Uma aula ao contrário

[dropcap]E[/dropcap]stou em Macau há quase um mês em residência literária, uma oportunidade apenas possibilitada pelo trabalho incansável do Hélder Beja e da sua Eastern Chapter, que buscou apoios junto da Casa de Portugal em Macau e da Fundação Oriente para conseguir que a minha ideia semi-tresloucada de deambular por aqui exposto a esta intersecção de culturas, pessoas e hábitos fosse concretizável. Não escrevo esta crónica em jeito de sumário ou de despedida. As minhas experiências de Macau são fragmentos de terra em deriva impassíveis de serem cartografados por ora.

Estive hoje (quinta-feira, 28 de Novembro) numa escola chinesa trilingue. Os alunos, da primária ao secundário, aprendem mandarim, português e inglês, a par do cantonense que já falam em casa e entre eles.

É uma escola-piloto em Macau, a única que proporciona este currículo. Os alunos dos 10º e 11º anos com quem estive a conversar não eram na sua maioria fluentes em português. Mas havia uma miúda – chamemos-lhe Ana – que falava um português mais do que razoável. Ávida leitora, perguntou-me, entre outras coisas, de onde vinha a inspiração, como é que alguém se tornava escritor. Já respondi a esta pergunta dezenas de vezes, numa estimativa conservadora, e sempre errada ou incompletamente. Para ser honesto, teríamos de conversar muito acerca do que entendemos por inspiração para nos aproximarmos sequer do que pode ser uma resposta que caia pelo menos na cercania do alvo. Aquela menina, de uma curiosidade insaciável, sabia a resposta à sua pergunta, mesmo sem talvez conseguir formulá-la adequadamente.

Falei-lhe de como cada um de nós é um arquipélago de histórias em constante reformulação. Contei-lhe como as minhas memórias de infância foram sendo substituídas por memórias imaginadas e de como me tinha surpreendido quando, regressando em 2016 à cidade onde nasci, tudo me parecera muito diferente daquilo que me lembrava, mesmo nas coisas, que por inerência de perenidade, não costumam mudar no nosso tempo de vida, como é o caso das montanhas. Contei-lhe uma história que lera no dia anterior sobre uma ponte na Escócia de onde já saltaram cerca de trezentos cães, tendo muitos deles morrido. Regra geral, o cão não tem impulsos suicidas, pelo que aquela ponte é um mistério até para especialistas mais renomados em comportamento animal, que propõem teorias que os locais despedem com um aceno de mão. Este mundo feito de histórias – disse-lhe – no qual a ficção joga com a realidade apenas para tentar empatar, é o magma passível de ser convertido em sentido e expressão artísticos.

Soube depois que a Ana quer ser escritora, que estuda português todos os dias para um dia conseguir explicar aos portugueses o que é a China e a cultura chinesa. Eu gostava de ter conhecido a Ana desde sempre, porque só muito recentemente e por via do acaso é que ultrapassei a síndrome da China-galinha-com-amêndoas e da China-produtos-que-não-duram. Somos insuficientemente expostos – por motivos diversos – à diferença. Precisamos da Ana, de todas as Anas possíveis. Porque no fundo é neste ponto que a arte, qualquer arte, começa.

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