Bloom, doze anos antes

[dropcap]N[/dropcap]o Outono de 2007, Harold Bloom revelou no The New York Review of Books que tinha decidido “voltar a ler Shakespeare em vez da Bíblia, depois de ter regressado à vida”, na sequência de alguns dias de internamento. E a conclusão surgiu logo a seguir com clareza: “Não há separação entre vida e literatura em Shakespeare”.

Este “back to life” não podia ser mais auspicioso. Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo, o vivido, a disposição policial e a produção de imagens inauditas, Shakespeare, na linha de Bocaccio, foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam os acervos memoriais do seu tempo. É quase a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que se reproduzem como cerejas a partir dos media e das redes sociais, criando cadeias ficcionais apaixonadas e delirantes (que replicam as funcionalidades mitológicas do ‘exemplum’), e os acontecimentos e as histórias que se constituem, no nosso dia-a-dia, sob a forma de cápsulas instantâneas ou de simples vaivéns de conjuntura.

O público da actualidade procura (ainda que involuntariamente) as grandes metáforas da vida nas curtas narrativas que os media vão desdobrando sobre os fragmentos soltos do quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos reais que são eleitos como notícia, se forma, com total impotência por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas e rumores que acaba por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional. É o que tecnicamente se designa por meta-ocorrência ou narrativa conspurcada (tão própria das redes sociais) em que proliferam milagres, delírios, pseudo-polémicas inconsequentes e os já habituais – e cada vez mais apurados – adereços “fake” induzidos.

Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal nos últimos anos. Os exemplos inundam-nos, submergem o quotidiano e são facilitados pela massificação globalizada que oscila entre as esferas do público e do privado e no seio da qual o impacto dos media é diagnosticado sobretudo por filtros passionais e afectivos. Existirá, pois, uma correspondência entre estas novas cadeias ficcionais – espécie de ‘literatura de cordel high-tech’ – e o mundo das alegorias que procurava o milagre e a disrupção para traduzir as relações entre a virtude e o interdito, ou entre o conhecido e o desconhecido.

Enfim: Bloom teria a sua razão, quando separava o patamar da parábola que reinventa com enlevo a realidade e o patamar da conta-corrente que a relata, amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem ou reaparecem). Num e noutro, o “canône” não deixa de ser um beco com saída (apenas) para a imaginação. Num e noutro, são os antigos requisitos da fé que se sublimam.

Para quem recuperava à época de uma doença grave, é normal que as ilusões deste segundo patamar se tornassem mais aliciantes. Mas para quem calcorreia o stress do dia-a-dia, nada melhor do que umas prestidigitações mágicas à Méliès aliadas ao furor das cerejas. Como se umas e outras fossem verdade, ainda que, no nosso tempo, o sentido – a simples produção de sentido – se imponha cristalinamente aos apetites da verdade.

Recuperei esta brevíssima reflexão justamente no dia em que Harold Bloom faleceu: 14 de Outubro de 2019. Volto agora a dar-lhe luz. E faço-o porque me foi importante lê-lo, a despeito dos detractores, muitos deles ‘formados’ dentro de barricadas claustrofóbicas e com capacidade para distinguir apenas um limitado segmento do horizonte (sei bastante bem que, do outro lado, existem barricadas simétricas e ‘muito seguras de si’, com usos e costumes em conformidade). Coisa de claques, afinal. É a vida.

*The New York Review of Books , Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40.

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