Da pontuação I

[dropcap]P[/dropcap]aisagens de quase nada. Camadas de realidade em longitude.
“I am a forest, and a night of dark trees: but he who is not afraid of my darkness, will find banks full of roses under my cypresses.”*
Caminho.

As árvores que delimitam o caminho são as mesmas que o encobrem, numa simples curvatura do carreiro irregular. Serão?… A cada passo, outras na sua redonda aparência mutante. As mesmas. A cada passo afinadas as distância entre elas, entre nós. E elas. Numa coreografia que, dependendo das harmonias musicais, do ritmo, do número de pulsações segundo, de quanto teremos dormido na noite, com os anjos ou paralisados de monstros, nos induz um balanço suave, ou o desequilíbrio da tormenta.

Ou somente a serena e progressiva apropriação. Adaptação. Do olhar. Mas mantendo a percepção de que é real a variação de ângulos, sem deixar de o ser a orgânica mudança da aparência. Das coisas. Sendo elas e sempre. Mas sempre elas. E somente o olhar, a captar em imagens, diferente. Fotogramas de realidade que quando enfileirados perfazem o filme completo.

E, como elas, balançamos por acção do vento, mesmo se uma aragem amiga. E o olhar, recto – porque curvas, somente na imaginação. E a ficção, é a alma a encontrar caminhos bonitos para o que na realidade se resume, reserva e tolhe – fixando um ponto para não entontecer do rodopio. Não se formar da natureza sóbria e serena, um caleidoscópio de perturbação. Onde nos perdemos. Num temor maior do que o da floresta onde encontramos os passos que, somente a pouco e muito pouco, vão desenhando a cartografia possível.

Tanto se esconde em cada curva do caminho. Nos intervalos da flecha de um olhar. Melhor assim. E o horizonte, linear eternamente esquivo. Inalcançável em fuga para a frente. Desejado na intensidade de cada passo, porém. E depois, mesmo quando o caminho parece a direito, há sempre a curvatura geométrica da terra. A girar enquanto não se cansar. A sobrepor horizontes, a substituir linhas como se mal desenhadas. Na precaridade de cada momento de cada gesto imprevisto do corpo, de cada olhar. E vamos a favor ou vamos contra. O sentido dos ponteiros de um relógio. Mesmo parado, na suprema arte de ser livre. E regular.
E assim, nunca se sabe certamente o que está para lá. De Calcutá. Da linha do Equador, de uma face reservada, do meridiano de Greenwich. Coordenadas a tentar dosear quanto muito o estar, senão o ser. Caminhos são setas para a frente. Reticências boas, como pequenos salpicos de realidade que se apresentam aos poucos.

Todas as curvaturas interpõem novas linhas de horizonte. Essa é a verdade inquestionável no simples acto de pouco rigor de que é objecto o olhar. O ponto de vista que de tanto depende e em tanto se deixa mudar. Mas a noção do todo a estruturar as partes imperfeitas. Pequenos braços de flores. Fugitivas Rosas, em terror de Narcisos, são tristes Malmequeres. A gritar Amores-perfeitos. E Rosas e rosas com espinhos. Narcisos afogados, Malmequeres desfolhados. E amores sempre perfeitos contrafeitos e afirmados. Zoom out…
Floresta.

Caminhos na floresta densa, sem a noção longitudinal da terceira dimensão do carreiro possível, e apresenta-se um muro de troncos fortes, estanques e misteriosos e vidas a barrar qualquer visão em perspectiva. A noção do espaço. Como as volutas de uma cortina sólida e transversal a encobrir e a impedir. E não é assim, no entanto. Parece. Mas sabe-se de sempre que cada uma que se apresenta com se ao lado da outra e de todas as que são visíveis, e a fechar o olhar para o que depois, nem sempre está no mesmo plano. E como tal, abrem em si asas de vazio. Boas. Ao ensaio de caminhar. E assim se faz o caminho de desconhecimento e de saber teórico a moldar as possibilidades do olhar, do sonho. De continuar. A perspectiva, descoberta para ilusão da profundidade, ou a perspectiva, ardilosa, a iludir no real, a bidimensionalidade finita e aparente ao olhar. As árvores. E tentar para além das árvores. Como se o todo pudesse apresentar-se só assim. Por querer.

Fazer tempo. O tempo que se faz no caminhar.
E por entre as árvores. Mas não esquecer os sons bons. O estalar fino de ramos e o crepitar de folhagem seca sob os pés. A pontuar. O olhar para cima, entre ramos intrincados e folhagens densas. A entrever um céu sem dimensão e sem limite. E ser por momentos a sincronia exacta no espaço. A pontuação a fazer-se lugar de exactidão. No meio delas. E só por isso. Secretamente. Exclamações sóbrias, dramáticas ou afirmações delicadas, consoante a espécie e o estado do tempo. Conjugado no outro verbo.

*Friedrich Nietzsche

18 Nov 2019

Os jesuítas instalam-se em Macau

[dropcap]A[/dropcap] Embaixada de Diogo Pereira e Gil de Góis à corte de Beijing falhou, muito devido à falta de qualidade dos presentes enviados de Malaca e das informações dadas para a capital do Celeste Império (China) pelo Comandante dos dois Guangs e Vice-ministro da Guerra Wu Guifang, que fez tudo para esta ser recusada.

O comandante Tang Kekuan faltara à palavra dada aos portugueses aquando da ajuda militar por eles prestada, considerando como “uma vitória do seu próprio mérito e o Haidao [Wu Guifang], desconhecendo também o conteúdo do prometido, não os isentou do pagamento da mediação. Os bárbaros, inconformados com a situação, recusavam-se a pagar os direitos das suas mercadorias, o que fez com que as autoridades provinciais procurassem meios para colocá-los em apuros. Foi decretada a proibição de exportação de víveres para Macau. Esfomeados, os bárbaros acabaram por pagar os direitos em causa, mas lamentavam a falta de dignidade e de palavra por parte dos Chineses, sem saber que tudo tivesse sido obra do comandante Tang”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, que sugerem uma justificação para os mandarins faltarem ao compromisso: “conseguida a vitória, eles tinham de informar Pequim do sucesso e não podiam revelar o auxílio militar português, que fora o factor decisivo da repressão do motim, pelo menos, em documentos oficiais, embora Pequim pudesse saber a verdade, que não convinha ser divulgada.

E, por último, para isentar os Portugueses do pagamento dos direitos era preciso justificar perante a Corte.” Tien-Tsê Chang refere, “o governo em Pequim recusava-se firmemente a ter quaisquer relações oficiais com os portugueses.” Já Beatriz Basto da Silva, corrigindo na segunda edição da Cronologia da História de Macau o que deixara escrito na primeira, escreve, “Os portugueses de Macau recebem um agradecimento formal pela ajuda prestada na luta contra a rebelião de 1564, mas não se livram de pagar 20.000 taéis de prata pela ancoragem dos seus navios, nem do ‘foro do chão’ pelo uso da terra e do porto de Macau, que já vinha de 1559/1560 (500 taéis só para o foro). Recebem ainda a promessa de caso cumpram os direitos alfandegários, não lhes serem ‘tolhidos’ os mantimentos, antes ‘dobrados’. Trata-se do fecho e abertura das Portas do Cerco”, porta grande que João de Escobar refere existir em 1565.

O fracasso da Embaixada levou também a Companhia de Jesus a não conseguir estabelecer-se na China. Aos jesuítas vindos na embaixada com Gil de Góis, os padres Francisco Perez e Manuel Teixeira e o Irmão André Pinto, nos finais do ano de 1565 o provincial da Índia António de Quadros deu-lhes ordens para ficar em Macau e estabelecerem-se em casa própria. Em Dezembro deixavam a habitação de Pero Quintero, andaluz e ex-mordomo do vice-rei do México, onde tinham duas dependências muito boas e cómodas e uma varanda com um altar, em que diziam cada dia duas missas, e junto a ela edificaram a primeira residência estável da Companhia de Jesus em Macau, construída de palha como eram todas as casas. Ao lado da actual igreja de Sto. António, local onde já em 1558 existia uma capela, a construção ficou a cargo do padre Francisco Perez. O padre André Fernandes chegava em 1565 para, juntamente com o padre Manuel Teixeira e o irmão André Pinto, dar assistência religiosa aos mercadores portugueses que sempre são muitos, mas durante esse século XVI os jesuítas não se mostraram interessados em converter os chineses que aí viviam.

Rápido desenvolvimento de Macau

Na península de Macau, situada no extremo Sul da grande ilha de Heung Shan (em mandarim Xiangshan), começava a surgir uma povoação de características portuguesas. O Censor Provincial de Guangdong/Guangxi Pang Shanpeng, que em 1564 esteve em Haojing (Macau), é o primeiro a referir o nome Ao Men (Ou Mun em cantonense) e escreveu que em menos de um ano os portugueses “construíram centenas de casas, existindo então mais de mil”, segundo José Maria Braga.

Victor F. S. Sit refere, em 1563 Macau “por um lado, possuía apenas uma estrutura social fracamente organizada, e por outro lado, a China ainda não tinha reconhecido aos portugueses o direito de residência. A povoação portuguesa era governada pelo Capitão-mor das Viagens da China e do Japão, quando ele se encontrava em Macau. Na sua ausência, a administração competia a um senado localmente eleito, constituído por um juiz e três comerciantes proeminentes. Todavia, tratava-se duma organização que não possuía ratificação nem do Rei de Portugal, nem do vice-rei da Índia portuguesa. Nesse ano, o pirata chinês Zeng Yiben fez ataques a Cantão, Zhongshan e Macau. Foi nestas circunstâncias que, em Macau, chineses e portugueses se reuniram na construção, em 16 dias, duma muralha em terra batida à volta da povoação, com quatro torres quadradas de vigilância e 460 metros de comprimento. Isto pode ser considerado o primeiro passo na construção duma cidade permanente.”

No período 1571/72 fora “formalizado o pagamento regular de Macau às autoridades chinesas provinciais de Guandong (500 taéis de prata que seguirão para o tesouro do Império)”, refere Beatriz Basto da Silva, que diz, “Entre 1573 e 1575, Macau consistia numa rua central cercada de grades de madeira, dando acesso a quatro quarteirões. Nada mais. Mas com paróquias e Igreja Matriz, Sto. António, depois N.ª Senhora, junto da Santa Casa, vigários e autoridades, e com cidadãos de mérito!”

As primeiras instituições que apareceram em Macau foram obra de D. Melchior Carneiro Leitão S.J. (1515-1583). Sagrado Bispo de Niceia em Goa a 15 de Dezembro de 1555, foi em 1567 designado pelo Papa Pio V para governar as Missões da China e do Japão. Já em 1559, a par com o cardeal D. Henrique, tinha sido um dos fundadores e reitor da Universidade de Évora. Chegara em Junho de 1568 a Macau, onde fixou residência e logo criou um hospital para leprosos e em 1569 a Santa Casa da Misericórdia. Ano em que terá ido a Cantão, onde se demorou algum tempo e aí voltou em 1575, fazendo “em vão todos os esforços por estabelecer-se em Cantão, como Bispo da China que era”, segundo Benjamim Videira Pires. “O Bispo passaria a ter uma intervenção directa, embora informal, no governo daquele estabelecimento, juntamente com o capitão-mor da viagem ao Japão, uma vez que Macau não dispunha ainda de autoridades municipais.”

Por bula de Gregório XIII de 23 de Janeiro de 1576, anexada ao Arcebispado de Goa foi criada a Diocese de Macau, desligando-se da de Malaca, à qual pertencera durante dezoito anos, sendo nomeado bispo D. Diogo Nunes de Figueira. Pela renúncia deste, foi D. Leonardo de Sá eleito Bispo do Japão e da China em 1578, mas só aqui chegou em 1581. Assim com jurisdição eclesiástica sobre o Extremo Oriente, que abrangia toda a China, Japão, terras vizinhas e ilhas adjacentes, ficou D. Melchior Carneiro como primeiro prelado a governar a Diocese de Macau. Assistia-se no Oriente a um enorme desenvolvimento missionário.

18 Nov 2019

Dar nós no horizonte

CCB, Lisboa, 3 Novembro

 

[dropcap]O[/dropcap] novo poiso do Obra Aberta, a sala Ribeiro da Fonte, deixa que o olhar parta rio afora, acompanhando as ondas que a conversa lança, do lado de cá do vidro. Desta, convocados estavam o Pedro Mexia e o João Paulo [Esteves da Silva], que levou obras de e sobre Pessoa, com passagem por Mário Cesariny mai-lo seu Virgem Negra, que desconsidera como escarninho menor. Oiça quem possa, no útil podcast, que o Pedro, do seu lugar de grande leitor, também acrescenta sempre perspectiva. Serve o intróito para registar a metáfora que por ali se instalou e nos acompanhou na breve viagem sob chuva, ali do quase-foz até ao quase-centro. Pessoa enquanto buraco negro que suga a energia que o rodeia, que apaga as estrelas que se avizinhem. E confidenciou que, em certas Quintas de Leitura, orquestradas pelo João [Gesta] em torno dos Poetas do Desassossego, e enquanto acompanhava ao piano inúmeros poetas fortes, mal se agigantou o Lisbon Revisited, logo o resto se apagou ou, pelo menos, acinzentou. Estranha quântica, esta. O João Paulo contou que só agora e a medo foi regressando ao poeta múltiplo, após fase antiga em que (quase) nada mais leu, deixando contaminar as suas múltiplas expressões. Pranto-me quedo a ouvir os seus álbuns (sem palavras), em busca do que de pessoano possam conter. E perco-me com facilidade nestas paisagens que nunca por nunca se fazem agrestes, mesmo nas asperezas de certos nós, de ritmos incertos, cadências a desfazerem-se, a multiplicarem-se. «Ó macio Tejo ancestral e mudo,/ Pequena verdade onde o céu se reflecte!/ Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!/ Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta./ Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…/ E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!» Apesar da extrema solidão, não estamos sós da mesma maneira, isto conservo das conversas sobre a toalha da timidez que vou tendo e de raspão com o João Paulo. Vejo na sua recolha poética mais recente, «O Coração de Adão» (ed. Douda Correria), a unidade ser sacrificada em prol da variedade jazzística habitual, do encontro bruto com o quotidiano, do esforço para capturar o espiritual, da investigação incessante da palavra e de composição da métrica. A estafada e tão desperdiçada, por estes dias, expressão «Ser do Contra», ergue-se título de poema, no interior do qual lavro trilho. «Compara-se a vida/ a um caminho;/ percebo a ideia./ Mas, por algum motivo, recuso,/ sinto o contrário, sinto/ a vida como um não caminho;/ antes um fundo latejante,/ de frequência altíssima/ a tender para o infinito/ sobre o qual os caminhos se abrem/ com passos de morte.»

Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro

A surpresa ganha forma de um anel e nunca assim tinha visto um arco-íris feito jóia, como deviam ser todas. Há uns três anos, uma amiga anunciava-me a paixão pela joalharia e logo se atreveu a medir-me os dedos com papel. O papel impresso enquanto medição dos passos e do horizonte parece ser território comum, agradou-me o momento no reboliço de feira literária e esqueci-me. Acontece-me bastas vezes o esquecimento, forma sagaz de sobreviver. Voltou agora mesmo com singelo embrulho que acamava um anel.

E estas linhas pertencem ao espanto: o objecto mudou-me a mão e portanto o mundo. Vários círculos de tonalidades prateadas, cavalgando-se em redondo e plano, com espessuras dissonantes a desassossegarem-se no fecho, marcam-me doravante o médio da mão direita. Diz a Ana [Castro] que partiu do ípsilon e do que nele encontrou de profundidade, escuridão, mistério, e ofereceu-se na mesma frase para limar arestas. Desnecessárias. A peça aconchegou-se que nem ser vivo e marca-me os dias com presença inusitada. Pego no copo com a mão direita e logo vejo o entrançado a comunicar-me uma força que vou perdendo. Tamborilo na mesa a melodia e um certo toque assinala mais do que a carne muda. Dou por mim a rodá-lo com os dedos da mão esquerda enquanto penso, a modos que sintonizando. E se fecho as mãos em apoio de cabeça há um perfume acre que me atinge. Dois pontos vizinhos no círculo interior que toca a pele estabelecem meridianos com ligações sensíveis às veias, as que nos irrigam mesmo em tempo de deserto.

Trago as páginas aos olhos com estes dedos, pousado o livro na mão esquerda. Como afectará a leitura as sombras que do anel se emanam? Depois, e por exemplo, a mão entrando no bolso pede mais cuidado, sinal de que possuo saliência extra. Poderia continuar, fascinado por nunca me ter ocorrido que o metal trabalhado nos poderia afectar assim. E conter retrato (sinuoso).

Aeroporto, Pisa, 7 Novembro

Detesto viajar. Melhor, detesto o absurdo vazio de tempo e espaço em que transfiguraram os hiatos entre cada lugar. À chegada ao aeroporto de Lisboa, notícia agreste quase me faz ficar. Arrisco impotente, deixando para trás parte de mim. Não quero enumerar as muitas peripécias antes e durante o voo em lata de sardinhas confirmando esta minha sensação de que sou árvore da qual são voarão sementes. Que brilhe, então, o momento quando atravessando como qualquer passageiro frio e chuva chego à Toscânia e sou travado pela farda: de onde vem?, para quê?, quanto dinheiro traz? Hesitei em beijá-la na boca para saber o gosto da guarda e do castigo, mas fiquei-me cobardemente. Há sempre uma fronteira para malfeitores como este vosso criado, nem que seja de giz.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 8 Novembro

O beijo na face, por aqui, começa-se da esquerda para a direita. Diverte-me, o embaraço com que começam os encontros desencontrados.

Ergo o capacete colonial saudando a Valeria Tocco, que isto de feiras e festivais tem o seu quê de selva e areias movediças, versão Salgari, no caso. (Eis um que, sem sair do sítio, tanto fez viajar). Logo se perfilam Marco Bucaioni e Riccardo Grego na qualidade de editores de risco, a domar demónios em nome de uma paixão exaltante pela língua portuguesa que se ergue como praça medieval. Do lado de lá edificam-se os tradutores, Vincenzo Barca, Roberto Francavilla, ou a Francesca Leotta, e de par, oriundos de uma academia com invejável dinâmica, pontuam a Valeria, o Andrea Ragusa ou o Giorgio De Marchis. E os lados não se tocam apenas, sobrepõem-se, misturam-se, festejam-se. Na companhia do gentilíssimo Almeida Faria e do não menos afável Luís Cardoso entrámos ecossistema adentro. O chão que se pisou foi sempre o da avassaladora paixão pelo português, que merecia política de língua capaz de a amplificar. Vi salas cheias a sofrer explicação meticulosa sobre acessos institucionais, a beber cada palavra dos escritores que se entregaram com sabedoria. Quase me comovi com os tradutores do Valério [Romão] a partilhar dificuldades, a revelarem-se evangelistas da prosa de um «mondo disperato». Ouvi discutir equivalências de sericaia para evocar planícies do sul. E estou preparado para testemunhar que os apoios oficiais são seiva essencial nesta floresta. Percebi ainda a falta de exploradores da dimensão de um Antonio Tabucchi, apesar dos herdeiros.

Palazzo dei Congressi, Pisa, 9 Novembro

A última sessão, repetindo protagonistas, mas orientados pelo Giorgio, tinha a intenção de pintar futuros para a literatura portuguesa. Preferia um qualquer lirismo, beato que fosse, ao tecnicismo tristonho acerca do mercado, da ausência de curiosidade, da morte dos embaixadores em que nos deixámos cair. Até que o moderador trouxe, com a ajuda sempre fértil de Bruno Munari, a metáfora perfeita para o assunto da edição, dos livros, da literatura: «una poltrona scomoda» (imagem na página).

17 Nov 2019

Falha sistémica

[dropcap]C[/dropcap]hile, Bolívia, Catalunha, Paris, Hong Kong. Em todos estes lugares, algures neste ano ou mesmo agora, as pessoas encheram ou enchem as ruas para revindicarem, de forma mais ou menos violenta, o cumprimento de determinadas aspirações de uma parte da população para as quais a política e os múltiplos instrumentos pelos quais actua não tem encontrado solução. Não quero dizer com isto que as múltiplas soluções requeridas existam e que os diversos governos as soneguem ou não as queiram implementar. Seria talvez necessário viver muitas vidas para compreender tudo o que se está a passar em cada um destes lugares. O que quero dizer é que o exercício regular da democracia, para estes cidadãos que vão para a rua confrontar a polícia ou o quem quer esteja do outro lado da barricada, não é suficiente. Falhou. E tem vindo a falhar estrondosamente, mesmo que o conjunto de sintomas noutros lugares pareça ser de certo modo mais brando, mais superficial.

E isto é um desastre. É um desastre porque a erosão de confiança resultante de décadas de má governação se traduz numa clivagem cada vez mais acentuada entre governados e governantes, abrindo espaço para que a demagogia e o populismo possam meter pé à porta e pouco a pouco franquear a entrada. Não nutro qualquer simpatia pelos populistas dos extremos ideológicos porque estou convencido de que a política é, fundamentalmente, uma arte de consensos. Estou convencido de que para obter x talvez tenha de conceder y, porque é impossível governar num espartilho ideológico fundamentalista. Cada um de nós é apenas um pequena parte de um conjunto muito heterogéneo de pessoas com necessidades e aspirações muito diferentes umas das outras. Quer isto dizer que devemos transigir relativamente a direitos e deveres fundamentais? Não. Quer apenas dizer que não devemos transigir unicamente em relação a esses. Tudo o resto deve poder ser negociável.

Como votante errático sinto-me responsável pelo estado de semi-desesperança a que chegámos. A nossa jovem democracia parece ser unicamente jovem nas virtudes; nos vícios, parece ter séculos de experiência. Quando viajamos e perguntamos, perante uma situação de manifesta injustiça “mas como é que as pessoas se deixam tratar assim?”, devíamos parar e fazer essa mesma pergunta ao espelho. A canga de casos que diariamente enche as páginas dos jornais – todos ou quase todos eles a soro –, para além de ser capaz de nos fazer corar de vergonha, alimenta, mesmo que a conta-gotas, o taxista que há em cada um de nós. Temos um ex-primeiro-ministro a ser julgado. Aparentemente, ninguém se deu conta das dezenas de falcatruas que fez vida fora até lhe entregarem um partido e, subsequentemente, uma maioria absoluta e um país. Muitos dos ministros do actual governo privaram e trabalharam com o homem. Não estou a dizer que tenham ganhado o que quer que seja com isso.

Vamos até partir do pressuposto que não. Que foi um sacrifício. Mas anuíram. Compactuaram. E de cada vez que em qualquer partido se transige com a corrupção, o nepotismo ou o tráfico de influências, está-se a inocular veneno no sistema circulatório da democracia. Veneno que alimentará os milhares de ovos de serpente que existem e que sempre existiram e que esperam apenas por um clima mais propício para eclodirem.

A política portuguesa é aflitiva de ver. É de uma menoridade intelectual que faz brotoeja. Quando não dá asco, dá sono. As pessoas procuram nas frinchas dos discursos uma nesga de substância e de sentido em que se vejam representadas. Salvo umas excepções dispersas, os políticos portugueses dão a sensação de terem sido cooptados para entrar a meio de uma peça com instruções para fazerem o que o tipo do lado faz. É menos penoso assistir a um jogo de um campeonato regional qualquer de curling. E essa mediocridade, que todos merecemos por igual e que poucos fazem por contrariar, é o suplemento vitamínico das muitas bestas que espreitam uma oportunidade.

15 Nov 2019

A vida sempre a perder

[dropcap]E[/dropcap] uma vontade de rir nasce do fundo do ser.
E uma vontade de ir, correr o mundo e partir,
a vida é sempre a perder…

Hoje, fiz como o meu pai fazia. Levei a “gaitinha” para a casa de banho. Levava sempre o transístor como companhia da sua higiene matinal. Esta foi sua companheira de décadas. Dei por mim a escanhoar-me. Não que vos importeis com isso, mas não sou assíduo. Hoje, fui. No posto sintonizado passou aquela canção dos Xutos melódica e melancólica como o dia de hoje que é depois do dia de ontem e é triste, trágico. O Tim diz alguns versos que sempre foram para mim imperceptíveis mas hoje as dúvidas dissiparam-se. Eu achava que fazia sentido o complemento “ir” e que o trágico não combinava com “rir”. Não, nesta música. Não, como o que nasce do fundo do “ser”. Fui ver a letra e afinal é “ir” e “rir”. Prefiro a vontade de “ir”. Hoje não tenho nenhuma vontade de rir e do ser não cuido que nasça nenhuma vontade nesse sentido, sobretudo quando domicilia a vida, quando a vida é sempre a perder.

Mas de onde vem esta evidência de que “a vida é sempre a perder” que a canção ecoa? Não temos noção do tempo como sucessão, apesar de falarmos da sucessão do tempo. Olhamos para as paisagens conhecidas e elas são exactamente as mesmas quando olhamos janela fora, os percursos de casa para o trabalho, o jardim da escola da infância, o recreio do liceu que fica nas traseiras da minha casa, a ponte sobre o Tejo. Se sabemos que o tempo passa de onde vem esse conhecimento?

Como temos a consciência disso? É uma consciência íntima do tempo? Se é íntima é só interior e nada tem que ver com o que acontece fora? Se não houvesse movimento, haveria a percepção da distribuição dos obejctos por espaços diferentes e assim por tempos diferentes? E se nada se movesse, teríamos a percepção do movimento? Se estivéssemos sempre mudos e nunca falássemos de nós para nós, teríamos a percepção de que seríamos diferentes à hora do pequeno almoço e à hora do almoço? E se fôssemos diferentes no nosso interior, será que o exterior seria diferente? E se o exterior fosse diferente, será que o nosso interior se alterava? Não podia tudo ser diferente, interior e exterior? Não podia tudo ficar na mesma?

“A vida é sempre a perder”. Mas a perda é perda do quê? É perda do que temos como adquirido? É perda de faculdades, de posses, de pessoas, de amizades, de amores? É perda do que temos ou tínhamos ou do que achamos que temos ou achávamos que tínhamos? A perda de que a canção fala é a da vida. A vida é sempre a perder é a própria condição. “Sempre” não quer dizer apenas muito tempo. Quer dizer: continuamente. Durante o tempo em que estivermos vivos estamos continuamente a perder. Estamos continuamente a morrer. Durante o tempo em que estivermos vivos temos de ter a percepção de que estamos vivos. A própria percepção da vida é mortal. A percepção da morte é mortal. A vida é mortal.

A morte do outro não nos deixa apenas o mundo inteiro só com menos uma pessoa. Não é apenas o teu mundo que se foi. É um mundo que se foi. Uma pessoa é um mundo. Há tantas pessoas quantos mundos. Não se percebe como a subtracção, alguém riscado, ausente, que não responde à chamada, na verdade, é um acontecimento como um “buraco negro” que dizem que tem densidade ontológica e existe portanto como irrealidade.

Existir a vida sempre a perder não é nada. É o que é. E de lá, do fundo do ser, do horizonte do ser, não pode nascer nenhuma vontade de rir. Nasce uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder.

15 Nov 2019

Bloom, doze anos antes

[dropcap]N[/dropcap]o Outono de 2007, Harold Bloom revelou no The New York Review of Books que tinha decidido “voltar a ler Shakespeare em vez da Bíblia, depois de ter regressado à vida”, na sequência de alguns dias de internamento. E a conclusão surgiu logo a seguir com clareza: “Não há separação entre vida e literatura em Shakespeare”.

Este “back to life” não podia ser mais auspicioso. Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo, o vivido, a disposição policial e a produção de imagens inauditas, Shakespeare, na linha de Bocaccio, foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam os acervos memoriais do seu tempo. É quase a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que se reproduzem como cerejas a partir dos media e das redes sociais, criando cadeias ficcionais apaixonadas e delirantes (que replicam as funcionalidades mitológicas do ‘exemplum’), e os acontecimentos e as histórias que se constituem, no nosso dia-a-dia, sob a forma de cápsulas instantâneas ou de simples vaivéns de conjuntura.

O público da actualidade procura (ainda que involuntariamente) as grandes metáforas da vida nas curtas narrativas que os media vão desdobrando sobre os fragmentos soltos do quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos reais que são eleitos como notícia, se forma, com total impotência por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas e rumores que acaba por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional. É o que tecnicamente se designa por meta-ocorrência ou narrativa conspurcada (tão própria das redes sociais) em que proliferam milagres, delírios, pseudo-polémicas inconsequentes e os já habituais – e cada vez mais apurados – adereços “fake” induzidos.

Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal nos últimos anos. Os exemplos inundam-nos, submergem o quotidiano e são facilitados pela massificação globalizada que oscila entre as esferas do público e do privado e no seio da qual o impacto dos media é diagnosticado sobretudo por filtros passionais e afectivos. Existirá, pois, uma correspondência entre estas novas cadeias ficcionais – espécie de ‘literatura de cordel high-tech’ – e o mundo das alegorias que procurava o milagre e a disrupção para traduzir as relações entre a virtude e o interdito, ou entre o conhecido e o desconhecido.

Enfim: Bloom teria a sua razão, quando separava o patamar da parábola que reinventa com enlevo a realidade e o patamar da conta-corrente que a relata, amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem ou reaparecem). Num e noutro, o “canône” não deixa de ser um beco com saída (apenas) para a imaginação. Num e noutro, são os antigos requisitos da fé que se sublimam.

Para quem recuperava à época de uma doença grave, é normal que as ilusões deste segundo patamar se tornassem mais aliciantes. Mas para quem calcorreia o stress do dia-a-dia, nada melhor do que umas prestidigitações mágicas à Méliès aliadas ao furor das cerejas. Como se umas e outras fossem verdade, ainda que, no nosso tempo, o sentido – a simples produção de sentido – se imponha cristalinamente aos apetites da verdade.

Recuperei esta brevíssima reflexão justamente no dia em que Harold Bloom faleceu: 14 de Outubro de 2019. Volto agora a dar-lhe luz. E faço-o porque me foi importante lê-lo, a despeito dos detractores, muitos deles ‘formados’ dentro de barricadas claustrofóbicas e com capacidade para distinguir apenas um limitado segmento do horizonte (sei bastante bem que, do outro lado, existem barricadas simétricas e ‘muito seguras de si’, com usos e costumes em conformidade). Coisa de claques, afinal. É a vida.

*The New York Review of Books , Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40.

14 Nov 2019

O encontro

[dropcap]C[/dropcap]ircundou-me sentando-se à minha mesa, num gesto felino, sem pedir licença. Ela e a sua canadiana. Olhei-a de soslaio. Fiquei surpreendido, era o retrato da minha avó materna aos quarenta e picos. O meu olhar dividia-se entre o ecrã, onde o Liverpool fulminava o City, e aquela efígie de nariz em gancho, o cabelo preso noutros dois ganchos, e a mirada compassiva que visava a cadela enorme que começou a ladrar nas minhas costas: Estrela deita!, ordenou. No que foi obedecida.

Olhei a bisarma, a sua cor impossível, de madrepérola. Ela sossegou-me, Muito meiga, catorze anos. Fixei-lhe o rosto, via como a minha avó fora bonita, um sorriso solto enfeixado no brilho dos olhos. Fez um aceno com a canadiana e diz-me, como se encantada, Oito anos, um AVC. Dizia-o e sorria.

Colou-se-me um ar espantado, perguntei, Que fazia antes? Pegou sem cerimónia na minha lapiseira, pousada no caderno aberto, e começou a redigir uma palavra com dificuldade, letra a letra. A meio adivinhei: Socióloga. Isso, acrescentou, sublinhando com o indicador, na amabilidade que se oferece límpida. Oito anos, AVC, repetiu. Mas muito feliz, esclareceu, rindo, antes de rematar, É a vida! Era impossível não acreditar, irradiava. Tive cadeira de rodas, agora canadiana, orgulhava-se. E consegue ler? Lia muito, hoje difícil, escrever difícil, ler difícil… É um problema de concentração, anui. Isso, apontou a cabeça, desenhando com a mão o lóbulo, Muito afectado!, antes de lhe sobrevir um novo sorriso traquinas e de voltar: Sou feliz! E com tal condão o afirmava que era impossível descrer, mesmo imaginando como teria perdido a fala e a conquista que fora aceder de novo à palavra. É a vida!, repeti eu.

Conversámos durante vinte minutos. Entendia tudo, rápida e sagaz, apesar das dificuldades na fala e de tropeçar nalgumas sílabas que lhe pedalavam no vazio. Tinha um filho de dezasseis anos, que agora vivia com o pai. Tiveram de ir embora… impossível, com isto… mas visita-me! – acentuava, com o ar de quem recebe uma graça! Reformada por invalidez!, gaguejou, espreitando-me os livros, sobre a mesa, curiosa. Mas muito feliz!, repetia e o seu sorriso não autorizava pena, antes contagiava.

Depois a cadela começou a ficar impaciente. Quer ir embora… farta! É a sua guardiã, mede-lhe os tempos de tolerância… – brinquei. Isso! E ri muito. Estrela, espera!
Saiu pouco depois, aquela mulher (onde se sobrepunha o retrato da minha avó paterna, também ela espontânea) que fora tu cá tu lá com o Pierre Bourdieu, mas agora se conformava a um expressão afásica, castigada, embora serena, de uma tão nítida alegria de viver com o seu poucochinho, que me perturbou; foi mesmo o encontro que mais me impressionou nesta visita a Lisboa.

Acabou o jogo, emborco o vodka e rumo a casa, rememorando aquele sorriso que me tamborila no crânio. Recosto-me no sofá, abro a net e leio esta notícia:
«As autoridades russas detiveram este sábado um conhecido professor e historiador suspeito do homicídio de uma aluna de 24 anos, com quem colaborara em vários trabalhos.

Oleg Sokolov, professor na Universidade de São Petersburgo e condecorado com a Legião de Honra da França, foi apanhado pela polícia local depois de ter caído ao rio Moika, na mesma cidade, enquanto tentava desfazer-se do corpo desmembrado da jovem. Estaria bêbado.
Ao ser resgatado, a polícia encontrou dois braços humanos dentro da mochila que carregava. Na habitação do historiador estavam as restantes partes do corpo de Anastasia Yeshchenko, a aluna com quem Sokolov colaborou em diversos trabalhos.

Alexander Pochuyev, advogado do suspeito, confirmou à AFP que este já confessou o crime e que está a colaborar com as autoridades. Disse que matou a jovem, com quem alegadamente mantinha uma relação amorosa, depois de uma discussão.

O homem terá dito ainda que tinha planeado desfazer-se do corpo para depois cometer suicídio em público, vestido de Napoleão. Sublinhe-se que foi consultor em vários filmes históricos e escreveu vários livros sobre Napoleão Bonaparte.»

Que contraste, entre a nobreza daquela mulher incapacitada, cuja inteligência correra outrora a alta velocidade até à hemorragia que a estancou, e que vive de poucos acordes e das dádivas de um presente amarrado à difícil artesania das palavras e ao pontilhado das sensações, mas ancorada num evidente equilíbrio emocional, e este grosseiro Napoleão de pacotilha, a quem a cultura e as honras só perverteram, uma besta de pomposa fatuidade! E tantos conheço iguais!

Lembro-me de Transtromer, do poeta sueco a quem em Novembro de 1990 um derrame cerebral atirou para uma afasia profunda e para o silêncio de três décadas, entregando-se à sua grande paixão: ouvir música. E lembro-me sobretudo deste seu poema, de que fiz uma versão: «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra / mas nada de linguagem – //parto para a ilha coberta de neve. // O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas/ encadeiam em todos os sentidos.// Dou de caras com as pegadas/ de um cervo na neve:/ nada de palavras mas uma linguagem.»

É isto mesmo, a Ana Cristina – perguntei o nome da socióloga ao empregado de balcão, depois dela ter saído – perdeu as palavras mas tem uma linguagem, ganhou o seu combate, ao douto macacão Sokolof só lhe resta o papagueamento das palavras de outros e a cagança das honrarias com que caricatura a vida que nunca lhe pertenceu.

14 Nov 2019

O escuro que criamos

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And—which is more—you’ll be a Man, my son!
If, de Rudyard Kipling (excerto)

 

[dropcap]E[/dropcap]screvo estas palavras no Remembrance Day. É um dia em que no Reino Unido e na Commonwealth são lembrados e honrados todos os que tombaram em combate em vários conflitos, tendo como pretexto o Armistício que pôs fim à Primeira Grande Guerra. Há cerimónias sentidas, depoimentos extraordinários de veteranos que salientam aquilo de que é capaz o ser humano sob enorme pressão. E o que é capaz é do melhor e do pior. Forjam-se amizades eternas em instantes partilhados num abrigo de uma chuva de balas. Todas as limitações são superadas perante a iminência da morte. Muitos não regressaram. Outros sobreviveram mas ficaram reféns de algo muito pior: a desumanização que o campo de batalha sempre oferece.

O Remembrance Day é respeitado por toda a Commonwealth e por todas as suas forças políticas. A papoila que lhe serve de símbolo e que originalmente foi criada para lembrar o sangue dos que caíram na batalha de Flandres – que na verdade são várias e que decorreram do início ao final da Primeira Grande Guerra (sendo que a quarta, a de La Lys, resultou no massacre de quase todo o Corpo Expedicionário Português) – é usada por toda a gente com orgulho e sentimento, do cidadão à rainha.

Não se trata de uma exaltação do belicismo, pelo contrário: só a memória nos torna humanos e ao lembrar a guerra deseja-se a paz. E é extraordinário voltar a descobrir os imensos contrastes que oferece o que parece ser um determinismo da nossa natureza. Existe sempre a arte, neste caso a poesia, que acompanhou homens e mulheres na mais negra das horas. Vejam os versos em epígrafe: é a última estrofe de If, um poema de Rudyard Kipling (hoje desdenhado por supostamente representar o imperialismo e o colonialismo britânico ). Aquele poema ganhou uma imensa popularidade entre os soldados que combateram nas trincheiras na guerra de 1914-18.

Levavam-no nos bolsos dos uniformes, como um bálsamo. Muitos morreram com ele.
Ao meu lado tenho outro objecto extraordinário: uma reedição (1930) de The Spirit of Man: An Anthology in English & French from the Philosophers & Poets made by the Poet Laureate in 1915.

É uma antologia em papel bíblia (India paper), feita por Robert Bridges para os que iam combater e para os que ficavam. Poemas e frases portáteis. Está dividida por temas – Desejo Espiritual, Amor Ideal, Melancolia, Vida Na Morte, etc – e os autores de cada texto escolhido só são revelados no final do livro. Não há nomes: há um espírito maior, há uma arte que com sorte consola. Não é uma arte que salva, porque nenhuma arte é capaz de ter essa ambição salvífica e muitos são os que não querem ser salvos. É uma arte próxima, prática, solitária, confidente.

Gosto destes dias de lembrança, confesso. Sobretudo pelas piores razões, que nos levam a olhar mais fundo quem somos e do que somos capazes. Steven Pinker, um magnífico ensaísta e ainda mais corajoso optimista sobre a natureza humana, afirma no seu The Better Angels Of Our Nature que apesar de tudo a violência tem vindo a decrescer sob todas as formas na nossa época.

Acredito. Como receio que nunca irá parar até ao final dos tempos. Mas que sobreviva um poema, algo que nos alumie no escuro que nós próprios criamos.

13 Nov 2019

O espelho retroactivo

[dropcap]N[/dropcap]uma bela tarde de início de Primavera, junto a um bosque nos arredores de Curitiba, Jefferson e Tales conversavam no jardim da casa deste último, depois de um longo almoço. Conversavam sobre a vida e a morte, sobre amores perdidos e o que lhes faltava ainda fazer no tempo que esperavam ter de vida, rente que estavam dos cinquenta anos. Tanto o dono da casa como o seu amigo ganhavam a vida como publicitários numa empresa multi-nacional, acabando por passar muito tempo juntos no trabalho e, de quando em quando, também fora dele, embora cada vez menos, desde que Jefferson deixara de beber.

Durante o almoço, Jefferson bebeu coca-cola e Tales abundantemente cerveja. Terminado o repasto, o dono da casa abriu uma garrafa de cachaça, uma “Boazinha”, de Minas, que Jefferson identificou por dentro e por fora, e continuou a conversa. Bebeu uma, bebeu duas, bebeu três e quando se preparava para servir a terceira, o amigo disse-lhe que era melhor dar um tempo com a cachaça, levando Tales a perguntar-lhe: “mas agora tens alguma coisa contra o álcool, deste em pastor?” Com “coisa” e “pastor” pretendia atingir o amigo com uma pretensa falsa moralidade da parte dele. Mas Jefferson respondeu-lhe: “Não tenho nada contra o álcool, Tales, como bem sabes.

Ou por outra, tenho muito contra o álcool, mas é pessoal e não transmissível. Estou apenas a tentar que a cachaça não me roube o amigo. Em breve não serás tu que vais estar aqui à minha frente, mas um outro completamente diferente, que irá preferir a cachaça à minha amizade ou a mim mesmo.”

Jefferson sabia por experiência de muitos anos que a partir de um dado momento, fica-se refém do álcool. Aquele que não pára de beber, tudo fará para continuar a beber, a despeito da amizade ou de quem estiver com ele. Aliás, a partir de um determinado momento, ele vai preferir qualquer um que continue a beber com ele, a um amigo que não beba, porque na verdade a partir desse momento o que ele quer acima de tudo é beber e mais nada. O seu horizonte é não parar de beber até que não consiga beber mais… ou que outra qualquer razão o consiga levar para casa, para o chão da rua ou, neste caso, para a cama. Jefferson tentava evitar que esse momento acontecesse. Ele não tinha medo que isso viesse a acontecer, ele sabia que ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Sabia também que a sua conversa não iria fazer com que Tales parasse de beber, embora tivesse esperança que fizesse abrandar o ritmo com que bebia. Mas, infelizmente, Tales ultrapassara já aquele ponto em que não é mais possível ter mão nele. Tecnicamente não estava ainda bêbado, mas descontrolado, eufórico e erradamente ciente de estar certo de tudo quanto dizia, mesmo que o que dissesse fosse afirmar que não sabia. Um “não sei” que soava como se Sócrates saísse de um dos diálogos de Platão.

Tales acabou por acender um cigarro e ficar a olhar atentamente um bem-te-vi junto à churrasqueira, com uma enorme minhoca no bico, que ainda se debatia perante a proximidade do fim da vida. Parecia que o próprio pássaro fitava Tales, como se tentasse compreender a vida dele, ou apenas o que levara a estar agora ali à sua frente. Jefferson deu-se conta da reflexão do amigo e não o interrompeu, deixou-o estar, na esperança de que a destemida troca de olhares entre homem e animal produzisse algum efeito benéfico em Tales, até porque a observação dos pássaros era uma das paixões do amigo, partilhada por ele. Levantou-se e foi lá dentro, à cozinha, fazer café. Quando regressou à mesa, com o café, já Tales tinha voltado a encher o copo com cachaça, e mais do que uma vez, pelo que faltava de líquido na garrafa. Jefferson sentou-se à frente de Tales e serviu café aos dois. Acendeu um cigarro, ouviu o som da cachaça a cair de novo no copo e Tales começando a dizer coisas sem sentido, repetidamente. Jefferson percebeu que acabara de perder o amigo. Mas ao levantar-se da mesa ainda lhe perguntou, como quem espera um milagre na resposta, “Queres ir dar uma volta no bosque? Já viste algum pica-pau do campo, este ano? Já devem ter chegado…” Em resposta, ouviu num entaramelado “Quero que os pica-paus se fodam!”

Jefferson levantou-se e foi-se embora, sabia que nada mais havia a fazer. Ficar seria apenas ver-se como ele mesmo fora antes de deixar de beber. Quando deixou de beber, não passou a incomodá-lo nada estar sentado com alguém que bebesse. Mas era estar sentado com alguém que ficasse bêbado era-lhe insuportável. Essa pessoa tornava-se numa espécie de espelho retroactivo para uma imagem que ele mesmo nunca tinha tido de si mesmo e que agora vislumbrava como deveria ter sido. Este “deveria ter sido” não lhe fazia nenhum bem. “Eu era aquele”, dizia para si mesmo. E “aquele” não era ninguém, não era sequer o amigo à sua frente.

“Aquele” era um bêbado, um estranho a eles mesmos. O que lhe doía ver no bêbado era ver-se a ele mesmo antes, que até ao momento de deixar de beber nunca soube. Um “antes dele” que se corporizava pela primeira vez agora, ao assistir no outro aquilo que ele mesmo deveria ter sido.

Uma coisa é saber que se é bêbado, outra muito diferente é ver-se a si mesmo no outro bêbado. Todo o bêbado era para ele o seu passado. E como não era um passado que queria esquecer, mas um passado que não lembrava, abria-se assim inúmeras possibilidades que preferia não vir a saber. Possibilidades que eram instrumentos de tortura.

Perdeu-se na observação dos diversos pássaros do bosque durante algum tempo. E, no regresso, avistou e escutou um casal de pica-paus, como se aquele batimento na madeira da árvore fosse um despertador a lembrar-lhe que ainda tinha pela frente a tristeza de ter perdido o amigo.

12 Nov 2019

Palácio Nacional de Mafra: restauro dos sinos e carrilhões reforçado

A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) do Governo de Portugal reforçou em 150 mil euros o restauro dos sinos e carrilhões do Palácio Nacional de Mafra, para englobar na empreitada vários sinos que não o tinham sido de início.

 

[dropcap]A[/dropcap] directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, disse à agência Lusa que a DGPC está a preparar uma segunda empreitada, aproveitando uma oportunidade de financiamento por parte do Turismo de Portugal, para requalificar, além da mera conservação e garantia de condições de segurança, mais oito sinos do Palácio Nacional de Mafra. O investimento, no valor de 150 mil euros, envolve dois sinos de horas na torre sul e na torre norte, um sino de bamboar na torre sul e três sinos do carrilhão da torre sul.

A empreitada de 1,5 milhões de euros de reabilitação dos carrilhões e sinos das duas torres sineiras do monumento deverá ficar concluída até ao final do ano, tendo já sido repostos os sinos que tinham sido apeados das duas torres. Apesar de as obras de restauro englobarem os dois carrilhões, só o da torre sul vai ficar a funcionar. Cada uma das torres contém um carrilhão (e respectivos sinos musicais), um relógio (sinos de horas) e parte de um conjunto sineiro de serviço litúrgico (sinos de bamboar), distribuído por ambas as torres.

As obras arrancaram depois de ter sido dado o visto do Tribunal de Contas para a assinatura do contrato de consignação com o empreiteiro, a empresa Augusto de Oliveira Ferreira Lda., de Braga, e de os ministérios das Finanças e da Cultura terem autorizado a repartição, por 2018 e 2019, dos encargos, no valor de 1,5 milhões de euros. O concurso público tinha sido lançado em Novembro de 2015.

O Governo reconheceu a “urgente necessidade de proceder à reabilitação” dos sinos e carrilhões “face ao avançado estado de degradação”, assim como os “riscos de segurança não só para o património em si, como para os utentes do imóvel e transeuntes da via pública”. Os sinos, alguns a pesarem 12 toneladas, estavam presos por andaimes desde 2004, para garantir a sua segurança, e as respectivas estruturas de suporte, em madeira, se encontrarem apodrecidas. Por isso, os carrilhões de Mafra foram classificados como um dos “Sete sítios mais ameaçados na Europa”, pelo movimento de salvaguarda do património Europa Nostra.

A reabilitação dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra, que sofreu vários atrasos e era fundamental para o Estado Português e a Câmara de Mafra poderem candidatar o monumento a Património Mundial, iniciou-se em Junho de 2018. No dia 24 de Outubro de 2018, uma grua instalada em frente ao Palácio começou a retirar, pela primeira vez desde 1730, os sinos maiores dos carrilhões, o primeiro deles a pesar mais de sete toneladas, para serem analisados e restaurados. Além de apear os sinos para virem a ser intervencionados, o consórcio português responsável pela empreitada, especialista em conservação e restauro do património, também é responsável pelo tratamento da pedra, restauro dos cabeçalhos, estruturas de madeira que suportam os sinos, e pela construção de novas estruturas de suporte da torre norte. A equipa encontrou alguns dos sinos em muito mau estado, em risco de se desprenderem da estrutura e criarem um efeito de dominó, que poderia resultar na queda de sinos na frente do palácio. Os dois carrilhões com 119 sinos, repartidos por sinos das horas, da liturgia ou dos carrilhões, constituem o maior conjunto sineiro do mundo, sendo, a par dos seis órgãos históricos e da biblioteca, o património mais importante do palácio.

Recorde-se que o conjunto monumental composto pelo Palácio, Basílica, Convento, Jardim do Cerco e Tapada de Mafra recebeu no passado dia 7 de Julho, na 43ª Sessão do Comité do Património da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que decorreu em Baku, no Azerbaijão, a classificação de Património Cultural Mundial da UNESCO, a par do conjunto arquitectónico e paisagístico do Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga.

12 Nov 2019

Derrota das amotinadas tropas chinesas

[dropcap]N[/dropcap]a manhã de 27 de Setembro de 1564 os habitantes de Macau juntaram-se e aceitaram dar ajuda aos mandarins, conseguindo em poucos dias reunir entre 250 a 300 portugueses de têmpera para combater os marinheiros da armada imperial que desde Abril andavam revoltados. Dez dias depois, a 7 de Outubro embarcaram estes em Macau como mercenários com a sua artilharia a bordo dos juncos chineses. “O chumpim, ou capitão-mor do mar de Cantão, veio à povoação com cinco velas grossas e sete miúdas, para recolher os voluntários portugueses”, segundo Rui Manuel Loureiro (RML), que refere, “A expedição foi dividida em dois grupos, um comandado por Diogo Pereira, que correria a orla litoral nos juncos de maior porte; o outro capitaneado por Luís de Melo, que nas velas miúdas rumaria à cidade de Cantão, por dentro do rio.” Já “as embarcações dos ladrões eram nove muito grandes, com muito artilharia e munições de guerra, afora outras pequenas, e mais de dois mil homens de peleja com muitas armas, saligues (antiga arma de arremesso) (e) estrepes de ferro para quando abalroam”, escrevia João de Escobar.

O efeito surpresa foi geral! Ao verem a armada imperial chinesa, os marinheiros amotinados avançaram destemidamente os seus juncos sobre ela, crendo como habitual serem de fácil vencer.

Não esperavam ver entre eles portugueses, que com as suas armas impunham respeito. “Entrou-lhes tal medo que das embarcações se lançaram a nadar e cada um só tratava de fugir. Em espaço de meia hora, sem perda alguma dos nossos, quase todos foram cativos>”, segundo Gonçalo Mesquitela. Refere RML, “Como escreve o irmão André Pinto, <só a vista dos cristãos bastou para os desbaratar e desfazer>, porque, ao constatarem que , renderam-se em massa às autoridades cantonenses. De acordo com outro testemunho, os juncos capturados eram ; mas os expedicionários portugueses impuseram-se pela sua reputação de homens e armas, tomando-os a todos, . A fulgurante vitória portuguesa parece ter causado uma impressão muito favorável nas autoridades de Cantão. Pelo menos, essa é a opinião dos missionários jesuítas que testemunharam todo o episódio. André Pinto afirma que que . Quanto ao padre Francisco Pérez, confirma esta apreciação, colocando mesmo na boca do chumpim palavras altamente elogiosas em relação aos portugueses: ”.

Terminava assim a 7 de Outubro de 1564 a grave perturbação criada havia cinco meses pela rebelião interna na marinha imperial estacionada em Zhelin (Dongguan) nos arredores de Cantão.

“O general de armas chinês pediu aos portugueses para lhe entregarem os juncos capturados, mas a recusa quase provocou um conflito apenas sanado por Luís de Mello e Diogo Pereira que, diplomaticamente, explicaram ao oficial militar que os portugueses eram tão disciplinados que só aos seus capitães obedeciam. O general chinês subtilmente retorquiu: ”, segundo Gonçalo Mesquitela, que usou as informações do Padre António Franco para a descrição desta crise.

O corpo expedicionário de Macau foi brindado “com chapas de um dos mandarins reconhecendo os seus bons serviços e prometendo intercessão junto do Imperador para que fosse autorizada a entrada na China da missão diplomática de Diogo Pereira/Gil de Góis (1563-1565) e ainda, cumulativamente, terá sido dada à cidade, a título de recompensa, a isenção do pagamento dos direitos alfandegários desse mesmo ano de 1565”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). Foram ainda os portugueses autorizados a irem a Cantão tratar de negócios.

Fracassa a Embaixada de Gil de Góis

Em 1564, “Os chineses apenas podiam permanecer durante o dia no território de Macau, devendo regressar às terras de origem ao anoitecer”, segundo os historiadores Jin Guo Ping, Wu Zhiliang e o padre Manuel Teixeira. Tien-Tsê Chang, em O Comércio Sino-Português entre 1514 e 1644, refere, “O relacionamento entre a China e a jovem colónia estrangeira foi, durante alguns anos, instável, pois o governo em Pequim recusava-se firmemente a ter quaisquer relações oficiais com os portugueses. Uma missão portuguesa portadora de um tributo foi recusada, por ordem da corte, tão tarde quanto 1565.” Tal ocorreu quando, após dois anos, o impaciente Embaixador Gil de Góis, farto de esperar, já em Cantão, “não conseguiu aceitar as exigências dos costumes chineses e os mandarins recusaram-se a reconhecer a embaixada com a justificação de que esta era particularmente destituída de magnificência ostentosa e do acompanhamento necessário, em forma de tributo, para o Filho do Céu”, segundo Montalto de Jesus. Muito se deveu ao capitão de Malaca D. Francisco de Eça não a ter prendado condignamente, como refere Gonçalo Couceiro, que diz ter então a fixação dos missionários na China falhado definitivamente. “Para os três jesuítas as directivas chegam breve, depois do fracasso da missão diplomática; o padre provincial da Índia, António Quadros, ordena-lhes em 1565 que se estabeleçam em casa própria, pelo que deixaram as dependências que ocupavam na residência de Pero Quintero. Com isto criava-se o primeiro hospício, ou casa própria da Companhia de Jesus, em Macau, pelas vantagens de se dispor de residência certa: quer para nela estarem os missionários da Missão do Japão, enquanto aguardavam para Goa, ou para o arquipélago Nipónico, quer pelo facto, mais próximo, de se poder ter uma base para organizar a futura instalação dos missionários da Companhia na China.”

Data assim de 1565 o estabelecimento dos jesuítas em Macau. Rui Manuel Loureiro, em As Origens de Macau nas Fontes Ibéricas, refere que em 1565 “os responsáveis da Companhia de Jesus despachavam o padre André Fernandes para aquelas partes, para, juntamente com o padre Manuel Teixeira e o irmão André Pinto, dar assistência religiosa aos mercadores portugueses que sempre são muitos. Mas, durante algumas semanas, entre a partida dos navios para o Japão e a chegada da frota de Malaca, a população diminuía consideravelmente.”

A 15 de Novembro de 1565, segundo BBS, “Os Padres Perez S.J. e Juan de Escobar S.J., foram de visita a Cantão” e em Dezembro, junto à Ermida de S. António e pegada à habitação de Pero Quintero, os jesuítas edificaram a primeira residência estável da Companhia de Jesus em Macau.
Os espanhóis, que tinham chegado em 1521 às Filipinas, só em 1565 aí se estabeleceram e a ocuparam, edificando Manila em 1571.

Como todas as anteriores embaixadas portuguesas enviadas à China Ming, a de Gil de Góis também fracassou e só mais de um século depois, já no trono do Celeste Império se sentava o Imperador Kangxi da Dinastia Qing, voltaram a realizar uma nova embaixada régia.

11 Nov 2019

Um joker no baralho

[dropcap]U[/dropcap]ma personagem é um Golem, figura de barro inerte na qual foi insuflado o sopro de vida. Tudo o que uma personagem diz ou faz foi pensado e escrito por alguém. Se a vivificação tiver êxito acreditaremos nela e na sua realidade.

Em 1959, o escândalo. Jean-Luc Godard estreia “A bout de soufflé.” Nele Belmondo e Seberg deambulam ao deus dará daqui práli, desconversam soltos e frívolos. Porque agem assim? Porque lhes apetece; porque fazem amor? Porque se amam. Tal forma de entregar as personagens, sem intenções nem razões era grande provocação ao cinema francês em vigor, o “cinéma du papa.”

Nesse mesmo ano Howard Hawks acrescenta um pináculo à sua cordilheira com “Rio Bravo.” Um xerife, um bêbado, um velho coxo e um jovem temerário defendem uma cidadezinha de um poderoso vilão. Depressa depreendemos que não os move o amor à lei e à ordem, nem um sentido de justiça, menos ainda uma expectativa de redenção. O que os faz padecer cerco tão adverso talvez se deva à casmurrice, a uma vontade fátua de fazer peito ao destino com traços de fatalismo.

Em comum além do ano os filmes de Hawks e Godard, além do ano, têm o modo como providenciam as personagens. As personagens são aquilo que fazem – é este o génio de Hawks – não se revelam nem se radicam. Às mãos de Godard movem-se e falam e nada mais do que isso.

Não há cá inconscientes, subconscientes, devassas de alma, pressupostos, pretextos, alibis, recriminações, queixumes ou o diabo a sete. Se percebeste, percebeste, se não percebeste, tivesses percebido. É assim que é tratado o espectador. Claro que ser tratado assim nos dá um prazer infinito.

Basta um relance pelos reclames e cartazes de “Joker” para se inferir ao que vem: assistiremos à composição de uma personagem já conhecida é já várias vezes interpretada. É uma aposta cujo formalismo não infirma de todo as virtualidades do material.

O resultado, contudo, mais do que deplorável é exemplar do primarismo que esta cangalhada dos Marvels ou DCs inoculou no cinema. Dispondo-se a uma versão revisionista das pueris figurinhas dos comics, ambicionando a integridade e nobreza das personagens dramáticas, “Joker” retrocede até às fórmulas do “cinéma du papa” – esse que Godard afrontou em nome de pragmáticos como Hawks – entufado de grandes temas e aludindo às magnas questões, um cinema sisudo e pomposo, esteticamente administrativo, muito toucado mas cheio de caspa, soturno pretendendo a gravidade, taciturno para se fazer sério.

Em Joker é-nos oferecida a criação de uma personagem? Queres agenciar complexidade numa personagem? Pois nada… Levas mas é com uma aula ilustrada de introdução à sociologia subordinada ao tema “os efeitos nefastos da sociedade contemporânea na psicologia das vítimas.”

Numa carambola sem falhar uma tabela o coitado do Joker é recipiente de todas as malfeitorias proporcionadas pela sociedade contemporânea: a bastardia e a disfunção familiar, os maus tratos infantis, a violência urbana, o preconceito contra “desafiados funcionais”, a poluição, a sobranceria dos ricos, a selva de cimento cinzento, a indiferença social, a ineficácia da burocracia, o abuso policial, o sensacionalismo dos media, enfim, crueldade passivo-agressiva do xixtema. Ficaram só por aludir os efeitos nefastos da ingestão de carnes vermelhas e se Greta Thunberg tivesse despontado 2 ou 3 anos antes os argumentistas ainda iriam a tempo de acrescentar as consequências das alterações climatéricas – foi pena… Caso a consciência do espectador careça de simbólico, lá está a alegoria literalmente pedestre da escada íngreme.

Estas pendências recalcam-se na personagem com recurso ao óbvio expediente da psicologia. E não havendo paciência para o método de Lee Strasberg – que também, indiferente aos estigmas da culpa, menos elucidava do que desvendava – abrevia-se a questão com uma psicopatia, infunde-se neurose na personagem e em vez do mirabolante overacting de Jack Nicholson a pedido do Joker – não há Joker como este, essa é que é essa… – temos o Joker a fazer de Joaquin Phoenix durante duas penosas horas. O grotesco é difícil.

Tudo isto são dedos espetados nos nossos olhos sem a menor subtileza ou sombra de ironia. O horror de Joker à inteligência e à autonomia do espectador é maravilhosamente especificado num momento exemplar: desesperado o protagonista entra em casa da namorada e senta-se no sofá.

Quando esta o vê, na exclamação de susto e em duas ou três frases sofreadas, percebemos de repente que a suposta relação entre eles fora apenas imaginada. De imediato o realizador desfecha uma sequência a recapitular todos os planos que os vimos juntos, montados e paralelo com o que “na realidade” sucedeu – ele esteve sempre sozinho. Percebeste? Percebeste?

Não poderia Joker prescindir de envidar a sua validação cinematográfica polvilhando-se de citações, para gáudio dos cinéfilos e seus jogos masturbatórios. O De Niro de “King of comedy” agora no “lado de lá” a entrevistar um aprendiz de Travis Bicker? Percebeste, não percebeste?

Como não haveria Scorsese de se ter agastado com o embuste… Há mais coisinhas destas, procura-as tu se tiveres vagar para isso.

Joker é o exemplo terminal, ou apenas mais recente, de um cinema superficial com película de substantivo, invertendo e tornado inertes os pólos que davam vigor ao cinema clássico. E não pensem que é só no cinema americano.

8 Nov 2019

Olhar de Eros

[dropcap]E[/dropcap]ros é uma palavra com uma longa tradição. O seu significado é múltiplo. O adjectivo “erótico” ganhou ascendente sobre o substantivo eros, sobretudo nos tempos modernos nas línguas contemporâneas. A sua tradução habitual é amor, embora quem use a palavra com consciência tenha de advertir que não se trata exactamente da mesma coisa. O amor tal como o adjectivo erótico tem conotações que na verdade afunilam o seu sentido de origem. Se com o “erótico” pensamos num determinado modo como alguém surge ao olhar cobiçoso e luxuriante de outrem, com o “amor” pensamos na relação romântica entre dois seres humanos ou na relação religiosa estudada pela teologia entre um ser humano e Deus, seja ela simétrica ou assimétrica.

Eros para Platão diz-se de diversas maneiras, mas sublinhe-se a sua característica divina. Eros é um daimon, uma divindade, um deus, talvez menor. Eros é uma entidade pessoal. Eros não é já um ser humano. Não é ainda Deus. Tem uma identidade que começa por ser referida negativamente. Diz Platão no Banquete tratar-se de um ente intermédio (metaxy) ou neutro (do latim: nem uma coisa nem outra). Eros é caracterizado por não ser ignorante mas também não ser sábio, existe entre a presença de qualificações superlativas positivas, determinadas por serem o máximo com que essas qualidades podem existir e as qualificações superlativas também mas negativas: o pior de tudo com que uma qualidade pode ganhar consistência. O mínimo não tende para a inexistência.

O que não existe e não é não é como se nada fosse, não deixa de surtir efeito nem de ter consequências nas vidas humanas. O espantoso para o pensador Platão é que o que não é, não está disponível nem presente, o que não é real: existe com um eficácia, damos conta da sua existência. Quando eros “encosta” num ser humano não o torna susceptível de amor ao olhar de outrem assim sem mais. Quando damos conta da presença de eros nas nossas vidas, sem dúvida no modo como alguém nos surge pela primeira vez nas nossas vidas, o outro é o amor, a pessoa amada, por quem nos apaixonamos, por quem caímos. Mas para Platão erôs é mais do que o modo como alguém nos aparece e o modo como transforma toda a nossa vida e se houver um encontro feliz de amor, há a mudança da vida de duas pessoas pelo menos. Eros, contudo, é o nome para o sentido da existência. É o que mexe connosco, o que nos põe a mexer, o que nos motiva, mobiliza, entusiasma, faz ser, quando não queremos, faz fazer coisas a contra gosto mas pela força da vontade, e claro faz-nos fazer o que não queremos por disciplina. Eros faz “fazer”, faz “ser”. É como se a agenda que nos obriga cumprir os mínimos da sobrevivência para assegurar a existência: comer, beber, dormir, e depois ajudar a satisfazer os apetites que temos, as vontades que nos dão, tal como o cumprimento do dever, a observação do escrúpulo religioso para quem o tiver ou da consciência que todos temos, o gosto que temos na experiência estética, a nossa curiosidade científica ou de que natureza for, tudo é um projecto para nós da presença em nós de eros. Pode ser preenchido como pode ser decepcionado, pode até parecer que não está presente em nós, mas nós acordamos com uma relação com este móbil, este motor, propulsor que nos faz acordar de manhã e perceber em antecipação o que se vai passar nesse dia. Mesmo que seja sempre o mesmo, vamos ter de nos levantar, quando não apetece e quando apetece, fazer a higiene matinal, tomar o pequeno almoço, vestir-nos, em suma arranjar-nos para sair, ir trabalhar, exercer funções, realizar tarefas, etc., etc.. O nosso mundo interior está exposto à pressão de eros que nos faz querer ouvir música no rádio, expõe a memórias de um passado longínquo ou não deixa esquecer o que temos para fazer nas próximas semanas, obriga a pensar em alguém com gosto ou preocupação. O mundo em geral no trânsito das horas está submetido ao projecto de um eros cósmico que faz passar as horas dos dias, os dias das semanas, as semanas dos meses, os meses dos anos, as estações do ano, as épocas da vida. O erôs não é só interior, nem só exterior, não vem de fora para dentro nem de dentro para fora, não é importado nem é exportado, não é pessoal nem impessoal. E, por outro lado, é tudo isso. Eros submete-nos a uma pressão contínua, ainda que não se declare a não ser quando sentimos um entusiasmo enorme pelas presenças nas nossas vidas que nos acendem, atraem, chamam, sendo essas presenças as actividades a que nos dedicamos ou as pessoas que amamos, as nossas coisas, portanto, e as nossas pessoas. Eros exerce sobre nós um fascínio tal que queremos mudar pela sua presença nas nossas vidas.

Queremos ir no seu encalce para sermos diferentes, porque nós sem amor somos diferentes de nós com amor, nós sem entusiasmo, quando tudo farta e nada motiva, somos completamente diferentes de quando sentimos nascer e crescer em nós o entusiasmo com um sentimento que se nutre por alguém ou com qualquer actividade a que queremos dedicar-nos, a aprender música ou uma arte marcial. Se achamos que vamos atrás do prejuízo porque não temos o que queríamos ter, não somos como gostaríamos de ser, por outro lado, eros está a actuar desde sempre já sobre as nossas vidas, a projectar-se no mundo e na nossa vida através de nós. Sem dúvida que tem o sex appeal que nos leva a antecipar com entusiasmo e encantamento como será quando acontecer. Esta ideia do ser do erôs é fascinante e também decepciona, frustra, mata pela sua ausência. Vivemos sempre com erôs seja ele preenchido e sempre cada vez mais e maior ou sejamos nós esvaziados dele, sintamos que é cada vez menos e menor.

Para Platão Eros era o desejo de imortalidade. Imortalidade não quer dizer a duração do tempo tão longa como a eternidade e que nunca acaba. Pode ser tremendo e aborrecer-nos mortalmente. Como se pode querer para sempre o que é mau? Não acabará por fartar o que é bom, não por ser bom, mas porque tudo o que é para sempre cansa? Eros tem de ter em vista outro conceito de imortalidade que redimensiona as pequenas coisas da vida, os pormenores, o que é insignificante, tudo simplesmente. Como será possível?

8 Nov 2019

Maré de mar

[dropcap]M[/dropcap]ármara. Mar mente. Mar de Aral. Mares e marés, extintos ou por extinguir. Mares. Mares interiores. Marés de vagas mansas ou insubmissas a avançar por nós ou a recuar com a força do que é assim em virtude de ventos e lunares atracções. Solares. Desvios de uma inércia pela força da gravidade. Emoções graves a gravar no corpo rastos de sal. Rastos de sol.

Estar em cada momento em cada maré. Estar de maré. Um estar, como tendência para algo, em vagas, em nada definitivo como elas. Que quando tendem para terra, sempre voltam a tender para o mar. O mar e mares. O todo e as pequenas águas. O todo, mais todo, e a parte mais parte.

Águas pequenas face aos oceanos. Escondidas deles ou à espreita. Interiores fechados. Interiores isolados. Ou abertos em pequenas deixas, estreitos pontos aquosos de passagem. Mas o interior, sempre interior, o oceano também.

Amar o mar. Amar o desafio orgânico, o embalo e o risco. Aprender-lhe o perigo e deixarmo-nos morrer dele. E do risco, uma vez mais apreender a curva de nível, essa linha dos acidentes geográficos, em cotas ou alturas. Da linha do risco, a aureola topográfica que define a insularidade do visível, ou a insularidade da terra invisível por debaixo da água. Insularidades diferentes como eternos símbolos de contentor ou continente. Mar interior. O avesso insular.
Tanto mar.

Mares tímidos e isolados no seu ser avesso e sem comunicação. Fechados e interiores. Entranhados em terra. Baixos, silenciosos, por vezes mortos. Mortos de vida possível e ainda assim a morrer mais. Como o mar Morto. Que já o era, mas ainda tem vida para morrer. O mar Cáspio, o mar de Aral. Grandes lagos salgados. Grandes lágrimas retidas na face da terra. A secar com o tempo. E outros. E mares alegres ou mediterrânicos, de uma pontinha espreitam o grande oceano e daí se fazem trocas e temperaturas a refrescar no que é vindo de longe e da amplidão. Portas que não se fecham, mas resguardam a interioridade. Outros abertos, pontuados de ilhas e ilhas, estranhas identidades junto a mar aberto, ou ao oceano, dizendo bem. Juntas as águas, mas distintas. Num namoro fluido e duradouro. Abertos ao mundo e sem fronteira nítida entre uma gota de si e uma gota que não é de si. O da China, o do Japão. O mar de Celebes, o de Flores, o de Mindanau. Tantos. Junto a cada oceano, a cada continente. Ou por dentro.

Que outras marés de uma vida, de um corpo, se foram com o mar de Aral. Que águas se retiraram como dragões do mar no Triássico, quando um ecossistema emocional se altera no corpo do sentir. Temperatura, alimento. Ou a extinção abrupta das estrelas. Do mar. Milhões atacados por vírus. Coisas tóxicas que matam. As outras, mais lentamente aos olhos. Continuamos a vê-las quando já lá não estão, mas a notícia, esse rasto visual que um dia vai chegar, leva o seu tempo.

Como uma dor a instalar-se depois do trauma. Mas não logo. Só quando o corpo a reconhece, repara, passa a sofrer. A doer. Um desfasamento ínfimo no tempo. Se pensarmos no tempo de uma estrela. Estrelas e dragões, num intervalo estreito entre a memória e o mito.

Mas mares e lagos, mesmo açudes a entristecer os corações de ausência, e com as suas águas, a vida. A ensombrar olhares de futuro incerto nos interiores. Do Brasil ou da Rússia. O mesmo mundo e a mesma humanidade. A construir por um lado e a destruir pelo outro.

Da geografia. De uma geografia como a de sentir. Revela-se uma topografia em linhas sinuosas, desenhos de limites entre camadas em altitude e profundidade como fatias de um real em que nem sempre há comunicação entre vasos. Porque nem todos comunicantes. Mares que ficam abaixo do nível do mar. Como se contrário ao senso sentido comum. Que realidade se desprende de um mar interior. Esse avesso do insular que nos habita. Que calmarias os limitam adentro dos seres que os protegem como continentes. Contentores, na verdade. Aquilo que contém um mar e as marés que esse traz. O que define um mar interior para além dessa contrária imagem, à imagem de ilha. É sempre a terra que esconde, se esconde ou revela. Que se tapa, da fluidez das águas como suaves velaturas e sedosas, ou se desnuda. E os mares. Mesmo abertos para os oceanos, sempre isolados em si. Em ilhas de liquidez e de águas distintas. Outros com apertadas portas para as águas exteriores. Outros, os mais solitários, isolados em ilhas como pequenas peças de roupa a cobrir um seio de terra. Sempre a terra na base de cada chão. De água. Só dos icebergues, flutuantes gigantes de gelo sem mais, soltos e imensos e secretos se diria secretas ilhas. Verdadeiras. Rodeadas de ausência por todos os lados e mais um. O céu.

Da imensidão oceânica a devastar progressivamente a terra emersa, na ameaça de engolir como a outra, não vou pensar. Os mares, sim. Os interiores e que mais mansos do que os outros, particulares e pequenos, se distinguem no modo como navegamos.

Quanto em nós é levado pelos mares. Quanto de mar interior, se funde no grande mar de contemplação. Perpassando num estreito em que flui a alma. Quando aí se refresca de límpida serenidade, pequenez confortável. Comunicação de iguais na essência, mas a humanidade pequena do pequeno mar, face à humanidade abstrata do enorme mar. Quanto nos embala numa onda suave de melancolia ou poético sentimento de algo, ou nos submerge em reviravoltas de que a custo retomamos as coordenadas, sustendo a respiração para que o mar não invada todo o mar interior. E de que a custo, voltamos a emergir. Mar perigoso o grande mar. Quanto mar agita. Quanta água afoga. Quanta mágoa afoga. Ao longo de uma vida. De um dia. De um dia na vida de mar interior. Tanto mar.

7 Nov 2019

Espaços intermédios

[dropcap]U[/dropcap]ma das minhas últimas leituras foi ‘Teoria da Viagem’ de Michel Onfray. Trata-se de um autor de que gosto e que tento seguir. Este pequeno livro entrevê a viagem como uma bússola que vive do limbo onde sempre se digladiaram o sedentarismo e o nomadismo. Uma tensão que explode nos atritos do território e que coloca em evidência o mundo em fluxo que diariamente partilhamos. A obra foca-se na viagem enquanto mobilidade voluntária (turismo incluído) e não enquanto mobilidade da sobrevivência, embora uma e outra coloquem hoje em movimento no planeta milhões e milhões de pessoas.

Onfray distingue na sua teoria um antes “em que se sonha com um destino” daquilo que, logo a seguir, designa por “espaço intermédio” e que coincide com a logística existencial da partida, mas antes ainda de se ter atingido a meta. É o momento dos aeroportos, da consciência aberta aos possíveis, da errância interior.

Nesta fase, o autor do Journal hédoniste atribui ao viajante “uma espécie de abandono característico das salas de espera dos consultórios ou, presumivelmente, dos laboratórios de análises clínicas. Afastado da rigidez social e da conveniência imposta, das regras colectivas e dos hábitos sociais, o viajante frequenta um mundo suspeito de pessoas entregues à confidência, àquilo que Heidegger denomina falatório: uma espécie de decadência da palavra, talvez uma prática compensatória da angústia gerada pelo abandono do domicílio e pela chegada a um mundo sem pontos de referência”.

O livro capta depois o momento da viagem e realça dois aspectos interessantes: a invenção da inocência, ou a necessidade de o olhar se colocar em tábula rasa (longe dos preconceitos e do pré-conhecimento), e a redescoberta da subjectividade, na medida em que “o ser do mundo provém do ser que o observa”. Segue-se o tempo do regresso em que o enraizamento valida o nomadismo: “voltar é decidir não permanecer, confirmando e validando o que parecia constituir um dado adquirido e definitivo, ou seja, o domicílio”.

A viagem convida a que se perceba o mundo como uma geologia jamais adquirida. Daí que o ‘depois da viagem’ se confunda com a fase das narrações (que se cumpre segundo “o princípio de uma melodia, uma reposição, um tema insistente, uma variação, uma fuga, um contraponto”). Ao fim e ao cabo, narrar é percorrer um feixe ilimitado de trajectos, porque a palavra possibilita sempre colocar em perspectiva “instâncias que, a priori, não possuem nenhuma relação entre elas”. Razão por que Almeida Faria fechou o seu ‘Murmúrio do Mundo’ (2012), livro sobre uma viagem à Índia, com estas palavras: “Trouxe comigo um bloco confusamente escrevinhado, uma curiosidade acrescentada, uma crescente descrença na elegância da descrença. E tornei-me mais atento à infindável memória do mundo…”

O tempo existencial e tecnológico de hoje corresponde, em muitos aspectos, à situação do “espaço intermédio” que, segundo Onfray, precede a viagem. Estamos cada vez mais apeados do território, na medida em que a maior parte da informação e das referências que nos abismam provêm da rede e dos mais variados dispositivos digitais. Neste estado, que é o de uma geografia cindida pela fúria do imediato (e do instantâneo), a disposição e o ânimo que nos lançam ao mundo assemelham-se à sépia das gares e dos aeroportos polvilhada pela ansiedade, pela errância interior e pelo stress sem objecto. A recente campanha eleitoral ilustrou este facto na perfeição: uma ou outra contingência aliada ao denominador comum do falatório dos media ditou um mês de debate esvaziado, deserto e sem qualquer destino ou meta que se pudesse destrinçar.

A “infindável memória do mundo” não é algo que hoje se transmita, mas sim uma matéria esvaída e sem as alegorias mitológicas que a conseguissem agregar. O que poderá até ser uma virtude, fazendo eco do penúltimo parágrafo da ‘Teoria da Viagem’ de Onfray: “A apreensão do Diverso contradiz o desafio do Mesmo e, em compensação, inicia-se na vondade de multiplicar o Outro”.

Onfray, Michel. Teoria da Viagem. Uma poética da geografia. Quetzal, Lisboa. 2019 (2007).

7 Nov 2019

A Grande Dama do Chá

[dropcap]O[/dropcap]s relâmpagos sobre as águas iluminavam o horizonte. A chuva caía, persistente, e o vento soprava, cada vez com mais força. Dentro do Chevrolet Confederate, estacionado perto do Cais 16, Jin Shixin e Cândido Vilaça tentavam ver a azáfama em que se tornara a descarga das caixas que tinham chegado a Macau. Lá fora, Patapoff, como sempre muito direito, dava ordens, apesar da chuva que ensopava os corpos de todos os que não estavam abrigados. Era um trabalho duro, ainda mais porque todos tinham de estar alerta. Ninguém sabia o que poderia acontecer. Não havia sinais de Toshio Nomura ou dos seus homens. Deveriam estar à espera deles junto do armazém, ou no caminho, para fazer uma emboscada. Ou poderiam mesmo estar ali, à espera do momento ideal para atacar.

Jin Shixin abriu a porta do automóvel e saiu. Dirigiu-se num passo seguro para Patapoff e, quando parou junto dele, começou a dizer algo, que Cândido não entendeu. Também ele decidiu deixar o conforto do Chevrolet e deu um par de passos no chão molhado. Jin voltou-se para para ele e começou a gritar algo. Não acabou a frase. Ouviram-se tiros e Cândido só viu Patafff atirar Jin para o chão e tirar uma pistola do bolso. Muitos dos carregadores correram e foram em busca das suas armas. Vindos das sombras muitos homens aproximaram-se a disparar. Eram, por certo, os homens de Nomura. Não tinham esperado. O ataque era agora. Viu alguns corpos a cair no chão, ceifados pelas balas. Mas outros entrincheiraram-se e os tiros aumentaram de frequência. Nesse momento um pequeno orofício do tamanho de uma moeda de pataca apareceu-lhe no ombro.

Ajoelhou-se, tossiu com a dor, e caiu com a cara no chão. Ouviu gritos e mais tiros, mas tudo deixou de ser nítido. Sabia o que ia acontecer. Jin tinha muitos homens escondidos, à espera do ataque de Nomura. Agora eles iriam surgir por detrás, tapando o caminho à fuga dos japoneses e dos seus aliados. E estes ficariam cercados, entre dois fogos. Ele tinha sido o isco. E Nomura, sem ter medido bem as consequências da sua decisão, caíra no logro.

Muitas memórias que atropelavam-se agora umas nas outras, mas todas sem sentido. Abriu os olhos e só viu pés a mover-se. Tentou soerguer-se, mas não conseguiu. O sangue saía do ombro e tentou estancá-lo com um lenço. Pediu auxílio, mas ninguém o ouviu. Viu um carro a estacionar perto de onde estava caído. O motorista abriu a porta e fugiu. Talvez já o tivesse feito outras vezes. Mas desta vez era diferente. Não havia para onde fugir. Ouviu mais tiros e viu o corpo do homem a cair no chão, ficando como uma sombra imóvel fustigada pela chva. O boné de motorista caiu da cabeça e foi afastado pelo vento. A seguir o silêncio impôs-se. Deixara de ouvir.

Voltou a fechar os olhos. Não sabia o que se estava a passar. Viu-se no meio de um clube em Xangai, empurrado por homens e mulheres que se riam na sua cara. Todos tinham máscaras, bigodes muito grandes e lábios muito pintados. A seu lado estava uma jovem chinesa, assustada. Gritava, para não escutar os risos. Na mão tinha uma pistola. Parecia pertencer a uma geração enganada pelos seus sonhos, enganada pelas suas fantasias, enganada pelos serviços secretos de todos os que mandavam num pedaço de Xangai, enganada pelos amigos e pelos inimigos, aniquilada moral e fisicamente, sacrificada a interesses que nunca iria conhecer. Era só um peão, num jogo sem regras. Alguém dava um tiro nela e ria, por detrás da máscara. Às vezes a moral e a lei excluem-se. É isso a condição humana. Os gregos chamavam a isso tragédia. E dela não há saída. Quando entrávamos no mundo perdíamos toda a esperança. Por isso um homem livre tem de atender à verdade. Cândido não sabia se sonhava, se delirava.

Voltou a abrir os olhos. A chuva continuava a cair com força e ia limpando a rua de sangue que tinha saído dos corpos caídos. Depois, voltou a perder os sentidos. Quando acordou, demorou um pouco a descobrir onde estava. Tudo à sua volta estava enovoado. Percebeu que estava deitado e procurou os cigarros. Só depois reparou que Jin estava ali. Sorriu e deslizou da cama, com cuidado. Sentiu tonturas e teve de colocar as mãos sobre o colchão. A chinesa, que estava defronte dele, agarrou-lhe nos ombros e disse:

– Deixa-te estar sossegado. A ferida não é grave, mas perdeste muito sangue.
– O que aconteceu?
– O que se estava à espera. Os homens de Nomura emboscaram-nos no cais, julgando que atacavam de surpresa. Mas tínhamos tudo previsto. Ficaram cercados e lutaram para sobreviver.
Cândido fechou os olhos e depois voltou a abri-los para ver se focava melhor a imagem.
– E Nomura?
– Tentou fugir. Mas não podíamos ter a mínima piedade por ele. Morreram muitos dos nossos.
– Os japoneses vão enviar alguém para o substituir. Esta luta não terá fim.

Jin fungou e encolheu os ombros. Os seus olhos estavam frios como gelo. Disse, num tom áspero:
– Esta guerra não se restringe a Macau, Cândido. Não é só este canteiro que conta. Não está isolado do resto. Todo o jardim está em chamas.
– E agora?
– Agora vamos continuar a guerra. Não há tempo a perder. Nem dúvidas. Sabes, Cândido, os grandes mestres sempre nos disseram que há quem oculte a sua debilidade por detrás da máscara da fortaleza e, outros, a sua fortaleza por detrás da máscara da fraqueza. Continua a ser assim, como sempre foi. Mas sabemos que a máscara da fortaleza trunfa sobre a da debilidade. Aí radica o poder. Temos de usar a máscara da fortaleza para garantirmos a vitória. Só assim nos seguirão.

Cândido olhou para Jin. Ela, no fundo, tinha de acreditar no que dizia. De outra forma, tudo se desmoronava. Não parecia crer que os opostos se uniam e que, muitas vezes, a debilidade não era mais do que a máscara de uma profunda fortaleza. Reparou que os olhos de Jin estavam agora tristes e inquietos.

– Que tens mais para me dizer?
– Uma coisa triste. A tempestade trouxe mais um corpo para a superfície. É o do teu amigo José Prazeres da Costa. Tal como a Amélia foi morto a tiro.
– Não me estás a mentir?
– Eu só minto o imprescindível.

Cândido levantou-se e abraçou-a. Entre o ombro e o pescoço dela encontrou o aroma de pele que o fazia perder a noção da realidade. Encheu os pulmões e deixou-se ficar assim durante algum tempo.

– Iam fugir, não é verdade?
– Parece que sim. Julgaram que era possível o amor. Mas, nestes dias, também ele é uma vítima de quem tem outros desígnios.

Cândido afastou-se dela e foi até à janela. As nuvens cinzentas estavam estacionadas no céu. Ia voltar a chover. Pensou que, para um crente, a fé na salvação, sem o travão da mão de Deus, pode fazer com que sacerdotes com outros intentos usem o único critério que resta para os desacordos: matar o inimigo. Era o que se estava a passar. Deixara de haver alguém que travasse a loucura que estava à solta na China. E agora, que fazer? Quando um homem tem medo e sente que não tem nada a perder pode fazer muitas coisas. Mas Cândido tinha uma fragilidade: amava. Virou-se e olhou para Jin. Depois voltou novamente a face para a janela. Chovia. Chineses corriam com embrulhos às costas, indiferentes à intempérie, mostrando que a vida continuava e era preciso sobreviver. Afinal, o que vale a pena salvar da pesada chuva que não escolhe amigos ou inimigos?

7 Nov 2019

Geografias da alma

[dropcap]O[/dropcap]s dias continuam a viver connosco lá dentro. Não temos alternativa, relembro e relembra o meu poeta mais próximo. E alguns passam lestos, vertiginosos, quase sem deixar outro rasto que não seja um leve aroma a alegria. São os dias felizes, aqueles em que acreditamos que o mundo foi criado à nossa medida e à nossa espera. Talvez um dia desses tenha feito Keats escrever Give me Women, Wine and Snuff, onde exalta o hedonismo e garante que passaria de boa vontade a eternidade com vinho, mulheres e rapé, “My beloved Trinity”, garante-nos.

Depois há os outros, vagarosos, plúmbeos, eternos. Dias de que queremos sair, jaulas de tempo triste que provavelmente não merecemos mas que sabemos que iremos sempre enfrentar. Nós e os outros, os que amamos e os que desconhecemos. Escrevo estas notas ainda sem caminho à vista, um caos doce que com alguma sorte conseguirei transformar em crónica. Estou a meio caminho entre os dias de que vos falo, sentado num cais a olhar os barcos atracados num baloiçar suave. Há silêncio e algumas pessoas que passam. E sem querer descubro-me a pensar nos dias que esses desconhecidos carregam, cheios de conquistas e angústias, iguais aos meus e aos de toda a gente.

“No man is an island”, e o famoso verso de John Donne parece ganhar ainda mais sentido e força quando se está só à beira-mar. Não o somos, de facto, por mais que por vezes gostássemos de o ser. Não o somos e esta certeza tem de ser constantemente relembrada num mundo em que paradoxalmente tudo é criado para encurtar distâncias e oferecer proximidade. Tal é um dos critérios contemporâneos do que se julga ser o progresso. Só que muitas vezes essa proximidade não passa de uma quimera, uma homeopatia para a solidão: existe mas não cura nem resolve.

Saber a geografia da alma e praticá-la parece-me importante. Há pouco tempo falava com uma amiga sobre a insularidade que não é apenas territorial mas sim um traço de personalidade de quem vive em ilhas. Uma vocação contemplativa, melancólica e um eterno dilema entre a fuga e o regresso. Percebo e constato. Mas contraponho a peninsularidade que me habita, talvez fruto de um determinismo geográfico, não sei. Preciso de olhar para o mar mas não vivo sem esse pedaço de terra que me liga ao Outro. Para mim é talvez o melhor dos estados porque a solidão pode coabitar sem problemas com a necessidade de ver e estar com alguém.

Quero acreditar que os tempos não nos estão a transformar em arquipélagos humanos, próximos mas ao mesmo tempo distantes. Não existem substitutos virtuais para a amizade ou o amor, nada que substitua o olhar e a presença. O que temos à nossa disposição – as redes virtuais, a rapidez de informação – são ferramentas e não valores em si. Saibamos aproveitá-las sem as venerar.

E amigos, a ordem misteriosa das coisas voltou a atacar: mal acabei de escrever a frase anterior recebi uma mensagem de alguém que nunca vi mas que pertence à minha rede de contactos virtuais. É uma rapariga colombiana. Escreveu-me que nesta data, há nove anos, ouviu um fado com letra minha que a comoveu e fez com que me contactasse via Facebook. O fado chama-se De Que São Feitos Os Dias. Voltei a olhar para os barcos e juro que vi alguns a sorrir.

6 Nov 2019

Fica para outra vez, agora não tenho tempo

Horta Seca, Lisboa, 28 Outubro

[dropcap]R[/dropcap]ecebo de boas mãos, com costumeiros valor e estima, o cuidado e volumoso «Tutti Frutti» (ed. Turbina), onde se recolhem as pranchas diárias do Marco [Mendes] para o Jornal de Notícias, espaço de respiração tão atípico quanto necessário se os nossos jornais ainda respirassem. Acabou abruptamente, e ao que parece não muito bem, esta coluna que se afirmava sinal de resiliência sob inúmeros pontos de vista, do estético ao político. O pressuposto era mais da diarística do que do comentário à actualidade, ainda que esta se impusesse com contornos de protagonista, motivando pranchas de grande intensidade. Conserva-se, para memória futura, um fragmento do quotidiano, não apenas nessa cronologia das catástrofes que marcaram à navalha a segunda metade de 2018, mas nas minudências do dia-a-dia de uma geração e de uma cidade, de um pintor e de um professor, de uma família (alargada). Com humor ou um esgar de nojo, com ternura e desprendimento. O estilo, sendo figurativo, espraia-se por modulações de expressionismo que sublinha bem o carácter poético de muitos momentos, tantas vezes dispensando palavras: uma cidade que amanhece, a mesma a entardecer, ressumando nos gestos banais de quem a habita. Surpreende a atenção ao mar, em ondas sucessivas, apenas visuais, reflexivas ou como pano de fundo para o horror. Muito natural, a atenção à pintura e ao processo criativo, ampliando minúcias, convocando reflexões, jogando sempre, que a ironia está omnipresente. Veja-se a prancha de 10 de Outubro de 2018 com «lição» sobre o tempo, esse vazio entre quadrados que na banda desenhada se torna um absoluto. Não apenas pela sugestão de movimento entre instantes, mas por nos permitir imaginar possibilidades. Estas micronarrativas não se limitam a contar do real, mexeram com ele, sobretudo em papel de jornal, estou certo. De igual modo, o Marco que começou a desenhar este «Diário Rasgado» acabou outro. Assim o explicam os auto-retratos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Outubro

A escuridão monta agora mais cedo pela tarde, e a chuva agrava a sensação de que a noite invadiu gentes e lugares agravada por ser segunda-feira. A esfuziante alegria criativa do Pedro [Proença] abre rasgos solares no ambiente taciturno. As suas explicações em torno da criatura Sandralexandra, senhora que inventa paisagens no cruzamento postal de palavras e ícones da viagem, brilham no escuro. E o Pedro gargalha, conta do nascimento, do percurso, destaca pedaços, descobre poemas antigos que dá a ler. Fervilha o pensamento, como se cozinhasse em lume branco. E logo passamos aos mitos, sem levantar a mão da folha, unificando cada momento com a linha de um irrequieto ecocardiograma. O passo atrás para ver melhor, logo se torna tese sobre o uno e múltiplo. (Continua).

Barraca, Lisboa, 31 Outubro

O ritual do lançamento da edição centésima, este «As Orelhas de Karenin», do duo dinâmico, Rita [Taborda Duarte] e Pedro [Proença], talvez merecesse festa mais rija. As circunstâncias impuseram estados de espírito, digamos, alternativos, mas cumpriu-se a função, em ampla companhia e boa disposição, com leituras (comentadas) da Inês [Fonseca Santos], com o comentário (lido) do Paulo [José Miranda], os sublinhados da autora e as torrenciais interpretações do artista, tudo em álacre comunhão. Deixo-me levar pelos pormenores, o do logótipo desta edição, entre copo-vulva e orelha-vórtice, noto que as orelhas do livro ficaram acanhadas e levantam ligeiramente a capa, dando a ver o dito (mise en) abysmo. E quedo-me, meditabundo, na ficha técnica onde brilha incandescente o #100.

Uso parágrafo para o salto. Constato que, sem plano além do horizonte movediço de cada dia, temos quase metade de lombadas sacrificadas à poesia. Excluamos, por agora, as que se dedicam a pensá-la, sem por nunca a abandonar. Resistimos o que pudemos à ideia seca, gasta pelo sol das novas experiências de leitura, de colecção, mas acabei cedendo no caso das traduções, para já marcadas pela língua castelhana, sem descurar atenção que nem seta aos clássicos, tão contemporâneos um (Píndaro) como outro (Trakl). E na portátil «Mão Dita», que acolhe canções, esboços, breviários e alguns que nem tanto (veja-se «Tratado», de Luís Carmelo). Aliás, nada parece estável por estas bandas. O «Anastasis», do Carlos [Morais José], apesar de versejar, cuida de viagens ao âmago, e portanto foi para o devido agrupamento. A pensar em classicismos, temos três volumes de antologias, duas ensaísticas, outra testamental. Falo de Helder Macedo e Levi Condinho, além do José Manuel Simões. E acolhemos Antero [de Quental], com a Poesia Completa tratada com o se jardim fosse, com saber e sabor, pelo Luiz [Fagundes Duarte]. Excepção e regra.

Aplica-se aos que combinam a leitura e a música com a voz dizendo, e falo dos projectos, «No Precipício Era o Verbo» e «Lisbon Poetry Orchestra», em torno dos quais se anunciam novas tempestades, sem saber se o formato se manterá, tal o alento gráfico do André [da Loba] e do Daniel Moreira. Noto, por via do trabalho com outros operários do livro, que alguns autores se foram arrumando em formato muito seu, mais ou menos ilustrado, mexendo no objecto ou apenas procurando a relação mais duradoura com a imagem. Não gosto assim tanto dos livros penteados na estante, mas se obrigasse a biblioteconomia a uma qualquer ginástica, imagino lado a lado as edições da Inês [Fonseca Santos], do Paulo [José Miranda], do José [Anjos], do José Luiz [Tavares], até o inclassificável José-Emílio Nelson, cada um com a sua altura e respectiva largura.

Em tempos, há dias, fui amargamente criticado por dar demasiada atenção ao cadinho em que mergulhava texto, ilustração, objecto, quando a ânsia de qualquer autor exige constância, leia-se, imediata publicação. Contudo, ainda são estes os processos do editor em contramão, atire quem possa desde já os telhados de vidro do futuro. Mas sendo fácil, facilitei, que também preciso, pelo que estacionei em redondo no rectângulo onde se acumularão os mais urgentes, por aflições e quejandos. Sobram os soltos da luxúria, o «NÆvus», do Rui Baião, quando este acreditava que a editora seria a dos seus desejos, uma antologia doida a fazer correr de par poetas e ilustradores, outro livrinho a citar Celan no corte e a arder no esplendor da Bárbara Fonte ou o primevo «Má Raça», nado e criado para os desenhos nocturnos do Alex Gozblau. Cem não representam grande coisa, grãos de areia no sorvedouro do ó do abysmo, a escorrer no funil do ípsilon, mas para cada um deles guardo o que contar, o que fez dele diferente, insubstituível, vivo. Fica para outra vez, agora não tenho tempo.

Santa Bárbara, 1 Novembro

Dia da Santa Saudade do México. Nunca a vanguarda mergulhou raízes tão fundas na tradição, mas isso pouco importa. Eis a banda sonora da minha tristeza, alegria tanta do passado: https://youtu.be/EM008zcvKg0

6 Nov 2019

Rapariga com tatuagem de Pégaso

[dropcap]E[/dropcap]ra sexta-feira. Ela tinha o rosto coberto e, depois de o destapar e lhe dar um beijo, voltou a cobri-lo. As tias e outras pessoas formaram um círculo e, de mãos dadas, começaram a cantar. Eu não percebia bem o que elas diziam, porém a música era tão bela e triste, o ar tão pesado que, minutos depois, me fez romper num pranto desesperado. Não era a única.

Quando quis despedir-me, aproximei-me do caixão e destapei-lhe o rosto. Parecia uma versão um pouco acinzentada de si mesma. A maquilhagem utilizada para disfarçar as marcas da violência que sofrera não era suficiente. O piercing no nariz ainda lá estava e o pescoço coberto, mas eu só soube a razão um mês depois. Pedi-lhe desculpa por tudo aquilo mas também pela pena que involuntariamente sentia de mim mesma agora, uma semana antes do meu aniversário, aquele que eu nunca esqueceria. Disse-lhe adeus, baixinho, e encostei os lábios à testa dela para dar um beijo à rapariga com a tatuagem de Pégaso. Fui invadida pelo gelo que é já não termos o coração a bater. Ela estava da temperatura mais baixa que eu alguma vez tinha sentido. E foi como se me abandonasse o espírito, e repente pensei que ia desmaiar, tal era a forma desvairada (tão diferente da minha voz de sempre) como eu gritava, chorava e dizia o quão fria ela estava. Como se mais ninguém soubesse. Eu nunca tinha tocado numa pessoa que não estivesse viva. Nos filmes e na televisão nunca vemos alguém estranhar essa temperatura oposta à nossa. Era a segunda pessoa morta que eu via, mas a primeira em quem eu tinha tocado. Já não sei quem me segurou; estava histérica e não percebia como é que a rapariga de antes fora capaz de fazê-lo com tanta serenidade. Consegui controlar-me algum tempo depois, apenas o suficiente para voltar para junto dela e dar-lhe o beijo de despedida que interrompera.

Sábado. Mais um funeral em dia solarengo e quente. Comecei a achar que fazia sempre sol nos funerais, mas claro que isso não fazia sentido. Nem parecia que estávamos em Outubro. Foi tudo muito difícil, desde o percurso da igreja para o cemitério ao baixar do caixão e atirar dos primeiros bocados de terra (ouviram-se choros e lamentos reforçados, nesse momento), até ao olhar em volta, para aquela massa enorme de gente, e pensar “Será que ele está aqui?” Ele, o autor de tudo aquilo, sobre quem cedo pensei que precisaria de perdão.

No dia seguinte, domingo, como habitualmente passei as duas últimas horas de trabalho sozinha e, entre a falta de chamadas e a visão da sua cadeira vazia, tão perto da minha e mais vazia do que as outras, dei por mim a vaguear pela sala, até encontrar um saco cinzento, dos que usávamos para guardar os headsets e, dentro dele, entre várias outras coisas, o seu caderno actual. Foi uma descoberta assombrosa. Um caderno A5, azul, pautado, com argolas brancas, perfeitamente comum, que eu guardaria durante muitos anos, como se pudesse trazê-la de volta.

Todos os tínhamos; eram uma das nossas ferramentas de trabalho mais importantes, onde registávamos o nome da pessoa com quem estávamos a falar, fosse cliente, colega de loja ou motorista, o número da loja e o número do processo em questão, um procedimento que parece obsoleto, volvidos doze anos. O caderno começava a nove de Setembro e terminava a vinte e três de Outubro de dois mil e sete. Começava com uma Fátima e acabava com uma Ana. E entre uma e outra houvera Rosas, Danielas, Verónicas, Josés, Mafaldas, Paulas, Carlos, Pedros, Sandras, Cristinas, Jorges, Tiagos, Margaridas, Salomés, Brigites, Marcos, Ruis, Olgas, Cátias, Ricardos, Elsas, Joanas, Adílias, Martas, Dulces e tantos outros nomes, de inúmeros sítios do país. Havia um post-it amarelo com o nome e o número de telemóvel do nosso chefe. As datas apareciam a vermelho e marcador amarelo fluorescente. Tudo o resto fora escrito a azul e, antes de cada nome, alternadamente, um traço ou uma bolinha, a vermelho. Metade do caderno estava preenchida, a outra metade em branco. Alguns rabiscos, uma ou duas notas não relacionadas com o trabalho, o seu nome e alcunha escritos em vários sítios, com uma daquelas canetas de bico fino, verde escuro. Um bloco de apenas três post-its, com o rebordo pintado a verde, na folha do dia 23 de Outubro – sem nada escrito. Nada mais seria escrito.

Eis o caderno da Vânia, que sabia dançar, que fumava, que devorava Pringles e adorava Skittles embora afirmasse, com toda a certeza, que os de Inglaterra sabiam muito, muito melhor. Compreendo. Afinal, a vida também sabia melhor quando ela estava por perto. A filha herdou dela a beleza e, com um pouco de sorte, a todos nós terá calhado alguma da sua força.

Ouço “Visions” de Stevie Wonder repetidas vezes. Olho as fotos cúmplices que já conheço de cor. De algum modo, sinto que são as mais belas. Passou metade da pena de prisão. Passou muita coisa, excepto a memória de alguém que conheci apenas durante meio ano. Bolas, que belo meio ano.

5 Nov 2019

Convento de Santa Cruz e Capelas dos Passos da Via-Sacra reabrem ao público

[dropcap]F[/dropcap]oi inaugurada, no passado dia 19 de Julho, a obra de “Requalificação e valorização da Mata Nacional do Bussaco – Recuperação do Convento de Santa Cruz e Capelas dos Passos da Via-Sacra”, um investimento global de cerca de um milhão de euros. A empreitada, adjudicada a uma empresa especializada na reabilitação, conservação e restauro do património construído, englobou trabalhos de conservação e restauro em fachadas, paredes e tetos interiores, recuperação de vãos interiores e exteriores, recuperação de coberturas e intervenções pontuais de correcção em drenagem de águas pluviais e em pavimentos. Toda a empreitada, iniciada em Março de 2018, obedeceu aos projectos aprovados pela Direcção Regional da Cultura do Centro.

O investimento foi em parte suportado por fundos comunitários (Programa Centro 2020) e pela Câmara Municipal da Mealhada.

A inauguração contou com a presença da ex-Secretária de Estado da Cultura, Ângela Ferreira, do Presidente da Câmara Municipal da Mealhada, Rui Marqueiro, que sublinhou que a reabilitação e preservação da Mata Nacional do Bussaco será sempre uma prioridade para a Autarquia, adiantando que as próximas áreas a intervencionar serão as garagens do Palace Hotel, o chalet de Santa Teresa e a igreja do Convento de Santa Cruz, e ainda do Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, que destacou o “valor ímpar do Bussaco como um todo, absolutamente distinto no país e no mundo” e enalteceu “o projecto que tem vindo a ser realizado com a colaboração de muitas entidades públicas e privadas”.

Os imóveis reabilitados são património do Estado, encontrando-se os mesmos afectos à Fundação Mata do Bussaco há cerca de 10 anos, por via do usufruto constituído por força do Decreto-Lei n.º 120/2009, de 19 de Maio. Contudo, para que as obras avançassem de facto – algo comummente aceite por todos como urgente há vários anos -, teve a Câmara da Mealhada de se substituir ao papel do próprio Estado.

Classificado em finais de 2017 “finalmente” como Monumento Nacional, já que apenas ostentava a categoria de Imóvel de Interesse Público desde 1943, o conjunto monumental do Bussaco é formado pelo Palace Hotel do Buçaco – instalado em 1917 num pavilhão de caça dos últimos reis de Portugal – pelo Convento, as ermidas, as capelas e os Passos que compõem a Via-Sacra, a Cerca com as Portas, o Museu Militar e o monumento comemorativo da Batalha do Buçaco. Esta decisão, assim como a requalificação mencionada, reforça o processo de candidatura deste importante conjunto monumental a Património Mundial da UNESCO, apresentada em 2017.

O Convento de Santa Cruz do Bussaco, construído entre 1628 e 1630 e ligado à prática eremítica dos Carmelitas Descalços e à acção reformadora (1562) de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, estimulou a criação de um dos mais originais Desertos da Ordem. A sua história inicia-se em 1628, quando o bispo de Coimbra D. João Manuel doa aos carmelitas da província portuguesa a mata do Bussaco para a construção do convento e retiro dos religiosos da Ordem. No apelo constante à solidão e ao afastamento do mundo, o Convento seria então o palco de uma experiência profunda de contemplação, oração e penitência.

A partir da acção enérgica de frei Tomás de S. Cirilo, frei João Baptista e Alberto da Virgem, o essencial da construção da complexa estrutura conventual decorreu até 1639, altura em que foi sagrada a igreja dedicada a Santa Cruz. Aqui, aliou-se o sentido simbólico da planta centralizada à prática pouco comum da colocação do templo no meio dos espaços de circulação associados às estruturas claustrais, estabelecendo-se assim a aproximação ao arquétipo do Templo de Salomão, primeiro espaço verdadeiramente sagrado da Cidade Santa. No Convento do Bussaco, o discurso iconográfico do espaço, das formas, dos materiais e das técnicas vai ao encontro de uma espiritualidade que se constrói pela fé e pobreza. O emprego das cortiças e da técnica dos embrechados, de grande originalidade pelos materiais utilizados e pela perfeita integração na arquitectura bem como no enquadramento de natureza em que se insere, os conteúdos da azulejaria do séc. XVII, inspirados em tecidos orientais com motivos de animais e ramagens, de grande riqueza cromática e decorativa, conservados no seu local de origem, ou a força da imaginária religiosa reforçam esse sentido de uma exemplaridade cristã vivida no isolamento.

O Convento de Santa Cruz do Bussaco tinha outra dimensão que respondia às necessidades da vida conventual mas, apesar dos rigores de um quotidiano de silêncio e penitência, não deixou de ter um papel fundamental no acolhimento ao cenário de guerra da Batalha do Bussaco (1810) ou atrair um constante fluxo de religiosos que, em regime temporário ou perpétuo, escolhiam este local. Procurado e beneficiado por algumas das mais prestigiadas entidades eclesiásticas dos séculos XVII e XVIII, como D. Manuel de Saldanha, Reitor da Universidade, ou D. João de Melo, bispo de Coimbra, o Convento de Santa Cruz prosperou até 1834, data em que a extinção das Ordens Religiosas ditou o seu abandono. No contexto da Guerra Peninsular, em 1810, as suas instalações serviram de hospedagem a Arthur Wellesley, 1.º Duque de Wellington, que comandou as forças anglo-portuguesas contra as do general francês André Massena na Batalha do Bussaco.

A partir de 1888, contudo, um novo impulso construtivo traria ao Bussaco o Palace-Hotel que, se implicou a destruição das estruturas conventuais anexas à igreja, ao corredor e pátios que hoje testemunham a existência do Convento, permitiu a sua inclusão num Bussaco romântico que permanece como um dos locais patrimonialmente mais ricos na sua diversidade compositiva.

A Igreja é localizada no centro do Convento simbolizando o Templo de Salomão que também se situava no centro da cidade de Jerusalém; a Via Sacra é uma verdadeira encenação dos locais por onde Cristo passou desde o Horto, local onde foi condenado, até ao Túmulo; os Passos são explicados através de inscrições descritivas dos mesmos e do seu percurso dentro da cidade de Jerusalém, que estão colocadas nas capelas e em locais específicos (escadaria, arcos, caminhos) do itinerário da Via Sacra dentro da Mata. As ocorrências epigráficas assumem aqui um papel de extrema importância contribuindo para a leitura iconográfica da imaginária das capelas e indicando ao caminhante as várias etapas a percorrer na Via Sacra.

5 Nov 2019

O rei do catete

[dropcap]H[/dropcap]á pessoas que vivem como se fossem animais com sorte, como se fossem animais habitando um lugar onde não falta nem comida, nem fêmeas, e onde não há predadores, transformando-as assim em pessoas felizes. Aparecem no mundo, inexplicavelmente não pedindo nada, tendo muito pouco e sendo servidos generosamente pela vida. Na verdade, e para sermos rigorosos com o mistério, deve haver tanto de natural quanto de sabedoria. No Rio encontrei algumas destas pessoas.

Airton era um mulato vistoso, de 37 anos, com um quarto nos fundos de uma casa no bairro do Catete por onde passava muita garota, “o matadouro”, como dizia aos amigos. Passava algumas noites da semana no barzinho do Garibau, jogando sinuca. E entre uma e outra tacada bebia uma geladinha e botava discurso. Todo o mundo gostava do Airton. Papo fácil, generoso na atenção, pagava cerveja ou pinga a amigos, moderadamente, que não era trouxa, e arrasava as coxas das mulheres. Desde muito cedo que as mulheres gostavam de se deitar com ele, e assim foi levando a vida como Deus mandou, e Martinho da Vila cantou num samba. Se medíssemos a sua vida pelo que tinha, era quase um miserável. Mas se a medíssemos pela sua alegria, era um rei. Tinha feito mais estudos, à noite, que a maioria das pessoas da sua condição, e ostentava isso com algum orgulho. Virou-se para mim e disse: “E boto estórias num caderninho feito Machado de Assis, que vivia bem perto daqui, portuga.” Ia levando a vida, entre a oficina de bate-chapas, um ou outro livro que lia, as estórias que escrevia e as mulatas, que eram a sua perdição, e ele também a perdição delas. Vivia esperando fim de semana e Carnaval. “Como papai noel vive para a dia 25 de Dezembro, aqui o Airton vive para Carnaval.” E, no Rio, este festival tem muito mais dias que noutros lugares. Nessa altura, quase não dormia. Valia tudo para não fraquejar. Todo o tipo de estimulantes estavam valendo. “Cara, você me pergunta o que é o Carnaval para mim? Carnaval é o melhor da vida, quando o melhor do paraíso se junta com o melhor do inferno: vida sem trabalhar, calor, cerveja e muita sacanagem. Tem coisa melhor?” Um amigo dele tinha vivido uns tempos em Portugal e veio de lá muito decepcionado com o país. “Aquilo é frio que só pinguim aguenta, mulher é tudo fresca e nenhuma samba. Que adianta que não tem violência. Nem violência nem alegria. Não há cidade como o Rio! É a cidade maravilhosa. Bandido tem em todo o lado. Agora mulata assim, bundona, gostosa, sambando feito diabo em feriado de Deus, não tem em mais lado nenhum.” Esta convicção de Airton justificava a vida no Rio e desculpava o despautério de violência que grassava a cidade. “Me diga onde não tem violência! O próprio nascimento dá-se com a agressão do filho à sua mãe, cara. A verdade é que nossa vida está presa por um fio invisível. Nascimento e morte é um mistério. Minha mãe morreu bem jovem, de cancro, sem alegria, sem marido, só comigo do seu lado, que nada podia fazer. Pobre ou rica, morreria na mesma. Enquanto cá esteve é que tinha de fazer com que a sua vida tivesse valido a pena! Adianta viver com medo? Enquanto cá andamos temos o dever de procurar alegria. E se não há alegria, temos de inventar. Portuga, há lugar mais alegre que bunda de mulata sambando?”

Encaçapava a bola 8, sorria e pedia mais uma geladinha ao Garibau. “Esta noite ainda vou escrever estória.” Juntava as bolas na mesa de bilhar, ia junto à mesa encher o copo e percebia-se que a vida não tinha mistério. Airton não era o rei da selva, era o rei do Catete.

5 Nov 2019

Dia de Todos os Santos

[dropcap]É[/dropcap] difícil de perceber como cada pessoa não se esgota nem no seu semblante, nem na sua aparência, nem no seu corpo, mas como é portadora de uma multidão de gente contemporânea, antepassada, posterior. É assim que se passa conosco e podemos adivinhar que se passa com os outros por quem passamos, com quem está à nossa frente, desconhecidos, mas também conhecidos. Cada pessoa é uma atmosfera. Cada pessoa existe não apenas nesse interior contemporâneo à situação em que se encontra, mas está determinada a existir com as influências que os outros têm sobre si próprio. Acontecemo-nos uns aos outros, deixamos os outros ficar bem ou mal, damo-nos alegrias e tristezas. Cada pessoa é o mundo complexo de que é portadora. Leva a sua vida, carrega-a. Todos nós somos as nossas pessoas e estamos implicados em todos os outros por mais abstracto que seja o círculo dos círculos: a humanidade. Levamos conosco todas as pessoas das nossas vidas. Quando duas pessoas se encontram estão multifacetadas por toda a gente que existe no seu interior. Este interior é tão exterior que somos com as impressões que os outros deixaram. As vidas passadas dos outros existem ainda, mesmo que tenham desaparecido, não estejam entre nós, como dizemos. Lembro-me de como antepassados me pediram para levar cravos à sua sepultura futura, de como era importante que soubessem que ficariam a viver em mim, como se isso os isentasse à morte e não os deixasse enterrados numa sepultura não visitada. Ia sempre no dia de todos os santos visitar os parentes mortos, as avós e o avô e aquele amigo de infância desde toda a hora que teve uma vida tão breve quanto violenta e triste. Quando passava de carro com o meu pai pelo cemitério onde estava enterrado, levava-o comigo até à praia. Era só com a voz que eu convivia. Durante anos lembrava-me de como era a sua voz, mas depois acabei por esquecer, para só de quando em vez me lembrar dela. Era miúdo quando passava de carro em frente ao cemitério. Depois despedia-me dele, invisível, como quem deixa um amigo em casa e seguia a minha vida, como todos os que ficaram vivos seguem. Não é quem morre que fica. É quem permanece na vida que fica, pelo menos ainda, para morrer. Todos os nossos mortos estão já isentos, saíram de cena, não estão em jogo. E não desapareceram. Coisa estranha. À medida que o tempo passa, temos mais gente morta viva em nós do que pessoas vivas que nos digam alguma coisa. Somos determinados pelas atmosferas passadas dos outros e que criam ainda agora atmosferas presentes e futuras. Mesmo com o aumento da população mundial, sobrevivemos a todos, somos o resto, sou o resto, como se estivesse com o feixe na mão a alumiar a noite escura.

As labaredas da chama têm ainda iluminado o passado presente dos outros todos que se foram. Há cemitérios cheios de gente que lá foi em romaria no dia de todos os santos, famílias inteiras que se reúnem sentadas a falar dos mortos e com os mortos. Outrora ficava perplexo com as imagens cinematográficas em filmes de personagens norte-americanas que visitavam campas relvadas em cemitérios e falavam verdadeiramente com os seus mortos. Todos falamos com os nossos mortos. Eles falam conosco, quando menos se espera, mas perguntamo-nos e se soubessem como nos encontramos agora, o que fizemos das nossas vidas. Talvez não precisemos de ir aos cemitérios nem que sejam em campos relvados ou tenhamos os nossos mortos em casa como a tradição japonesa. Se os nossos mortos não fazem sentir a sua presença podemos pensar neles, com aquela forma preciosa de conjuramento em que eles aparecem como se fosse véspera de Natal, dia de aniversário, ou então só um dia bom em que eles estavam bem e se sentiam felizes. E nós com eles.

1 Nov 2019

A mui leal deslei dos indícios exteriores

[dropcap]P[/dropcap]or razões académicas, passei alguns anos da minha vida a pesquisar sobre a realidade dos cristãos-novos. Na maior parte dos casos, tal como foi referido por diversos investigadores (lembro-me dos casos de P. Dressendorfer e de O. Hegyi), a inquisição seguia os seus alvos através dos chamados “indícios exteriores”. No levante ibérico, onde na segunda metade do século XVI viviam mais de 600.000 “moriscos”, bastava encontrar um texto com letras árabes ou hebraicas (ou perceber um dado ritual de higiene) para que a perseguição se consumasse. Embora não seja matéria muito conhecida, o facto é que estes “moriscos” de Aragão deram origem a uma vasta literatura, escrita em língua latina de teor híbrido (na transição do aragonês para o castelhano), mas redigida com caracteres árabes. É a literatura ‘aljamiado-morisca’, hoje em dia bastante estudada no âmbito dos estudos orientais.

Quatro séculos depois, a geração que cresceu no pós-segunda grande guerra mundial foi a primeira a desencadear no ocidente um movimento de contracultura que visou sobretudo o tradicionalismo ao nível dos costumes e certas práticas políticas que sobrepunham os fins violentos aos meios. Entre o Maio de 68 e a roda-vida punk dos anos setenta e início de oitenta, a ideia de geração e de poder jovem consolidou-se socialmente. Uma parte fundamental da afirmação destes sectores fez-se, justamente, pelo recurso a ‘indícios exteriores’. Cabelo, roupa, tatuagens e todo o tipo de objectos associados ao imaginário da pop e do rock traçaram formas de reconhecimento e de veemente demarcação.

A maior parte destas cenografias do corpo foram sendo absorvidas e recuperadas pelo ‘mainstream’. O pós-moderno, a desmobilização ideológica, o ‘branding’ e as fusões entre a “alta” cultura e as expressões populares, profetizadas por U. Eco em meados dos anos sessenta, contribuíram para estas rápidas incorporações que se foram tornando claras já no final do século passado.

Eu estava em Londres quando Thatcher foi reeleita em Junho de 1987 e lembro-me bem de ver na televisão todos os candidatos da “constituency” onde a PM acabara de ser eleita. Havia de tudo: solenidade de casaco e gravata, mas também cabeleiras vermelhas eriçadas, vestidos de renda rasgados e chapéus em forma de cone. Aquela visão de Thatcher a discursar no meio de um garrido ‘plateau’ em jeito de ‘commedia dell’arte’ ilustrou na perfeição o modo como o sistema sabia – e soube – recuperar ‘indícios exteriores’ que antes haviam desempenhado outras funções.

Em Portugal estas incorporações foram levadas a cabo com um ritmo próprio, um pouco mais lento do que na Europa do norte. Houve, no entanto, sectores que resistiram e um deles foi a arena política. Com excepção de um deputado da Madeira, o famoso José Manuel Coelho, raras vezes o ‘establishment’ político saiu formalmente das marcas. Basta olhar para a Assembleia da República e observar os mais jovens deputados que parecem já velhos e puídos, presos nos colarinhos vincados e nas palavras de ordem que reflectem uma correcção betinha a toda a prova.

A renovação que vem sendo feita nas últimas duas décadas é sobretudo programática. O Bloco revestindo as vestes de PC, mas aligeirando o discurso; os liberais pululando nos aquários da direita e procurando um desígnio autónomo; e o devir ecológico, primeiro mortificado nas delongas da CDU, e depois tentando encontrar roupagens e acenos actuantes. No meio desta cartografia de tendências, nunca se tinha visto um partido que fizesse dos ‘indícios exteriores’ uma das suas armas de ‘luta’. Foi o que aconteceu com o Livre. Bastou um homem de saias acompanhar a novel deputada mais visada (por diversos factores de intensidade) para que um brado com longo eco se instalasse.

Não deixa de ser interessante perceber o contraste entre os comentários provocados pela ‘chegada’ do Livre ao parlamento português (com os seus mais-do-que-pensados ‘indícios exteriores’) e a total indiferença dos media face à cena de Thatcher, na Londres de 1987. O que se escreveu por cá, quer nas redes sociais, quer nos media, ora através de registos fervorosos (que não evitaram a boleia da culpabilização), ora em registos de choque, indignação e embaraço provinciano, dá a ver um binarismo pacóvio, forçado e com pouco ou nada de substantivo.

Esperemos, pois, que o Livre não se fique pelo manifesto dos ‘indícios exteriores’. Por conhecer Rui Tavares, e apesar de não ter voltado no Livre, creio que tal não deverá acontecer. Mas a radiografia portuguesa suscitada pelas encenações – de um lado ao outro dos espectros discursivos – não deixou de ser sintomática. Portugal está ainda aprisionado por uma redoma invisível que o congela diante da sua história.

É evidente que não retiro importância aos ‘indícios exteriores’, pois também são política. Quer pela sua presença, quer pela sua ausência, eles criam sentido e não são nunca inocentes. Os ‘moriscos’ de Aragão desenvolveram o princípio da “taqiyya” que correspondia ao seguinte lema: preservar ‘indícios exteriores’ alheios, embora mantendo interiormente uma fé oposta. Este código secreto, muito desenvolvido na literatura clandestina da época, fazia da ausência de ‘indícios exteriores’ o seu próprio discurso. Na actualidade portuguesa, é através da feérica ostensão de ‘indícios exteriores’ que alguma – porventura necessária – afirmação política se tenta. Algo que no reino do Brexit, naquele parlamento ungido pelos mais altos espíritos do ‘Monty Python’, já não teria, obviamente, qualquer sentido.

31 Out 2019

Os muros

[dropcap]A[/dropcap] vida contemporânea começa a estar cheia de muros. Os muros do politicamente correcto, os muros de Trump, os muros com que Bolsonaro pretende encerrar a Globo, como ameaçou numa comunicação ao país de uma exaltação inusitada. Vale a pena ver os vinte e cinco minutos daquele deboche de impropérios para se perceber como Nelson Rodrigues tinha razão: só a estupidez é eterna.

Trump, prometeu na semana passada construir um muro no Estado do Colorado, argumentando que era uma prioridade do combate à imigração clandestina. “Nós construímos um muro na fronteira do Novo México e vamos construir um muro no Colorado”, continuou, prometendo: “um muro magnífico, um grande muro que funcione verdadeiramente, onde não se possa passar nem por cima, nem por baixo”.

O problema é que este Estado do centro dos EUA, situado entre o Utah e o Kansas, não tem fronteira com o México.

Mais tarde veio desmentir a coisa, ou antes, dizer que brincava. O que interessa relevar é o padrão.
Há um ano e picos atrás, guardei esta informação: Josep Borrell, ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, “revelou que Donald Trump lhe sugeriu que fosse construído um muro no deserto do Saara, para impedir que os imigrantes e refugiados continuem a chegar à Europa.”É um padrão. Eu interrogo-me seriamente se o homem não está a enlouquecer.

Entretanto, como ontem comprei na rua Os Novos Contos do Gin Tónico, do Mário Henrique Leiria, por cem meticais (um euro e vinte), depois de o reler e de matutar nos muros de Trump saiu-me este pastiche:

«Vi um muro de 4500 km a ser sugado / por uma miragem / um muro inconsolável por não ser o primogénito /e ter nascido antes dele a muralha da China.// Flanava um muro já maduro de bicicleta/ por prostíbulos e campos de golfe/ discretamente de peúgas riscadas e cueca larga e master card/ por aqui e por ali/ quando veio a lua nova/ entortar-lhe o guiador. //

A aba do chapéu / do olvido/ é um muro de polpa azul.// Tinha uma razão sempre áurea/ aquele imperador de dedo em riste/ mas nas suas gengivas irrompiam muros entre as palavras.// No deserto da Namíbia erra/ um imenso muro circuncidado/

– procura prepúcio,/ saudoso de andar à chuva /com mais confiança,/ por favor não contem
ao homem do Colorado.// Repetem os altifalantes na praia de Biarritz: / Encontrou-se um muro menor de idade/ (vê-se que faltou às aulas de geografia!)/ perdido dos pais e banhado /em lágrimas de crocodilo!/ Quem tiver informações/ contacte a polícia marítima.// Aqui para nós, um muro em lágrimas/ seria o ideal para estancar no Saara/ as enxaquecas e os calores. // Terá alguém compreendido: um muro/ (não um escopo de muro mas) O MURO/ faz-se descascando um mosquito?// Enquanto o muro que procura

pela sua teia continua à nora/ pode-se ao menos instalar no Saara um semáforo/ que refreie o tráfego de refugiados?// Não contem ao homem do Colorado// Pixou-se naquele muro em Detroit: “A sonâmbula eslovena / que se imaginava numa gôndola/ a meio do tráfego de Nova Iorque/ vive hoje na Casa Branca.// Há um muro que pulsa/ nas omoplatas que se submetem/ a um encarniçamento das vespas,/ não contem ao homem do Colorado.// O jornal El Confidencial/ assegura que um muro de colarinho branco/ afamado por se dar às bravatas/ se enforcou numa gravata jurássica.»

Diante da declaração de Bolsonaro não me sai nada, aquele Flintstone da ira deixou cair todas as máscaras e ficou à beira de decretar aquilo que o seu guru, Olavo de Carvalho, pediu há uma semana: ditadura.

Eu suponho que a sua comunicação tão destemperada – excede tudo o que se imaginava – tenha aberto todas as caixas de Pandora e que agora alguma da direita liberal se virará definitivamente contra aquele aprendiz de Nero, finalmente ciente de que o tonto não tem o equilíbrio necessário ao cargo.

O pretexto da comunicação foi a reportagem da Globo onde se relacionam o suspeito do assassínio de Marielle com Bolsonaro. Duas coisas retive da comunicação. Para repudiar a ideia de que pudesse ter estado por trás do homicídio da activista, Bolsonaro não evocou qualquer argumento legal ou humanitário, fez uso desta inexplicável frase: «Não tinha motivo para matar ninguém do Rio de Janeiro!». Extraordinária declaração que nos faz perguntar: ok, e de S. Paulo?

O segundo momento pertence à recta final da comunicação e é da ordem da linguagem não verbal. A dado momento, Bolsonaro deixa escapar por um segundo uma cara de satisfação, já não está indignado, está no desfrute de sentir que engana toda a gente – é o actor em auto-admiração, tão em acto, que ousa formular, repetidamente: «o vosso orgasmo (da comunicação social) é derrubar-me?»

Esta comunicação tão ao pêlo, tão emocional, de ursa defendendo a família contra as ameaças exteriores, é capaz de colher ainda adesões na camada da população que cognitivamente está condicionada aos lugares-comuns e às ideias feitas e que não está preparada para a subtileza e a análise, mas crispará o país ainda mais e de tal forma que novos muros se vão erguer entre a população.

Os muros físicos do país rico em cima são replicados pelos muros psíquicos do país remediado, em baixo.

Que triste desdita, ser hoje brasileiro.

31 Out 2019