasse como Rei, mas este desprezou-o.

Filipe II (1527-1598), Rei de Espanha em 1556, apesar de já governar desde 1543, reivindicou o trono português por ser filho de Isabel de Portugal, logo neto de D. Manuel. Além de ter conquistado Portugal pelas armas, teve de comprar o apoio de muita da nobreza devido à rivalidade existente entre os dois impérios da Península Ibérica. Reinava já Portugal quando em 16 de Abril de 1581 foi aclamado nas Cortes de Tomar como Filipe I, o Prudente, prometendo respeitar o princípio da monarquia dualista e manter o império ultramarino português separado do espanhol e com os portugueses a governá-lo. Ficou em Lisboa, fazendo-a por dois anos sua capital e regressou a Madrid, onde construía a sua nova capital, deixando o cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, seu sobrinho, a governar Portugal.

O Rei Filipe II de Espanha, I de Portugal, pertencia à família austríaca dos Habsburgs, que desde 1438 governava o Sacro Império Romano Germânico, sendo o seu pai o Imperador Carlos V (1519-1556) neto do Imperador Maximiliano I da Áustria (1493-1519).

Unidas as duas coroas, a portuguesa e a espanhola, terminava a crise sucessória, mas Portugal ao passar a pertencer à Casa austríaca dos Habsburgs viu-se envolvido na Guerra das Religiões.

2 Dez 2019

O Delírio em Gente de Adriana Crespo

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos confiarei um segredo guardado em acalento; e se quereis que vos diga, a bem da verdade, mal bastante vem à cena literária que tão bem se continue a guardar este segredo. A Adriana Crespo (digo-vos, em surdina, a vós, que tanta experiência tendes nisto de guardar as letras em sereno recolhimento, até que despertem como revelação ao mundo inteiro) tem discretamente espalhado em torno as centelhas de uma escrita em constelação. Personagens variadas, que se cruzam, escrevem, inter-relacionam, erguendo uma cena dramática a que o leitor assiste, ao longo dos anos, de um modo poliédrico, à medida que os mosaicos da vida destas personas, ditados por diários, cartas, pensamentos, poesia, vão sendo desvelados por A.

Um metanarrador, divertindo-se, vai iluminando mais uma peça deste mundo ficcional à solta, que tem o longo título de «O Inaudito, Fabuloso e Incrível nunca antes visto Divertimento de A. OU A Aventurosa Vida e Fabulosas Obras de Orlando I, Françoise M., F de Riverday, Maria do Mar, António Pizarro e Artur B.». A nova peça deste engenhoso divertimento de A. chama-se «Alma de Rapariga» e corresponde ao «Diário de F. Riverday», entre os anos 1980 e 1981.

Os diversos livros que vão surgindo como interlúdios, numa obra maior, são parte desse metatexto dos divertimentos de A., autora/personagem/espectadora que vai os recolhendo, prefaciando, comentando. No prefácio a «Alma de Rapariga», escreve A., num olhar de mise en abyme, sobre os livros, escritas, que a cercam:

Quanto a mim, deveria, em vez de escrever notas e prefácios nestes livros que fui guardando e que vou escolhendo ao acaso e ao sabor de uma obscura necessidade, fazer qualquer coisa mais organizada, mais legível e com certo critério. Mas não me sinto capaz. Orlando I continua a escrever e eu, quando olho para estas vidas como poderei saber por onde começar, ou que sentido trazer a essas tramas.?

«Alma de Rapariga» é, assim, mais um capítulo deste delírio em gente que Adriana Crespo vem construindo em torno das figuras de F. Riverday, Maria do Mar, António Pizarro, Orlando I, Françoise M., também A., que, no seu conjunto, constituem uma amititia literária, uma constelação de poesia, crítica, pensamento, diários, cartas, que formam o desenho impreciso (como, aliás, em qualquer constelação), mas até por isso deslumbrante, deste divertimento: uma biografia múltipla, com alguns factos, mas essencialmente sem eles, que se transforma, por vezes, numa colecção de esgares e sensações expressionistas.

Aos poucos, o leitor vai percorrendo essa luminosidade que pontua o livro, os livros, e que deve ser lida sempre em dois planos; por um lado, o contorno impreciso de cada estrela bruxuleando, por outro a leitura das linhas, dos desenhos, que a posição de cada estrela vai formando, relativamente às restantes, ou seja tendo em conta o relacionamento das diversas personagens, seus escritos, seu lastro biográfico e bibliográfico. Sempre em dois andamentos: a leitura do texto per se, e também do metatexto, em que cada livro simboliza uma peça única do mosaico.

«Alma de Rapariga» corresponde ao diário de F. Riverday, «rapariga de alma de índio, indomável e selvagem», que chega às mãos de A, com o expressionismo dramático e entrecortado que o caracteriza. E tal como nós, leitores, que temos o diário entre mãos, A. vai reconstruir a figura de Riverday, à medida da sua, também nossa, leitura. Mas sobressai certa indefinição indecisa, nesta construção de personagem a um segundo nível:

O que se imagina não é o que se vê. É mais intenso e quase mágico do que tudo o que pode ser visto, porque a visão interior arrasta sempre consigo […] uma aura difusa e uma carga de esplendor.

É pelo diário, contado na primeira pessoa, que conhecemos F. Riverday, esta rapariga que foge de casa, para se procurar, seguindo viagem com uma companhia de circo. Os traços que a definem vão sendo vislumbrados à luz do que é contado nesta narrativa cruzada de diários e pensamentos. Vamos tendo nota das suas leituras (Nietzsche, como teria de ser); dos seus filmes: Andrei Rublev ė o paradigma; das suas músicas: Bach, como seria expectável; das suas companhias: Orlando I, que lhe dedica um poema citado no prefácio de A., e que convoca a percepção do mundo de Caeiro:

Observas tu, pequena Riverday,
que os ramos andam pelos céus
como os vasos sanguíneos
pela tua carne? Ou que qualquer coisa
de rosto, no eixo da simetria
da folha do plátano?
Minha querida amiga
que te moves entra a paradoxal inocência
de pensar nas coisas
pela primeira vez.

Também de outros amigos, companheiros de ficcionalidades, se constrói o livro: Maria do Mar, António Pizarro, de passagem, assim como os artistas de circo, em périplo pela Rússia, Clowns expressionistas de ecos brandonianos, loucos, desamparados: os que se encontram fugindo, num mundo à parte de brilhos e esgares: a rapariga de maillot, o palhaço barrigudo, a contorcionista… A vida, a morte o amor, Deus, o ser: os grandes temas são afinal, sempre, os únicos temas. «Quem era eu quando nasci?», pergunta-se F. Riverday no fluxo deste fervilhar que une imagens, dados biográficos, conceitos filosóficos. E a dado momento, uma dúvida explícita, que percorre, no entanto, implicitamente todo volume, nas reflexões, nas perplexidades, nas entrelinhas, nas referências: «Poderá inventar-se uma nova ideia de amor como uma nova ideia de deus?

Poderá descobrir-se alguma coisa?». Sim, alguma coisa se descobre na filosofia perene do diário: o conluio do corpo, esse lugar concreto, presença num espaço, e a sensação de infinito:

Entre o infinito do corpo e o infinito das estrelas, uma mesma corda se tende, abstracta, real, impensável. Tudo o que preciso é de fazer arder a ideia de deus até à brasa, até ao carvão e até à cinza. Começar a amá-lo como um escaravelho. E só depois venerá-lo como a uma erva, de rosto no chão.

Por isso, a náusea, a incapacidade de não suportar o corpo, que há-de, inevitavelmente, terminar na morte, mesmo que o corpo nunca queira morrer: «é uma luta tremenda e monstruosa. Uma luta de titãs impossíveis de imaginar, com forças extremas e incríveis.». O livro edifica-se assim, ao longo das páginas, com trechos de vida, pensamentos episódios, um percurso entrecortado, até atingir esse momento, «esses cristais do tempo que acontecem, quando sem tempo…de repente a vida inteira parece que voa, como um pássaro.».

Um livro belíssimo (que além do texto, incluí impressas, em papel vegetal, vinte e três ilustrações, que antecedem os capítulos, supostos desenhos pelo punho de Riverdat), filosófico, e com um lastro de tristeza, na sua tremenda lucidez, que, lido como uma peça única ou como uma estrela ocupando o seu lugar numa constelação de personagens, textos, livros, imagens que compõem o universo de Ariana Crespo, acrescenta um ponto luminoso à literatura contemporânea.

Adriana Crespo, Alma sw Rapariga, Lisboa, edições sem nome, 2019

2 Dez 2019

Water from a running tap, de Francis Bacon

[dropcap]É[/dropcap] uma imagem uma coisa menor? Uma imagem é uma coisa. A relação da imagem com o original é sempre mais complexa do que se pensa como tudo o que se passa na vida. Não temos de pressupor que há uma contemporaneidade da imagem e do original. Temos, por exemplo, pinturas, desenhos, imagens, fotografias e filmes de coisas, edifícios, bairros e até cidades, para não falar de pessoas que já não existem, mas também que não existem agora ou não existem ainda. Uma coisa é certa. Toda a imagem que é imagem não se esgota nas fronteiras espaciais que a delimitam. A imagem não está apenas nos seus contornos espaciais, nem existe apenas, como vimos nos exemplos acima no tempo centrado no presente. Qualquer imagem desvia para fora de si própria, procura dar a ver outra coisa para lá do que pode ser visto única e exclusivamente nela enquanto objecto. Quando vemos uma fotografia de alguém vemos alguém. Vemos que é A ou B ou C. Claro que sabemos perfeitamente que é a fotografia de A ou B ou C, que é a imagem de A ou B ou C. Mas A, B e C estão tão presentes como se estivesse em carne e osso ao pé de nós, lembramo-nos deles, quando as fotos foram tiradas ou a época em que tinham aquele corte de cabelo, em que se vestiam daquela maneira, em que tempo era aquele, etc., etc.. Não vemos as características das imagens se as fotos são analógicas ou digitais, se são de boa ou má qualidade, a preto e branco ou a cores, bi ou tridimensionais, qual a escala, etc., etc.. A imagem escamoteia o objecto “fotografia” e “quer” é restituir o original como se o pusesse aí à nossa frente em carne e osso. A imagem faz-se passar pelo original, a cópia quer ser genuína.

Tudo isto quererá dizer então que o original de que a imagem é imagem é autêntico? Terá o original pedigree? Será o original o próprio. Será que se passa com as coisas o que se passa com pessoas? Nós gostamos de pessoas originais, que sejam elas próprias, não gostamos de mentirosos, ladrões, gostamos de pessoas honestas, genuínas, autênticas. Também, não gostamos de contrafação. Gostamos de roupa de marca, das melhores edições, do melhor material, do verdadeiro, do genuíno. Poderíamos perguntar se uma pessoa pode imitar outra pessoa e assim existir à imagem e semelhança de outra pessoa, não ter personalidade própria, ser uma mera cópia e não ser original. Há pessoas que são o que parecem, outras que parecem ser quem são mas não são quem parecem ser. Há jogos complexos entre imagens produzidas para esconder ou fazer aparecer os seus modos de ser.

A questão é que o próprio original não se encontra a ser no sítio em que está nem existe apenas no tempo em que pensamos que existe ou só na dimensão em que achamos que é a sua. Imaginemos uma situação banal do quotidiano: torneira do lavatório aberta, deixando água a correr. Esse facto da realidade quotidiana é susceptível de acontecer em diversas situações reais concretas: a criança abre a torneira, a mãe depara-se com a situação. A mãe abre a torneira para lavar as mãos. O pai abre a torneira da água quente para a fazer aquecer e escanhoar-se. O lavatório fica do lado direto de quem entra. Acima do lavatório está um espelho.

Depois, há um bidé. À esquerda fica a banheira. Mas o que importa é este enfoque no lavatório. Antes na torneira. Melhor na água corrente. A própria percepção vê a água a correr, como um cilindro opaco branco como se fosse feito de diversos feixes juntos que se fossem juntando e ajustando uns aos outros, moldando a partir do interior e visível no exterior. Faz barulho e salpica a água a bater na superfície branca do lavatório. A água corre.

A fotografia da água a correr no lavatório da casa de banho revela esse feixe branco cilíndrico, não se ouve a água a cair, não se pode esticar a mão para sentir a temperatura da água, não se pode lavar as mãos nem fazer a barba. Mas a própria realidade não se esgota na utilidade. Ela aponta para a possibilidade de ser restituída numa imagem, numa figura, sem que queira dizer mais do que o facto de a realidade não se bastar a si própria mas pretender ser fixa, estabelecer-se, sedimentar-se, repousar, ser acolhida na imagem que reconstitui objectivamente por um projecto a possibilidade de dar a ver a outro o olhar particular e privado de como alguém vê o que deixa de ser banal porque é o modo mais extremo e radical de ver o mundo do canto do olho.

29 Nov 2019