Um sopro de maldição

[dropcap]I[/dropcap]sto é matéria propícia à criação de maldições, coisa que rapidamente degenera em lendas e outras mistificações. Pegue-se então nela com pinças e proceda-se com cautela.

Em formato digital e à hora que se quiser, de modo tão portátil e propínquo estamos capazes de aceder ao som e à fúria da tragédia que não se faz necessário retrocedermos aos alvores da Guerra de Tróia, aos massacres de Shakespeare ou às exorbitâncias épicas de Wagner para nos entregarmos às volúptias da melancolia oferecidas pelo lamentoso espectáculo da morte dos heróis. Tomem-se por heróis aqueles tais a quem os deuses, depois de lhes infundirem o dom de um talento sobrenatural e de lhes deferirem oportunidade e rasgo para com ele nos extasiarem, prematura e perversamente lhes cortaram o cordão da vida.

Sendo assim o jazz é um campo de mártires onde florescem tantas papoilas quantas as que recordam os sucumbidos nas tragédias antigas e delas parece ter assimilado o tipo. E se o observarmos em pormenor, será na fileira dos trompetistas que com mais inclemência enegreceram as sombras do fatalismo.

Ascendido hoje à categoria de imortal, Miles Davis teve o privilégio existencial de se confirmar e ainda de se consagrar em vida. Contudo este seu triunfo, que nem uma polegada desmerece do génio, é assombrado pelos fantasmas de dois contendores, que num período decisivo lhe disputaram a primazia e talvez pudessem ter arrastado consigo a história do jazz por outra vertente. Deles remanesceu uma aura e o vislumbre do que poderiam ter alcançado se tempo lhes fosse dado para singrarem ao longo das cordilheiras donde se avistavam novos horizontes.

O mais relembrado destes imagináveis rivais de Miles foi Clifford Brown. Este virtuoso, capaz de fazer do trompete o que queria, modulou um estilo que sem apagar as labaredas do bebop dominou-lhe as chamas, de modo a que não soltasse indiscriminadamente chispas em todas as direcções. Virtuoso era também Brown nos costumes: não bebia, menos se drogava, abstinha-se de correr atrás do primeiro rabo de saias. Nada disto o poupou aos azares que infestam o jazz; morreu em 1956 numa noite de chuva na berma da estrada. Tinha 25 anos.

Mas outro trompetista, muito menos recordado, um que precedeu Miles e foi mentor de Clifford Brown, tivesse impossivelmente sobrevivido à sua existência kamikase e sabe-se lá que outras constelações não se haveriam desenhado no céu do jazz.

Para dar conta dele há que recuar um passo no tempo, porque umas histórias começam sempre dentro e outras.

O que em tão pouco tempo e tão jovem Dizzy Gillespie derrubou e ergueu, esse ferocíssimo bebop, de tal modo era inovador e intenso que desde logo deu a impressão de o jazz se ter completado e nada mais ficaria por cantar. Isto nos alvores da década de 40 ao tempo em que as cidades europeias submergiam em fogo e morte. Na cola dele Miles hesitou um bom par de anos quanto ao rumo a tomar, desconfortável com as precipitações e velocidades que Dizzy imprimira e fizera norma, sem vontade de se enredar naquelas brenhas sonoras onde não floresceria mais do que como epígono.

Mas era o período que não consentia entretantos e na alcateia do jazz jovens lobos estavam sempre dispostos a pugnar com o alfa. De modo que o próprio Dizzy teve que se haver com o ímpeto de Fats Navarro (nada a ver…) e com a influência que imprimia na promitente geração. Com um pé ainda no swing das big bands e outro na insurreição do bebop Navarro ia deixando pegadas fundas à sua passagem. Foi solista nos melhores momentos das orquestras em que participou; ombreou enquanto parceiro com músicos suficientemente firmes, que não temerem a sua veemência capaz de roubar o protagonismo. Embora não faltem vestígios do seu génio o que Fats Navarro fez muito pouco foi gravar em nome pessoal. Se a sua vida era um turbilhão de ruindades e distúrbios como poderia a sua carreira ter algum norte? Tivesse-o conseguido com duração e consistência e nada do que sucedeu à sua prematura extinção em 1950 aos 26 anos de idade seria como veio a ser.

O futuro como se sabe não existe. O que fica dele são as promessas que deixou no passado. Tantas delas não tendo sido cumpridas permitem-nos augurar futuros possíveis e diferentes para os passados que nos chegaram.

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