Fernando Sobral Folhetim h | Artes, Letras e IdeiasA Grande Dama do Chá [dropcap]S[/dropcap]em José Prazeres da Costa, o “Bambu Vermelho” parecia vazio. Marina Kaplan estava lá. Luc Lefranc continuava a aliviar os bolsos dos jogadores que se atreviam a desafiá-lo na mesa de póquer. Os chineses permaneciam, ruidosos, concentrados em diferentes jogos. De vez em quando alguém passava para as salas reservadas de ópio ou procurava uma rapariga especial. A luz das lanternas, dava uma cor avermelhada ao ambiente, que se cruzava com nuvens de fumo que esvoaçavam ao ritmo das ventoinhas colocadas no tecto e que se arrastavam muito devagar. Mas faltava o jogador que apostava tudo ou, mesmo, o dobro de nada. Em Macau era noite, mas ali ninguém tinha a noção de que horas eram. Vivia-se a eternidade. Sentado, Cândido Vilaça observava o ambiente, que se parecia com o dos filmes a preto e branco que vira em Xangai. As raparigas aproximavam-se, sorridentes, dos clientes, apesar de todos saberem que não existiam finais felizes. Vivia-se uma espécie de tristeza sem salvação. Em tempos de guerra era-se obrigado a ser feliz. O jogo, o dinheiro, o sexo ou o poder escondiam a infelicidade. Os portugueses que apareciam por ali falavam da solidão da vida no mar, aquilo a que chamavam saudade. Mas como podemos chamar à solidão da vida numa cidade como Macau, perguntava-lhes. Também seria uma forma de saudade? Ninguém queria falar sobre isso. Marina Kaplan aproximou-se e sentou-se defronte de Cândido. Trazia dois copos cheios de vodka e estendeu-lhe um. Este agarrou-o, como se ali estivesse a água que lhe permitia não morrer sedento. Bebeu um pouco. – Obrigado. – Eu vi que precisavas. Estás triste. – Isto não é tristeza. É saber o que se vai passar. Ela deu uma gargalhada. – Sabes? Precisamos de um vidente em Macau. Cândido, sê realista. Qualquer um pode perder-se na noite. O importante é que esteja de regresso ao amanhecer. Ele olhou com ar intrigado para ela, antes de dizer: – Jin vai embora. E eu não sei o que vou fazer. – Podes ajudar-me aqui. A Grande Dama do Chá vai embora, mas a loja não vai fechar. Eu vou ficar a geri-la. Podes continuar a tocar jazz. Ou, se preferires, a trabalhar com o Ezequiel. Ele fez-te uma proposta muito tentadora. Não podes dizer que te faltam oportunidades. – Alguém me disse uma vez que um marinheiro só se faz enfrentando uma tempestade no mar. – Tinha razão. Já deverias ter percebido isso em Xangai. Aqui vai acontecer o mesmo. Precisamos de homens e mulheres fortes para o que aí vem. Calaram-se. Jin Shixin acabava de entrar na pequena sala, de onde nessa noite se via parte do “Bambu Vermelho”, porque não tinha o biombo de bambu a protegê-la. O seu sorriso era tentador e vinha vestida com um dos mais belos cheongsam que Cândido já vira. Na despedida, a chinesa queria deixar uma imagem inesquecível. Deparou com os olhos tristes de Cândido. Sentou-se ao lado dele e passou-lhe a mão pelo cabelo. Assim esteve durante uns segundos, perante o ar indiferente de Marina. – Sabes que tenho uma missão, Cândido. Nada me afasta dela. Nem o meu amor por ti. Não é uma escolha entre ti e Du Yuesheng. Entre Macau e a China. É entre o que tenho de fazer e o que é importante, mas não é fundamental. Sei que isto te dói. Mas é melhor sentires uma dor aguda agora do que mais tarde. – O teu coração é, às vezes, demasiado de pedra para se comover. – Já o sabia, querido Cândido. Nunca te escondi o que sentia e pensava. As guerras ou se ganham ou se perdem. E nós não podemos perder esta. Acredita, eu voltarei. Nessa tarde Cândido estivera a ouvir a rádio de Hong Kong. Falava-se de um terrível ataque em Nanquim efectuado pelos soldados japoneses. Com muitos mortos. Que continuava, segundo alguns padres que tinham conseguido chegar à colónia britânica. Em Macau os europeus preparavam-se para comemorar a chegada de 1938, perante a indiferença do chineses, cujo Ano Novo só se iniciaria numa noite de Lua nova, a 31 de Janeiro. Seria o ano do Tigre. Jin virou-se para Marina: – Macau está cheia de conspiradores. Mais virão para aqui. Tenham cuidado. – E Du Yuesheng? – Está em Hong Kong. – Tu vais ter com ele e depois partes para a China? Jin refugiou-se no silêncio. Olhando-a, Cândido pensou na morte de Prazeres da Costa. Com Nomura morto não sabia se tinha sido ele a assassiná-lo. E se os assassinos fossem outros? Os homens de Du Yuesheng não eram santos. Em Xangai tinham feito verdadeiros massacres. Sabia que alguns membros do Bando Verde estavam a trabalhar para os japoneses em Xangai. Outros tinham vindo para Macau e tanto poderiam estar sob as ordens de Jin como de Nomura. Uns detestavam Chiang Kai-shek. Muitos, os comunistas. Outros só gostavam de dinheiro. Todos tinham argumentos, mesmo que falsos, para matar Prazeres da Costa. Jin talvez soubesse o que se passara, mas nada lhe diria. A sua lealdade a Du ultrapassava tudo. Luc LeFranc poderia saber. Seria um segredo impossível de desvendar. Jin sentia o ambiente pesado e o olhar inquisitivo de Cândido. Acabou por dizer: – Escravo é quem renuncia ao presente para sonhar com o que o futuro diz que lhe reserva. Mesmo que seja um aterrador castigo pelo que não fez. É igual. Renunciar ao presente é ser derrotado. E o que acontece a estes? Nenhuma piedade para eles. Nem os vossos mestres gregos acreditavam na piedade. – Como sabes? – Em Xangai também apareciam filósofos europeus, perdidos nas suas dúvidas. Encontravam na noite dos pecados um sentido para a sua vida. Marina olhava para os dois. Esta era uma batalha que nenhum ganharia. Cândido ficaria. Jin partiria para junto do seu guia, Du Yuesheng e talvez fosse para a China morrer por ele. Combatendo japoneses e os inimigos chineses. As armas de Jin e Cândido eram as palavras. Feriam-se, neste jogo que nenhum queria vencer ou perder. Nenhum deles iria fazer cedências. O amor não vencia aquela batalha. Estavam só a destruir o que era belo. Jin acabou com o silêncio. – Há homens que parecem estar sempre de partida. Tu és um deles, Cândido. Também tu partirás de Macau. És um marinheiro errante dum mundo sem fronteiras. Sabes que é cada vez mais difícil dizeres a que país pertences. Não queiras substituir uma pátria por um coração, só para te enganares. O amor que dizes sentir por mim, e pelo qual pedes que fique e abdique da minha missão, é uma desculpa. Isso é melancolia. Podemos ser livres, ou não. Podemos ser tudo, ou nada. Eu quero ser tudo. – Faz-me então um favor. Fica viva por mim. – Ficarei. Jin agarrou num anel de jade verde que tinha no dedo anelar e colocou-o no dedo de Cândido. – Com o tempo memórias e objectos são a mesma coisa. Com este anel verás sempre a minha face. As minhas faces, melhor dizendo. Uma virada para o nosso passado comum. E outra para o futuro que não sabemos o que será. – Tens os olhos puros. – Ninguém tem, Cândido. Marina Kaplan fez um sorriso. – Macau é bela e sem saída. Sejam sempre bem-vindos a esta cidade. Para jogar, para fugir do passado, para encontrarem o futuro. Assim continuará a ser. A vida é um jogo violento de luzes e de sombras, como mostravam Jin e Cândido. Marina Kaplan não quis dizer que Jin procurava o tufão pois só na tempestade encontraria o seu destino. Não queria ser como o imperador que queria ser um intermediário entra a Terra e o Céu. Não conciliava. Desaparecia. Já o tinha feito outras vezes, em Xangai. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. E, assim, ela corria para o único sítio onde encontrava a paz: a guerra. A noite estava a acabar, mas o amanhecer estava sombrio. Os relâmpagos e os trovões criavam um cenário medonho. Na porta do “Bambu Vermelho”, Cândido e Marina ficaram a ver Jin Shixin caminhar para o automóvel que Potapoff estacionara. Esperaram em vão. Ela não olhou para trás. Nem para dizer adeus. FIM
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma aula ao contrário [dropcap]E[/dropcap]stou em Macau há quase um mês em residência literária, uma oportunidade apenas possibilitada pelo trabalho incansável do Hélder Beja e da sua Eastern Chapter, que buscou apoios junto da Casa de Portugal em Macau e da Fundação Oriente para conseguir que a minha ideia semi-tresloucada de deambular por aqui exposto a esta intersecção de culturas, pessoas e hábitos fosse concretizável. Não escrevo esta crónica em jeito de sumário ou de despedida. As minhas experiências de Macau são fragmentos de terra em deriva impassíveis de serem cartografados por ora. Estive hoje (quinta-feira, 28 de Novembro) numa escola chinesa trilingue. Os alunos, da primária ao secundário, aprendem mandarim, português e inglês, a par do cantonense que já falam em casa e entre eles. É uma escola-piloto em Macau, a única que proporciona este currículo. Os alunos dos 10º e 11º anos com quem estive a conversar não eram na sua maioria fluentes em português. Mas havia uma miúda – chamemos-lhe Ana – que falava um português mais do que razoável. Ávida leitora, perguntou-me, entre outras coisas, de onde vinha a inspiração, como é que alguém se tornava escritor. Já respondi a esta pergunta dezenas de vezes, numa estimativa conservadora, e sempre errada ou incompletamente. Para ser honesto, teríamos de conversar muito acerca do que entendemos por inspiração para nos aproximarmos sequer do que pode ser uma resposta que caia pelo menos na cercania do alvo. Aquela menina, de uma curiosidade insaciável, sabia a resposta à sua pergunta, mesmo sem talvez conseguir formulá-la adequadamente. Falei-lhe de como cada um de nós é um arquipélago de histórias em constante reformulação. Contei-lhe como as minhas memórias de infância foram sendo substituídas por memórias imaginadas e de como me tinha surpreendido quando, regressando em 2016 à cidade onde nasci, tudo me parecera muito diferente daquilo que me lembrava, mesmo nas coisas, que por inerência de perenidade, não costumam mudar no nosso tempo de vida, como é o caso das montanhas. Contei-lhe uma história que lera no dia anterior sobre uma ponte na Escócia de onde já saltaram cerca de trezentos cães, tendo muitos deles morrido. Regra geral, o cão não tem impulsos suicidas, pelo que aquela ponte é um mistério até para especialistas mais renomados em comportamento animal, que propõem teorias que os locais despedem com um aceno de mão. Este mundo feito de histórias – disse-lhe – no qual a ficção joga com a realidade apenas para tentar empatar, é o magma passível de ser convertido em sentido e expressão artísticos. Soube depois que a Ana quer ser escritora, que estuda português todos os dias para um dia conseguir explicar aos portugueses o que é a China e a cultura chinesa. Eu gostava de ter conhecido a Ana desde sempre, porque só muito recentemente e por via do acaso é que ultrapassei a síndrome da China-galinha-com-amêndoas e da China-produtos-que-não-duram. Somos insuficientemente expostos – por motivos diversos – à diferença. Precisamos da Ana, de todas as Anas possíveis. Porque no fundo é neste ponto que a arte, qualquer arte, começa.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA arte da verossimilhança [dropcap]A[/dropcap]o manusear repetidas vezes ‘A Peste’ de Camus, qualquer leitor sabe perfeitamente que não é de uma peste que o livro trata. Toda a arquitectura da narrativa nos encaminha para a barbárie que se cruzou com a segunda grande guerra mundial. Também as histórias que compõem o ‘Decameron’ não são apenas histórias. O leitor entende perfeitamente que a peste é, neste caso, a gangrena social que permite que aquelas narrativas surjam e sejam contadas e encenadas em locais muito específicos que Bocaccio, com toda a certeza, conheceu bastante bem. Em toda a literatura existe sempre uma (secreta) meta-comunicação que dá conta ao leitor do modo como ele deve receber e organizar a informação que lhe está a ser veiculada. Um texto ficcional que apresente uma protagonista sem cabeça (caso de uma recente narrativa de Gonçalo M. Tavares) fornece ao leitor instruções muito diversas de um outro que construa a sua personagem principal à luz de uma lavadeira do século XVI. É um facto que a primeira não pode ter cabelos, do mesmo modo que a segunda não pode usar telemóveis. Mas isso não é o fundamental, pois o fundamental não reside nunca na verificação realista. O fundamental é a consistência inventiva que leva cada uma das personagens, nos seus universos e acções próprios, a conquistar o leitor, invadindo-o sem contemplações através de uma verossimilhança específica e irrefutável. Há, pois, que separar a acção e a trama em si, mesmo se trabalhar com dados aparentemente inverosímeis, do acordo tácito entre texto e leitor que permite ‘fazer crer’ no enredamento que a ficção vai gerando e propondo ao longo da leitura (este “imaginary act” corresponde àquilo que Steve Tillis designou por “framing” e Umberto Eco por “make believe”). Um leitor cresce na medida em que se torna num performer de todas as vidas possíveis. Ao fim e ao cabo, é dessa multiplicidade que é feita a ‘mimesis’. Um leitor tem prazer no que lê, quando se institui enquanto sujeito dentro da moldura que a ficção lhe empresta. Ao fim e ao cabo, é dessa disposição projectiva que é feito um actor. Um bom leitor – num sentido muito amplo – é sempre, portanto, um guia ideal para a sua própria heteronímia e também para o palco interior onde se descobrirá enquanto agente livre que consegue reinventar as muitas latitudes do mundo. E tal acontece porque a arte nos diz como a devemos exorcizar no próprio momento em que a desmontamos, descodificamos e fruímos. Seja a arte táctil, perceptiva, performativa ou tão-só proporcionada pelo silêncio da leitura. O pacto que atribui a cada possível ficção um determinado grau de realidade é a prova provada de que a estética baseada apenas na verificação realista é um embuste. E sempre o foi. Poder viver todas as experiências possíveis e impossíveis será sempre o clímax mais elevado do verdadeiro realismo: aquele a que acedemos para tentar disputar a nossa própria incompletude ontológica. De certo modo, o funambulismo é uma boa metáfora dessa ascese a que os humanos (inevitavelmente) recorrem para transformar os passos do dia-a-dia num processo de continuada superação. No prefácio ao ‘Tratado de funambulismo’ de Philippe Petit (1982), Paul Auster escreveu o seguinte: “A arte do funâmbulo não é uma arte da morte, mas da vida – da vida levada ao limite de si própria. O mesmo é dizer uma vida que não se esconde da morte, mas que a olha de frente. Cada vez que pousa o pé na corda, Philippe agarra-se à vida e vive-a na sua exaltante surpresa, em toda a sua alegria”. Este lance grandioso que ousa agarrar um corpo à intensidade da vida é o mesmo que faz ‘A Peste’ de Camus não ser uma peste e é o mesmo que faz o ‘Decameron’ de Bocaccio ser uma vitória sobre a morte, através de vozes que se limitam a tramar o fascínio. É então que o realismo se ergue ao limite de si mesmo e começa a rir às gargalhadas de quem o tenta controlar ou verificar. Em última análise, a verossimilhança é apenas uma forma de intimidade: percorrer o relâmpago sem o ser e nele bruscamente se transformar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasOs fantasmas da língua [dropcap]B[/dropcap]aixei uma nova antologia de Nicanor Parra e leio o primeiro poema, o que me transporta às dúvidas sobre uma tradução possível para “angelorum”, que em castelhano corresponde ao genitivo plural de anjo. Como me é absolutamente adversa a relação com a gramática resolvo certificar-me e eis o enunciado: «O caso genitivo é um caso gramatical que indica uma relação, principalmente de posse, entre o nome no caso genitivo e outro nome. Em um sentido mais geral, pode-se pensar esta relação de genitivo como uma coisa que pertence a algo, que é criada a partir de algo, ou de outra maneira derivando de alguma outra coisa. (A relação é normalmente expressa pela preposição de em português.) Já o termo caso possessivo refere-se a um caso semelhante, embora normalmente de uso mais restrito.» Felizmente, as crianças aprendem a falar antes de lhe ser impingida a gramática, de contrário redundaria num “descaso”, numa pleurisia. Voltemos ao angelorum. No dicionário de português online só encontro a sugestão de que significará algo próximo de “angelizar”, embora se adiante uma hipótese esquisita, apresentada como norma brasileira: “Ângelo rum”. Mergulho no Aurélio, que tem muita cachaça, mas nada encontro. Interrogo-me se seria lícito usar angelorum no mesmo sentido em que se diria: o mangano empregou todo o seu “latinório”! – embora isto não nos dispense de encontrar o símil para anjo. Mas, curioso (ou disruptivo?), no dicionário online, é o que se faz seguir a angelorum, imediatamente colado: Dúvidas linguísticas para “par”: o correcto é “um par de meia” ou “um par de meias”? Será difícil a partir de agora resistir à tentação de ver todos os anjos de peúgas. Eis-me a experimentar o problema que tinham os actores do Peter Brook quando ele os mandava para um canto da sala de ensaio, com a recomendação: Deixa-te estar aí meia-hora e não penses no urso branco! Anjos de peúgas: uma imagem francamente obscena, kitch e digna de um Jeff Koons, que acrescentaria um rebordo dourado. Foi-me infiltrada. Há cinquenta anos atrás seria difícil encontrarmos justapostos num dicionário anjos e meias, só o desuso e a desvalorização simbólica dos anjos o autoriza. Também nunca me passou pela cabeça que fosse possível chegarmos a um momento em que uma palavra tão carregada como angústia se afigure volatizada, desaparecida de todas as pautas – os químicos varreram-na com a facilidade com que se desactiva o alarme no telemóvel? Não sei como está a situação no que se refere ao português, mas no prólogo do dicionário etimológico da Língua Espanhola, de Corominas, diz este académico que em nenhuma outra língua são tantas as palavras fantasmas como na castelhana. E observa Octavio Paz, que nos dá esta informação: Eu estremeço só de pensar que há palavras que perderam o seu corpo, palavras que flutuam e que não sabemos já o que querem dizer. As palavras têm um talo histórico que as alimenta e que depois perdem, secando ou fenecendo, ainda que, ao jeito das estrelas, durem com fantasmas. Sabia-o. Mas chocar com as evidências faz-nos abanar. Em Moçambique é essa a impressão que tenho quanto ao uso do português: há um fantasma na grelha que (à força de o virarmos para não esturricar?) se decompõe à vista desarmada. Claro que há, paralelamente, um fluxo de recriação da língua, dado que um rio se faz de muitas correntes desencontradas que se vão compensando a montante e a jusante, porém, se as dinâmicas colectivas têm sempre um lado de sombra, escamoteá-lo parece-me desonesto. Tenho uma idêntica sensação ao assistir a alguns programas populares nos canais de tv brasileira: às vezes coincide o português com o linguajar que ali se exprime, mas, em fundo, borbulha outra coisa. Não digo que seja bom ou mau, só constato que por vezes se burla a língua em nome da comunicação, e que nesta batota nem tudo me parece saudavelmente transgressivo. Transformar substantivos em verbos pode ser enriquecedor, mas que ao mesmo tempo só se saiba empregar os verbos no infinitivo soa-me a amputação. É natural que as línguas sofram recriações morfo-sintáticas, mas já me traz apreensão o laxismo que lhes avoluma os fantasmas. Em quantas palavras se vertebra a letra no comboio, quando o espírito já saltou fora? Ou perdão, o corpo. Palavras que já só servem para ready-mades, esvaziadas de outro significado que não seja o rasto do seu travestimento, da deslocação. Em Moçambique, por exemplo, todo o estuário semântico associado à palavra democracia está moribundo, apesar das aparências. E num pântano, não só proliferam os miasmas e doenças do catano, nas suas águas insalubres ficam certos talos impossibilitados de se desenvolver, volvem impensáveis. Não sei se as palavras não se assemelharão às pessoas: a partir de determinado mau-estado mostra-se inútil a respiração boca-a-boca, qualquer tentativa de reanimação. Porque tudo se distorce com o tempo, sem que demos conta. Surpreendente, por exemplo, o que se passa com a nossa concepção de oração, ao arrepio da original, como nos esclarece o poeta José Angel Valente em El Angel de la Creacion: «Vulgarmente a oração foi definida como um estado em que se fala a Deus (…) Ora, dentro da tradição cristã, que é uma das tradições mais desvirtuadas do Ocidente e, é claro, em quase todos os contextos religiosos, do zen aos ritos afro-cubanos, os estados superiores de oração são descritos não como um discurso e menos como um pedido, mas como o ponto de uma cessação do discurso, como o estado em que alguém parou de falar para abrir caminho para a palavra», ou seja, para a Palavra poder emergir a partir do silêncio que finalmente se fez. Talvez com mais silêncio os fantasmas tomassem corpo. Eu, como ateu, acredito nisso.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasDiários Turcos (II) [dropcap]S[/dropcap]e já te estavas a dar bem com uma pessoa, imagina quando ela te mostra uma foto sua num tractor, precisamente o que falta à tua colecção. A Lígia escreve um poema sobre um gato que conheceu numa livraria. Quem deu colo a quem não é certo. Em verdade vos digo, num sítio onde é preciso passar por vários detectores ao longo do dia, tenho sorte que os ganchos de cabelo não os façam apitar. Há pessoas que tentam acalmar-se a si mesmas. Eu digo isso ao meu cabelo. Esta noite: — Olha, vem aí a minha sobremesa preferida! — Portanto vamos comer a sobremesa dos mortos novamente. No carro, a Lígia olha para a minha mala. — Bem, cabe aí tudo. — Muitos anos a jogar Tetris. Passei os primeiros três ou quatro dias de cabelo apanhado num carrapito composto. Agora que o soltei, passo os dias a tentar que ele caiba fotos e não tape ninguém. No dia seguinte, bantu knots. Na última escola, em Gaziantep, uma miúda diz-me: — O teu cabelo é muito bonito. — Obrigada. Fiz isto a mim mesma. Estamos a jantar no sítio mais pomposo de sempre quando reparo que cravos ornam a mesa. Explico o 25 de Abril. Brincamos com Oxalá e Insha’Allah. Mistura-se turco, húngaro, inglês, português e árabe. Alguém escreve “Saramigo é o maior da Europa.” Já de Pessoa diz-se, pelo tradutor no telemóvel, “Eu leio o livro inquieto.” Doze pessoas no carro. Perguntam-me, “Museu da cidade ou café?” Café, respondo após uma ligeira pausa. Suspiram todos de alívio e alguém agradece. Explico que é só porque não quero que estejam tristes, porque eu adoro museus e, verdade seja dita, estamos SEMPRE a beber café e chá e café e chá de novo. Eles, OS ONZE, fumam fumam e eu morro morro, mas pronto. Reúno uma colecção de maços de tabaco turcos, com imagens super suaves e diferentes das dos maços portugueses. Atento também no lindo cinzeiro com cravos e no facto de, depois de termos acabado o café, perguntarem se queremos chá. What else? Este é o ciclo da vida. Chá, café, chá, café. Uma vez por outra água e iogurte. Novos diálogos de Gaziantep: Eu — Então diga-me, há quanto tempo diria que é inspirado por plástico de bolhas? Ele — Diria que há uns cinco, seis anos. No carro, discutimos a relação entre poesia e bolhas, sabão e plástico. Em mais um aeroporto, o rapaz das uvas oferece-me cigarros pela segunda vez. Muito engraçado. “Se alguma vez precisares de cigarros ou de plástico de bolhas, conta comigo.” Rio-me. De manhã, — Cá estamos nós a passar outra vez a Lx Factory cá do sítio. Hora de almoço, — Isto é tão feio. Parece Odivelas. Tarde, — Esta zona é mais Mem Martins. Só faltam as marquises. — Aqui, Azeitão. — Olha, afinal até há marquises. Como as primeiras castanhas do ano numa banca de rua, mas a iluminação led de Santa Apolónia ainda não chegou aqui. De regresso a casa, bem mais roliça, sonharei três vezes que regresso a este país, e em cada uma delas trago mais pessoas comigo. O que ficou por dizer é porque não se sentiu. Ou foi dito por todas as pessoas que nos leram, a nós, estrangeiros, durante aqueles dias em escolas, igrejas, cafés e universidades. Porque há coisas que se sentem em conjunto. Às vezes mando fotos da Ponte 25 de Abril e quase engano os meus amigos turcos. Outro dia, na Áustria, comentava com alguém que Istambul e Lisboa são muito parecidas. Essa pessoa disse, muito chocada, que Istambul lhe lembrava mais Nova Iorque. Na volta ambas temos razão. Lembra-nos um lugar de sonho, onde nos sentimos em casa. E o que é que jantámos na nossa última noite em Istambul? Jardineira, pois claro. Very, very typical. “Merhaba! Merhaba! Merhaba”, já dizia a Amália.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasO que fica Jamais digas , acerca do que quer que seja , ‘perdi-o’, antes ‘devolvi-o’. Epicteto (55 – 135) , A Arte de Viver [dropcap]H[/dropcap]á poucas semanas houve uma notícia que me chamou a atenção: o famoso detective de arte holandês Arthur Brand (alcunhado de “Indiana Jones do mundo da arte” por ter recuperado várias peças valiosas roubadas) conseguiu mais um feito: encontrar um anel que Oscar Wilde ofereceu a um colega estudante na altura em que frequentou Magdalen College, em Oxford. O anel tinha sido roubado num assalto à universidade há cerca de vinte anos, juntamente com outras peças. A história da sua recuperação é rocambolesca e cinematográfica. Mas para o que nos interessa isso não será relevante. Não terá sido apenas o facto de o anel pertencer a um escritor e dramaturgo de que sou confesso admirador que terá sido o causador destas palavras: é que o anel em causa é um “anel de amizade”, comum nos tempos vitorianos. É em forma de cinto e fivela, de ouro de 18 quilates e com uma gravação em grego que diz mais ou menos isto: “Uma oferta de amor para alguém que deseja amor”. Ao lado desta inscrição estão as iniciais dos dois ofertantes – Oscar Wilde e Reginald Harding – e o feliz destinatário, o amigo comum William Ward. A oferta terá sido feita em 1876. Um objecto, vindo dos confins do tempo e que pode conter tanto. Algo que ultrapassou a mortalidade dos que o ofereceram e de quem o recebeu. Ao vê-lo interessou-me não o valor histórico mas o emocional, o que de humano sobrevive ao tempo e à nossa triste condição finita. Quantas memórias, quantos sorrisos, quantas alegrias e partilhas estão confinadas naquele pequeno círculo de ouro? O que fica de nós deveria superar sempre aquilo que somos e deixaremos de ser. É nossa missão tentar devolver e não perder o tanto que nos acontece, como ensinou o Estóico em epígrafe. Voltar a dar para os que nos seguem e outros a seguir, até ao final dos tempos. E para isso devemos estar atentos a tudo, inspirar cada alegria ou tristeza com o mesmo valor e gratidão. Mesmo que a memória nos traia, mesmo que o que fica não tenha a grandeza do ouro. Há uma história que me contaram que acho belíssima: uma mulher tinha visitado os Alpes em pequena com os seus pais, numa viagem que muito a comoveu. Mas, muitos anos mais tarde, de toda a grande beleza das montanhas só conseguia recordar-se de uma coisa: umas flores azuis, que crescem apenas no lugar que visitou. Nestas flores cabe tudo o que não consegue recordar mas o essencial irá sobreviver. São as pequenas coisas que nos irão resgatar, a nós que não temos ambição de posteridade e glória. Um anel, uma amizade, uma flor azul: é isso que é preciso devolver. Isso é o que fica.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasTremendo e sinónimos Horta Seca, Lisboa, 18 Novembro [dropcap]N[/dropcap]o meio da confusão habitual das segundas-feiras, agravada pela dor singular, ponho-me a folhear o Libé [ration] que inclui Valério [Romão], a pretexto de «les Eaux de Joana» (ed. Chandeigne, tradução de João Viegas). O jornal havia perdido a minha atenção muito por culpa de agressividades dirigidas ao Michel Onfray, na altura, arauto de radical sensatez perante questões fracturantes. Esta edição abre com um inquietante dossier que, para celebrar a queda do muro de Berlim, levantando cada um dos sinistros que se vão erguendo pela Europa (e Mundo). Umas páginas adiante, no meio de bizarrias sobre escândalos sexuais, brilha anúncio da edição extra do Le P’tit Libé sobre o assunto. Que ideia luminosa, esta de versão do jornal para putos. Tenho que procurar para conferir esta maneira inteligente de criar leitores. Sem querer, vejo um rosto forte, de mãos em gato preto, que me desafia. O obituário, que se chama disparition, vai dedicado e Lucette Destouches, a última mulher de Celine, que morre aos 107 anos, na mítica casa de Meudon. E descubro uma história de amor a arder através do caos como um «bateau ivre», tendo ao leme uma mulher do silêncio, que desconfiava das palavras. Salto a abundância de imagens, as ditas e a sua análise (uma foto da semana é escolhida para ser vista com mais detalhe, JC Menu mistura cinco capas de discos redesenhando-as, etc.) para chegar ao que interessa: a metáfora feita tijolo da construção literária do romancier portuguais. Está no título, citando pedaço da atenta entrevista de Frédérique Franchete, que começa fazendo notar o modo virtuoso com que o autor faz circular as vozes em pano de fundo de uma escrita marcada pelo absurdo, sendo este, diz Valério, a maneira de mostrar coisas que embora visíveis, estão por pensar. Aliás, dar a ver mora nestas entrelinhas. A metáfora apresenta-se como ferramenta de escavação entre duas realidades de modo a criar terceira, que não se encontra inteiramente em nenhuma das duas. Por entre temas, práticas e a infância francesa, desvela-se o essencial do escritor que discute os detalhes com os seus gatos. E anuncia-se novo romance, em tom surrealista e perspectiva burlesca, sobre Lisboa, a gentrificação, turismo e outros monstros. Horta Seca, Lisboa, 19 Novembro Raiosmapartam! A minha adolescência, e isto não se arruma na gaveta das idades, fez-se entalada entre céu e chão nados e criados a partir de versos e melodias teus, José Mário Branco (1942-2019), que uns não crescem sem as outras, as árvores precisam de sol e água para dar raízes e sombras, umas que voam, outras nem tanto. Colhi em ti Natálias e Camões, além de tantas subtilezas e orquestrações a escaparem do horripilante quotidiano. Mastiguei muito vinil, cassetes, cd’s e o mais em busca desse intimidante sentido para inquietação. As tuas canções são pequenos mundos que não deixam de dar passagens para outros, utópicos e diligentes. Andaste inclinado para a frente, estugando o passo, ainda que a tristeza te pesasse nas costas e nos olhos. Raiostapartam! Está já tudo redito e vomitado, e o dia nem começou ainda, não vale a pena contar de quando nos cruzámos em campanha, erguendo eu entusiasmo pueril, bebendo as tuas palavras e atentando nos gestos, antecipando território que habitavas já, o dos bons malandros que, embora descrendo da apanha dos horizontes, insistem em abrir cedo as madrugadas para o varejar das possibilidades. E estudam. E auxiliam. E calam. E cantam, apesar dos pesares. Cantarei, então, o pouquíssimo que sei de cor, mastigando coração e acautelando do luto este jardim das ervas daninhas. Saravá Zé Mário! Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 19 Novembro O Henrique [dodecassílabo Fialho] faz das sessões «Diga 33» momento único de celebração da palavra poética, em versão descontraída, mas preparada, rica em matizes, sempre calorosa, musical. E assim se domestica a esfinge. Acolitados pelo [Manuel António] Pina, lá nos apresentámos, a Inês [Fonseca Santos] e eu, algo agastado com a atenção. Serei tão poeta que justifique noitada? A partir da colectânea «40 X Abril», que foi dedicada ao ZMB, acrescentámo-nos ao coro generalizado, a Inês partindo do seu próprio poema-carta endereçado àquele dia inteiro de Abril, eu socorrendo-me do Miguel-Manso: «sem saber desembocar no coração/ desengolfar aí o graal da alegria em que fizemos/ promessa de comunhão// ser solidário/ há que errar conjuntamente pelo único caminho/ chamar-lhe país». No aconchego de uma frente de palco transfigurada rectaguarda de negro, pareceu-me ver justa agremiação de anjos tombados e jokers e taciturnos e outros seres dos vãos, mas deve ter sido dos meus olhos habituados ao escuro. Muita conversa e várias leituras depois, estou capaz de concluir que me revejo em tremendo país de erros partilhados. Chamemos-lhe poesia, talvez literatura. Horta Seca, Lisboa, 21 Novembro Estava para insistir que a-da-gadanha tem sido diligente nas rondas, mas seria inexacto de tão óbvio. A dita está sempre por aqui feita esqueleto a soletrar falange-falanginha-falangeta, cumprindo supremo encargo do enigma. «A vida é coisa grotesca, inexplicável, bizarra. Não faz nenhum sentido. Eu sou do fantástico, do grotesco e, certamente, do assustador.» Gahan Wilson (1930 -2019) sabia do que falava, autoridade que se foi tornando do riso escarninho sobre a existência e seus becos escuros. Por ali caçava, para adestrar a lápis e cor, os pavorosos ogres que nos atormentam (exemplo filosófico algures na página). Saravá Gahan! Horta Seca, Lisboa, 21 Novembro Saltada à Cisterna para «Atirar a Primeira Pedra», modos de fazer e refazer, de julgar e punir, com a devida distância das belas artes da Sara [Maio], bem entendido. Quase só grandes formatos em papel, onde o acrílico se inquieta em festa de cor. Muitas histórias por aqui de contam em lúdicos e irónicos alinhamentos. São díspares os elementos que se congregam para um carnaval irrequieto, e de que outro poderia ser se o fragmento se ergueu a figura da contemporaneidade? Páro para me encontrar «Quando a língua falava e todos entendiam». Lá estão abelhas e formiga e caranguejo no seus ofícios endiabrados, um tronco-arcada que fala nuvem, mas se deixa atravessar por projécteis, gente de várias espécies e atenções, observadores distantes, folhagens e plantas crescentes, seres-mealheiro perto de moedas, uma roda mista de dançarinos, sopa a ser dada a provar, uma fechadura a andar de skate e mais, bastante mais despertando a nossa vontade de procurar sentidos, de os fechar em narrativas, de os confinar aos lugares. Não será fácil. Só um mito pode promover o entendimento? Mas qual? Vou ali e volto. Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro Está aberta esta série de «Paisagens Axiomáticas», oriundas do labor do Simão [Palmeirim], exercício laborioso em torno da luz, com cambiantes de azuis e verdes e o mais que o atento olhar descortine. São horizontes, que, se o deixarmos, crescem em nós até nos fixarem em uma paz de espírito rara. Possuem qualidade que as multiplica em jogo que parece de espelhos. Não cabe na galeria labirinto a não ser mental, mas a montagem, multiplica as possibilidades de relação entre cada trabalho, e acentua o pressuposto de espantoso caminho que se deixa perturbar pelo modo como o vemos, enfrentamos, tocamos. Quanto se esconde nesta luz capturada a grafite, lápis de cor e tempo? Foi, por um conjunto de circunstâncias, práticas e de força maior, a mais turbulenta de quantas por aqui montámos. Como se a linha de terra, eixo de todas as projecções, insistisse em transfigurar-se linha de água.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasO gato chamado paradoxo [dropcap]C[/dropcap]hegar a casa com a paradoxal exaustão de sentir que o dia foi demais e no entanto dizer para comigo se só isto, afinal. Sem haver reserva de uma disposição em frente para algo mais. Que preencha como a água reaviva uma planta. No dia que acabou, por muito que o queira ainda lavar e estender. Nesse apenas que é demais. E que ainda sobrem horas a consumir uma chama fraca com medo de se apagar no escuro. Agora, só esta cada vez menos serena e ainda ilusoriamente longa noite. Mas ainda há que comer. Ainda há que dormir. Ainda há que encontrar uma nesga entreaberta em expectativa para o amanhã. Seguir. Sento-me à mesa onde sempre pode surgir alguma coisa emergente, urgência ou impulso a mobilar este espaço de caixa forte, em que me sinto a transbordar e de vazio também. As folhas ásperas e boas, ainda lisas numa realidade plana a que falta acrescentar camadas. Os pincéis, alguns despenteados, que lhes deu, por onde andaram, está vento… Olho para o lado da janela e secretamente endereço um convite. Vem. Senta-se bem na minha frente. Por empatia, chega aquele ponto, por isso paradoxal, da noite. Sereno pontuar da exactidão de estar. E de nem estar, nem não estar. Feliz. Uma ausência boa, de definição. Uma transitória indefinição que é sempre ponto de passagem e que é a noite. Mas sentámo-nos frente a frente e interrogamo-nos. Por isso gosto tanto da noite. Um espaço de parágrafo entre dias. Tive um gato chamado Feliz, e agora, um paradoxo chamado gato. E já não está, está no céu, o gato. Uma nuvem pequena e branca entre as outras. Mas também está e não está, porque sempre aparece a sua memória em fino papel de seda, colada a estes momentos de chegar e estar. Chego a ouvir, quando a memória está um pouco desprevenida e ausente, algo como o ruído quase imperceptível das patinhas no corredor. Era suave no caminhar, mas uma unha mais sonora a pontuar o soalho, denunciava-o. Às vezes oiço-o, essa pequena memória encavalitada num qualquer ruído outro, no andar de cima ou no debaixo. Distraída acredito, mas por um ínfimo farrapo de tempo que logo se instala no saber que não vem. E é nessa pequena porção em que o meu tempo se distrai, que ele está e não está. Uma visita curta e doce. Como o gato de Schrödinger. Que nem está nem deixa de estar. Mas enquanto não haja demonstração maior. Está e não está. No interior secreto da caixa. Ambos os estados que, noutras circunstâncias dos dias, se excluem mutuamente. Mas não neste momento pendente sobre um amanhã ainda não anunciado. Gato de Schrödinger, não se sabendo o nome, ao bicho, chama-se-lhe paradoxo – o meu chamava-se Feliz – é a experiência intelectual de que aquilo que tem a possibilidade de ser no momento, uma coisa e o seu contrário, é uma coisa e o seu contrário. Quando é possível de verificar, deixa de existir como tal e passa a ser uma coisa ou o seu contrário. Estar presente ou ausente nesta imprecisão de lidar com as emoções na memória, com as expectativas no vazio da potencialidade do momento. Pequenas hipocrisias e grandes cobardias se expressam nesta não total ausência de poder. Como se do relativo ao absoluto, não fosse um passo. Realizar. Muito pior são aquelas questões em que se nos dispara aquele Mas. A palavra-território de todos os pequenos paradoxos diários enclausurados e domésticos, como bichos de casa a sonhar com o universo, vivido ou não, da selva. Pequenos deslumbramentos naturais que nos iludem, mas, desiludem. Esses perfumes cheios de clorofila em forma de folhas e de humidade em forma de mão. Tudo o que nos acende em profundidade até à completude de se ser quem se é em pleno redondo e absoluto ser. Todo o ser é redondo, sem picos agrestes e fissuras que ameacem fragmentar pelo meio, não geometricamente perfeito nem determinado. Mas um simples ali com se outro fosse. E poderia ser. Uma fractura na queda, ou uma quebra num impacto do ser contra o mundo, até mesmo pequenino, de um mau jeito um mau aroma e um mau viver de segundos. Mas. É a palavra que permite retrocesso no persistir errado, mesmo de acreditar. Um volte atrás enquanto é tempo. Mas. É o quebrar do absoluto arrogante. É o ter cuidado. A perplexidade do paradoxo felino. É o perscrutar sem opção uma janela do tempo e ainda assim a tempo voltar. Enquanto é tempo e o tempo for e deixar. Como o que podia ser mas não é. Esses são outros dias. E outros dias com um não sei quê de Sísifo. O quê de Sísifo. Não é mito. É metáfora. Aquela sensação de subir os dias a pique. E voltar ao sopé. Irremediável e repetida impressão de frustrante inutilidade de tudo o que a custo e de tudo o que com esperança. Também o tricot de Penélope a fazer estender o tempo para haver lugar à espera desejada. Os GIFS. Fujo de ficar presa. A ilustração nos tempos modernos do mito do malogrado e eterno Sísifo. Um disco de vinil riscado numa parte boa. Um soluço imparável. Uma queda que não termina ou se repete para sempre. O erro. Caminha-se eternamente sem chegar, cai-se para sempre caindo. São registos da persistência da memória no seu pior e mais aterrorizante feitio de eternidade. Têm vestígios de uma eternidade boa, por vezes, porque na hábil e contínua repetição, se pode ficar para sempre, como à beira de uma onda que nunca vem forte demais se for boa. O que tenho a oferecer (me), situa-se nos cúmulos. Das nuvens mutantes e migratórias, o cúmulo do desvelo e o cúmulo da tempestade. É assim. Nada de meios-termos, em geral, nas nuvens que me assolam o passo. Nada de meios-termos no que sinto, no que faço. Visão romântica da natureza em turbilhão e em mim. Mas às vezes, este conforto muito particular. Ser e não ser. Sem ser uma questão. Por momentos. Como o vício do claro-escuro. É quando prefiro este estar e não estar, que às vezes me acolhe como uma luva peluda e quente. Como um resto de verão. Um paradoxo chamado gato.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA barca do mundo [dropcap]C[/dropcap]lima e urgência para o debate no Mundo que neste instante reflecte o seu destino comum, um momento galvanizador da consciência da vida e das suas transformações a curto prazo geram uma emergente expressão de combate a muitas vozes. Estamos a criar uma consciência cósmica repentina, e já nem espaço há para o bucólico regresso às fontes de que nos fomos libertando pela conquista de um bem estar não menos comum. Os países pobres alertam-nos ainda mais a consciência pois eles são as primeiras vítimas deste desequilíbrio e os que mais padecem neste momento, é já da ordem das antigas epidemias, por ora, é o que vemos acontecer ano para ano, pois o tempo se estreita nas suas variantes e a matéria tem de reequilibrar a sua massa que esgotada parece estar, é um processo, e se reorganiza para estruturar um outro em plena continuidade de movimentos e imprevisíveis fenómenos que pode liquidar desde já populações inteiras. O momento em que vivemos estes diálogos estão bem longe das práticas militantes dos anos sessenta em que a fuga para a natureza representava o desabotoar das roupas para o torneio do nu em grandes descampados depois das vestes severas que os antecederam. A natureza como retábulo idílico era uma coisa aceite na vanguarda dos insurrectos que logo que a juventude passou vieram fazer as suas vidas no grande espectro liberal e por lá se mantiveram até ao grande Banquete de todas as formas de extorsão energética que a Terra dava de forma ilimitada, juntaram a isto as guerras e os interesses comerciais e fundaram novas elites; estávamos ainda a caminhar para o auge, o dia perfeito, a abundância de fluxo, hoje, porém, a dinamização juvenil não ergue essa bandeira, e há muito ( se é que alguma vez chegou a sê-lo) não traz no seu código nenhuma forma de epicurismo, antes pelo contrário, vem activa, receosa, grave: jamais vimos uma juventude tão protocolar, tão atenta, tão firme e consciente, parecendo que vêem mais longe que o momento agora com uma transparência que não conhecíamos. Estamos fustigados não só por ventos ciclónicos como o estamos também por discursos novos, condenatórios, arrepiantes, a que não valerá a pena ripostar com a esperança da vida curta que nos resta e a sobranceria dos códigos, e nessa frecha aberta como uma avalanche de abismos titubeamos de forma concertada, tendemos a consentir mas sem no fundo entendermos bem, pois que a nossa versão nos destinos do mundo foi exactamente a inversa – consentimento e regalias – e com tanta ambulância foi essa outrora juventude que se prolongou no engodo de que o mundo lhe pertencia, quem está agora a ser confrontada com uma velhice que não merece e a pesar as suas próprias práticas inconscientemente tão funestas. É um alarme e os sinos soam a rebate! Nem sempre o que estamos à espera vem exactamente do lado esperado, e uma das mais vitoriosas formas que a vida nos dá é a sua capacidade de surpreender-nos, julgamos a partir do tangível ter a resposta para a efeito, mas as causas não se dão para satisfazer a nossas aparentes infalibilidades, para dizer, que neste jogo dos imponderáveis o que se rompe são estruturas cujos desígnios também desconhecemos, não valendo a pena por isso falar de um amontoado de números de milhões e biliões, pois que um dos disfarces da ignorância é revestir-se de muito. O que está de facto no grande «Olho do Vulcão» é a nossa perspectiva face a um modus vivendi cuja condição indisfarçavelmente não dá respostas para a saída do Labirinto. E não vale a pena contestar as Vacas, os Touros, que o centro é Minotaurico e está ainda representado pela inacessibilidade. Seremos nós quem ruminamos agora com dentes feitos só para sorrir e uma estrutura física desadequada para atravessar o estertor desta futura dimensão desconhecida? Quem sabe, nunca as coisas foram tão inúteis e tão pesadas para manter viva uma certa noção de Humano. A vida não acaba, nem tão pouco acaba aqui, na luta com fenómenos extremos, que nós sempre fomos extremados e continuamos sendo essa massa poderosa em expansão onde o paternalismo das hostes arranja sempre maneira de sustentar a sua ordem, mas agora, neste labirinto um tanto inefável, digamos, passando pelos que desistem do sexo com que nasceram para o transformar no outro, talvez nem valha a pena tanto dano uma vez que se pode ser andrógino no corpo nascido, isto apenas para dizer que poderemos adaptarmo-nos a severas mudanças a partir de órgãos novos e adaptações não sonhadas. Mas, e aqui está a dúvida: seremos ainda nós nessas formas de adaptação, ou seremos outros, na base deste longo ensaio? Estas questões só podem ser consentidas quando o medo da morte se dissipar, dado que também já não estamos longe de deslindar esse quase eterno sufoco acerca da brevidade da vida. Por isso, e para que não nos pese a vida mais, será preciso atender ao novo dela, ou estaremos irreconhecivelmente envelhecidos para responder para o que as nossas vidas servem. Ela servirá para viver, sem dúvida, mas todas as vidas estão subordinadas ao mesmo estatuto, e a nossa não será a mais consentânea sequer com as suas leis; que nos crescesse de repente uma certa compaixão por ela enquanto todo só abona a nosso favor pois que abarcamos nesta Arca todos aqueles que vão connosco. É tarde demais para glossários, de facto, estremecem os dias, e as nossas vidas terão de ser conduzidas pelas vozes dos Vindouros, esses, que nem sabemos bem quem são, tão atrapalhados nos tornámos com as competências e as fomes eternas. São as «Novas Epístolas aos Vindouros» e nós estaremos com eles, ou eles seguirão sozinhos e tão conscientes, que perderemos o melhor da nossa missão. Pensai que à doce Mística opusemos a acre e fria dialéctica E varremos a nobre Metafísica com a vassoura da Economia Que na ânsia pueril de termos tudo, reduzimos as dúvidas pretéritas – Angustiosas mas fecundas, a certeza do nada. … e empalhámos todas as formas vivas desde o coito à poesia… … desta época atroz da infância das técnicas… Orai por nós, orai por nós «Epístolas aos Vindouros» Carlos Queiroz
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasViver nos funerais [dropcap]D[/dropcap]enilson vivia nos funerais. Todos os dias lia os obituários dos jornais da cidade e dirigia-se aos lugares de culto, últimas homenagens ao morto, entregando frases de efeito em pequenos papéis, que ele mesmo escrevia. Eram frases como aquelas que vemos hoje nas redes sociais, com o objectivo de trazer conforto aos sobreviventes. Depois, no final, passava de novo com um boné, recolhendo algumas moedas que as pessoas lhe davam. Algumas delas, tão emocionadas com a frase que lhe tinha calhado, e por entre lágrimas e reconhecimento, acrescentavam ao gesto uma nota mais gorda, deixando escapar a Denilson um agradecimento mais efusivo. Invariavelmente, ao fim do dia sentava-se nas cadeiras de plástico da roulotte da Samira, no bairro onde vivia, pedia dois pastel e uma cerveja com camisinha, e ali ficava deitando conversa fora com a dona da negócio. Quando Samira lhe perguntou se não batia uma tristeza, estar sempre em contacto com o desespero dos vivos à beira dos mortos, Denilson respondeu que não. “E depois tem desespero e desespero, nê! Um funeral de criança tem sempre mais comoção.” Mas ainda assim, Denilson tirava de letra, estava imune à tristeza. Na verdade, contou a Samira que “Sempre tive uma alegria estranha nos funerais, que não sei bem explicar. Desde criança. Nunca soube explicar, mas acho que é de saber que eu vou continuar aqui. De não ser eu que morro, entende? Nunca pensei muito nisso. Mas funeral me dá muita satisfação.” Samira largou um “eu, hem!” de desagrado e incompreensão e Denilson continuou bebendo a sua cerveja. Apareceu mais um cliente de pastel rápido e “refri”, que Samira atendeu, sem conseguir afastar da cabeça as palavras do amigo. Parecia macabro. Morte é coisa sagrada. E Denilson parecia brincar com isso, não tinha esse direito. Não estava certo ganhar a vida com a tristeza dos outros e ainda se alegrar com isso. Mas para Denilson, importante era encontrar um modo de pagar a vida. E, no caso dele, pagava a vida e ainda ganhava de brinde satisfação. E ele tinha culpa, se tinha prazer de sobreviver aos que morriam? Não pensava muito mais nisso, e embrenhava-se em mais frases de efeito que escrevia para comover os sobreviventes, de modo a darem-lhe uns trocos com que pudesse comer. Ninguém sabe por que aqui anda, nem para onde vai quando morre, por conseguinte temos de ter proveito do tempo em que cá estamos. Viver nos funerais era, para Denilson, o que é para a maioria das pessoas uma vitória pessoal. Todos os dias se levantava para sentir esse frémito de sobreviver àqueles que jaziam no caixão entre as lágrimas dos outros. Não fazia mal a ninguém e havia modos muito piores de se ganhar a vida.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasInaugurado restauro da Sala D. João IV do Palácio da Ajuda [dropcap]F[/dropcap]oi inaugurada no passado dia 9 de Novembro a Sala D. João IV no Palácio Nacional da Ajuda (PNA), após 18 meses de obras no valor de 260.587 euros, patrocinadas pela Fundação Millennium BCP. A cerimónia foi presidida por Marcelo Rebelo de Sousa, na qual usaram também da palavra, antes do Presidente da República Portuguesa, o Director do PNA, José Alberto Ribeiro, a Directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, o Presidente da Fundação Millennium BCP, António Monteiro, e a Ministra da Cultura, Graça Fonseca. O restauro devolveu a autenticidade integral a uma sala do tempo do Rei D. João VI (1767-1826), uma das maiores do ex-palácio real, com 170m2, situada no piso nobre do edifício, uma das “salas de aparato” onde se realizavam diferentes cerimónias. Totalmente revestida a pintura, a das paredes é atribuída ao “pintor do rei”, José da Cunha Taborda (1766-1836), enquanto a do tecto é da autoria do famoso pintor Domingos Sequeira (1768-1837). Ambas as pinturas foram executadas, com toda a probabilidade, em 1823. Taborda, na parede poente, retrata o “Acto do Juramento Solene de D. João IV”, ocorrido a 15 de Dezembro de 1640 e, nas restantes, coloca uma atenta assistência, constituída pela pequena nobreza, burguesia e povo. A obra de Sequeira para o tecto reproduz a “Alegoria da Justiça e da Concórdia”, tela pintada em Roma, em 1794. No centro, o artista pintou a Justiça e a Sabedoria abraçadas, tendo por perto um génio exibindo uma cadeia quebrada. À direita, a Pátria e o Génio Tutelar do Reino repelem duas criaturas maléficas. Para o director do PNA, José Alberto Ribeiro, é evidente a associação que se pretendeu fazer entre a libertação e restauração da Pátria em 1640, levada a cabo por João IV, e a acção igualmente libertadora de D. João VI, cerca de século e meio depois, mas agora em relação aos franceses. As tropas francesas invadiram Portugal entre 1807 e 1811, quando foram repelidas por um exército luso-inglês. Na opinião de José Alberto Ribeiro, a pintura de Domingos Sequeira visa “relevar os méritos da Dinastia [de Bragança] evocando o [seu] iniciador e representante ao tempo da construção do palácio real; e a ideia da libertação, da quebra da cadeia opressora, está sempre na base do nascer de uma nova era para Portugal”. O Palácio da Ajuda foi residência régia até 1910, tendo sido sua última ocupante a rainha D. Maria Pia de Sabóia (1847-1911), avó de D. Manuel II (1889-1932), último rei de Portugal. A soberana foi também quem mais se empenhou na decoração do palácio e a quem se devem as suas colecções de arte e as grandes encomendas de pratas. A construção do Palácio da Ajuda, situado no alto da colina da Ajuda e com uma soberba vista sobre o Tejo, iniciou-se em 1796, por ordem do Príncipe D. João (futuro rei D. João VI). Depois do terramoto de 1755, a família real tinha-se mudado para a zona da Ajuda, onde os terrenos eram mais seguros, habitando o Paço Real, um edifício em madeira, também conhecido como Barraca Real. Em 1794, um incêndio acidental destruiu esta habitação e surgiu a necessidade de construir novos aposentos reais, desta vez edificados em pedra e cal. O projecto barroco original foi iniciado por Manuel Caetano de Sousa, arquitecto das Obras Públicas. Posteriormente, e depois de uma paragem de 5 anos, a grandiosa obra é retomada pelos arquitectos Francisco Xavier Fabri e José da Costa e Silva, com um novo projecto de inspiração neoclássica, contando com a ajuda de outros artistas, nacionais e internacionais. O que se vê hoje não representa o ambicioso projecto inicial, que contemplava a construção de um dos maiores palácios da Europa, com jardins a perder de vista. A obra não se concretizou porque a família real partiu para o Brasil, em 1807, devido às invasões francesas, e ficaria mesmo inacabada. O Palácio, recorde-se, encontra-se a sofrer profundas obras de requalificação, tendo por objectivo concluir a fachada poente do edifico, um projecto do arquitecto João Carlos Santos, ala do imóvel que nunca foi acabada e que acolherá o Museu da Jóias da Coroa. É nessa ala que vai ficar instalada a Exposição Permanente do Tesouro Real, com milhares de jóias da coroa portuguesa e tesouros da Casa Real. O museu vai ter ainda objectos de prata e elementos decorativos, documentos e peças de iconografia. O investimento total é de cerca de 21 milhões de euros e está a ser financiado pelo Ministério da Cultura, Associação do Turismo de Lisboa e pelos fundos da taxa turística cobrada na cidade. Mais de 200 anos depois, o Palácio Nacional da Ajuda vai, assim, finalmente ficar completo. Prevê-se que as obras que começaram em Fevereiro deste ano irão terminar em 2020.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasFortificações de Coloane A construção de linhas defensivas integradas no Plano de Defesa de Macau (península e ilhas) começou a ser feita a partir de 1950, depois da derrota dos nacionalistas e consequente implantação da República Popular da China, em 1 de Outubro de 1949. [dropcap]N[/dropcap]a ilha de Coloane, o abrigo para armas automáticas, que se encontra num terreno junto à povoação de Lai Chi Vun, data de 1956, tendo sido construído pela Companhia de Engenharia do Comando Militar de Macau. A sua construção era uma das exigências formuladas pelo denominado “Plano de Defesa da Ilha de Coloane”, posto em marcha em finais de 1955, embora aquela construção não tenha sido a única fortificação construída no âmbito daquele Plano de Defesa, pois outras obras foram realizadas naquela ilha. No entanto, para se entenderem as razões da existência de fortificações em Coloane, é necessário contextualizar a sua construção face aos acontecimentos políticos e à realidade da guarnição militar de Macau, na altura em que foram construídas. O início da década de 50 foi bastante conturbado para a situação geopolítica de Macau e da administração portuguesa no território. Em 1949, a evolução política e militar significou um aproximar vertiginoso a Macau da renascida guerra civil chinesa, que varria o país desde o final do conflito com o Império Japonês. A retirada desordenada do exército de Chiang Kai-shek causou muitos calafrios em Macau, à medida que as forças nacionalistas eram repelidas para sul e o conflito se aproximava de Macau. O território viveu momentos extremamente tensos, durante as primeiras semanas de Novembro de 1949, receando-se que os excitados e indisciplinados soldados nacionalistas fizessem pilhagens em Macau, tal como tinham feito nos arredores da cidade de Cantão, aquando da sua retirada, em direcção ao arquipélago dos Ladrões (também conhecido por Wanshan). Nos anos seguintes, registaram-se múltiplos incidentes e escaramuças entre as forças militares portuguesas e chinesas, quer nacionalistas, quer comunistas. Todavia, estes momentos tensos deviam-se, na sua maior parte, a precipitações associadas ao conflito interno chinês, raramente em confronto planeado com as forças militares portuguesas. É apropriado referir que os militares portugueses eram, inusitadamente, “caught in the middle” (apanhados no meio). Os apelos do Governador Albano de Oliveira para o reforço da guarnição militar de Macau surtiram efeitos, logo em inícios de 1949, tendo os efectivos do Comando Militar de Macau atingido números nunca antes vistos. Paralelamente, era formulado na Metrópole o “Plano de Defesa da Província de Macau”, de 26 de Maio de 1949, que seria posteriormente adaptado às capacidades reais da província e às suas necessidades defensivas. É sabido que, nessa altura, os efectivos colocados neste exíguo território atingiram quase 3.900 homens, mas é importante referir também o facto de o Comando Militar ter continuado a manter uma significativa guarnição, durante os anos 50 do século XX. O máximo de soldados estacionados em Macau foi registado entre Setembro de 1949 e Março de 1950, sendo reduzido depois para cerca de 3.200 e, finalmente, em Agosto de 1951, os quadros orgânicos do Comando Militar de Macau registavam um efectivo de 3.000 soldados. Este quadro orgânico manteve-se relativamente estável até 1957, tendo a guarnição permanecido com um efectivo reforçado, considerado necessário para cumprir as missões de “defender, aos olhos do País e em face da história, a Honra Nacional”. Os acontecimentos da década de 50 serviram de justificação para este estado de guarnição reforçada. Coloane também testemunhou momentos muito tensos, tendo a guarnição da ilha ocupado posições de combate múltiplas vezes, no início da década de 50. Ao contrário do que indicavam as bases do Plano de Defesa de Macau, em Coloane não estavam apenas forças policiais, já que, com aprovação da Metrópole, a ilha foi ocupada por uma força substancial de tropas. Em 1955, quando se formulou o Plano de Defesa da Ilha de Coloane, o efectivo de praças e oficiais colocados na ilha era de cerca de 400 elementos: o Comando do Batalhão de Caçadores, uma Companhia de Caçadores (em Ká-Hó) e uma Companhia Anti-Carro (na vila de Coloane). Quanto ao “Plano de Defesa da Província de Macau” de 1949, as suas bases apontavam para uma inequívoca necessidade de fortificar as posições das armas colectivas (metralhadoras ligeiras e pesadas, morteiros e artilharia), para ultrapassar as caraterísticas dos terrenos circundantes que se revelavam desvantajosos aos militares portugueses. A Companhia de Engenharia Expedicionária iria chegar em Setembro de 1949, no entanto, devido à falta de instalações e quartéis, os membros daquela unidade estiveram ocupados, durante quase dois anos, na montagem das conhecidas Barracas Metálicas (Mong-Há, Flora, Avenida do Coronel Mesquita). Em 1950, aquela companhia expedicionária apenas prestou auxílio nos trabalhos de fortificação efectuados em Coloane por uma das companhias destacadas de Angola que ali prestava serviço. Os trabalhos ao longo do litoral oeste de Coloane (sobretudo a meio da colina de Lai Chi Vun e no Monte de Artilharia) consistiram na extensão de trincheiras, alguns postos semi-permanentes para armas automáticas, feitos com sacos de areia e madeira, e espaldões camuflados para canhões anticarro de 57mm (nomenclatura, em inglês, Ordnance QF 6-pounder). Em Outubro de 1951, quando a Companhia de Engenharia Expedicionária foi rendida na sua totalidade pela Companhia de Engenharia, começaram então a ser feitos trabalhos de fortificação em larga escala, com diferentes fins e propósitos. Teve início aquilo a que se pode chamar a “fase de fortificação”. Ora, porque até 1955 maior atenção tinha sido dada à península de Macau e às suas necessidades defensivas, nesse mesmo ano as atenções começaram a virar-se para as ilhas da Taipa e Coloane. Foi assim dado corpo ao “Plano de Defesa da Ilha de Coloane”, partindo das necessidades consideradas prementes e indispensáveis para a devida defesa da ilha. Analisando a localização das unidades militares e das posições de combate chave, foram definidos naquele plano dois diferentes dispositivos de defesa. A primeira fase era entendida como uma “defesa periférica”, estando as unidades localizadas em posições junto à linha costeira e tendo como principal tarefa repelir qualquer tentativa de desembarque e evitar a transposição do canal entre Coloane e a ilha da Montanha. Para evitar a neutralização das posições ocupadas por metralhadoras pesadas, era necessário recorrer a uma fortificação permanente, capaz de resistir a projécteis de artilharia ligeira. Acrescia a isto a necessidade de construir três observatórios de betão armado para melhorar o sistema de vigilância e alerta, dando ao pessoal e ao material melhores condições para cumprirem esta missão. No total, foram construídos pela Companhia de Engenharia, na altura comandada pelo capitão de Engenharia, Manuel de Mesquita Borges, quatro abrigos para armas automáticas (metralhadoras ligeiras e pesadas) e dois postos de observação: A segunda fase do “Plano de Defesa da Ilha de Coloane” era denominada de “defesa concentrada”, isto é, em caso de acções exteriores que obrigassem à retirada das posições inicialmente ocupadas junto à linha costeira, a defesa de Coloane seria feita nas áreas montanhosas da ilha. Sendo assim, tendo as tropas que realizar a passagem de uma defesa periférica para concentrada sob pressão, devido à proximidade da ilha vizinha, apenas poderiam levar consigo equipamento e armamento portátil. É então considerada indispensável a existência de condições de vida no centro da ilha, de modo a que as unidades pudessem ter condições para aí se defenderem. A segunda fase do plano acarretaria, portanto, a construção de fortificações, postos de comando e de transmissões, paióis e depósitos para rações. Propunha-se no Plano, mais concretamente, o seguinte: “Assim, para que as tropas, primeiro empenhadas na defesa periférica, possam viver e combater no planalto central é preciso que quando nele entrarem já lá esteja tudo o que precisam e elas não podem transportar: os morteiros, as munições de todas as armas para um combate prolongado, víveres e água suficientes para alguns dias. A única forma de tal se conseguir é manter, permanentemente, tudo no planalto”. No entanto, nenhuma das estruturas consideradas na segunda fase do plano foi, na realidade, construída. Isto porque, em 1957, houve uma reorganização do Comando Militar de Macau, resultando numa redução de efectivos. Para além de serem mandados recolher um dos Batalhões de Caçadores e da Bateria Anti-Aérea 7,5cm, também a Companhia de Engenharia foi mandada regressar à Metrópole, apesar dos vários pedidos do Chefe do Estado-Maior, major António Lopes dos Santos, para adiar ou reformular tais recomendações. Argumentava Lopes dos Santos a imperiosa necessidade de deixar a Companhia de Engenharia prosseguir com os seus trabalhos de fortificação, acabando as ordens superiores por não o autorizar. Deste modo, a segunda fase do “Plano de Defesa da Ilha de Coloane” nunca foi uma realidade, apenas existindo no papel. A primeira fase também não ficou concluída a 100%, sendo de crer que, com mais tempo, a Companhia de Engenharia teria possibilidade de construir mais abrigos (eram considerados necessários, no mínimo, seis) na zona costeira da ilha e inclusive um observatório no Alto de Coloane, que ficou por construir. Em relação às estruturas que foram erigidas em 1956 e 1957, em Coloane, é de crer que todas ainda existam. Os dois observatórios permanecem em boas condições, estando agora envoltos por uma densa mata florestal, em locais de acesso algo difícil. Em relação aos abrigos, um deles é bem conhecido do público, tendo sido tema central de uma das investigações efectuadas pelo CCAC: o abrigo CA-195, junto da povoação de Lai Chi Vun. Mais a sul, junto ao Posto de Artilharia, o abrigo CA-197 apresenta intactas as características originais de parecença com uma moradia (inclusive numa das laterais do abrigo há equipamentos para cozinhar comida ao ar livre), pois foi construído de tal forma que a sua natureza militar pudesse ser dissimulada e iludir quem o visse. Os abrigos CA-196 e CA-198, devido à sua localização, colocam sérios entraves à sua análise: falta de manutenção de antigos caminhos de pé posto militares, a muito densa mata florestal e o desnível acentuado das encostas onde se encontram. É assim difícil determinar o seu exacto lugar, sendo dada uma sugestão da sua possível localização. No entanto, é necessário salientar, novamente, que carecem de devida análise, permanecendo incerto, por isso, o seu actual estado. * Ex-assistente de investigação, Instituto de Ciências e Ambiente, Universidade de S. José. Agradeço ao meu tio, Aníbal Mesquita Borges, as achegas dadas para publicação deste artigo
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasMacau e o âmbar cinzento [dropcap]A[/dropcap]s contradições encontradas nos registos escritos dos primeiros tempos da povoação de Macau levantaram problemas aos historiadores, cuja clarificação tem vindo a ser feita pelo acesso às fontes chinesas e com essa preciosa ajuda, agora através da comparação de documentos, se vai tornando a História mais clara. A primeira questão, rapidamente resolvida pelo confrontar as fontes portuguesas com as chinesas, foi a de Macau ser ou não habitada aquando da chegada dos portugueses. Essa dúvida encontra-se actualmente no plano de quantos aglomerados existiam então, se dois, povoação de Monghá e a nas proximidades do Templo de A-Má, ou três, pois sobre Patane restam ainda dúvidas ter sido construída antes, ou criada com a chegada dos portugueses devido a ser o local onde existia água potável para as naus fazerem aguada. Outra questão está na data em que os portugueses passaram a construir com tijolos as suas casas, havendo informações a referir existirem essas habitações pouco depois de 1557, enquanto outras dizem serem todas elas construídas de palha ainda em 1565. Já a razão de os portugueses poderem ficar a residir na península de Macau e se havia conhecimento de tal na corte imperial, foi através do estudo de dois historiadores chineses, Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, encontrada uma resposta até então nunca sugerida, mas plausível perante a documentação apresentada. Para além da explicação de não ter sido a ajuda dada pelos portugueses com as suas armas aos chineses contra os piratas, nem o suborno aos mandarins, que não era senão presentes habitualmente oferecidos como cortesia, apontaram como mais relevante um novo dado, o âmbar que os imperadores da Dinastia Ming ansiosamente procuravam ter como meio para ampliar a prole e conseguir ter suficientes descendentes para perpetuar a casa real e a dinastia. Conhecido pelos portugueses por âmbar cru, ou âmbar cinzento, nome proveniente do árabe alambre e longxianxiang na China, aí considerado um afrodisíaco, apesar de ser usado nos seus lugares de origem, Ásia Ocidental, África Oriental e Índico, como incenso, material de construção e betume para embarcações. A primeira referência chinesa é do período da Dinastia Tang (618-907), quando se diz ter o país de Bobali (actual Somália) “amoxiang (阿末香), transcrição fonética do árabe âmbar, que quer dizer cachalote e, por extensão, o âmbar-cinzento que se cria dentro deste mamífero.” A Dinastia Song do Norte (960-1127) recebia âmbar-cinzento como tributo, sendo um objecto de decoração pessoal, além de usado como incenso e para a produção de velas. Su Dongpo faz-lhe referência num seu poema. O nome chinês para âmbar cinzento é longxianxiang (龙涎香), que “resulta duma tradução semântica, baseada na lenda das babas do dragão marítimo” e só a partir da Dinastia Ming (1368-1644) se começou a dar-lhe um uso medicinal. A China deixara em 1433 de navegar pelo Oceano Índico, local de proveniência do âmbar cinzento, mas a sua feitoria de Malaca foi adquirindo o produto aos mercadores muçulmanos até os portugueses conquistarem esse porto em 1511. Afrodisíaco âmbar cinzento As informações que se seguem provêm de Wu Zhiliang e Jin Guo Ping. A 17 de Setembro de 1554, “um decreto imperial foi mandado ao Ministério da Fazenda Pública para a compra do âmbar-cinzento destinado à preparação do afrodisíaco para o Imperador Jiajing, a fim de que ele pudesse desfrutar as 800 donzelas seleccionadas em 1552. O âmbar-cinzento era um artigo importado e só podia ser obtido através do comércio externo. Devido à rígida proibição marítima, a sua obtenção não era certamente uma tarefa fácil. Nessa altura, os Portugueses navegavam pelo Oceano Índico e pelo mar do Sul da China fora. Por dominarem o comércio entre o Ocidente e o Oriente, eram certamente os melhores agentes para trazerem o âmbar-cinzento. Daí a ligação histórica entre os barcos forasteiros que entravam em Macau em 1553 e a procura do âmbar-cinzento.” “No 34.º ano (1555), o xun fu (governador civil de Guangdong) convocou à sua repartição, mediante um ofício, entre outros comerciantes do distrito de Fuliang (hoje Jingdezhen), Wang Hong e incumbiu o gangji (agente oficial nomeado pelo governo para tomar conta dos comerciantes estrangeiros) He Chude de os levar aos barcos dos bárbaros para comprar o âmbar-cinzento. Conseguiram sucessivamente um total de onze taéis”, segundo Wu Zhiliang, que complementa, “A quantia solicitada pela corte por um decreto imperial ascendia a uma centena de cates e aqueles onze taéis conseguidos estavam muito longe de poderem cumprir a meta estabelecida. Talvez precisamente por esta razão se foi afrouxando o controlo sobre os Portugueses a fim de ver aumentadas as possibilidades da obtenção do âmbar-cinzento.” Terá sido por isso que em 1554 o haidao fushi Wang Bo deu autorização a Leonel de Sousa para os portugueses se instalarem em Haojing. “Wang Bo tivera a felicidade de ver a sua carreira bem sucedida graças ao mérito de ter conseguido o que a corte precisava em matéria de incensos e perfumes” e por isso em 1557 foi promovido a desembargador provincial de Guangdong. Em 1555 foram seleccionadas mais 180 raparigas para o Imperador Jiajing e a necessidade dos afrodisíacos tornou-se mais premente. Nesse ano “foi ordenado ao Ministério das Fazendas a procura e a compra de 100 cates (50 quilogramas) de âmbar-cinzento. Não se conseguiu nenhuma quantidade dentro da Capital Imperial. Mais tarde foram dadas ordens ao tesoureiro provincial de Guangdong para que tentasse adquirir este produto. Ofereceram-se 1200 taéis por um cate (vinte onças, por 1500 cruzados) e o “Imperador Jiajing, desesperado, em relação ao preço que ia oferecer, ordenou: . Conseguiram-se apenas onze mazes [equivalente a meio quilo] que foram mandados à Capital Imperial… Foram assim dadas novas ordens ao Ministério das Fazendas para que destacasse um enviado especial para os lugares com contactos com os bárbaros do litoral a fim de, com todos os recursos, procurar e comprar este produto para a corte.” Em 1555 Belchior Nunes Barreto S.J. vai a Cantão para resgatar alguns cristãos ali presos e melhor que prata como moeda levou âmbar cinzento. Na opinião de Jin Guo Ping, o Imperador sabia da presença portuguesa em Macau, porque mandava lá procurar o apetecido produto e a ajuda contra os “piratas era um dos deveres que os Portugueses deviam cumprir como uma das contrapartidas do uso das terras de Macau.” Refere Beatriz Basto da Silva, “De certo o Haidão Wang Bai não deve ser levianamente acusado de corrupção nem como autor da aceitação dos portugueses em Macau à revelia da hierarquia até Pequim. Macau pode ter nascido por decreto do Imperador Jianping (1522-1566) ávido pela busca da longevidade!” Ficou assim desvendada a principal razão para a aceitação dos portugueses em Macau.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasUm sopro de maldição [dropcap]I[/dropcap]sto é matéria propícia à criação de maldições, coisa que rapidamente degenera em lendas e outras mistificações. Pegue-se então nela com pinças e proceda-se com cautela. Em formato digital e à hora que se quiser, de modo tão portátil e propínquo estamos capazes de aceder ao som e à fúria da tragédia que não se faz necessário retrocedermos aos alvores da Guerra de Tróia, aos massacres de Shakespeare ou às exorbitâncias épicas de Wagner para nos entregarmos às volúptias da melancolia oferecidas pelo lamentoso espectáculo da morte dos heróis. Tomem-se por heróis aqueles tais a quem os deuses, depois de lhes infundirem o dom de um talento sobrenatural e de lhes deferirem oportunidade e rasgo para com ele nos extasiarem, prematura e perversamente lhes cortaram o cordão da vida. Sendo assim o jazz é um campo de mártires onde florescem tantas papoilas quantas as que recordam os sucumbidos nas tragédias antigas e delas parece ter assimilado o tipo. E se o observarmos em pormenor, será na fileira dos trompetistas que com mais inclemência enegreceram as sombras do fatalismo. Ascendido hoje à categoria de imortal, Miles Davis teve o privilégio existencial de se confirmar e ainda de se consagrar em vida. Contudo este seu triunfo, que nem uma polegada desmerece do génio, é assombrado pelos fantasmas de dois contendores, que num período decisivo lhe disputaram a primazia e talvez pudessem ter arrastado consigo a história do jazz por outra vertente. Deles remanesceu uma aura e o vislumbre do que poderiam ter alcançado se tempo lhes fosse dado para singrarem ao longo das cordilheiras donde se avistavam novos horizontes. O mais relembrado destes imagináveis rivais de Miles foi Clifford Brown. Este virtuoso, capaz de fazer do trompete o que queria, modulou um estilo que sem apagar as labaredas do bebop dominou-lhe as chamas, de modo a que não soltasse indiscriminadamente chispas em todas as direcções. Virtuoso era também Brown nos costumes: não bebia, menos se drogava, abstinha-se de correr atrás do primeiro rabo de saias. Nada disto o poupou aos azares que infestam o jazz; morreu em 1956 numa noite de chuva na berma da estrada. Tinha 25 anos. Mas outro trompetista, muito menos recordado, um que precedeu Miles e foi mentor de Clifford Brown, tivesse impossivelmente sobrevivido à sua existência kamikase e sabe-se lá que outras constelações não se haveriam desenhado no céu do jazz. Para dar conta dele há que recuar um passo no tempo, porque umas histórias começam sempre dentro e outras. O que em tão pouco tempo e tão jovem Dizzy Gillespie derrubou e ergueu, esse ferocíssimo bebop, de tal modo era inovador e intenso que desde logo deu a impressão de o jazz se ter completado e nada mais ficaria por cantar. Isto nos alvores da década de 40 ao tempo em que as cidades europeias submergiam em fogo e morte. Na cola dele Miles hesitou um bom par de anos quanto ao rumo a tomar, desconfortável com as precipitações e velocidades que Dizzy imprimira e fizera norma, sem vontade de se enredar naquelas brenhas sonoras onde não floresceria mais do que como epígono. Mas era o período que não consentia entretantos e na alcateia do jazz jovens lobos estavam sempre dispostos a pugnar com o alfa. De modo que o próprio Dizzy teve que se haver com o ímpeto de Fats Navarro (nada a ver…) e com a influência que imprimia na promitente geração. Com um pé ainda no swing das big bands e outro na insurreição do bebop Navarro ia deixando pegadas fundas à sua passagem. Foi solista nos melhores momentos das orquestras em que participou; ombreou enquanto parceiro com músicos suficientemente firmes, que não temerem a sua veemência capaz de roubar o protagonismo. Embora não faltem vestígios do seu génio o que Fats Navarro fez muito pouco foi gravar em nome pessoal. Se a sua vida era um turbilhão de ruindades e distúrbios como poderia a sua carreira ter algum norte? Tivesse-o conseguido com duração e consistência e nada do que sucedeu à sua prematura extinção em 1950 aos 26 anos de idade seria como veio a ser. O futuro como se sabe não existe. O que fica dele são as promessas que deixou no passado. Tantas delas não tendo sido cumpridas permitem-nos augurar futuros possíveis e diferentes para os passados que nos chegaram.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasPasto para o bicho [dropcap]H[/dropcap]á vários tipos de cegueiras e talvez a mais perigosa seja aquela em que não só um sujeito pensa que vê como acredita que está no ponto mais adequado para dar conta do que se passa. Esta é a terrível cegueira que, em graus distintos, nos afecta a todos. Contra mim falo. A internet transformou o mundo assíncrono e exótico do século passado num espectáculo incessante de simultaneidade e uniformidade, de tal modo que tudo quanto nos surge nas mais diversas plataformas onde voluntaria ou involuntariamente somos expostos a informação nos parece mais ou menos compreensível. A globalização e a informação instantânea operaram uma lenta mas inexorável desexotificação do mundo. Tirando locais excepcionalmente remotos – não tanto a nível geográfico, mas sobretudo a nível da presença das múltiplas formas de redes de comunicação imediata – tudo nos parece mais ou menos igual, mais ou menos previsível, mais ou menos compreensível, seja um desastre nuclear no Japão, uma perseguição de cariz étnico em Myanmar ou uma luta armada na América do Sul. Parece que está tudo aqui ao lado, a decorrer no quintal da nossa vasta argúcia. Temos um ponto de vista essencialmente preguiçoso, como dizia Nietzsche, dado que funciona no modo da abreviatura, focando-se de modo muito mais agudo naquilo que realidades muito diversas têm de comum e sendo bastante mais permissivo em relação às diferenças que apresentam. Dir-se-á que é uma questão de sobrevivência. Somos animais, pelo que o processo de categorização, por muito atabalhoado que seja, é uma das formas mais eficazes que temos de mapear o nosso millieu e os perigos que nele podem ocorrer. O problema é quando desatentos ao laxismo constitutivo no nosso ponto de vista nos deixamos enredar numa pseudo-compreensão da realidade nas suas múltiplas iterações, tomando as notas comuns pelo essencial e as diferenças pelo acessório. É assim que cresce, obscenamente, o especialista instantâneo que cada um alimenta dentro de si. O mais interessante é que esta criatura viciada numa compreensão tão superficial como automática das coisas não perde força quando confrontada com os inúmeros erros de análise que produz. Ela própria acaba por ler esses erros pela óptica do fundamental e do detalhe: enganei-me, sim, mas são erros no âmbito do acessório. O essencial, esse, está perfeitamente dominado. Reconhecem este animal? Das caixas de comentários? Dos artigos de opinião? Das conversas de café? Do espelho? Ele está em todo o lado. Ao invés das beatificadas técnicas de mindfullness e de pensamento positivo, que mais não são do que a inversão do ónus da prova em relação às causas dos nossos destinos tremendamente minúsculos (se não és feliz ou bem-sucedido é porque não estás a querer sê-lo verdadeira ou suficientemente), devíamos ter muito cuidado com o pasto que damos a esta criatura para que não cresça para além da dimensão em que é verdadeiramente útil, sob pena de nos atermos de forma permanente a um modo de pensar rudimentar, infantil e, sobretudo, tremendamente erróneo.
admin h | Artes, Letras e IdeiasHomem das cavernas [dropcap]C[/dropcap]omeçávamos a beber logo pela manhã. Dormíamos com uma garrafa ao pé da cama e a primeira coisa que fazíamos ao acordar, à medida que abríamos os olhos, era pegar nela e levá-la à boca, como o bebé faz para encontrar a mama da mãe depois de uma noite agitada, às cegas vai tacteando com os lábios até encontrar o gargalo. Era exactamente assim, mas um pouco ao contrário. Antes que a consciência chegasse, optava-se vigorosamente pela inconsciência, corrida de arranque e pura velocidade para ver quem chega primeiro à meta, cruzam-se em algum lado do corpo e talvez pisquem os olhos. Eu sei que será difícil perceber, mas também não posso explicá-lo de outro modo. Até agora o meu lado inerte e espontâneo tem ganho sempre e espero manter essa hierarquia intacta. Quanto ao que estava dentro da garrafa, não é o mais importante. Vodka, uísque, vinho. Algum licor, os restos de um litro de cerveja. Por vezes, absinto ou tequila, para o choque frontal e sangria do espírito. A receita era a mesma: esquecer o dia que nascia com indiferença e que a cada trago se dissipava dentro de nós. Não falávamos, o limite era o olhar cúmplice ao espelho, como quem acabou de comprar bilhete para o comboio e corre para entrar na primeira carruagem, já em movimento. Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos. Não existia ressaca porque a substituíamos sempre por nova rodada. As árvores a passarem lá fora, o balanço do vagão a embalar-nos o esquecimento com que se ocupava o viver e o hábito, enquanto o ferro gravava o caminho. Viajávamos quase sempre em pé, no chocalhar do abalo a bebida corria melhor, nem era preciso segurar o manípulo, acompanhávamos o ritmo dos carris até ao fim da linha. Balanço sem fim à vista. E pouca terra. Quando saíamos para a rua – temos sempre de atestar a adega em algum lugar, não é? – sentíamos as fisgas dos olhares que nos rodeavam, como quem diz: “Lá vem ele!” A todo o momento esperavam pela desgraça, que um eléctrico nos passasse por cima e desse cabo do nosso desejo. Que tropeçássemos no varandim da ponte ou simplesmente que desfalecêssemos ali mesmo, em plena calçada, desfazendo a dupla que afinal se engalfinhava dentro de um só corpo. Mas não, o amor aguentava-nos, o amor pela bebida, a manchar-nos a alma de manhã à noite. Sem variar, trazia mão amiga não para o abraço, mas para o empurrão, combustível para mais uma jornada que nos levava até ao apeadeiro seguinte. Com pouca terra. Até que apareceu a porta aberta. A luz a entrar. Anos fechado naquela complexidade existencial, podia finalmente sair. O caminho estava ali, delineado, a chamar-me; se escutasse com atenção diria que gritava pelo meu nome, para que lhe esticasse a mão. Apesar da derrota, o ser vigilante que a espaços sobrava cá dentro sempre desejara sair daquele covil, deixando a pele de cobra para trás. Mas agora que podia fazê-lo, hesitava. O que encontraria lá fora? Pensei que a janela de oportunidade não ia durar muito e não estaria aberta para sempre, nem sequer por uma mão cheia de minutos. A decisão teria de ser tomada naquele momento. A solidão era penosa. A vida que o álcool afogava invadia os dias e não deixava aperto para mais, tornando-a vazia para o contacto abissal do outro. A companhia era só o copo na mão. Não havia necessidade de reflexão. Se ainda sobrasse um pouco de lógica, a escolha era óbvia e estava tomada. Sentávamo-nos no bar e pedíamos o que houvesse de mais forte para amortecer os solavancos da viagem. O dia externo a levantar-se, imparável, sol a entrar pela janela, a garganta calejada e arranhada do álcool e de tudo o que o que tínhamos feito na noite anterior, que não nos lembrávamos. Despertara, foi isso, sem querer e sem plano. Palavras que desconhecia o significado esperavam do lado de lá do rebordo entreaberto. O limiar primário tinha agora uma fresta para o amanhã. E tanta ilação desnecessária quando devia apenas andar. “Anda!”, pediam as pernas, velejadas no ímpeto do sofrido de uma rotina desagregada e encolhida. Não ficava ninguém para trás, os anos passavam e a imaginação era o meu único segredo. E a fenestra, ali, a vivificar todas as minhas ausências. Iria encontrar o abraço, o sabor sonhado do beijo. “Vai!”, pedia-me o corpo. A soletrar a partida, passo a passo, percorrendo factos e seriedades. A caixa escura esventrada à luz universal. Floresta densa, estrelas e varandins, por onde se pode escorregar para o transeunte sedento aplaudir. “Lá vem ele!” Paisagens que dão nome aos sentimentos. Iluminação natural, uma cabine ampla e amortecida. Saía ou entrava? O motivo da dúvida obscurecia a evidência transformada em tentação. O fruto da árvore infinita, de múltiplos ramos, escolhas sem restrição, equações vorazes. E como era difícil a preferência, assim como era a extinção. Que ponto era aquele? Não tinha reparado nas tabuletas, o cobrador não viera picar o bilhete. Teria adormecido na viagem, parado no destino e sem saber voltara para a origem, para debicar a mama da mãe? Os solavancos, uma leve dor de cabeça que trazia o sintoma nunca vivido do rebentar da presença em bruto e não líquida. Sim, a vista dali era curta e sem pretensões. Era pouca, a terra. A vida era deglutida de uma só vez pela preguiça. Sombra nos tímpanos, tacto mórbido, idioma encortiçado. O esperado ocorria entre os limites mais rasteiros e o despertar não trazia vantagem. No dia não se via o céu. Inverno. Verão. Era igual. Já nem o frio se sentia, quanto mais o calor. A capacidade vestia a definição, não se movia, não iluminava. Alambiques, tonéis, dornas. Definido em centilitros e copos de dois dedos, o alimento era a suficiência. O tempo, a chegada. “Sair?” A dúvida a anoitecer e a abrir a cama. “É isso que tu queres?”, falava o corpo, falava o vício. A porta escolhida na calha da resolução, quadrada, despida. A mente não ordenava, a estática sofria por ficar. A mudança desconhecida penetrava na inexatidão, amortecendo a humanidade e devolvendo o futuro. Para quê sair se cá dentro existia todo o universo, lá fora haverá alguém? Haverá mundo? Não há, com certeza.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRegressar a quê 20/11/2019: sete da manhã [dropcap]D[/dropcap]efinitivamente, em Moçambique não se deseja a visita do estrangeiro. Há um ano e picos, um paquete atracou a duzentos metros de Maputo e cerca de 500 turistas pediram vistos para visitar a cidade. Sem explicação, foram corridos com uma nega, e assim se impediu também que o comércio local tivesse um dia mais feliz. Autorizar que tantos estrangeiros, de uma vez só, se inteirassem sobre a floração vermelha das acácias, a escassez do comércio, os escaninhos, as grades, e as capulanas made in Taiwan da cidade, não interessava às autoridades; menos ainda que os turistas solteiros alegrassem as putas da ex-rua Araújo. Maputo é uma bela e pacata cidade, apesar da decadência, assim classificada por um amigo meu que chegou com a mulher de jipe, desde o Cairo, depois de ter atravessado África inteira: mas isto é Paris, é aqui que ficamos! Tem, portanto, algum encanto. Mas as autoridades detestam as brisas do cosmopolitismo, mesmo que com prejuízo do turismo. É uma das coisas que explica o absurdo de se ter aumentado os vistos de visita ao país para 200 euros – isto depois da solidariedade internacional que o país recebeu por causa do Ciclone Idai, que devastou um terço do país. A minha filha mais velha, para me visitar, tem de escolher entre comprar um pacote de uma semana de visita a Puerto Rico, para ela, marido e filhos, por mil euros, ou vir a Moçambique gastar oitocentos euros só nos vistos de entrada. É isto que me vem ao sair do avião e ao entrar na sala de controle das entradas no país, onde se têm de preencher formulários à mão com a mesma exacta informação que depois ao balcão a digitalização dos documentos introduz no sistema, e onde diante das enormes filas de visitantes se deixam mais de metade das cabinas que podiam acolher funcionários da alfândega vazias, de modo a tornar mais árdua a entrada no país. Depois de dez horas de avião, no meu caso, eis-nos escamados de modo maneirinho neste peditório, numa banca ao sol (também o ar condicionado se mostra arredio), no mínimo uma hora, para aprendermos de imediato que aqui só a resiliência pode germinar. Finalmente entramos no país, como se um tremendo favor nos tivesse sido concedido. 20/11/2019: dez da manhã Arrumo na estante os livros que trouxe de Portugal e constato que a grande percentagem dos autores que comprei são mulheres: Olga Tokarczuk, Ali Smith, Linda Lê, Hélia Correia, Anne Carson, Nathalie Heinich, Luísa Freire, Isabel Nogueira, Annie Ernaux. Mesmo os oferecidos, como o último da Rita Taborda Duarte, ou os que planeava comprar, como o livro com que a Tatiana Faia ganhou agora o Prémio Pen, ou os últimos da Dulce Maria Cardoso, e que o problema com o peso da minha carga adiou para uma próxima, são igualmente de mulheres. Definitivamente, há na literatura deste momento ou no pensamento uma vaga que se pronuncia no feminino e que me parece mais fecunda do que aquilo que os criadores masculinos andam a fazer. Outra coisa constato, a avaliar pela explosão capilar de livrarias de livros de fundo em Portugal: a indústria do livro está em profunda agonia, embora não veja ninguém a querer reflectir sobre isso. 20/11/2019: 13 h Não faço a menor ideia a que país regresso. As notícias abafam-se. O que realmente se passa no norte ou no centro de Moçambique é filtrado e vivemos numa bolha alheada da “verdadeira realidade” que nos acena lá fora, à espera de oportunidade para entrar. Num livro intitulado Um Espião na Casa do Amor e da Morte (Lisboa, Arranha-Céus, 2015) escrevi: «Só na Beira, o livro de ocorrências do Gabinete de Apoio à Mulher e Criança Vítima de Violência Doméstica, registava cento e sete casos de crianças “perdidas e achadas” para o período de Janeiro a Maio de 2010. Imagine‑se este número multiplicado pelas cidades e pelos distritos do país – milhares de crianças desprovidas, famintas, que adquirem cedo a morfologia da sobrevivência e se movem na sombra como a lava de um vulcão iminente. Não nos parece que este exército na sombra sucumba inteiro à gadanha da malária e admitimos, com alguma apreensão, que aquilo que Moçambique neste momento produz com maior vigor industrial sejam batalhões de moluenes (os miúdos rua), que um dia, como os gafanhotos das pragas do Nilo, marcharão rumo às cidades. E uma situação da qual toda a gente parece alheada: ninguém ousa imaginar o suficiente. Entretanto, muitos desses moluenes serão com certeza recrutados para as fileiras militares da Renamo, um partido que, apesar de ter assento na Assembleia da República, não desmobiliza o seu exército… », ou, diria agora, para quaisquer bandos de insurgentes, como os que actualmente tornam Cabo Delgado um pasto para decapitações, a cobro de ainda não se sabe que reivindicações políticas. É a este país que se esconde sob o tapete, no gesto suicida de fugir a quaisquer esforço de análise das condições com que compromete o seu futuro, que regresso, o que me faz citar a Rita Taborda Duarte: «Eu regressado a ti pela garganta/ por um fio esgarçado de vida/ e tu sorrindo sempre – cabra – do eufemismo/ com que chamam fio/ à corda que entrançaste no meu pescoço».
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO bem e o mal existem [dropcap]A[/dropcap] crónica desta semana inicia-se com um jogo náutico. Imaginemos que o navio Y “navega de Portugal para o Brasil”. Consideremos depois “todas as distâncias percorridas com a ajuda do vento leste através do sinal + e aquelas percorridas com a ajuda do vento oeste através do sinal -”. A navegação por semana corresponderia a ‘+12+7-3-5+8’ = 19 milhas. Seria esta, portanto, a distância que o navio Y haveria de percorrer na direcção do oeste”. Este jogo não foi retirado das prateleiras de uma sucessora da antiga ‘ToysRUs’. Não, ele pertence a um ensaio de Kant, publicado em 1763, acerca da natureza das grandezas negativas em áreas tão diversas que vão da matemática à chamada “filosofia moral” (ou à ética). O ensaio pretendia demonstrar que as “grandezas negativas” não são apenas negações das “grandezas positivas”, na medida em que têm sempre autonomia e vida própria. Um exemplo óbvio recai no facto de a dor não ser uma ausência do seu oposto (o prazer), mas, antes pelo contrário, algo bem real que age e se faz sentir de forma independente. Se saltarmos para as águas da ética, poderemos afirmar precisamente o mesmo do mal: ele não é o oposto do bem, mas sim o resultado de uma acção que apresenta uma lógica própria, mesmo se aberrante. Uma pessoa pode ter a consciência de um determinado bem (por exemplo, não mentir à pessoa A na situação X) e praticar literalmente o seu oposto. Na realidade, todos nós habitamos este aquário de possibilidades que se assemelha a uma simetria de opostos (no meio de um ajardinado mais vasto, como é evidente). Razão por que o mal e o bem se opõem num mesmo plano, tal como acontece com a dor e o prazer ou com o vento leste e o vento oeste. Para Kant, este dualismo conflitual é inerente a todas as acções humanas. Mas o mais importante centra-se no que poderíamos caracterizar como sendo o ‘lado da fé na humanidade’ que é tão típico do autor. Por outras palavras: a consciência interna do bem tenderia sempre a sobrepor-se e a impor-se à consciência do mal. Estaríamos aqui no chamado terreno da normalidade, aptidão própria da larga maioria dos seres humanos. Como não existe bela sem senão, toda esta (formosíssima) equação se arrisca, de um momento para o outro, a ficar viciada. Tal acontece porque a matriz generosa dos humanos pode oscilar e até, abruptamente, inverter-se. Entraríamos então no que o autor designou por “mal radical”. O mal radical habita um sujeito (ou uma intersubjectividade mais vasta) que não deixa de viver conflitualmente entre as possibilidades do mal e do bem. No entanto, a matriz que decide e rege os actos passa a depender da grandeza negativa, ou seja do mal, e não já da grandeza positiva. O sentido das escolhas poderá, pois, tornar-se terrível. O nazismo pressupôs-se e agiu dentro deste território a par de outras práticas de barbárie que nos deixam, no mínimo, pasmados (a nós, pessoas normais). Li há dias na imprensa um caso que faz realmente eco do mal radical. Tudo se passou em torno de um conhecido historiador russo de nome Oleg Sokolo. Para além de especialista em Napoleão, sempre adorou mascarar-se ao estilo do militar francês do início do séc. XIX e jamais enjeitou imitar a gesta e as posturas do seu amado chefe. Um performer sabedor, numa palavra. E não se pense que estamos face a um louco, muito longe disso. O homem já foi condecorado em França, para além de a Sorbonne o ter como professor convidado, o que não é para todos. Mas como as histórias, digamos curiosas, têm sempre reversos inesperados, aconteceu que, há duas semanas, a polícia de S Petersburgo descobriu o homem caído nas águas de um rio e tentou socorrê-lo. Surpresa das surpresas, o senhor Sokolov não estava sozinho, pois tinha consigo, dentro de um saco, os restos de uma mulher que acabara de matar e de esquartejar (uma jovem de 24 anos de nome Anastasia Yeshchenko). O pasmo é aquele instante em que a verdade se torna insuportável e não apenas aberrante. Subitamente, é como se o vento leste imaginado por Kant tivesse devastado o navio Y e isso acontecesse, não porque a natureza tivesse incorrido num dos seus acasos, mas porque uma mente humana o decidira de modo afirmativo, autónomo e assumido. Será isto o mal radical: uma máquina que dispara, porque o seu ânimo (ou o seu motor) apenas existe para disparar, embora saiba que pode não o fazer. Este tema levanta sempre um infinito e fecundo reino de polémicas. É o caso da famosa ‘síndrome de Eichmann’, o alegado funcionário que – presumivelmente (haja ironia) – não poderia optar, mas tão-só accionar a máquina sempre e só na mesma (terrível) direcção. Tantos ex-pides que eram apenas funcionários! Tanto demissionista de temíveis leviatãs a que por consciência pertenceram. Já John Locke escrevera, no seu ‘Ensaio sobre o Entendimento Humano’ (1689) que a liberdade se submete à vontade. Ele, que assistiu a uma feroz guerra civil, lá saberia porquê. P.S. – Escrevi esta crónica no passado dia 13 de Novembro. Dois dias depois, li uma crónica do António Cabrita em que o tema Sokolo também é tratado. A disformidade dos actos do historiador russo é tal que não há tratamento, nem abordagem que os curem. Oxalá muitas outras crónicas lhe caiam em cima com peso de bigorna.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasDiários Turcos (I) [dropcap]O[/dropcap] que é que jantámos na nossa primeira noite em Istambul? Pizza. Very typical. Na recepção, um senhor chama-me umas seis vezes pelos nomes do meio, como se fossem um só e ele não conseguisse ler nem o meu primeiro nem o meu último nome. Chego, sento-me no sofá contemplando a hora de jantar. — Então, Gisela, que fazes? — Estou apenas… — Estás a rir sozinha? Estava a olhar para o telemóvel. Éramos cinco à mesa. Alguém me chamou. Levantei o rosto e duas pessoas queriam oferecer-me uvas. Uma tinha duas, roubadas à que tinha umas dez num cachito. Sem saber o que fazer, perante aqueles olhares ansiosos e braços estáticos, aceitei tudo. Um outro interveniente disse, de quem tinha mais, “Ele só queria oferecer-te uma.” Rimos. La Fontaine revisitado. Nos lavabos públicos, rapazes adolescentes e homens descalçam-se e lavam os pés, recolhendo os casacos pendurados à saída. Em sua casa, Zafer dispensa-nos de descalçar os sapatos, por cortesia. Chove e faz frio, mas nem isso impede os gatos de frequentarem a universidade à noite. Somos revistados à entrada dos museus e dos centro comerciais. Fotografo a Lígia no meio de oito chineses, cinco de um lado e três do outro, todos sentados e ela no meio. Quase todos me olham ao mesmo tempo sem combinar e sem desviar a atenção, como se nos conhecêssemos. Fotografo a Lígia a descalçar-se cinco vezes por entre túmulos e mesquitas; por vezes há um extintor ou uma roseira a compor o quadro. Dizem-nos “Quero saber a vossa religião. São cristãs? Porque eu sou muçulmano mas não sou um terrorista.” Mais tarde, numa escola, perguntar-me-ão se sou muçulmana. Mais tarde, numa igreja e numa escola, alguém levará a mão ao peito em vez de no-la apertar, deixando-nos penduradas e perplexas. Zafer disse-me, ontem: “Ainda não te sentiste estrangeira aqui.” À hora de almoço: — Isto é tão bom, lembra-me algo. — É leite condensado cozido. — Pois é. — Comemos quando alguém morre. — Então… Quem morreu? Finalmente cedo e digo, numa sessão escolar e em turco, que İsmet Özel (cuja obra desconheço) é o maior poeta turco. A multidão vibra. Yaya diz-me, através de notas num bloco que ainda tenho, que Rıdvan lhe confessou que quer casar comigo, porque o fiz feliz ao dizer esta frase que me vinha repetindo há dias. Há uma foto do momento preciso em que leio essa frase e rio: é uma das melhores fotos desta viagem. No aeroporto: — Eventualmente todos os turcos vão embora. — Excepto tu. No palácio: — É pá, a bandeira e todas estas luas lembram a Sailor Moon, não achas? — Pois é. Ao fim de um tempo teríamos de ceder às casas de banho à la Bairro Alto. Nem sei como demorámos cinco dias a atingir este marco. Domingo a Turquia fez anos. Segunda, fiz eu. Já me perguntaram algumas vezes se estou aborrecida. Normalmente é quando me calo. Ou há pouco, porque estava em pé lá na rede expressos enquanto fazíamos tempo. Acho que é isso que querem dizer porque fazem a pergunta ao contrário, perguntam, “Estás a aborrecer-nos?”. Espero que não. Respondo que nunca me aborreço e que dentro da minha cabeça estou sempre bastante entretida. A Esra, a nossa intérprete, anui com a cabeça e sorri, acho que começa a conhecer-me. No autocarro para Gaziantep, agora somos nove, (comento com a Lígia que isto é a Sete Rios cá do sítio) sentados à espera que parta, e estou a tagarelar fluentemente, como sempre. Dizem-me, “Esta avó…” e eu penso, deve querer que eu me cale, afinal só se ouve a minha voz, “…Diz que te ama.” Gargalhada geral, e a senhora vai repetindo os seus afectos instantâneos em turco. Vão ser umas lindas seis horas de viagem. Novos diálogos de Konya: — Este catering só no Alfa. — Wifi no expresso para Melgaço. A Lígia bate-me ao de leve no ombro. Passa-me um phone. Notorious B.I.G, “Big Poppa”. Gosto desta miúda. Estamos um pouco lost in translation, tempo e espaço. Já não sabemos bem que dia da semana é nem que horas são em Portugal. Ao telefone a minha amiga diz que são quatro da tarde. Aqui, sete. Não há horário de Inverno, só o Inverno em si. No meio de nenhures, paramos rapidamente pela segunda vez. Desta vez saímos. O rapaz das uvas não fala inglês. Oferece-me o maço. Eu não fumo, digo (pensava que já teriam reparado por esta altura, considerando que sou realmente a única que não fuma). Porquê?! Pergunta um outro. Ouvem-se tambores. Dizem-me que é uma celebração, uma despedida, um rapaz vai para o exército, como é costume aqui quando aos vinte ainda não se foi para a universidade. WC Bayan é casa de banho das senhoras. Dão-me uma moeda para a mão. A sério? Olá, Santa Apolónia nos anos 90, com porteiro e guichet nos lavabos. Por algum motivo agora só me apetece ouvir Beatles: “Here, there and everywhere.” Seguimos caminho.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasTodos os mapas vão dar ao destino Metro, Lisboa, 13 Novembro [dropcap]A[/dropcap]li por alturas do Rossio tudo me desapareceu menos as lágrimas não devia ter sido em dia treze para brutos que nem nós desacreditando nas superstições rindo ainda que conservando pedra de desconfiança no sapato que las hay las hay nosotros que enfrentamos mistérios saltando sobre eles com o pára-quedas da inteligência e da desconfiança mesmo deixando aberta a janela tem um canivete e o bombeiro perguntava com calma tão parva quanto a pergunta e de súbito a porta ao lado a de velho serviços neonizou-se qual entrada veloz de cabaré a porta desfeita chão ruído e vermelhos equipados e brancos e até azuis-celeste por que raio deve a polícia vestir o céu dançando de rompante mano o chão feito planície fria e infinda o eco do mano a brilhar nos teus olhos a procurar outro território menos frio respondendo à graça deslocada com sporting dentro fagulha de entendimento sem ninguém aceitar que se sentia o sopro daquela que deles se alimenta fugia-te o dia da semana mas não o nome sempre completo e fardado todos os dias fugiam debaixo dos nossos pés o chão mano e olhas com a mão esquerda procurando a que te desobedecia e as perguntas e o exército inteiro a sugerir isto e aquilo e hospitais nosotros agarrados à alegria de respirares chovia a dos tolos tantos carros e luzes e sons por ti provocados quando querias discrição silêncios feitos tranquilidade bálsamo da raiva contra a bruta injustiça a impotência saltando com o pára-quedas da inteligência a falhar o oxigénio a gastar-se e a descompreendermos o tecido do possível a desejares coreografia romântica de final em tons de branco o lençol monta uma dignidade mínima e da cor da maca sobre a qual aceitas as orientações rendes-te a novas hierarquias sem patente óbvia deixas-te ir sob a chuva de tolos a coreografia dos gestos em câmara demasiado lenta que mais tarde quereremos esconder mais as preparações a triagem os exames e as seringas e o que não vemos mais a vontade evaporando o chão mano telefonemas de longe a família alargando-se em vasos oxigenando os cuidados não ris estás por fim o doente que não querias nunca ser uma bandeira sobre ataúde de formas macias ainda não o pressentíamos apesar de tudo apesar dos pesares trouxeste do sul a morena alegria de estar à mesa de contar histórias e alimentar indignações tanto sabias que nenhum nome te escapava construías pontes a cada conversa ligavas por fios cada membro das famílias dos podres poderes e segredos antecipavas escândalos mais para o recente quando o entorno se desagregava homens maduros soltaram lágrimas convulsivas no meu ombro tocaste tantos com generosidade fértil outros te foram falhando mas carregaste forno fogão capaz de cozinhar vanguardas soubera eu então que antecipava recentes apetites mano o chão feito céu forma nuvens esse derradeiro que não adivinhávamos futuro feito presente desfeito aprendeste a múltipla combinação dos sabores que apuraste desde essa inusitada vez que mulheres e filha gastavam noite em hospital enquanto nos perdíamos em refeição e palavra nas quais se resume a passagem por dias talvez curtos que me faltaram para te entender que algo ficou por alinhavar dureza de uns e alegria de outros momentos dançando ao redor desenhando contornos desenhados à mão no nada no céu negro havia lua havia branco na palavra urgências haverá sempre o teu riso rasgando céus e um gesto de mãos ágeis um peito a dizer parede um olhar parceiro chão mano por que raio o chão as campainhas a tocar tarde sem respeitar as convenções sempre foi assim sempre será a memória de dedo na beira da porta a mandar abrir para discutirmos sem concordância possível a mais saborosa das discordâncias não fui ao Lobito contigo fui tantas vezes ao Lobito contigo acreditavas que as minhas palavras poderiam ser chão esticando a distância e mergulhando fundo contraindo-se ou estendendo horizontes abracei-te feliz tantas as vezes no casamento que foi esperança trouxeste-me no braço no colo a tua irmã enquanto a miúda azamboava ainda sem birra a miúda em Praga de azul com a avó as mudanças a dança e a dança das casas e o mar os barcos que nunca te satisfizeram os mapas que amavas e teimavas que captasse cada detalhe da geometria ainda ontem te liguei para te entusiasmar com mapa que o Tubarão da Brandoa acabava de resgatar ao pó do esquecimento o chão mano por que raio o chão frio os pulmões a arder a mansidão esculpida nos lábios última imagem para esquecer o teu olhar sem latitude nem longitude nunca fomos ao Lobito mas tatuámos Alentejo na pele toda deste-me a mão ágil a esquerda e disseste no intervalo de navalha tem canivete estou fodido não perguntavas nem afirmavas talvez te conformasses estou fodido olhando-me a lua brilhava e não merecias aquele corredor de campanha a inteligência ardia e as minhas lágrimas serviam de pouco onde descarrilaram as linhas do destino não fui ao sul contigo mas desenhámos mapas com os nossos passos bebi do teu entusiamo a servir uma ideia uma réstia que fosse uma razão que alimentasse a fogueira de certa maneira de erguer corpo em uníssono em grupo nunca deixaste de me oferecer música e mesa de abrir a porta o telemóvel lá dentro a tocar tem um canivete a chave na porta a lua esta porta cede merecias uma mão novo projecto para além das geografias das seguranças das defesas das estratégias falhámos-te ficámos a dever-te a empresa onde te cumprires tu que colocavas as ideias sobre arame de funâmbulo a iluminar possibilidades um saber ágil que não sei dizer não sairá daqui retrato nenhum ziguezagueaste nos múltiplos amparos e nenhum te devolveu a possibilidade tantas curvas na derradeira viagem o dia caindo chuva de tolos a dança no miolo do socorro motorizado os médicos perguntando sem um brilho de inteligência sabendo tu quanto havia por saber acerca dela a que se alimenta do bafo não devia ter sido a treze aprendi a soletrar família de mil maneiras contigo assim o mar a desfazer-se vezes sem conta a pedir atenção e a devolver milhentas maneiras vou voltar-me de súbito ver-te em cada instante a esbanjar orgulho as casas de portas abertas o aroma do café os copos os inesgotáveis serviços de peças partidas e prestes a quebrar o caril a perfumar as palavras para prazer de novo o movediço intervalo entre engenhoso previsto para a nação e um sentido gritante do indivíduo um sabre oferecido a bússola perdida a raiva do incumprido em lume brando além da iniquidade do mal que nos possui que nos risca os mapas o chão
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasAqui, Rádio Cabeça [dropcap]Q[/dropcap]ue o mundo não está a facilitar a vida já nós o sabemos. Calamidades sortidas, raiva e desespero abundam numa altura em que os seres humanos preferem construir trincheiras onde deveriam existir pontes. Enfim, o leitor saberá porque para o saber basta estar vivo. Mas nada nos prepara, acreditem, para acordar com uma canção dos Supertramp a bailar-nos na cabeça. Nada. Aconteceu-me a mim. Sem pretexto ou causa à vista, uma pessoa abre penosamente os olhos à realidade e leva como banda sonora o It’s Raining Again, vinda das profundezas de nós. Com a letra completa, por Deus. Aqui chegado terei de pedir desculpa aos admiradores desta banda mas não me incluo entre eles. De facto, acho a canção que me perseguiu durante todo o dia – e ameaça, insidiosa, regressar à medida que escrevo estas palavras – uma estupenda pepineira. Opiniões, claro. Mas para o que para aqui interessa é que não a ouvia há décadas. Procurei na memória a razão deste fenómeno: teria sido uma conversa, um excerto da canção ouvido ao acaso numa rádio, uma viagem de táxi mais traumática? Zero. E o problema é que não é a primeira vez e nem sequer a pior. Recentemente dei por mim no duche a cantar uma única frase de um anúncio (“Dreams/are my reality” lalalala….Um tormento). Mas aqui identifiquei a raiz do mal: tinha sido exposto ao anúncio na internet e daí ter retido este naco precioso que veio macular o meu repertório ducheano (que inclui êxitos obscuros como o magnífico Baby I Don’t Care, de Elvis Presley. Obrigado por não perguntarem). Já com a canção supracitada o mistério permanece. O fenómeno, no entanto, é comum. O leitor já terá sofrido semelhante flagelo, dando por si a certa altura com o conhecimento involuntário da obra completa de Quim Barreiros ou coisa semelhante. E esta condição tem nome: Stuck Song Syndrome (Síndrome da Canção Encalhada, numa tradução colorida). Está bem identificada por psicólogos, psiquiatras e neurocientistas que associam o fenómeno a earworms (ou, na maravilhosa tradução de Miguel Esteves Cardoso, otovermes) que podem disparar estas pérolas dos confins do nosso inferno. Segundo o British Journal of General Practice, os otovermes estão associados à memória mas também a situações de stress. O mais impressionante é que quanto mais o cérebro tenta parar essa informação mais ela se torna mais forte, num loop interno criado pelo próprio Satanás. No limite são sintomas de Perturbação Obsessiva Compulsiva mas em 98 por cento dos casos é uma situação perfeitamente normal e não patológica. Pois sim, acredito. Mas não o mereço. Porque é que a mesma condição não me leva a recordar todas as deixas de Clifton Webb no filme Laura, ou todos os aforismos de Wilde ou um detalhe soberbo de uma pintura de Caravaggio ? Com isto poderia eu viver bem durante todo o dia. É por isso que apelo à comunidade científica que prossiga com afinco os estudos sobre o mais negro e misterioso órgão do ser humano: o cérebro. É uma questão de prioridades, de saúde pública. O mundo já é o que é, volto a dizer. Ninguém precisa de levar comigo a trautear um êxito de José Malhoa durante 24 horas. Vejam lá isso.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO homem de Deus [dropcap]N[/dropcap]inguém é ninguém. Só Deus é.” Gritava um homem com um megafone numa rua do centro do Rio de Janeiro, enfiado dentro de um cartaz que ostentava em letras garrafais, à frente e atrás, “Deus é, mais ninguém”. Todas as manhãs e todas as tardes, se não chovesse, ali estava aquela criatura na Rua dos Inválidos, que liga a Rua Frei Caneca à rua Riachuelo, junto à Lapa e à Praça da República. “Quem segue a si mesmo, segue o diabo”, continuava gritando pela rua. Muitas vezes, era com lágrimas nos olhos que gritava a salvação do homem. “Sem Deus, o homem caminha como um cego sem bengala, condenado a cair no abismo.” Dia após dia, durante anos, aquele homem vinha para a rua dos Inválidos caminhando e gritando para salvar o homem. Nada o demovia. Nem mesmo quando chegou a ser maltratado por moleques. Quanto a ser maltratado pelos olhares e piadas diariamente, já nem dava importância. A todos reagia com a benevolência e a compreensão que só existe no Novo Testamento. Não se sabe bem qual é o seu nome, pois tal como Saulo que virou Paulo, também se dizia dele que antes de ver a Deus, era um outro homem, com outro nome e uma família, que deixou para trás, para pregar a palavra de Jesus. Levou a sério as palavras do Novo Testamento, no Evangelho de São Lucas, acerca da dificuldade de ser discípulo de Jesus, que para segui-Lo teria de deixar todos os laços humanos de filiação. Se não podemos saber o seu nome ao certo – embora se apresentasse como sendo Lucas –, aqui e agora, neste momento em que o vemos caminhar pela rua dos Inválidos, estamos diante de um homem com mais de sessenta anos, branco e magro, com cabelos grisalhos encaracolados, que desperta a ternura em quem consegue reparar nele para além das palavras, para além da sua compulsão pela salvação dos homens. Há neste homem uma fragilidade maior do que naqueles que passam por ele sem reparar ou olhando-o com escárnio. A segurança com que se move, derivada da crença inabalável em Deus, a fúria com que tenta salvar os homens, tem como fundo uma tristeza por este mundo onde se sente preso. É neste nosso mundo, sem grades que não sejam a gravidade e a esfericidade, que este homem cumpre a sua pena. E, enquanto a cumpre, tenta salvar os outros prisioneiros, abrir-lhes os olhos, mostrar-lhes que há vida para além do mundo. Um dia, a vida fez com que aparecesse na mesma rua dos Inválidos um jovem, também dentro de um cartaz, como ele, embora sem megafone e sem usar a voz, passeando para trás e para frente a evidência do mundo, a retórica mais palpável da prisão em que Lucas diz que vivemos: “Mente Aberta SexShop / Os corpos também sonham”. Este rapaz, contrariamente ao cavaleiro da fé, não tinha nem segurança nem fragilidade, fazia de cartaz com pernas por um mísero salário, que a loja lhe pagava ao fim do dia. O seu andar não revelava a segurança da fé em Deus, mas a insegurança de um salário que não dava para viver condignamente. Quando se cruzaram pela primeira vez na rua, o rapaz olhou Lucas com o espanto do prisioneiro que escuta alguém a falar da liberdade. O homem de Deus, por seu lado, engasgou-se, as palavras embrulharam-se e os olhos ficaram húmidos, como os campos de inverno no sul, cobertos de tristeza pela manhã. A vida vinha agora pôr a fé daquele homem à prova. Ao invés de lhe mostrar alguém a aproximar-se de Deus, a juntar-se a ele e a multiplicar a voz de Deus, a vida mostra-lhe alguém a promover o sexo, alguém a convidar os homens a descerem até à escuridão da carne. Por um instante, que ainda não se sabe quanto tempo foi, o homem de Deus parou, calou-se, tentou entrever o céu por entre os prédios, como se escutasse uma palavra ou pudesse ver um raio fritar o céu. Suportou anos a fio a indiferença com que o trataram, os maus tratos, os impropérios e as gargalhadas atiradas pelos ignorantes, mas como suportar a fé ao contrário? Como suportar esta traição de Deus? Como não nos condoermos por aquele homem, ali, sozinho, triste, dentro de um cartaz de Deus, com as pernas magras paradas, o megafone sem som e lágrimas nos olhos, espelhando a tristeza que há no mundo? Talvez tenha sido aquele dia, o mais vulnerável da vida de Lucas; talvez num outro dia qualquer a propaganda da Sexshop, imitando o seu método, passeando dentro de um cartaz, não lhe causasse tanta afectação, mas a verdade é que depois desse dia nunca mais se viu o cavaleiro da fé na rua dos Inválidos ou em qualquer outra nas imediações. A evidência do corpo destruiu a inabalável crença em Deus. Lucas entendeu que a cegueira não tem cura e recolheu a fé para si mesmo, aceitando a injustiça da pena que cumpre no mundo como uma tarefa que tem de cumprir a sós. E quem se ria dele, sente-lhe agora a falta.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasConjurados [dropcap]E[/dropcap]stamos socialmente alinhados na conspiração de grupo e nas articulações de grandes tramas que nos impedem quase a saudável natureza dos actos individuais ou das capacidades próprias: depois da grande artimanha da competição versus produtividade aninhámo-nos em seitas, umas mais, outras menos conspirativas e cooperativas com carácter de urgência, e é tanta a prazenteira delonga deste estar que não há ninguém por menos bípede que seja que não ande num transfere de competências associativas com fins determinados em reuniões sistemáticas e estratégias constantes. Creio mesmo que a noção laboral, a perspectiva do fazer ou saber fazer, realizando o melhor, mergulhou num longo sono todo ele encriptado de manobras várias com tentáculos de complexidades alarmantes. Cada vez ocorre menos a uma alma em repouso orientar-se para uma vitória de si mesma face à inércia do banditismo da informação vinda dos lados mais bizarros do esclarecimento, creio que andam entretidas a ver pela total incapacidade de indignação nas zonas de impacto onde se deseja que coloquem as vozes, quanto muito, interessando-se pelas coisas na razão directa de uma autodefesa que rapidamente passará a transtorno quando se desconfia de negligência face aos muitos e aturados méritos que carregam. Tudo isto pode gerar um pasto apetecível para orientações mais alargadas de tirania – que ela anda no ar – tentando fazer manobras quase indecorosas por cima da cabeça das Nações. Estes “Conjurados” não são da aura calorosa daqueles que estamos a pensar: a dos resistentes pela soberania do Reino em 1640, são outros- como não podia deixar de ser – que conspiram horas e anos a fio sobre práticas dolosas de como vender países a troco de nada arremessando para o seu grupo o maior número de proventos possível. Conspiram, ajustam, combinam, numa aleivosa actividade de banditismo de Estado nas suas associações de grupos e associados. São batalhas intermináveis que parecendo acção, são contra actividade, dura, o que nos deixa a pensar que em caso de um drama iminente não tenham a menor orientação e bom senso para servir de garantes seja do que for. Uma híper-liberalização ensaiou os seus tentáculos de supra sobrevivência no asfalto de um mundo onde as leis alteradas chegaram aos grandes desprotegidos em regime de imitação. Em última instância somos todos conspiradores das leis artificiais de um projecto de vida que se esfarrapa agora todo e anda pelas ruas da amargura. É certo, porém, que só vemos aquilo que queremos ver, e sobretudo aquilo que nos dão a ver, nos interstícios destes dislates fortemente “democratizantes” deve já existir “bunkers” em terra firme e funda para o caso de problemas esperados, ou mesmo, senão em marcha, fugas planeadas para Marte em grande escalada pagante ficando os pobres da Terra à mercê das intempéries. Também, longe vai o tempo do sigilo das seitas, o que deixa bem claro a desordem aparentemente amigável destas coisas e por coisa pouca que possa servir a imagem se vendem as mais poderosas informações. Conjurados sentam-se à mesa servidos pela sua tónica mais perfeita: a traição! Mas o que é a traição? Para tal é preciso que haja uma norma, ela não se encontra porém em lado nenhum, e tal como a interpretação bíblica de Caim e Abel nos diz que nada estava escrito que o informasse ( Caim) que não devia agir assim, também podemos regressar a tempos como esses, isto, se queremos levar a capacidade de luta até aos abismos onde ela se encontra. Mais simples afirmar «Que nem só de pão vive o Homem» o que resulta em moral cuja conceptualização nos indica no actual contexto, estranheza. Jorge Luís Borges tem um livro final com este título «Os Conjurados». É uma obra surpreendente e rara, nela se viaja no último instante da jornada de alguém que atravessou o tempo de forma exemplar. São poemas em prosa com várias matérias que raiam a visão sublime de um homem já cego e todo ele dependente de um amor que o fez avançar ainda assim; precisamos bem lá no fundo de um braço muito longo a que chamamos – chamou – o seu amor, para continuar de forma tão impressionante; quem não o tem morre cedo, arrefece num local qualquer da jornada mesmo fazendo a sua obra que renunciou ao socorro de um amor: não sei por que o intitulou assim, mas é certo que conjurou muitas vertentes de alinhamento histórico e pô-las a funcionar como mensagem extraordinária. Há seres que emitem sinais de agrupamento de vínculos tais que as suas próprias acções os ultrapassam, sabem que nada seria possível sem essa reunião e que caso a nossa essência não tivesse sido benignamente grupal não teríamos aquilo a que apelidamos de Civilização. Eram Conjurados! A outros níveis que já não nos é possível entender. Uma assembleia de Conjurados terá que ter sempre o impulsionador da conspiração, sem ela diluem-se os métodos da acção concertada que quase sempre avança para o terreno de forma própria e consciente. Precisam levar mais do que ambições pessoais, precisam estar unidos por um bem maior que liberte e una. Ora, nas componentes mais alargadas destes estados reconheceremos a fragmentação deste impulso onde as causas e os efeitos se tornaram na luta de cada um face a todos, e sem sagacidade activa e espírito de sacrifício deixou-se de acreditar que possamos estar abrangidos por alguma coisa que nos defenda. Esconjuremos um tal estado de vida que pode nem merecer ser vivida quando falta a troca benéfica da partilha. E Borges afirma o mais extremo laço deste contributo ainda solto pelo sentido transcendente da própria dádiva: «Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu… só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos… não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos”.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasPainéis de São Vicente vão ser restaurados [dropcap]O[/dropcap]s Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, tesouro nacional da pintura portuguesa, vão ser restaurados a partir da próxima Primavera, de forma faseada para que possam ser visitáveis. Considerada uma das obras mais emblemáticas da arte portuguesa, os painéis serão alvo de restauro através de um protocolo mecenático trienal assinado na terça-feira passada, 12 de Novembro, com a duração de três anos, entre o Museu Nacional de Arte Antiga (MNNA), a Direcção-Geral do Património Cultural e a Fundação Millennium BCP, envolvendo um apoio financeiro de 225 mil euros, metade do que do que o novo director do MNAA, Joaquim Oliveira Caetano, acredita que será necessário para realizar o restauro e para o qual continuará à procura de parceiros. O restauro da obra contará com pelo menos quatro conservadores, dois do museu e dois contratados externamente, e uma equipa de consultoria internacional, com a inclusão de responsáveis da Universidade de Ghent (Bélgica) e do Metropolitan Museum of Art (EUA), uma que virá a Portugal duas vezes por ano e outra acompanhará os trabalhos mais de perto, a cada dois meses. O director do MNAA explicou na ocasião aos jornalistas que o restauro será sempre feito no museu e que estão ainda por definir os procedimentos, ou seja, se os trabalhos de restauro serão feitos ‘in loco’ onde os painéis estão expostos, o que permitiria aos visitantes acompanhar a evolução, ou se serão retirados em blocos para outro espaço, sendo, no seu lugar, colocadas réplicas. Entre as tarefas que serão levadas a cabo está o estudo de como deixar à vista toda a pintura que hoje fica até 8 centímetros tapada pela sua moldura dourada, resultantes dos estudos de Almada Negreiros para a Exposição do Mundo Português de 1940, momento a partir do qual os painéis passaram a ser dispostos em seis e não em dois grupos de três, como acontecia até essa altura. Sobre a duração do restauro, e embora o apoio mecenático da Fundação Millennium BCP abranja três anos, o director do MNAA não se compromete com uma data final e avisa que o museu não deixará que seja feita qualquer intervenção apressada para cumprir calendários comerciais ou políticos. Acrescenta que dentro de três anos, o essencial estará feito e que é uma obra de tal importância e que levanta tantos problemas, técnicos, históricos, deontológicos, que sabem quando começa, mas será o próprio restauro a marcar esse ritmo e, que, portanto, não vão ser feitos restauros à pressa para cumprir o protocolo. Os painéis, compostos por um conjunto composto por quatro peças mais pequenas e duas maiores (ao centro), representam a corte e a sociedade portuguesa da época no momento em que veneram o patrono da expansão militar no Médio Oriente, e foram descobertos em 1884, no Paço Patriarcal de São Vicente de Fora, em Lisboa, e, na altura, por não terem assinatura e datação visíveis e inequívocas, suscitaram um enorme mistério e fascínio por parte de várias gerações de estudiosos e académicos. Pintadas a óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, acredita-se que originalmente as pinturas estavam integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa. A autoria dos painéis foi descoberta por José de Figueiredo, primeiro director do MNAA, e foi atribuída a Nuno Gonçalves, pintor régio no tempo de D. Afonso V, através da interpretação de um monograma do pintor revelado durante o primeiro restauro da pintura, na bota da figura ajoelhada no Painel do Infante. Desde a sua descoberta, mantêm-se as dúvidas quanto à identidade das quase seis dezenas de personagens que fazem parte do “maior retrato colectivo da pintura ocidental”, segundo Joaquim Caetano, não sendo sequer consensual que o homem do chapeirão seja o Infante Dom Henrique, existindo teses de que pode tratar-se do seu irmão, D. Pedro. O restauro vai permitir ficar a conhecer mais sobre o pintor e como pintava, embora não vá certamente responder ao quem é quem na pintura. O novo director do MNAA, que é especialista em pintura antiga e foi conservador da colecção de pintura da instituição até assumir o actual cargo em Junho passado, mais refere que quem olha para os Painéis de São Vicente, não diria que precisam de restauro. No entanto passam já mais de cem anos desde a última intervenção, a cargo de Luciano Freire (1854-1934). As 58 figuras ali retratadas em torno da dupla figuração de São Vicente mostram, numa análise mais próxima, os sinais da passagem do tempo e da degradação do restauro com óleo industrial que usou Luciano Freire, o pintor, professor de desenho e investigador na área da conservação e restauro em 1909/1910. Essas manchas são evidentes nas imagens que vão passando no ecrã táctil que se encontra na sala dos Painéis. A radiografia da obra revela que muitos espaços brancos foram “preenchidos” por Luciano Freire, e que o desenho primitivo incluía um soldado com armadura, um homem de turbante e outros detalhes que acrescentaram conhecimento aos Painéis. O protocolo assinado na passada terça-feira prevê ainda uma intervenção de restauro na importante Colecção Della Robbia, de escultura de cerâmica vidrada policromada, do acervo do MNAA. Na assinatura do protocolo entre o MNAA e a Fundação Millennium BCP, agora liderada pelo Embaixador António Monteiro, esteve a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, que sublinhou o sentido virtuoso destas parcerias público-privadas, patente também na restaurada sala D. João IV, no Palácio da Ajuda, e cuja reabertura oficial ocorreu no Sábado, dia 9 de Novembro, também com o apoio mecenático da Fundação Millennium BCP, a mesma que já tinha participado na reabilitação da Capela de D. Maria, também no Palácio da Ajuda, encomendada na época ao arquitecto Manuel Ventura.