Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasMenina de tese [dropcap]M[/dropcap]arcia Becker publicou um romance em 2007 chamado «Menina de Tese», que traça um retrato simultaneamente irónico e real sobre a sociedade brasileira. Nascida na capital de São Paulo em 1977, Becker estudou filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no Campus Higienópolis, onde também fez o doutorado em Letras. «Menina de Tese» não foi o seu primeiro romance, mas foi aquele que a colocou no mapa das letras paulistas. O romance é relatado na primeira pessoa, Carol, uma paulista de 27 anos, que vivia com a avó num apartamento na Consolação, junto à Avenida Paulista, e ganhava a vida escrevendo teses de final de curso e de mestrado para quem não tem tempo ou competência para as escrever. O seu anúncio aparecia em várias faculdades e também nas redes sociais como alguém que podia ajudar a «organizar» ou a «dactilografar» a tese se alguém precisasse de uma mãozinha. Na primeira parte do romance, vemos uma Carol cheia de vida, alheada do mundo à sua volta, vivendo para «as suas teses» e para as idas nos barzinhos à noite na Rua Augusta, com amigos e amigas. Cultivava uma espécie de vida alternativa, como muitos dos jovens que vivem nessas baladas. Mas Carol gostava mesmo de escreve as teses. As que mais gostava de fazer era teses de literatura comparada. No fundo, como ela mesmo dizia para si mesma, pois para as amigas e amigos dizia que corrigia textos e dava explicações, era que escrevia continuamente livros que nunca seriam publicados. Era essa a sua profissão. Dos vários emails trocados entre Carol e os seus clientes que o autor nos dá a ler no livro, há um com uma aluna de uma cidade do interior do estado do Paraná, do Curso Superior de Pedagogia, que a tornaria habilitada para ensinar até ao 5º ano do Ensino Fundamental, que não só impressiona como muda a narrativa. Essa aluna envia a tese final já escrita, e pede-lhe que faça a bibliografia. Perante o espanto de Carol, que retorna o email expondo a sua incompreensão, pois o trabalho já está feito, a aluna escreve: «[…] eu não preciso do texto escrito, mas que leia o meu texto e depois faça a bibliografia, que escreva o nome de alguns livros que podem ter a ver com ele. Veja bem, eu trabalho e não tenho tempo de ler livros, o meu texto baseia-se nas aulas e nos manuais e não consigo identificar os livros que deveria ter lido para ter escrito o texto. […]» Depois de mais alguns emails para lá e para cá, a situação absurda era esta: a moça tinha feito um trabalho final sem ler nenhum livro, e precisava de uma lista de livros na bibliografia. Carol teria de ler as suas trinta e poucas páginas e pensar em ou identificar alguns autores e livros que poderiam estar na base do que a moça escrevera. Aquilo que mais causa transtorno não é o facto de a moça não ter lido livros e querer ser professora, mas num outro email responder que muitas pessoas pedem esse tipo de ajuda, que é normal, expondo uma situação triste e absurda que se passa no país. Triste porque, se quem quer ser professor não lê livros, imagine-se a maioria das outras pessoas. Absurdo porque não se entende como é que quem não lê pode estimular alguém a ler. Carol recusa-se a fazer esse trabalho e recebe um email de volta a fazer chantagem: ou faz o trabalho ou é denunciada à polícia, pelo tipo de trabalho que está fazendo. Depois desse email, Carol passa um dia transtornada, pensado no que fazer. Chega à conclusão de que, independentemente de a moça poder ou não fazer cumprir a ameaça, não valia a pena correr o risco. Faria o trabalho, do modo que conseguisse, e ainda receberia em troca e o problema acabava ali. Assim fez, assim recebeu e assim tudo acabou. E o seu negócio continuou como sempre. Mas depois do que lhe aconteceu, em vez de respirar de alívio e continuar a sua vida, Carol não consegue esquecer o assunto e passa a investigar a situação, obsessivamente, descobrindo um Brasil que desconhecia, o do interior. E o Brasil tem muito interior, a despeito de uma longa costa. E mesmo esta, muitas vezes, também tem características de interior. A consciência de tudo isto, deste mundo que desconhecia por completo, leva Carol a investigar cada vez mais acerca do mesmo. Chega a fazer viagens para o interior de São Paulo, para o interior de Minas Gerais, de Pernambuco, do Paraná, seguindo os trilhos deste fenómeno que conheceu através do insólito trabalho que fez sob chantagem. Aquilo que começou com uma chantagem, o que poderia ser um terrível transtorno, acabou por lhe mudar a vida. Estamos a mais de meio do livro. Até aqui, os pensamentos e a vida de Carol era a de quem vivia numa redoma alternativa. Sempre votou PT, não tinha dúvidas de que só a esquerda poderia conduzir o Brasil a futuro melhor, mas independentemente de estar certa ou errada – Becker nunca nos dá essa informação, não toma posição partidária – era uma consciência sem base real, sem base na realidade do país. A partir de agora, daquela encomenda absurda, começou a revolver o país e a sua consciência e depois da sua viagem do Paraná, decide entrar na política, decide que tem de ter uma posição mais activa, tem de ajudar a mudar o país. No momento em que Carol pretende entrar para o PT dá-se o escândalo do «mensalão», que estoura no início de Junho de 2005, quando o deputado Roberto Jefferson diz na Folha de São Paulo que o PT pagou a vários deputados trinta mil reais por mês para votar a legislação que queriam na Câmara dos Deputados. Mas não era só o PT que saia mal na fotografia. Havia deputados de mais dez partidos envolvidos, entre eles o PSDB e o PMDB. O escândalo, que com o tempo parece não ter mudado muito ou nada no Brasil, mudou muito em Carol. Entristeceu, deprimiu, deixou de sair e de investigar, desistiu da política. Passados meses, voltou ao seu trabalho de escrever teses, continuou a acreditar no PT, num projecto de esquerda para o país, mas nunca mais conseguiu ter vontade de ingressar na política. O livro fascina também pelo modo como nos mostra a vida nocturna de São Paulo, a esperança que todos aqueles jovens tinham no Brasil. E mesmo depois de um escândalo continuaram a ter, e a ver o país crescer. A frase final do livro, hoje, impressiona muito: «[Depois de uma noite na Rua Augusta com amigos] Carol regressava a casa cansada mas feliz. Consciente de que o país não precisaria dela para construir o seu futuro.”
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO deslumbramento [dropcap]S[/dropcap]amuel Barber foi um compositor interessado em levar a música culta a franjas mais amplas da população. Ao contrário dos seus contemporâneos, não se preocupou demasiado com as técnicas musicais de vanguarda da época. A sua linguagem é expressiva e lírica e baseia-se no sistema tonal de finais do século XIX, embora tenha incorporado alguns elementos como o cromatismo e a ambiguidade tonal a partir da década de 1940. Tão-pouco prestou especial atenção a elementos da cultura musical norte-americana como o folk ou o jazz, tão empregues por outros compositores norte-americanos como Aaron Copland ou Marc Blitzstein. Apenas em algumas das suas obras, como Excursions ou Knoxville: Summer of 1915, encontramos ritmos populares americanos como o blues. A produção de Barber abarca praticamente todos os géneros, embora o seu grande interesse pela voz humana o tenha levado a escrever numerosas obras vocais baseadas em textos de escritores como James Joyce, James Stephens, Emily Dickinson ou Rainer Maaria Rilke. O seu ciclo de canções Despite and Still, op. 41, dedicado à magnífica soprano Leontyne Price, caracteriza-se pelas suas frequentes alusões à solidão e à nostalgia do amor perdido, através de harmonias ricas em cromatismos e dissonâncias. Uma das principais características da música de Barber é o uso de grandes linhas melódicas, patente na perfeição do seu célebre Adagio for Strings, composto em 1936. Nas suas obras orquestrais costuma atribuir as partes solistas aos instrumentos de sopro de madeira, para além de utilizar frequentemente uma linguagem contrapontística de grande fluidez e uma orquestração de grande colorido, como é o caso do seu concerto para piano. Este é o trabalho que melhor transmite o brilho, o carisma, a energia, a invenção, o grande coração e o deslumbramento de Barber. É uma peça extraordinária, fogosa, dramática, às vezes requintadamente adorável e completamente emocionante. Também é incrivelmente difícil de tocar, tendo sido gravada apenas algumas vezes, mais impressionantemente (duas vezes) pelo pianista a quem foi dedicada, John Browning. O Concerto para Piano e Orquestra, Op. 38, de Samuel Barber foi encomendado pela editora musical G. Schirmer Inc., de Nova Iorque, em honra do centenário da sua fundação. A estreia teve lugar no dia 24 de Setembro de 1962, nas festividades de inauguração do Philharmonic Hall, actualmente David Geffen Hall, a primeira sala construída no Lincoln Center for the Performing Arts em Manhattan, com John Browning como solista com a Boston Symphony Orchestra dirigida por Erich Leinsdorf. Barber começou a trabalhar no concerto em Março de 1960. John Browning foi o solista pretendido desde o início e o concerto foi escrito com a sua técnica de teclado específica em mente. Os dois primeiros andamentos foram concluídos antes do final de 1960, mas o último andamento não seria terminado senão 15 dias antes da estreia mundial. De acordo com Browning (nas notas principais da sua gravação do Concerto para a RCA Victor em 1991 com a St. Louis Symphony), a versão inicial da parte do piano do terceiro andamento era impossível de executar; Barber resistiu em refazer a parte do piano até o pianista Vladimir Horowitz a rever e considerá-la também impossível de tocar at full tempo. O trabalho foi recebido com grande aclamação da crítica, com Barber a ganhar o seu segundo Prémio Pulitzer em 1963 e o Music Critics Circle Award em 1964. O primeiro andamento do concerto, Allegro appassionato, é puro Barber, ou seja, romântico americano. Inicia-se com uma grande cadência para piano que apresenta três temas – “o primeiro declamatório, o segundo e o terceiro rítmicos”, foi como Barber os descreveu, antes da orquestra entrar com a melodia principal do concerto, inquiridora e melancólica, que leva tudo à sua frente. Através deste andamento, piano e orquestra são essencialmente antagonistas, vangloriando-se à vez e raramente partilhando materiais. Através de inversão, retroversão e variações em contraponto destas melodias (que irão aparecer nos andamentos subsequentes) Barber desenrola todo o andamento. O segundo andamento, Canzone: Moderato, baseia-se principalmente numa melodia doce mas triste e é muito mais suave que o primeiro. Este andamento foi transcrito e expandido de uma Elegia para flauta e piano, composta em 1959 pelo flautista Manfred Ibel. Foi publicada em 1962, como Canzone (Elegy), Op. 38a. O terceiro andamento, Allegro molto, é composto num compasso furioso de 5/8, com um esmagador ostinato que confere à peça um som um tanto diabólico. Faz uso abundante dos metais, e é movido pela recapitulação de um breve tema motívico, dando ao andamento uma forma de rondo modificada. Sugestão de audição: Samuel Barber: Piano Concerto, Op. 38 John Borwning, piano, The Cleveland Orchestra, George Szell – Columbia, 1964
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasBurroughs à presidência! [dropcap]T[/dropcap]rouxe para a quarentena os livros “certos”, mas a net dispersa-me, arrasta-me numa deriva que me faz sulcar textos e autores ao arrepio do planeado. Uma crónica do Roberto Bolaño provoca-me a vontade de reler A Revolução Electrónica, de William Burroughs, um livrinho de 1972. Como não tem mais do que sessenta páginas, baixei-o da net para o ler de imediato. As teses delirantes do autor de Refeição Nua assentam como uma luva na situação de hoje. Sobressaem três linhas de força: – a metáfora da adição como figura de toda a forma de controle; somos dominados pelos poderes do Estado e do mercado mediante a adição induzida às drogas, ao dinheiro, ao poder, ao consumo, ao sexo, e à palavra; – viciamo-nos nas palavras porque estas na verdade, como o sistema de que emanam, a linguagem, não nos são originariamente naturais: a linguagem é um vírus chegado de «um espaço exterior», não-humano, que nos invadiu e parasitou, tendo-nos inclusive provocado uma enfermidade viral que nos alterou a estrutura interna da garganta. Face a essa infecção que fez brotar em nós as cordas vocais – resultado dessa simbiose entre nós e o vírus – muitos morreram mas os que sobreviveram adquiriram a linguagem; – terceiro ponto a reter: o vírus pode ser maligno, mas como hospedeiros do vírus temos uma palavra a dizer, i.é, o seu efeito sobre nós depende também da energia que colocámos no seu “combate”, Burroughs atribuiu uma parte relevante ao papel do medo como detonador de outros vírus ou sintomas latentes no nosso corpo e que aproveitam o novo parasita para nos infernizar. Como ele o diz, se deixamos que o célebre “instinto de morte” freudiano nos persuada de que somos “uns derrotados” estamos fritos. Estes dois últimos pontos podem-nos servir de consolo ou de alavanca. É iniludível que o corona vai desencadear mutações no nosso sistema de vida que a prazo nos poderão ser favoráveis, desde que esta reiterada consciência do que seja a “biopolítica” reforce a urgência de nos empenharmos nas causas sociais e numa “nova aliança”, eco-ética. Esta crise, por outro lado, trouxe-nos respostas definitivas: o neo-liberalismo é o regime que menos nos defende, numa crise humanitária, e sabemos quem o representa. Em segundo lugar, lembra-nos: as instâncias inconscientes e simbólicas tanto regem a nossa relação com o corpo como a sua saúde, eis um convite a que exorcizemos os nossos fantasmas. Outra leitura que surpreendentemente me revelou outro tipo de contaminação – neste caso literário – e que demonstra que a virologia nos cerca, seja qual for o domínio, é a impensável ligação entre dois livros e autores aparentemente nos antípodas. Quem à partida ousaria falar de afinidades entre Jack Kerouac e o Camilo José Cela? Pois façam o favor de ler o Pela Estrada Fora e em seguida A Cruz de Santo André. Os contactos são esmagadores e em vários pontos Cela dá um bigode a Kerouac, a começar pela voltagem da linguagem, o ritmo da escrita, mais amorfo no americano, e até – outro item desconcertante – na narração das relações sexuais entre as personagens, muito mais livre e inventiva no galego. Kerouac escreveu Pela Estrada Fora num rolo de papel de teletipo com 36 metros de comprimento, simplesmente inserido na máquina de escrever e sem qualquer divisão de parágrafos, deixando que o papel se desenrolasse sobre o chão e tomasse o aspecto de uma estrada, A cruz de Santo André, escrito quarenta anos depois, no mais desopilante estilo paródico, começa assim: «Aqui, nestes rolos de papel de retrete (as patroas das pensões de estudantes dizem papel higiénico), marca La Condesita, escrevendo com esferográfica (…) vai ser narrada a crónica de um desmoronamento». Segundo os relatos mitológicos, Kerouac limitou-se a sentar-se e a deixar que durante 22 dias o texto fluísse, ao som duma rádio onde só passava be-bop, desfilando as suas histórias de vida, relatos verdadeiros de como se sucedia a vida estrada fora, à boleia, e como havia cruzado a América na companhia de seu louco amigo Dean e no desfrute do jazz, do álcool, das garotas, das drogas, da liberdade. Em A Cruz… a desbunda é vivida pela coralidade das narradoras, que serão igualmente as «personagens do drama» e se vão revezando a macular com esferográfica o papel higiénico – Matilde Verdú, Clara Erbecedo, Mary Carmen, Jesusa Cascudo, Mary Boop e a sua mana Matty – e a “estrada fora” plasma-se na deambulação permanente das suas existências cruzadas, numa paisagem galega que se desdobra como os foles de uma concertina e à boleia dos seus inescapáveis apetites, vivenciados num ritmo sincopado e truculento (puro Charles Mingus) porque o desejo entra sempre com a vida «pela porta do cavalo» e foge à norma, ao planeado, à lei e à lógica do argumento. A “moral” da derrocada anunciada tange a do tempo que desgasta os corpos e enuncia-se assim: «Todas e todos nos sentimos descobridores do vício e cúmplices do vicioso, se Betty Boop tivesse sabido que o pai ia ao ginásio para ver atletas no duche, caía-lhe o céu na cabeça, se Betty Boop tivesse sabido que a mãe ia à sauna para ver mulheres nuas e às últimas filas do cinema para ouvir o sossegado arfar das masturbações recíprocas, caia-lhe o céu na cabeça, a Betty Boop também se sentia a inventora do vício; o Lucas Muñoz explicou uma noite ao violinista o que disse Baudelaire: não procures mais no meu coração, foi comido pelas feras.» Ademais, em termos estilísticos fareja-se mais no Pela Estrada Fora o «comedimento administrativo» que em Cela… que logra com outra estaleca uma progressão narrativa não-linear. Enfim – o que os vírus nos fazem descobrir e roça os paradoxos mais desconcertantes -, o conservador Cela torna Kerouac num seu avatar menor (não contem isto ao Trump). Leiam e divirtam-se: há uma edição de A Cruz… que se apanha nas livrarias de fundo a dois euros.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasAs mãos e a pandemia [dropcap]H[/dropcap]avia neve nos Pirinéus na Páscoa de 1972. E eu ainda não sabia que 48 anos depois estaria em quarentena, por causa de um vírus. Objectivamente: por causa de uma guerra biológica em que o campo de batalha é formado por curvas e cidades desertas. O futuro é o que está à mão, mas também o que virá e que já não caberá na minha mão. Tudo o que se estende para fora do corpo não está na minha mão prevê-lo. Mas é aí que me reencontro, é aí que me sento com todos os livros ainda por escrever. É aí que me deixarei cair dentro do poço da Alice por estar sempre distraído a olhar para as nuvens. Em tempos de pandemia o futuro é a parte da vida que não envelhece. O que persiste. Todos os discursos conjecturam essa perenidade. A economia é o ponto de encontro das angústias que se conjecturam e antecipam. A economia, não o economês dos pobres diabos, é o dorso oculto da pandemia. Esquecemos muitas vezes que o polegar foi a primeira forma em que investimos para conjecturar a natureza. Depois, quando os humanos se puseram de pé e começaram a andar em frente, o bullying à natureza foi sendo realizado pelo tempo. E o tempo, afinal, éramos e somos nós: assediar a natureza tornou-se no relógio invisível que abre caminho para que continuemos a andar em frente. Sem parar. Uma erosão nefasta que brilha (maravilhosamente) e que nos segreda que o futuro há-de descer pela mesma ravina que o vê desaparecer todos os dias. Nestes dias de recolhimento, os crepúsculos chegam durante o dia e enfrentam a luz como uma música que subverte a imaginação, por vezes o tédio. Uma imagem que me devora e que me alimenta. A biografia é, ou poderia ser, esse breve parágrafo que enche a possibilidade de eu ter sido (e de aqui continuar a escrever esta crónica). Imaginemo-la como uma fotografia – sempre a mesma – a passar em ‘loop’ e sem qualquer esquadria. Ou como a chuva a transbordar os vidros da janela. Uma fotografia que se diz natural apenas porque é (ou será) olhada por alguém. O que se apresenta como natural visa afinal, e com toda a inocência, o futuro. Tinha 17 anos quando cheguei aos Pirinéus e a polícia não me deixou passar. Estava com uma tia e com o meu irmão. Atirei o saco que trazia ao ombro contra as grades da fronteira francesa. Um gesto violento, mas um gesto que ficou sem resposta. O polícia francês tinha uma barriga enorme e sorriu com rosto de cágado. Foi aí que a minha memória susteve o mundo. Foi aí que o meu futuro podia ter sido sempre outro e outro. Nunca provei um martini, mas poderia colocar um copo de martini na minha biografia. Nunca usei um arco-íris na lapela (nem na net), mas poderia perfeitamente colocar um arco-íris na lapela da minha biografia. O futuro é uma enxada. Uma parte metálica a que se adapta um cabo e que só tem sentido, porque se conjectura e antecipa o que ela faz (ou poderá vir a fazer). Cada ferramenta pode ser o mundo todo, mas o essencial não cabe nunca na narração. Não me lembro do comboio que me levou e me trouxe dos Pirinéus a Saragoça nesses dias distantes da Páscoa de 1972. Hoje estou encostado à janela a averiguar o poço da Alice e as ruas estão desertas. É nesse vaivém vertical que circularão todas as biografias. Sobem, descem, vertiginam em ‘loop’. O que se apaga, irá arder mais tarde. E a escrita pode ser esse fogo, do mesmo modo, dizia eu (dizia mesmo?), que o futuro é o que está à mão e ainda por vir, mas também o que virá e que já não cabe mais na minha mão. Sobre as cinzas, ainda havemos um dia de festejar. Não se sabe bem o quê. Nem que seja a capacidade que os humanos têm em perceber e criar aquilo que designam por festa. Nem que seja para tocarmos com as mãos (e com os polegares) uns nos outros. Afinal somos velhos primatas, sedentos e desejosos de nos erguermos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFim da caixa comum [dropcap]A[/dropcap] Santa Casa da Misericórdia tinha a seu cargo a Casa dos Expostos que, por ordem da autoridade judicial, há anos aceitava raparigas de mau procedimento e incorrigíveis, que não foram expostas e cujas famílias que as criaram procuravam livrar-se. Estas mulheres nos finais de 1866 eram em número de sete, sendo sustentadas, vestidas e tratadas nas suas doenças na Misericórdia. “Para tudo tem servido este pio estabelecimento, menos para exercer a verdadeira caridade. Este abuso, de uma inconveniência bem manifesta, não deve continuar”, declarou a Comissão e por isso, no Boletim do Governo de Macau, Ano 1867 – Vol. XIII – n.º 6; segunda-feira 11 de Fevereiro, Parte Oficial N.º 12, o Governador de Macau José Maria da Ponte e Horta determina a 8 de Fevereiro de 1867 o seguinte: . Já na portaria n.º 11, o Governador abolia . Por isso, as aceitações dos recém-nascidos continuariam, mas por admissão justificada com registos em forma, a garantirem às mães pobres, os subsídios já durante a gravidez e puerpério (período do parto), com assistência em maternidades e com visitas mesmo posteriores, quantitativamente longe ainda do que seria necessário, mas ao menos em bases justas, mais dignas e humanas. Não é portanto o intuito de encobrir aos olhos do mundo a vergonha de uma união ilegítima a causa da exposição em Macau, pois que isso nada importa aos chineses e é raríssima a exposição de crianças portuguesas. Em quinze anos, como afirma a Regente do estabelecimento, aponta-se esta e aquela. Seja isto dito em abono da nossa população. Para ela felizmente é desnecessária a roda, que absorve um terço dos rendimentos da Santa Casa da Misericórdia, que são provenientes de dinheiro a juros, propriedades de casas, terrenos, hospital, capelas, lotarias, multas e cadeiras no passeio público. Já as verbas de despesa são, para além da casa dos expostos, o hospício dos lázaros, hospital, presos pobres, educação de um aluno no Colégio de S. José; foro do cemitério dos parsis, missas e esmolas. Escolha das amas À data de 31 de Dezembro de 1866 havia 79 crianças de leite e 29 desmamadas, nenhuma portuguesa, sendo todas chinesas, além de sete raparigas adultas, remetidas em depósito pelo Juiz de Direito, para lá desempenharem serviços auxiliares. Da China vinham muitas crianças, abandonadas pelos pais por serem raparigas, sendo recolhidas pela Santa Casa da Misericórdia que tratava delas até aos 7 anos. Depois entregues ao destino, ou, compradas pelos habitantes tornavam-se muichais (criadas para toda a vida). Nada tinha, pois, de lisonjeiro ou tolerável tal estado de coisas, e por isso a Comissão, assustada com o progressivo aumento dos gastos, em ritmo impossível de ser comportado, entendeu que, para salvar da completa ruína a Misericórdia convinha, em primeiro lugar, abolir a roda… continuando, porém, a socorrer os enjeitados existentes. Apesar de ser uma medida oficial, por força da rotina continuaram a persistir as admissões, quase nos antigos termos e números. Disso queixava-se em 1870 outra Comissão Administrativa ao classificar esse serviço a manter obrigatoriamente 72 crianças entregues a amas de leite e 26 aos cuidados da Regente. Novas instruções foram também aprovadas para a escolha das amas: Que as amas sejam de boa constituição e gordura mediana e de 20 a 30 anos de idade. Que sejam de fisionomia alegre e viva. Que as tetas sejam firmes, arredondadas e de volume mediano, com os mametais bem formados, mas não grossos e sem rachas ou escoriações. Que o leite seja abundante, de cor azulada, sem cheiro, de sabor mal doce e assas consistente para se conservar em gotas, quando lançado em superfície polida. Que não tenham erupções pelo corpo ou na cabeça, nem transpiração de cheiro forte. Que não tenham mau hálito e que os dentes sejam brancos, unidos, as gengivas firmes e em bom estado e a garganta sã. Que não tenham cicatrizes nas virilhas e as partes genitais estejam em estado normal e sem leucorreia (branco corrimento). Do Arquivo da Misericórdia. Enterros sem cerimónia O Boletim da Província de Macau e Timor de 3 de Junho de 1867 refere, “O estabelecimento dos expostos, que pela Portaria do Governo de 2 de Fevereiro de 1867 a Santa Casa conserva ainda sob sua guarda e cuidado, não deixou de ser fiscalizado. Contam-se até hoje 71 crianças de leite entregues ao cuidado de 71 amas, fora da vista e vigilância da casa, pelo subsídio mensal de 1 pataca a cada criança, inclusive o salário da ama; e 25 desmamadas ao cuidado da Regente, sustentadas por conta da Santa Casa. Para melhor inspecção das crianças entregues às amas, a comissão deliberou que o velho distintivo, que elas traziam para serem reconhecidas, fosse substituído por um novo, que é um cordão atado ao pescoço da criança em distância, que não possa passar pela cabeça, tendo as pontas amarradas, e lacradas com o selo e como dístico – Santa Casa da Misericórdia – sobre um quadrado dobrado de duas polegadas, de pergaminho, com o número correspondente ao que se acha consignado no livro do registo. As crianças eram apresentadas mensalmente pelas respectivas amas à Regente dos Expostos para receberem o subsídio correspondente. Caso alguma falecesse era o cadáver levado à Casa dos Expostos e mandado enterrar pela Regente no cemitério público.“ Trabalho realizado por um chinês que se encarregava de transportar o féretro ao cemitério e após abrir uma pequena cova, com licença do encarregado do cemitério, da caixa retirava o cadáver e o sepultava sem haver cerimónia, nem a bênção do respectivo pároco. A caixa, comum pois servira e servirá para outros, regressava à Casa dos Expostos. A partir de 1867, em caso de falecimento de uma criança era ela levada à Casa dos Expostos e apresentada ao encarregado daquele estabelecimento, um dos vogais da comissão, para verificar pelo distintivo a sua identidade. Depois o defunto era levado dentro do féretro à sepultura, precedendo-se o aviso ao respectivo pároco, para encomendar o corpo, ou na igreja, ou na capela do cemitério. Sendo o cadáver enterrado dentro da caixa, deixou assim de existir a caixa comum.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasInsignificâncias Santa Bárbara, Lisboa, terça 24 Março [dropcap]O[/dropcap] gato percebeu-o antes, como deve ser. A varanda que dá para o cruzamento quase largo, palco maior dos pequenos choques e até grandes acidentes, abre-se não apenas para o jardim despercebido das infâncias, mas em vistas para a «situação», dita assim meio a medo de nomear a doença. Da minha varanda vê-se o confinamento, essa lente que agora tudo amplia, tudo atrai para a sua rede de significâncias, talvez aparentes, certamente frágeis. Há uns valentes anos, em momento difícil, sob liderança esclarecida do mano Tiago Manuel, juntei-me ao Luis [Manuel Gaspar] para um conjunto de objectos que envolvia desenho, pintura e poesia. Em Novembro último, sem razão aparente, sacudi o pó aos versos, alguns pertencendo a poema baptizado «Santa Bárbara», que acabou publicado na folha de sala da «Diga 33», as sessões animadas pelo Henrique [Manuel Bento Fialho]no Teatro da Rainha. Noto-lhe ressonâncias, pelo que aqui o deixo ao vento, mais a chuva que parece vir do rio só para me agradar. «É da minha torre que vejo o castelo,/ rasgo na mão a flor de sal do horizonte.// Tacteio os muros em busca das janelas,/ noto a ponta dos dedos ferida de céu.// Em cima, os passos descalços da vocação perdida,/ aqui ao fundo aguardo um caminho.// Há promessas de viagem na trovoada,/ a redenção espreguiça-se como um arco.// Uma ideia descalça no miolo da espada,/ são raios que me partem, as dúvidas.// Na companhia íntima das raízes,/ o brilho da lágrima faz a morte hesitar.// Explode às vezes a coluna de pó,/ são as janelas que brincam de ameias.// Desfaz-se o perigo naquelas mãos,/ sei de cor a dádiva de uma recusa.// Anunciam-se os sábios e as palavras,/ mas se o círculo de pólvora limita os passos.// Cada onda da túnica é beijada pelo navio,/ estendo as mãos ao encontro dos estranhos.// Guarda o belo para o regresso,/ repousa a folha, um relâmpago no regaço.» Santa Bárbara, Lisboa, quarta 25 Março Saiu da gráfica para o vazio, este «O Nosso Desporto Preferido ̶ Futuro Distante», com que o Gonçalo [Waddington] se tem entretido a fazer e desfazer o tempo, com o corpo todo e a partir dele, nossa inevitável máquina de mastigar paisagens e cuspir necessidades. Ou vice-versa. E não deixo de tropeçar nos fios que ligam este trabalho, onde convivem espectros e a Humanidade em coro, espelhos e o malabarismo da língua, ao que estamos experimentando. «O tempo a ludibriar-nos pela eternidade adentro, e ainda nos aldrabam o espaço», diz Tirésias lá para o fim. «Agora é tudo escondido atrás de uma parede. É isto que nos deixaste, seu madraço? Versos rascas, rimas badalhocas e asneira atrás de asneira?» Um grupo de génios desenvolveu uma humanidade com as necessidades mais básicas resolvidas, e as quatro peças, sem que uma está por levar à cena, vão contando, anos para trás e para frente, do processo e respectivas consequências. Brutais, que não é impunemente que se mexe no que nos define. Nesta encenação em concreto, o público estava em cena, participava apenas por estar de corpo presente, espectro da humanidade possível. Eis-nos agora, postos à força a jogar esse lentíssimo e exasperante badmington, à espera que o outro devolva o volante. Dá tempo para acasalar com uma cadeira. Santa Bárbara, Lisboa, quinta 26 Março De cada vez que passo por uma estante, as lombadas, que se alinham de modo diferente a cada dia, sussurram tentações, maneiras de queimar o tempo, de o explicar, de jogar com ele. Tem tentáculos, a situação. Afinal, passo dia a fazer noite. E oiço isso mesmo vindo d’ «A espuma dos dias», do Boris Vian (ed. Frenesi). E lá descubro que «as pessoas perdem tempo viver, por isso já lhes não sobra nenhum para trabalhar». Lá acompanho a desgraça de nenúfares que vivem nos pulmões, apesar das flores. «Nem sempre as coisas podem correr bem». Tenho que concordar com a resposta, «mas podiam não correr sempre mal». Sou agarrado por «Les choses», de Perec (ed. Juillard), e vejo-me com o narrador a observar aquelas vidas na casinha de bonecas, fascinado pela «aisance» de vidas forradas as coisas, sustentadas por elas, nelas esgotadas. A felicidade feita venenosa «souplesse». Mas a situação já manda em mim? Nisto só me apetece o quietismo, invetsigar os místicos. Entro na «Cuaretena», de Juan Goytisolo (ed. Alfaguara), para me baralhar mais ainda os planos, mas convocando o corpo subtil e com ele modos de aprender a leveza, a ligeireza. Além de duas ou três páginas onde o labor da escrita se vê plasmado com minúcias nesta ideia que nos atravessa do isolamento. Mas não haverá outro assunto, ó estante maldita. Santa Bárbara, Lisboa, sexta 27 Março Não é de agora. O mano Tiago Manuel insiste em ser um dos últimos moicanos a teimar na carta manuscrita e em papel, invariavelmente acompanhada de desenho, que teima em dobrar e agrafar, tentando sem grande sucesso impedir que acabe nas paredes dos amigos. As suas imagens são matéria pura, em incomum mistura de ligeireza, de fluidez na definição dos corpos e da sua paisagem, e a gravidade que resulta de pensar por inteiro. Desta, teve a generosidade de dialogar com poema meu, que fala de horizonte e relâmpago, e não o mostro aqui por me apetecer a reserva. Foi tempo que lhe respondia, como desejaria, lavrando folha, em esforço para que a letra levasse o mínimo de inteligibilidade, mas há muito desconsegui. Digo-lhe por aqui que conservo no lugar exacto as suas incandescentes palavras e gestos de conforto e que acredito na teia de bem querenças onde pernoitar. «Estes dias mostram-nos o Mundo com as cores sombrias de um tempo antigo que julgávamos para sempre esquecido e não e fácil equilibrar os nossos males e preocupações com tão grande ressonância. Porém, estamos unidos pela força dos afectos e havemos de ultrapassar as dificuldades de hoje como aquelas que deixamos atrás.» Santa Bárbara, Lisboa, sexta 3 Abril A situação pôs ponto final no «Obra Aberta», quatro anos e mais de cem convidados depois. Muitas páginas se folhearam ao vivo no CCB, pouco antes de se ouvir a conversa em torno dos livros e da leitura, portanto, da vida, conduzida pela Maria João Costa, na antena da Renascença. Os livros são corpos cada vez mais estranhos no horizonte dos dias, destes exactos dias que tanto precisam das perspectivas que apenas a leitura possibilita.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasDeclinações de solidão [dropcap]E[/dropcap]stá um dia chuvoso, plúmbeo, esses mesmo que o leitor está a pensar. “Mais um para juntar a estes que vamos conhecendo”, acrescentará o filosófico leitor. Talvez, talvez. Do lugar onde escrevo tenho a sorte de ver o castelo que outrora protegeu a cidade. Mas agora as pedras das suas muralhas apenas mostram uma impotência triste perante um invasor que não conseguem deter. O resto já sabemos, já sei. As ruas semi-desertas, os transeuntes que se entreolham quando se cruzam a distância menor do que a aconselhada pelas autoridades sanitárias. No meio da esperança e do optimismo que escolhemos para nos acalentar mora ainda a natureza humana. E nela existe e sempre existirá a desconfiança do outro, por mais diluída que agora se sirva em gestos solidários. Perdoai então o mau feitio do cronista, a quem não apetece nesta altura escrever frases motivacionais. Desde há vários dias assim, comecei a indagar-me o porquê deste temperamento recorrente nestes dias. As circunstâncias por si só não o justificavam. Até que reparei que existia um estranho silêncio nas ruas, uma ausência que me feria sem saber porquê. Uma destas manhãs fui à janela e percebi. Moro por cima de uma escola primária e de casa consigo ver o recreio. Até há pouco tempo, todas as manhãs eram preenchidas pelo chilrear dos miúdos a brincar, algo que sempre achei reconfortante. Não sei porquê mas sempre procurei viver perto de escolas e igrejas, porque gosto de ouvir os sinos. Dão-me um invulgar sentimento de protecção. De forma que é isso: não existem crianças nas ruas. Não oiço as suas vozes, os seus gritos, os seus choros, os seus risos. Fazem-me falta para contrariar o exército sorumbático que tomou conta da cidade e em que me incluo. E esta ausência contribui para uma sensação de algo que não será bem solidão mas sim de sozinhez, esta palavra linda inventada pelo poeta e cronista brasileiro Paulo Mendes Campos, numa crónica de 1963 chamada Para Maria da Graça. A sozinhez não é tão profunda ou irreversível como a solidão; mas dói, uma dor mansa mas que existe. É o que sinto tomar conta de mim devagar, mesmo à medida que escrevo estas palavras. A vozearia das crianças representa uma espécie de âncora de normalidade e ao desparecer, essa esperança também desparece. Corrijo: não é a esperança nem sequer o futuro que não se vê: é o agora, o presente-instante que parece ter sido roubado e que nos está a fazer falta. Não gostaria de terminar a crónica com travo amargo. Refugio-me no que Paulo Mendes Campos também escreveu quando inventou a sozinhez: “Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior isso acontece muitas vezes em um ano. “Quem sou eu no mundo?”. Essa pergunta perplexa é o lugar-comum da história humana. Quanto mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás.” É um consolo bem-vindo. Mas por enquanto aqui fico, à espera desse dia em que as crianças tomem as ruas de assalto, de forma urgente e definitiva.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasA Ásia na poesia de Gil de Carvalho [dropcap]E[/dropcap]is a primeira novidade: a Ásia deste poeta não coincide, a não ser com a China, com os territórios típicos do Oriente português. Aqui não há então orientalismo (no sentido que lhe deu Edward Said em 1978) simplesmente porque não há Oriente, melhor dizendo, não há esse mecanismo de recondução do alheio ao próprio, essa necessidade de encaixar a Ásia num olhar europeu. Por outro lado, havendo intersecções de referências, estas dispensam qualquer formulação que implique identificação com a figura do “outro”: “Chegar à taiga. Mandala ou yantra?/ Panquecas muito secas fundindo/ O recheio no vermelho a rapariga/ Dum barco a neve montanhas fecha”. (Viagens, 2008, p. 273). Seria assim penoso ou desadequado enquadrar o autor no Oriente quase sempre ideológico dos poetas portugueses do século XX, sempre entre império e exotismo. O que antes há no “orientalismo” de Carvalho é uma capacidade de notação, de registo – mesmo de investigação, o que se prende com a forte vertente “viajante” desta poesia – e que se tornou mais explícita a partir dos livros De Fevereiro a Fevereiro (1987) e Tarantela & Viagens (1998) –, exploradora de realidades culturais diversas, nunca endereçadas a partir dos binómios próprio/alheio ou eu/outro. Esta era porventura a dimensão que faltava à escrita poética portuguesa sobre o Oriente do século XX – exceptuando talvez Ruy Cinatti ou certos momentos de Couto Viana, muito ligados no entanto à ideia de império – e retomando virtualidades do nosso orientalismo “prático” quinhentista, de igual modo agindo no terreno. Quanto a mim, são precisamente certas dimensões da ligação histórico-cultural de Portugal à Ásia que são indirectamente retomadas na poesia de Gil de Carvalho, obviamente dispensando o poeta qualquer tipo de inscrição explícita nessa herança, e tendo em conta que estas não esgotam de modo nenhum a compreensão da presença da Ásia nesta poesia, ajudando contudo a explicar o uso de um certo tipo de olhar. Numa cultura de prática do Oriente, foram as práticas humanas de campo, a exploração, a conquista, o comércio e a praxis de escrita (literária ou não), que se substituíram a um inexistente ou incipiente orientalismo cientifico, que iria depois ser criado por outras nações, tantas vezes com o material coligido por portugueses. De certa forma, e como se torna óbvio no século XIX e XX, em Camilo Pessanha ou Venceslau de Morais, a literatura fez as vezes de um inexistente orientalismo científico, assumindo-se como um conhecimento poético do Oriente, (como alguém disse) uma ciência de ver, tornando-se o veículo de uma continuada presença que sobreviveu à precariedade de um império asiático. E assim, dispensando todos os modelos culturais pré-estabelecidos de falar no Oriente por portugueses, a poesia de Gil de Carvalho é uma nova ciência de ver a realidade asiática, simplesmente por desejar conhecer, por notar, registar, alinhavá-la nas rugosidades da sua textualidade. Com Carvalho são as viagens – título escolhido para a sua obra coligida – que dão, não a displicência sentimental do olhar do viajante, mas a sensação de percorrer realidades nunca lineares, nunca facilmente descritíveis, mas em tempos e espaços nos quais convivem o arcaico com o coevo, o urbano com o rural: “Por cima da estepe a última/ Cidade. Pacientes artesãos/ Em trocas eternas. O fumo/ Das centrais, aberto./ E a proverbial fidelidade/ Da mulher mongol. (Viagens, p.177) A noção de viagem parece-me ser, com efeito, uma chave para a compreensão da sua obra, em primeiro lugar como indicador, não só da constante mudança de cenário, mas da própria descontinuidade das coisas, indo ao encontro de uma horizontalidade geográfica de dimensão quase planetária. Em segundo lugar, aponta também para uma verticalidade, no sentido em que, quer a Mongólia quer a serra algarvia de que também fala a certo ponto são geografias complexas com camadas significantes, imagens do mundo em hiatos, em socalcos, de que a sua verbalização adopta a natureza. E não há aqui a imposição de uma subjectividade marcada que dê um sentido a esta errância, unindo os seus espaços; há antes um sujeito em viagem que é constituído pela descontinuidade do que vê, mais do que uma entidade sedeada no centro de algo, como neste encontro com a artesã manchu: “(…) Qual seria o rosto entregue/ Por ambos neste pagamento? Ancestral/Por certo./ Vermo-nos em vidros, manchus: séculos,/ Milénios passados após os Estreitos”. (Viagens, p.179)
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasUma obra diabólica quase esquecida [dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1945, ainda antes do final da II Guerra Mundial, Samuel Barber, que desde 1942 servia na força aérea norte-americana, foi contratado por John Nicholas Brown, violoncelista amador e administrador da Boston Symphony Orchestra. para escrever um concerto para violoncelo para Raya Garbousova, uma violoncelista russa expatriada. Serge Koussevitzky, o grande maestro da Boston Symphony, arquitectou o projecto e providenciou que o compositor fosse dispensado do serviço militar para escrever o trabalho para a sua 20ª temporada como director musical da orquestra. A partitura é dedicada a John e Anne Brown. Barber, antes de começar o trabalho, pediu a Garbousova que tocasse o seu repertório e poder entender o seu estilo de execução e os recursos do seu instrumento, o Stradivarius Davidov (que seria mais tarde propriedade de Jacqueline du Pré e actualmente de Yo-Yo Ma). O Concerto para Violoncelo e Orquestra em Lá menor, Op. 22, concluído nos finais de 1945, foi o segundo dos seus três concertos (sendo o primeiro o Concerto para Violino e o terceiro o Concerto para Piano) e é possivelmente um dos trabalhos mais exigentes tecnicamente no repertório do instrumento. Garbousova estreou-o com a Boston Symphony Orchestra no Boston Symphony Hall, no dia 5 de Abril de 1946, a que se seguiram apresentações em Nova Iorque na Academia de Música de Brooklyn, em 12 e 13 de Abril, sem grande êxito, obtendo finalmente a obra grande sucesso no Carnegie Hall em 1946, recebendo o 5th New York Music Critics’ Circle Award em 1947 como “excepcional entre as composições orquestrais executadas pela primeira vez [no Carnegie Hall] durante a temporada de concertos” . Raya Garbousova, que estava no auge da sua carreira quando a peça foi escrita, tocou o concerto extensivamente, mas depois de se aposentar, a obra caiu em desuso devido às suas exigências técnicas extremas. Barber, que havia feito várias alterações ao trabalho entre 1947 até à sua publicação em 1950, a maior parte no Allegro de abertura, pretendia, mais tarde na sua vida, modificar a parte do violoncelo, esperando incentivar mais violoncelistas a executar a peça, mas a sua doença prolongada impediu-o. Várias gravações recentes aumentaram o interesse pela obra, incluindo a de Yo-Yo Ma, do violoncelista suíço Christian Poltéra e a de Christine Lamprea, vencedora recente do Sphinx Prize 2018, nos EUA. Lírico e expressivo, o concerto é escrito tradicionalmente em três andamentos – Allegro moderato, Andante sostenuto, e Molto allegro e appassionato (rápido, lento, rápido), com cordas duplas extremamente difíceis e várias cadências eloquentes. A peça requer uma técnica segura e um autodomínio dramático. O concerto para violoncelo foi o último dos trabalhos instrumentais de Barber a conter aquele brilho entusiasmado de confiança e serenidade do compositor; a sonata para piano e o concerto para piano são obras muito boas, mas o seu apelo depende mais do virtuosismo vistoso – apropriado para as suas formas, é claro, mas não exactamente o verdadeiro Samuel Barber, que reapareceu na ópera, onde o seu lirismo inato correspondia melhor às expectativas do público, e em outros trabalhos vocais como Knoxville: Summer of 1915 e Andromache’s Farewell. Sugestão de audição: Samuel Barber: Cello Concerto, Op. 22 Victor Simon, cello, Moscow Radio Symphony Orchestra, Gennady Rozhdestvensky – Cascade, 2007
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasUm outro planeta [dropcap]R[/dropcap]enato Campos é um jovem escritor brasileiro, do Ceará, apaixonado por Portugal. A sua paixão pelo país em geral e Lisboa em particular, junto com o seu preciosismo narrativo, fê-lo escrever o seu primeiro romance não só a partir da capital portuguesa, mas também numa linguagem mais «aportuguesada», em português europeu, e foi publicado em Fevereiro deste fúnebre 2020, com o título «Um Outro Planeta». Infelizmente, devido a este tempo de peste, o livro anda não foi distribuído. Pela fortuna da amizade chegou-me há dias um exemplar em mãos. O livro tem 167 páginas e conta-nos a história de um homem de sessenta anos, Duarte Marques, advogado de sucesso em São Paulo, que regressa à casa da família em Lisboa para o funeral da mãe. O pai morrera onze anos antes, num trágico acidente. Agora, Duarte e a irmã, mais nova que ele, tinham de tomar decisões em relação à casa. Rita aceitaria a sua decisão, não só pela prática profissional de Duarte, mas porque sempre confiara nele a vida toda, mesmo nas longas ausências de anos e anos sem se verem. Duarte decidiu ficar uma semana em Lisboa, na antiga casa onde nasceu e cresceu, para tomar algumas providências mais urgentes e ver que decisão tomar. No segundo dia, dá-se conta de que os textos que escrevera desde os 12 anos até à ida para a universidade, em Londres, ainda se encontravam nas mesmas gavetas onde os tinha deixado. Nunca mais se lembrara desses textos. À página 24, lê-se: «Desde cedo, em Londres, aprendeu a esquecer tudo. E o que primeiro esqueceu foi ele mesmo. Ao chegar a São Paulo, dois anos depois de terminado o curso em Londres, começou a criar um pequeno império imobiliário com esse crédito inicial de não ser quem era.» A mãe mantivera tudo intacto. Mantivera dentro das gavetas o Duarte que foi esquecido em Londres. Abre uma garrafa de vinho, lembrando de imediato os jantares em casa, com o pai, a mãe e os amigos deles. O livro a partir daqui começa a ter interrupções contínuas da sequência temporal e demoramo-nos em analepses. Nesta primeira, em que Duarte abre a garrafa, regressamos ao que Duarte pensa do vinho que acabara de provar somente ao fim de três páginas e meia. Um dos textos mais antigos que encontra, escrito quando tinha 12 anos, traz-lhe lembranças profundas, que julgava ter esquecido. Tratava-se de um poema que escreveu para «Artur, a minha primeira paixão, que estudava na mesma escola, em outra turma. Um ano mais velho, um ano mais alto e, segundo se dizia e o olhar fazia crer, um infinito de mais experiência.» Entre o vinho e as recordações de Artur, lemos finalmente os primeiros versos do poema que escreveu para o rapaz: «Eu aqui no meu mundo / tu aí no teu. / E eu desejando que o mundo não seja muito diferente do teu / ou, pelo menos, que não seja muito diferente. / Uma diferença de que tenho medo / como o pequeno pássaro que trazias na mão com o teu sorriso branco, desconhecido.» O discurso volta para o narrador, que escreve: «Lembrava agora aquela tarde longínqua, junto ao chafariz do liceu, em que lhe leu o poema. O sorriso de Artur, a mão dele sobre o seu rosto, o beijo na fronteira entre os lábios e a face, como se por indecisão e não por cálculo de incêndio, fê-lo arder no mundo pela primeira vez. Nunca mais o desconhecido o fez tremer assim. A lembrança desse momento há muito esquecido ou apenas adormecido, embora talvez ecoando em cada gesto e decisão da sua vida, fazia tremer o vinho, que nunca lhe soubera tão bem.» Na manhã seguinte, Duarte decide vender a casa. A sua localização, em frente ao jardim do Príncipe Real, a crescente expansão do turismo sobrevalorizando os imóveis e desconfiar de que o dinheiro pudesse talvez fazer falta à irmã, levara-o à decisão. Passa o dia fora, passeando pelas ruas de Lisboa, almoça numa esplanada junto ao Tejo, vê a beleza dos corpos ao sol do fim de Verão, lembra de novo Artur. Lê-se à página 100: «Nunca mais soube dele. Teria casado? Teria envelhecido de modo insuportável, de modo a ser punido pelo espelho, de cada vez que se aproximasse de si mesmo? Ou, ainda que envelhecida, marcada pelos anos, por desgostos da vida, mantinha de algum modo a sua beleza quase intacta?» À noite volta às gavetas. Lê um outro texto que escrevera aos 16 anos: «Ontem, quase a adormecer, cansado de tanto ter bebido, não escrevi uns versos que salvavam o mundo, deixando para o fazer hoje, quando escrevo que ontem não fui capaz de me levantar para escrever uns versos que salvavam o mundo.» E, nesse preciso momento, compreende – não como se compreende uma equação matemática, uma lei da geometria ou mais prosaicamente que já passámos a saída da auto-estrada onde devíamos ter saído, mas como quando descobrimos que acabámos de envelhecer –, que aquela casa é um outro planeta. E mais distante que Marte. A sua vida, desde que foi para a universidade, passou a ser outra. Escreve Campos, através do narrador, perto do final do livro, à página 147: «Dos anos da infância até ao mundo é outro planeta. E como foi possível não se ter lembrado disso até agora? Como foi possível ter esquecido Artur, aquele tremer original, igualando o desejo ao medo durante um abalo de terra?» Não posso contar o final do livro, não posso falar-vos do narrador, mas posso dizer que o primeiro romance de Renato Campos é um livro belo, escrito com uma sensibilidade que nos mostra o interior humano como uma pintura e sempre com um uso preciso das metáforas. Preciso no sentido em que, não só nos faz ver por dentro, mas nos faz acreditar que a palavra salva, mesmo sabendo que nada nos salva. Nem a habilidade de esquecermo-nos de nós próprios.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs precários do quotidiano [dropcap]E[/dropcap]sta quarentena está a ser, em termos gerais, uma espécie de micro-resolução de ano novo: toda a gente se desfez em promessas de ler os russos, de organizar o roupeiro de Inverno, de fazer exercício físico em casa. Na verdade e pelo que vejo um pouco por todo o lado, parecemos ter aprendido apenas duas coisas: olhar para um gráfico e fazer pão. Não serão competências despiciendas, mas não chegam para organizar uma feira de talentos. A normalidade é um bem precário e um conceito que se recusa a sê-lo, na medida que não permite, ao contrário dos conceitos civilizados, uma cristalização inequívoca da sua identidade. A normalidade define-se normalmente pela sua ausência, por contraste. Temos um instinto bastante apurado para perceber quando algo ou alguém não é normal, mesmo sem conseguirmos explicar cabalmente a razão subjacente a esse instinto. É uma competência da ordem do corpo, ou melhor, da ordem do animal, do imediato. É também uma competência contextual: aquilo que é normal num determinado milieu não o é noutro. Há muita gente que faz a sua vida num equilíbrio precário entre normalidade e diferença, numa espécie de zona cinzenta socialmente aceite por via de um pacto silencioso: desde que o sujeito seja minimamente funcional, pode ser excêntrico. E ser funcional parece resumir-se a ter dinheiro ou a ganhar dinheiro. Funcionalidade é autonomia. E autonomia é dinheiro. De resto o sujeito pode acreditar que a terra é plana, que os vírus são na verdade perturbações do equilíbrio electromagnético do corpo ou que a rainha de Inglaterra é na verdade um lagarto. Desde que pague as contas e não seja ostensivamente incapaz de cumprir a lei, tudo bem. No caso de um sujeito multimilionário, a excentricidade não só é esperada como é, de certo modo, exigida. Os custos de uma crise, seja ela esta, de saúde pública e intimamente radicada num medo primordial e profundo – a peste – ou seja uma guerra ou uma vaga de fome, são particularmente pesados para quem já trava diariamente uma batalha para se manter dentro dos limites da normalidade. As rotinas mudam. E as rotinas são em grande parte o esqueleto da normalidade. É alicerçado nas rotinas que o sujeito consegue domar, pelo menos em parte, uma realidade que à partida lhe é naturalmente inóspita. Rotina é controlo. Controlo é poder. Aquém ou além das rotinas, a incerteza. Ora esta incerteza, tolerada com maior ou menor esforço nos sujeitos de raízes amplas e fundas, pode ser um obstáculo insuperável para quem domesticou o quotidiano com dificuldade. A fragilidade tende a assomar ao postigo mal os ventos mudam de direcção. A extravagância, sem dinheiro, é dificilmente suportável. As zonas cinzentas estreitam-se e a tolerância diminui. O sujeito para quem o mundo já era um problema dá por si ainda mais perdido. Mais a mais, numa crise deste tipo, com direito a possível perda de emprego e consequente rendimento, até os sujeitos equilibrados podem ver-se de repente sem chão. Imaginem os outros. Neste momento complexo e incerto devíamos olhar para os que nos rodeiam e que amamos e aproveitar para os conhecer melhor. As fragilidades (e as forças) acabarão por vir à tona. Talvez as coisas corram bem ou razoavelmente bem e consigamos sair daqui inteiros. Mas em última análise levamo-nos a nós próprios e aos outros ao colo, pois é assim a estrutura da identidade do humano. É bom que nesta viagem tenhamos cuidado com as peças mais frágeis.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasComo teriam sido as nossas vidas, se… [dropcap]P[/dropcap]ensamos muitas vezes no que teriam sidos as nossas vidas se os factos determinantes que vieram a definir-nos não tivessem acontecido. Pensamos também no que poderia haver de transformador se a história tivesse seguido cursos alternativos ou até um percurso exactamente contrário àquele que veio a seguir, se Hitler tivesse ganhado a guerra o que seria da Europa. O que se nos oferece para pensar tem a sua origem na nossa vida que corre paralela à da realidade, a vida na possibilidade. Alguns de nós conhecíamos bem esta dimensão mágica da vida: fantástica, cheia de imaginação, com personagens reais e criados nas nossas cabeças, se tivermos tido um sonho de infância. Houve tempos na nossa juventude, essa época fascinante das nossas vidas em que nem sequer podemos dizer que nos entregámos à ficção, porque, pura e simplesmente, o que havia de realidade era um engano. A época da vida que corresponde à juventude tem ainda a dimensão fantástica da infância, mas tem agora o vigor não anulável da tempestade e da paixão, é romântica ou apresenta uma qualquer variação do romantismo com os seus múltiplos objectos: uma outra criatura humana, um comprometimento político, um estilo de vida, uma definição, uma tendência, a fixação de uma inclinação num estilo. Na infância e na juventude o que nós pensamos, o que se nos oferece a pensar, não existe num plano diferente do plano da realidade. O que se passa na casa dos nossos amigos, na nossa rua, na escola, no clube e o que se passa no isolamento aparente do sonho a dormir à noite ou no sonho a dormir acordado é indistinto. A vida é fantasia, fascínio, encantamento. Pode ser, na verdade, maravilhoso como pode ser tremendo. É um mistério. E, contudo, não se percebe bem como ou quando se impõe a versão da verdade que chamos realidade, a realidade objectiva, a verdade pura e dura posta a descoberto nua e crua. Há uma diferença clara entre o mundo do fascínio da infância, apenas sonho, o mundo da juventude, só esperança, e o mundo adulto: pragmático, sem sonho, sem esperança. E, contudo, o mundo adulto não é um mundo à parte. É um mundo projectado por uma forma de pensamento, que reduz a fantasia à percepção, o sonho à realidade, a esperança no futuro à actualidade, sem conexão com o futuro. Como seriam as nossas vidas se tivesse acontecido o que, pelo menos assim nos parece às vezes, queríamos tanto que nos tivesse acontecido: desfazer um não e fazer que sim, aproximar-nos em vez de nos afastarmos, quando tínhamos podido, ou no que não está nas nossas mãos: assistir ao rumo positivo das coisas, quando elas acabaram, não houve as negas que tivemos, não houve interdições, nem proibições, nem nada de negativo, não fomos nós que não conseguimos, que não chegamos a tempo, não foi o espaço que se fechou o tempo que não houve, alguém continuou nosso amigo e não houve mal entendidos, o amigo da infância não morreu num desastre de automóvel, os nossos pais são imortais. Como seriam as nossas vidas se não acontecesse o que está a acontecer, e o que está a acontecer é inexorável? Como seriam as vidas das crianças e dos jovens no Verão de 1914 antes de arrostarem com a carantonha feia e sinistra da guerra e que desfez infâncias e juventudes, pior: desfez futuros individuais e colectivos? Seria ainda possível deixar chegar o Verão de São Martinho a 1939 ao norte da Europa e assim ao Ocidente? Pode a Europa deixar-se enredar na semântica das palavras e afundar-se no ocidente (a terra do sol poente)? A nossa vida é o que é. Existe como realidade indelével. A resolução para o impasse está na infância e na juventude, se não foi extirpada a raiz onírica do pensamento. O pensamento cria esperança. A origem do pensamento é o futuro. A infância e a juventude estão próximas do princípio, mas o princípio vem do futuro. Como os antigos tão bem perceberam, no princípio o que havia era já o fim e o tempo das nossas vidas passa em contagem decrescente. O princípio e tudo o que tem sido vivido está à nossa espera na hora da nossa morte, chegue essa hora quando chegar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo retiro 27/03/2020 [dropcap]O[/dropcap] gladiador que vai morrer saúda o Corona-César com um manguito porque também ele joga e julga e ri-se às gargalhadas dos Césares e dos que vão cuspir sobre o seu cadáver: saudades que me dão dos pépluns, a meio da noite, depois de um mosquito ter rompido de auriga a rede para me vir ferrar, quebrando-me o sono. Sentado de perna aberta na preia-mar, cogito em como o relativo jeito com que me sirvo da Parker não me torna destro no manejo do sílex e do carbono – ou seja, convém pouco que uma regressão civilizatória exceda os limites do tolerável. Ainda que a semana tenha sido deprimente e sinais apontem para aí, como o Bolso-onagro ter decretado que de entre as aglomerações desculpáveis, porque segundo ele essenciais, está a ida às salas de loto. É usar a roleta russa contra a população, ou idêntico a engolir um moscardo para o ver sair incólume, o seu verde iridescente e impoluto, pelo rabo, como se mais não fossemos – aos olhos da aleatoriedade do poder que ambos (insecto e Bolso) representam – do que o Homem Invisível. Entretanto, corroborando o “chefe”, o presidente do Banco do Brasil afirmou que “a vida não tem valor infinito“. Tem sim. Mais que não seja porque isso abriria o campo à discriminação, que é absolutamente destituída de siso. 28/03/20 Adormeci ontem a ver The Banker, um filme de George Nolfi, onde Bernard, um miúdo negro com queda para os números e os negócios se torna um empresário de tal sucesso que, contornando as omissões das leis, se tornou o primeiro negro dono de um banco no Texas, em 1965, ainda que a coberto de um testa-de-ferro – branco. Só três anos depois dele e do sócio, Joe (um brilhante Samuel L. Jackson, como aliás, sempre) terem sido denunciados e condenados a prisão por puro racismo, é que se decretou finalmente uma lei nos States que proibia a recusa de vender propriedades por razões de raça, religião ou género. Cansa a desmedida da irracionalidade humana, mas a tragédia que o filme projecta é verificarmos como cinquenta anos depois não saímos do natural ressentimento e das clivagens entre raças. Como diz Joe a Bernard, que neste aspecto lhe parece ingénuo: «eu consigo ser amigo de brancos, “mas há sempre um extra”». A inversa, nesta terra em que habito, é igualmente verdadeira: eu consigo ser amigo de negros, “mas há sempre um extra” – esgotada a motivação de um “interesse” qualquer ou a “vantagem” passageira que eu possa oferecer ao outro, a amizade volatiza-se, de repente. E agora há um “novo extra” associado à ignorância que rege a xenofobia: há quinze dias uns miúdos numa escola de primeiro ciclo fugiram de mim chamando-me “coronavírus!”. Hoje uma amiga contou-me como ontem, também num bairro popular de Maputo, o Alto Maé, a apontaram chamando-lhe “coronavírus!” e sentiu uma certa agressividade no ar. Que sejam casos esporádicos! Talvez esta tensão não decorra de um racismo de pele, mas de haver um entendimento popular de que seja esta doença uma enfermidade trazida pelos “ricos”, aqueles que têm possibilidade de viajar – aqueles que noutra crise foram apelidados de “chupa-sangue”. 29/03/20 De comum, tropeço em certas palavras a que sou alérgico, dado que por mais que as conheça não as uso nunca. Como “escopo”: o olhar é o escopo da luz, a larva é o escopo da borboleta, o seu sorriso com covinhas é um escopo de vagina, da brama do mar ao trilar das estrelas para além deste alpendre sobre o jardim tudo é escopo de um deus que se retira; o Índico tem cada vez menos peixes, lastimam-se os pescadores, que face às marés vivas olham para a faina como um escopo de ataúde, etc., etc. Não me escorrega facilmente pelo estreito, o vocábulo, nem em “escopo”. 30/03/20 Um belíssimo livro que devia ser obrigatório traduzir para português, Em Defesa do Fervor, do polaco Adam Zagajewski, que arranjei na tradução espanhola: uma defesa da poesia em tempos de cinismo e um hábil resgate do Belo e do Sublime, que Zagajewski leva a cabo sem padecer de qualquer recaída no idealismo. Um excerto: «A poesia e a dúvida necessitam uma da outra, coexistem como o carvalho e a hera, o cachorro e o gato. Mas a sua união não é harmónica nem simétrica. A poesia precisa de duvidar da poesia. Graças à dúvida a poesia é purificada da insinceridade retórica, da verborreia e falsidade, da sua fixação prematura e da euforia vazia (não a verdadeira). Sem o olhar severo da dúvida, a poesia – especialmente no nosso tempo sombrio – poderia degenerar numa canção sentimental, num cântico exaltado embora estulto ou num louvor impensado de qualquer coisa inorgânica no mundo» 31/03/20 Um pato rasa o telhado da casa, a grasnar. Há uma hora andaram por lá os macacos. A lagartixa trepa pela parede amarela. A brisa leva o espanta-espíritos a responder aos pássaros. Em fundo o mar nunca se engasga, como um piano de manivela. Estou embutido na natureza, esta benigna, já a do vírus é da predação, como a nossa. Mas por enquanto sinto-me distante das crónicas de desmoronamento. Bebo o terceiro chá da manhã, resolvi fazer uma dieta-intermitente e passo catorze horas sem levar uma bucha à boca, a ver se estou mais magro seis ou sete quilos quando o bicho me apanhar porque devido ao peso sinto os pulmões opresos. Hoje sonhei. No meu sonho, bizarro, aparecia uma miúda de carrapito e aspecto modesto; o aprumo e a procissão, merda, merda, caiavam-na por dentro, como se lhe forrassem de papel de parede o verso da pele. Espreito as notícias, tantos motivos para execrar o mundo. Mas de duas coisas sei: que nunca se deve apostar contra o mistério e que nunca me conseguirão inflamar o ódio. Tenho esta fraqueza.
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuPela mão de Duchamp La poesie ne rytmera plus l’action. Elle sera en avant Rimbaud [dropcap]H[/dropcap]oje apetece-me ser uma mão, um pincel, um escopo, um martelo. Ser o que faz. O acto de fazer. Poeticamente ser o pensamento matérico a rondar abusivamente o mundo. Pensei descer em Franfurt e falar com Heidegger sobre a arte. Falo de pesca artesanal no meio das florestas que bordejam os lagos. Não considero menor o problema deixado pelo seu silêncio relativo ao nazismo mas, por bizarra ironia, ele legou ao pensamento estético a possibilidade contemporânea de reflectir sobre um pensamento feito à mão. Melhor que ele tenho Duchamp, o meu amante preferido. Quero sempre falar com ele. Quererei sempre dormir com ele, escutando uma interioridade que me acolha na revolução absoluta. A abertura, a clareira se quisermos, é que Duchamp retira a arte da colonização do óptico e do háptico, num passe que a Estética não equacionara. Nem Kant, na tentativa de a resgatar, como acção desinteressada, de qualquer propósito ou objectivo logocêntrico. Nem Hume e Diderot, ao acrescentar-lhe uma grelha nova: o juízo de valor e o gosto. Adiante. Descanso dentro de uma mala de Duchamp e convido-me para quê? Perceber? Compreender? Aceitar? Viajar, seguramente numa nova constelação antropológica. Ao tremor romântico de Blake, acrescentamos as paixões alegres de Espinoza, as paixões arrebatadoras de Descartes, os remates semânticos no voo de borboleta da arte dita moderna, num funambulismo miraculoso mas perigoso, desde: o desfazer da perspectiva; juntar num mesmo suporte culturas visuais distintas, provocando um choque perceptivo; nomear ceci n’est pas une pipe, no desacordo surrealista com o sentido linear da representação; esvanecer o espaço abstratamente com todas as suas consequências… Caminhos, trajectos para encontrar uma nova pergunta sobre a arte, entre a repetição e a diferença dos canones, oscilando numa feroz tensão entre as mãos, os sentidos e o cérebro, mas, sobretudo, desenterrando-os da ocultação metafísica da tradição ocidental até ao auge do modernismo. Continuando. As mãos são do corpo e, gosto de imaginar, que o corpo pensa com as mãos quando faz arte. É obviamente uma mão que espalha os dedos todos pelo mundo e cria, neste caso, mundo. Mas cheira-me ainda a ontoteologia. Este caminho não me convém. Preciso ir mais longe. Perguntar melhor. Dou a mão a Duchamp e sinto-lhe as veias dilatadas e alguma rugosidade. Caminho ao seu lado, ele ainda é novo e, sobretudo, preguiça. Não é uma preguiça qualquer. É uma vontade: não quer repetir, repetir-se, quer fazer o novo de novo (Nietzche, esse delicioso fantasma, anda sempre por aí). Encosto a cabeça no seu ombro. Heidegger, não muito longe, sorri trocista. Sinto-me perdida. Eu sou apenas uma mulher loucamente apaixonada pelo contemporâneo. Por aquilo que é próprio do contemporâneo, ouviu? Mas ele já desapareceu sem tomar posição e afasta-se silenciosamente como um espectro. Sou percorrida por um arrepio gelado. Os pés pisam o tempo onde os tempos se insurgem e se abespinham por baixo de mim. O tempo não tem cor. É vazio. É uma ilusão. Pode ser de qualquer dimensão. Posso inventá-lo. Sinto medo de o surfar, como quando estou no mar e a onda empurra e faz descer depressa demais a prancha e eu travo a descida e páro o movimento. É um medo infundado porque se cair nem me magoo. Então o que é que me assusta? O desvão inclinado do chão mole que pode não manter o meu peso à tona. Ali, dum cantinho seguro do Todo, plana um tapete voador. De vez em quando percorre veloz a velocidade. Ri-se de mim e manda-me umas luvas mágicas. Tenho a certeza que é Nietzsche. Só pode ser. Também gosto dele. Posso dizer que não sou uma maria-vai-com as-outras, sou mais uma maria-vai-com-eles, quando são geniais. Apaixonadamente geniais. Admiro-os e não há melhor amor que a admiração. Qualquer outro comentário da ordem da intimidade não adianto porque nunca faria parte do que que quero contar nestas minhas teorias do céu: o que é próprio da arte no tempo contemporâneo. Atenção, não te distraias! Duchamp quererá largar-me da mão, por ter sucumbido a uma vontade universal? Deixar-me pendurada no devir sem resposta? Raios e coriscos, neblinas e chuva miudinha, estrelinhas fulgentes, beijos coloridos, carícias perdidas, palavras sacudidas, deuses marxistas, diabos, anjos, fantasmas, ruínas, nadas – tudo num vórtice medonho que nunca mais termina. A mão de Duchamp, afinal agarra-se mais à minha e salva-me daquela escalada negativa, daquela queda para lugar nenhum. O sorriso enigmático, o desenterrar das obras – porque se trata sempre de criar obras, não mundo. Nelas está a origem da arte. A sua essência, não é, Sr. Heidegger? Não brincamos aos deuses, mas aos homens que podem jogar os dados de Deus, se calhar. É divertido. Se calhar Duchamp convida-me para uma partida de xadrez. Vou perder claro, a não ser que ele desconheça a entrada à Leonel Pias, inventada anos mais tarde por um português. Talvez tenha sorte, mais sorte do que tinha quando jogava com a minha filha: ela ganhava sempre. Mas não. A ideia dele era outra. Enfiou-me numa pintura que fez muito novo. Não me consegui concentrar dentro dela: algum naturalismo, algum impressionismo… Perdi a jogada e fui cuspida daquele quadro para outro. Uau! Que diferença: estava dentro de puro movimento. Trepidante. Eu era um corpo que se desdobrava em tempo. Que estranho e que bom. Era a mão de Duchamp que me pensava enquanto corpo de mulher em movimento. Mas, chegando ao topo, fui atirada para outra coisa. Fiquei presa a um vidro que se estalava. O ruído do acaso ficou congelado na minha perceção. Escorreguei num urinol que afinal estava num museu, porque este meu amigo decidiu que era uma obra de arte. Depois numa caixa que se fechava e abria como uma pequeno museu, neste caso não imaginário, mas matérico. Miniaturizado. Com obras incompletas. E depois fui cuspida para o vazio da vida. A mão de Duchamp não tinha mais nada a dizer. Mas tinha dado o pontapé de saída do grande jogo contemporâneo da arte. O novo campo de forças estava traçado: as obras podiam não ser retinianas, o desouvrement do gesto contemporâneo podia desfazer, ou não, os contemporâneos de todo o tempo, como Giotto, Rembrant, Delacroix, Courbet, Manet, Degas, Cezanne, Picasso, Braque… Apesar da admiração que sinto por eles, por me raptarem ao mundo, nenhum deles fez a pintura como algo mais que a pintura e o seu suporte, nenhum deles me libertou da pintura retiniana. O meu grito de fuga escapava-se noutros gritos dentro do arquivo dos gestos contemporâneos de todos os tempos. A revolução está a postos para dessacralizar, re-utilizar, destruir e libertar o gesto do exercício de um poder exterior. Doravante o poder origina-se na obra. Não há nada a legitimar porque cada obra é uma viagem de diferenças, distinções, novidades, refutações, explorando o avesso dos arquivos, os arquivos por existir ou destruindo-os, tão somente. Neste fazer/desfazer, a instalação e a performatividade espreita, aqui e ali. Um quadro de Marx Ernst anuncia o dripping de Pollock, a história contemporânea da pintura anuncia-se a ela mesma, pintando-se, fazendo-se, corpo-a-corpo com o corpo. Cada obra é uma mónade, um pensamento mas não um conceito. Já não agrega, nem ensina. Antes viaja sozinha. É tempo de fechar o assunto. A porta do abysmo abriu-se. A floresta é cada vez mais densa. Heidegger recorta-se lá ao fundo. Eu experimento com as minhas mãos e pinto os planos da natureza naturante, separando-os da síntese retiniana, e gostaria ainda de experimentar o meu corpo naturans, pelo meio, a bailar ao ritmo da poeisis silenciosa de Rimbaud. Outro mestre da revolução contemporânea. Serei por isso contemporânea?
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs filósofos e a escrita [dropcap]O[/dropcap]s filósofos não gostam de se saber escritores. Provavelmente porque a palavra “escritor” designa uma função especulativa em que a criatividade assenta mais no jogo puro da palavra ou na construção de aparatos ficcionais sem critérios que sejam os filosóficos. É assente que assim é. Provavelmente ainda porque o ofício do escritor se prende mais com a literatura e com a poesia. E, no entanto, vasta é a tradição filosófica que mergulha no universo da poesia e nas mais variadas tipologias literárias (narrativas, epístolas, exercícios, fragmentos, etc.). É assente que assim também é. Colocando estas duas hipóteses entre parêntesis – vamos, pois, suspendê-las – haverá uma terceira que soa de um modo talvez mais convincente. Dir-se-á então que a escrita é entendida pelos filósofos mais como um meio de “representar” factos e pensamentos e não tanto como uma máquina que cria e visa os seus próprios mundos. Esta suposição não deixa de ter interesse, na medida em que houve filósofos que se sentiram obrigados a moldar a linguagem, provando assim que ela não era, à partida, apenas um utensílio transparente. Não foi por acaso que Heidegger, evitando contaminações, criou uma linguagem própria, aliás bastante compósita e até artificiosa, e que Wittgenstein fez praticamente o mesmo (entregando-se a uma lógica de fragmentos e a processos metonímicos que lhes serviam de leme). A pergunta seria: quando se ‘pensa’, haverá alguma coisa fora do texto? No fundo, o que se faz é escrever. Os filósofos pensam, mas escrevem. Pensar não teria fim (nem sintaxe duradouramente controlada), mas escrever tem sempre um fim e uma geometria que vistoria e que permite reexaminar. Por isso, os filósofos são escritores, ainda que alguns possam crer na relação entre o que representa e o que seria representado e outros creiam no sentido enquanto pura fonte de intersubjetividade (lançado na interação com o outro). Mesmo devaneando sobre a escrita na sua função de seta (índices que alegadamente apontariam para coisas concretas), os filósofos não deixam de se conter dentro do mapa da escrita. Fora do mapa da escrita, haverá outros textos, inúmeras camadas de uma longa linhagem que a história (em jeito de vendaval) atirou sobre o nosso presente. Até porque tudo aquilo que não se gravou em escrita, fosse em que escrita fosse, foi esquecido, foi removido da experiência, simplesmente desapareceu. Como seria bela a totalidade da ‘Poética’ de Aristóteles, se a pudéssemos pensar. E que tributo deveríamos prestar todos os dias a Andronico de Rodes (Séc I a.C.) que fez perdurar até nós a obra de Aristóteles (sem desmerecer o trabalho dos tradutores siríacos e árabes a partir do séc. IX d.C.). Perdurar significa aqui, de qualquer maneira, manter por escrito. A escrita, sempre a escrita. Pensar e salvaguardar o pensamento é, de facto, escrever. A escrita é um móbil específico do humano. Por outras palavras: ela é aquilo em que nos movimentamos, em que habitamos, em que vivemos e jamais um par de ferramentas para tratar do jardim. As ferramentas e o jardim somos nós mesmos, sem separações, impelidos ao dia-a-dia do mundo. Coisas despidas de palavras existem e são inúmeras, mas não ficam. São como uma sombra que se despede de nós, até que a escrita as reflicta, as hipnotize e as coloque no meio do nosso tumulto. Os arqueólogos, quando descem ao fundo da terra, o que procuram são inscrições, traçados, casos, ou seja: escritas. É verdade que um signo, qualquer signo, pode ser sempre usado fora da linguagem (olho à noite para a lua e prevejo que amanhã vai chover), mas diluir-se-á no nosso devir. Posso contemplar o rosto de um familiar, posso amaciar o ramo da nespereira, posso auscultar a gata a lamber as patas, mas esses actos apagar-se-ão, já se apagaram. Retê-los e albergá-los é procurar o sentido, mas não resistirão se não corarem à luz da linguagem. Razão por que os filósofos, os semióticos, os botânicos, os biólogos são, ao fim e ao cabo, escritores. Escritores de literatura? Não. Mas escritores, sim. E sem mácula alguma.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasA hora das pequenas coisas [dropcap]E[/dropcap]nfim, nem tudo pode ser mau, embora pareça. Este tempo deu-me oportunidade para fazer algo que já pratico regularmente com algum prazer: reler. Mas as escolhas agora são feitas em função destes dias e portanto não é por acaso que regressei a um dos meus livros mais acarinhados e que carrega o maior número de notas nas margens (sim, sou desses. E a caneta). Trata-se de Cartas A Lucílio, de Lúcio Aneu Séneca (4 a.C- 65 d.C.). É uma demonstração prática da filosofia estóica sob forma epistolar e que ao longo dos anos em que o tenho lido me ajudou a criar a minha visão do mundo e da vida. E mais uma vez não me falhou. Eis a abertura da primeira carta: “Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos”. E mais à frente: “Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é nosso”. Aqui está então um dos maiores desafios destes estranhos dias: o que fazer com o que sempre foi nosso? Descobrimos com surpresa que não estamos preparados para o ócio no seu sentido mais nobre. Há uma proporção e uma hierarquia diferente de coisas e sentimentos, perspectivas que se modificam, pontos de fuga que se esvaem. Redescobrimos a profunda importância das pequenas coisas e acarinhamo-las. Recuperámos por exemplo a noção de ausência. Para nós, portugueses, recuperámos da pior maneira um atavismo nacional: a saudade. E felizmente que o estamos a usar. Recuperámos a vontade de um sorriso, de um passeio, de uma paisagem, de um abraço. Há o sentimento real de que a nossa vida nos foi tirada em vida. As emoções surgem com um altíssimo grau de pureza que assustaria até o mais veterano dos toxicodependentes. Não ficarei insultado se alguém me disser que o aqui escrevo não passam de truísmos. São-no, de facto; e se os uso é porque também eu preciso deles para me reassegurar e encontrar alguma ordem num labirinto construído à revelia da minha vontade. Provavelmente será sempre assim quando somos confrontados com o tanto que temos por garantido, os ínfimos pormenores essenciais que sustêm a nossa fragilidade que se passeia pelos dias. Vivemos no mundo da Alice de Lewis Caroll, onde tudo é certo e nada é certo. Ferem-me agora uns versos que fiz para um fado baseado nessa personagem extraordinária e que reflecte alguém perdido dentro da sua vida: “Todas as coisas são estranhas / Todas as dores são tamanhas/ E eu o seu inventário”. Não gosto de profecias e muito menos quando sou eu que as faço. Mas nestas horas turvas reparai na beleza possível, amigos. Acarinhai-a. Que grandes ficam as pequenas coisas. Recebo agora de um amigo-irmão uma versão apressada, hesitante, ansiosa do Suzanne de Leonard Cohen. Este meu querido amigo, músico e autor extraordinaire, alimenta o meu isolamento com o dele. E isto é tão simples e tão pequeno e portanto, na nova matemática dos dias, é igual a infinito.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasCumprir a mão Palhavã, Lisboa, segunda 3 Fevereiro [dropcap]A[/dropcap] notícia da morte de George Steiner (1929-2020) apanha-me prostrado, tentando afastar do pensamento por razões práticas a sempre próxima. Tão próxima que se fez querida. Na arrumação dos dias, agigantou-se a mesa de cabeceira, ou talvez a estante se tenha aproximado ainda mais do lugar onde tombo a cabeça. Estendo a mão e puxo o robusto introito à obra e figura do mestre, composto e interpretado a quatro mãos por José Pedro [Serra] e Ricardo [Gil Soeiro], «George Steiner, Das cinzas do silêncio à palavra de fogo» (ed. Exclamação). A poesia e o programa do título cumpre-se em vários ensaios dos queridos organizadores, além do «elogio» e resposta aquando do doutoramento Honoris Causa, em 2009, de uma entrevista e de utilíssimas bibliografias. Atenho-me em «Steiner ou Palavra Viva», no qual José Pedro desenha o perfil do pensador a partir das suas entrevistas e que se resume na frase que sublinho a lápis, que devia aprender de cor: «o seu humanismo consiste, com a ajuda dos melhores, em colocar o homem perante os múltiplos cantos de todas as Esfinges, em procurar olhar os abismos da alma, em lançar o pensamento até ao limite do compreensível, em proclamar a superioridade do Bem, em aludir à misteriosa e inefável experiência do Belo.» Parêntesis longo: as páginas iniciais desenvolvem notáveis argumentos para a instituição da entrevista enquanto género literário e dos mais radicais elogios que me foi dado ler sobre tão menosprezada prática (mais ou menos) jornalística. «A entrevista é lugar único e inimitável para uma característica formulação de um pensamento, para a experiência de um sentimento, de um entusiasmo poético, para o eco do pulsar cardíaco de uma revelação ou de uma inquietação.» O essencial está na «visão encarnada» das ideias a habitarem o tempo daquele individuo, tendo invariavelmente por perto a Senhora Morte, dada a nudez radical que se exige aquele que se joga na entrevista. «Esta coloca-nos não apenas perante a ideia, mas perante o homem que pensa a ideia, não apenas perante o sentido de um caminho sugerido, mas perante o homem que arrisca o caminho, que o trilha e o desbrava». Parêntesis fechado. O Steiner que aqui se desbrava, feito percurso e planeta resulta de um magma de alta cultura europeia, com andantes raízes no judaísmo, assombrado pelo Mal impensável entrevisto no Holocausto, em busca incessante pelo Sentido e pelo Absoluto em diálogo com o Transcendente, talvez Deus. Interpela-me o «cancro do pensamento», a «patologia do absoluto» que Deus, incandescente até na sua ausência, nos terá inoculado de modo a que qualquer interpretação seja uma interpelação. Encontro estranho conforto nesta tessitura entre a questão de Deus, em mim adiada, e o mergulho em apneia no texto. Sem esquecer o desencanto das construções políticas, a tragédia do aparente falhanço das utopias. Em frutuoso diálogo, José Pedro discorda de Steiner quanto à «tragédia absoluta», espécie de buraco negro, pois encontra no coração das trevas «sempre um resistente traço de luz que se recusa a extinguir, rebelde traço oposto ao negro traço deixado pela tragédia.» Quero crer em uma rebeldia de luz, com raiz na palavra. Que outra forma teríamos de desenhar chão ou céu? Palhavã, Lisboa, quarta 18 Março A máscara no rosto faz com que a respiração me embacie os óculos, e a limpeza das lentes a cada passo parece apropriada para o que de explosivo contém este número 87, 88 e 89 d’«A Ideia», a revista de cultura libertária, companheira de há muito, que me fez chegar o velho e querido amigo António [Cândido Franco], seu director (que digo? alma). Não se encontrará hoje, entre nós, publicação mais desafiante, capaz de propor pensamento nas mais díspares direcções, de recolher pistas das mais distintas tradições de resistência e produção de paisagens outras. Este número entusiasma de tão exemplar, na sábia mistura de dossiers (escrita automática e surrealismo, com texto notável de síntese e potência do António, além de interessante inquérito, mas também em torno de Agostinho da Silva ou sobre anarquismo), de poemas e contributos artísticos (de que o trabalho de Maria João Vasconcelos nesta página é marcante exemplo, uma ilustração para estas horas difusas, em que não sabemos se subimos ou descemos, em que deixámos de ver o chão, mas não sabemos onde colocar os pés), de textos literários e reflexões (Schwob, Tolstoi, Zweig, Verlaine, Anselm Jappe, José Manuel Martins), de atenção às efemérides (A Batalha), de evocações afectivas (Bruno da Ponte, Alexandre Vargas), de traduções inéditas de documentos, como este «Ruptura inaugural», de 1947, e que acaba por contaminar tudo nas páginas seguintes. É que o surrealismo não se afirmava «apenas» enquanto movimento literário, mas revolução interior, gesto capaz de radical «resolução de conflitos que bloqueiam o acesso a toda a liberdade, estejam eles entre o sonho e a acção, o maravilhoso e o contingente, o imaginário e o real, o exprimível e o indizível, a candura e a ironia, o fortuito e o determinado, a reflexão e o impulso, a razão e a paixão, exemplos particulares de uma antinomia mais vasta, contrapondo, no mais profundo da natureza humana, o desejo e a necessidade.» Esse relâmpago rasga a diversidade do volume, que se desmultiplica em tantas outras leituras, se cristaliza e dispersa, que interroga e consola, que perturba e apazigua: a poesia enquanto o princípio e a fonte de todo o conhecimento. Santa Bárbara, Lisboa, sexta 20 Março Este parêntesis (não será antes movediças reticências?) em que mergulhámos dá-nos a falsa sensação de que a vida se suspendeu, mas ela continua sob todas as suas formas. Até a habitual morte. Deixa-nos Rogério Petinga (1935-2020) que, sobretudo na Quetzal da prometedora origem, desenhou livros com cuidados de barroca filigrana aproximando leitores de autores fundamentais. Santa Bárbara, Lisboa, domingo 22 Março Recebo uma folha, que parece tombada de árvore outonal, portanto desalinhada com as estações, com marca das hastes e restos de seiva. Diz a Sara: «eu por aqui, vou-me podando. E às plantas também. Observo, espero por notícias que a mão vai cumprindo, sem a turvez e a hesitação que cá dentro acontece. Identifico as ervas daninhas que na sua característica persistência invadem com teimosia e arranco-as com suavidade, na esperança de que cá dentro se lhe copie o modo. Olho para aquelas que já não darão frutos, apesar de todos os cuidados e atenção e com uma coragem muda assumo o seu fim honrando-as numa nova existência.» Deixo divagar com as notícias que a mão vai cumprindo.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDemis Roussos em livro [dropcap]A[/dropcap]dam Aagaard foi um escritor dinamarquês que morreu no ano passado com 77 anos. Nasceu e viveu quase toda a vida em Copenhaga. Escreveu fundamentalmente peças de teatro e apenas um romance, ainda sem tradução em Portugal, cujo título é Aldrig Verden (1991), que podemos traduzir por «Nunca O Mundo». Este romance que na altura foi muito criticado na Dinamarca e na Alemanha tem uma passagem que podemos considerar como a que melhor descreve o jovem protagonista e celibatário, que é também o narrador: «Depois de ter lido os romances de Thomas Bernhard deixei de conseguir ler os de outros autores, por me parecerem todos uma espécie de Demis Roussos em livro.» A acção passa-se na Copenhaga de finais dos anos 80, poucos anos depois da edição de Extinção de Bernhard, e o narrador vive sozinho num pequeno apartamento, de onde quase nunca sai, evitando ao máximo o contacto com as pessoas – «Os outros não são o Inferno, mas lembram-nos que ele existe» – tentando escrever uma tese de doutoramento sobre o filme de Carl Theodor Dreyer, A Palavra. Curiosamente, ou talvez não, porque a vida é profícua em grandes desajustes, Aagaard era protestante, assim como o seu protagonista. «Nunca O Mundo» é o título da tese do jovem Erik. Todos viram o filme de Dreyer, não precisamos de lembrar aqui, apenas dizer que o jovem vê o filme do seu compatriota como uma tentativa de fazer reset ao mundo. Escreve: «Só a vivência da fé no seu limite pode salvar o mundo.» E este salvar o mundo era evidentemente uma espécie de começar de novo, como se até aqui estivéssemos errados, o mundo estivesse errado. «Nunca O Mundo», então, encontra um evidente eco nas palavras de Jesus no Evangelho de São João «O meu reino não é deste mundo». A esta altura, já nos perguntamos como é que Bernhard faz sentido, não só no livro, mas nesta personagem. Leia, então, esta passagem que nos elucida o modo como Erik conecta o que nos parece inconectável: «Temos de conseguir odiar o mundo como nos romances de Bernhard. Só assim será possível dar o passo seguinte, em que nos libertaremos desta vida sem sentido.» Estamos perante um romance de trincheira. Um romance que tem como objectivo, não o entretenimento, não o conhecimento ou a reflexão, mas um projecto político, uma Weltanchauung, uma visão do mundo. No fundo, embora em pele de romance, o livro era um manifesto. A páginas tantas, lê-se: «Deve-se escrever apenas para destruir ou para construir o mundo. O resto é conversa de café, e lá deveria ficar.» À medida que o romance vai avançando, e com ele a tese de Erik, vamos entendendo melhor como ela se liga aos romances de Bernhard e estes ao filme de Dreyer. Ao longo de todo o romance, como um fantasma, vai surgindo a figura de Kieerkegaard, outro dos heróis do jovem protagonista-narrador. Semanalmente, Erik escreve uma carta a Kierkegaard, contando o desastre em que vai o mundo, que não melhorou nada desde a morte do amigo, pelo contrário vai muito pior. Leia-se um excerto de uma das cartas: «Meu querido amigo, como encontrar palavras para descrever este mundo em que vivemos? Desistimos de escrever. O que hoje se faz passar por escrita é pior que os jornais que você lia há mais de cem anos nesta cidade. A fé, essa, é um negócio. Maior ainda do que acontecia no catolicismo ao tempo das bulas papais. […] A filosofia está entregue aos números, às estatísticas, às análises de linguagem. Alegra-me tanto saber que você não está a ver isto! […]» Não posso contar aqui o final do livro, pois é muito surpreendente, mas devo dizer que até ao final o leitor vai sendo sempre surpreendido, ao ponto de tanto nos identificarmos com Erik como de termos vontade de abandonar o livro, do mesmo modo que ele abandonou o mundo. Como escreveu a também escritora dinamarquesa Karen Madsen a propósito deste romance: «Um livro quase sempre incompreendido, muitas vezes treslido, e raramente confrontado com os seus verdadeiros fantasmas: o de uma sociedade dinamarquesa enclausurada entre a fé e o esquecimento, entre os seus heróis radicais e um povo que os esquece.» De brinde, julgo eu, temos ainda análises certeiras ao sentido do romance em Thomas Bernhard. Deixo aqui apenas um excerto: «A escrita de Bernhard é profundamente ética. Nos nossos dias, entre o colapso da fé e multiplicação da corrupção é um dever odiar o mundo.» A verdade é que, ainda que não sejamos dinamarqueses, ainda que não sejamos crentes, sentimos a angústia e o desespero de Erik como nossos. Para nós aqui e agora, mais do que «nunca o mundo», mas que não difere do ponto de vista de Erik durante o romance, é «para quando o mundo?”
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA obra mais íntima [dropcap]A[/dropcap]ssociar Samuel Barber exclusivamente ao seu famoso Adagio for Strings, Op. 11 é ignorar tantas outras composições suas. Em The Lovers, Op. 43, o grande compositor americano musica tão magistralmente excertos do ciclo poético Vinte Poemas de Amor e uma Canção de Desespero do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), que eleva a sensualidade e a poesia do texto a novas alturas. A poesia de Neruda é amplamente considerada como alguma da poesia mais romântica alguma vez escrita, embora o seu erotismo permaneça controverso. Em 1971, no auge do período serialista da música clássica norte-americana, Barber aceitou uma encomenda do Girard Bank of Philadelphia de uma grande composição. Essa instituição financeira adoptou um programa pelo qual esperava contribuir “construtivamente para aspectos socialmente orientados e culturais da comunidade e da nação”. Parece que Barber se havia recuperado da sua depressão anterior após o fracasso que foi a estreia da sua ópera Antony and Cleopatra. O compositor tinha recusado uma encomenda monumental de Eugene Ormandy apenas dois anos antes. No entanto, criou uma peça maravilhosa para a comissão do Girard Bank, a sua última grande obra, composta por um prelúdio e nove andamentos que traçam a progressão de um caso de amor desde o começo alegre até ao fim doloroso. A oratória The Lovers, Op. 43 foi escrita para barítono solo, coro misto de 200 vozes e orquestra completa. A facto do texto ser considerado bastante erótico, juntamente com a associação de Neruda com o Partido Comunista, fez com que a obra fosse criticada pelos funcionários do Girard Bank. Barber respondeu da seguinte forma: “Meu Deus! Não há love affairs em Filadélfia?” O compositor trabalhou diligentemente em meados de 1971 na composição de The Lovers, certamente o seu trabalho mais íntimo. A maior parte da peça foi composta em Capricorn, local onde vivia na época. De facto, um canto de pássaro ouvido aí inspirou o motivo de abertura do Prelúdio, que atravessa todo o trabalho. O compositor levou dois meses para compor a música e dois meses para orquestrar a peça. The Lovers foi estreada em 22 de Setembro de 1971 pela Philadelphia Orchestra, o barítono finlandês Tom Krause e o Temple University Chorus, dirigidos por Robert Page. Barber, sempre duvidando, enviou um amigo para a plateia no intervalo para julgar as suas reacções. Mas o público, juntamente com a crítica musical, apreciou muito o trabalho. Barber compôs The Lovers no seu estilo mais pessoal e lírico. Devido ao erotismo sem rodeios das letras assim como à extrema dificuldade das partes corais e orquestrais, a obra raramente é executada. A escrita vocal é baseada nos ideais do Lied Romântico Alemão. O Prelude, apenas para orquestra, abre com o motivo de três notas da chamada de pássaro na flauta. De seguida, um tema sensual é apresentado. A música cada vez mais dramática, leva ao primeiro andamento, “Body of a Woman” (Corpo de uma mulher). O solo de barítono entra no início desta música apressada. Essa emoção reflecte a antecipação presente no início de um caso de amor. “Lithe Girl, Brown Girl” é o título do segundo andamento, principalmente para vozes masculinas e orquestra. O próximo andamento, “In the Hot Depth of this Summer” (Na profundidade quente deste Verão), é para vozes femininas e orquestra. O coro e a orquestra completos são usados em “Close your Eyes” (Fecha os olhos), o quarto andamento. O caso de amor cresce através desses andamentos e atinge o seu auge no quinto andamento, “The Fortunate Isles” (As Ilhas Afortunadas). O relacionamento começa a desfaz-se no sexto andamento, “Sometimes” (Às vezes), no qual o solo de barítono retorna e, no oitavo andamento, “Tonite I Can Write” (Hoje à Noite Eu Posso Escrever), os amantes são separados. Sugestão de audição: Samuel Barber: The Lovers, for baritone, chorus and orchestra, Op. 43 Dale Duesing, baritone, The Chicago Symphony Orchestra & Chorus, Andrew Schenck (World Premiere Recording) – Koch International Classics, 1991
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasTrilogia Aqua [dropcap]C[/dropcap]ustei a encontrar aquele desenho antigo, recuar quatro décadas de pastas e memórias. Sou a figura sentada. Não essa, a outra mais atrás e que não se vê. Como agora, enquanto caminho ao seu encontro. Não há nada tão profundo e misterioso como uma figura densamente de costas. Quieta numa impressão de imutabilidade. Absolutamente desconhecida, mesmo se no recorte em desenho sobre a tela limpa do céu, é única e ímpar. De quem se vai ao encontro e que chega sempre antes e está ali. De mãos nos bolsos a um metro da vedação à beira do perigo da arriba e, inevitavelmente com o olhar na lonjura. E de frente para o todo. Seria sempre diferente se eu viesse ao longo do carreiro que debrua a falésia e o apanhasse de perfil. Não há nada mais distante do que um perfil. Não se revela a quem vê, nem revela o que vê. E, no entanto, contém como se inevitável, a possibilidade do movimento. De o rosto se voltar num olhar que nos vê chegar. Uma coisa estranhamente desconfortável, penso. Eu tinha aquela paixão antiga. Uma pintura de Magritte. O homem em grande plano, de olhar invisível e costas estanques para o observador e aquela rosa enorme e evidente. Onde só ela se expõe num olhar luxuriante de exorbitância e desafio. Um recorte nítido frio e cortante de rigor. Ali, naqueles ombros que escondem o olhar invisível do homem, o observador vê-se a olhar-se a si próprio. Ultrapassa-os numa paradoxal dificuldade em simultaneamente se ver e ser visto. Tudo numa única figura. E a imagem, de um absoluto congelamento, torna-se inquietante lugar dessa substituição que se sucede sem parar. E a rosa, quase esboça um sorriso enigmático. Às vezes – muito raramente – surpreende-se numa pessoa esse rigor frio num olhar furtivo e nu, apressado e real, que de outras vezes se protege. Momentos fugazes de uma nitidez aleatória no meio de outras fugas. Mas naquela rosa, a abertura de todos os mistérios. A crua incisão do que pode ser um olhar de dentro para fora, ou a dura perspectiva que da paisagem se intromete olhos a dentro. O perigo que reside escondido no olhar de cada um, ela denuncia e repõe. O enigma que é o olhar do outro, o risco sem erro. Quanto muito coberto de desconhecimento mas sempre num desenho que é uma forma alternativa de realidade. O olhar do outro sobre o nosso olhar de nós. Esse o mais lancinante de hermetismo à beira da desconstrução. Como na falésia ali, a subtil erosão. Avanço lentamente em silêncio, a prolongar a eternidade contida nos sinais que fazem o momento. Nestas costas voltadas para mim, a oferecer a vista ampla do lugar. E do olhar como se tornado o meu. Eu via o que me era dado ver naquele reverso de outro olhar. E nada pode ser mais completo e entendido do que ver o que o outro vê. Caminho devagar e nunca amei tanto. Tamanho desconhecido à minha frente e tamanha paisagem em frente a nós. Tive medo de que ao aproximar-me acontecesse tornar-me numa daquelas personagens de Borges numa noite à beira rio – num conto que já não sei – talvez o rio da prata. Que se encontram no mistério da sua deambulação solitária. E um deles desencanta perante a perplexidade do olhar do outro o misterioso e irreprimível livro de areia. Numa imagem poética a lembrar similitudes de Foucault. O abismo incomensurável presente em cada microcosmos, o abismo de eternidade num segundo. O de profundidade numa ínfima paragem de tempo. Enquanto avanço tudo isto me vem à memória e tenho medo de ver mais do que me é mostrado neste olhar que não vejo mas aponta ao horizonte. O que é grande torna-nos ínfimos e calmos e faz sentido. Chega aqui, longínquo o estampido espumoso das ondas em baixo. Mas ao longe e olhando adiante, o mar é calmo, uniforme, enorme. Protege inúmeros e infinitos segredos subaquáticos. Como se nada mais do que uma manta turquesa ou esmeralda consoante a luz. E isso dá-lhe uma espessura quase quente, mesmo nesta manhã fria de primavera. É tudo uma questão de escala e acuidade do olhar na textura complexa que se nos apresenta. O que é grande permanece imutável. Só as circunstâncias se movem. O imponderável persiste. Da próxima vez, o meu lugar. Aquele lugar estranho que ando para te mostrar. Mas tenho que tentar entendê-lo. E chegar antes, para que o vejas.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPeste III [dropcap]O[/dropcap]s corpos dos mortos amontavam-se. Criaturas meio-mortas cambaleavam. Juntavam-se à volta de todos os fontanários. Os lugares sagrados encontravam-se pejados de cadáveres. À medida que a catástrofe passava todos os limites, os homens, sem saberem o que lhes ia acontecer, tornavam-se completamente indiferentes a tudo, fosse sagrado ou profano. (Tucídides H. 2, 52.3-4). Os homens atreviam-se, agora, a fazer às claras o que, anteriormente, procuravam fazer sem dar nas vistas. O rápido desaparecimento das pessoas e daquela maneira atroz, o prejuízo dos melhores e o benefício dos piores levava que tudo esbanjassem, sobretudo no que desse prazer. A riqueza era tida como coisa de um só dia. Perde-se a vergonha e a honra. A conduta tinha como única regra o gozo do presente. Apenas o gozo é honroso e útil. O medo dos deuses e das leis dos homens não constituía limite algum ao modo de viver “Ninguém esperava viver o tempo suficiente para ser levado a julgamento por causa das suas ofensas, antes sentiam que uma pesada pena havia já sido lavrada contra todos eles, estando suspensa sobres as suas cabeças. Pelo que, antes que lhes caísse em cima, era justo que não pensassem noutras coisa senão em gozar a vida.” Toda a especulação acerca da origem e das causas da doença, se é que é possível encontrar causas capazes de produzir tão grande devastação, é deixado ao cuidado de outros, leigos ou profissionais. A descrição, identificação, isolamento e reconhecimento do decurso e história clínica da doença bem como dos seus sintomas tem como único objectivo a possibilidade de poderem ser reconhecidos, caso a doença volte a aparecer. É isso que Tucídides pretende. Em causa está a possibilidade da prevenção, da profilaxia. Os indícios estão no passado. Mas são indícios no interior do horizonte humano. O seu rastreio é por mor do futuro. Não enquadra nenhum outro interesse senão esse. O estatuto ontológico da investigação não visa nenhuma apreensão do que se passou, mas o reconhecimento possível do que poderá vir a passar-se. É talvez o destino da res humana e da nossa condicio estender-nos entre o que se passou e o que poderá vir a passar-se. Mas se a causa fáctica se encontra objectivamente dada, é do futuro que ela abre. Talvez a causa final não esteja identificada. Mesmo com as 17 ocorrências do substantivo em Th.. Mas ela opera de modo tão fundamental que não permite por defeito de finitude o seu reconhecimento ou isolamento. Em causa não está nenhuma disputa de estilo literário, mesmo quando em causa estão formulações líricas, trágicas, técnicas. A narrativa não é um conto. O que se pretende é examinar com transparência o que terá acontecido, porque o que aconteceu será possivelmente o que poderá acontecer outras vezes no futuro, de acordo com a constituição humana. Tem em vista a utilidade. Não o prazer.” O que Tucídides escreve é sempre por mor do futuro. É uma posse para a eternidade. As causas da Guerra terão de ser reconhecidas para a podermos evitar. Os sintomas da doença habilitar-nos-ão ao tratamento eventual ou à prevenção profilática. Trad. David Martelo
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDia quinze da quarentena [dropcap]N[/dropcap]ada tenho a acrescentar ao que li numa entrevista de Juan Eslava Gálan, ao ABC: «Vivemos hoje uma experiência histórica excepcional. Quando tudo isto passar, o que acontecerá, acho que seria bastante inteligente para a Humanidade – a começar por aqueles que a governam – considerar que nem tudo vale e que talvez a natureza esteja clamando para que mudemos as nossas vidas. Além de mudanças climáticas, existem muitos sinais que nos vão sendo endereçados e há que mudar de comportamentos se pretendemos continuar a ser viáveis como espécie». Escrevo na madrugada de segunda, dia 25, depois de ter sido declarado o primeiro caso de um infectado com corona na favela Cidade de Deus, do Rio. O rasto que esta brasa deixar na favela permitirá adivinhar o que podemos esperar nas periferias de Maputo. Tanto vai depender do comportamento destes barris de pólvora. Como alguns privilegiados, vou “exilar-me” numa península perto do mar e sem vizinhos. É uma ilusão, mas a possível em país com vinte ventiladores hospitalares. Em vez de ouvir falar do corona vírus, ouvir o mar: outra das motivações deste meu refúgio. Mas aqui vos deixo o poema possível, nestes dias do luto: DIA QUINZE DA QUARENTENA As imagens de drone confirmam o vírus unhou o silêncio e o riso, nas ruas da cidade embutem-se enxames de pálpebras roxas, dolentes, num sonho de corais. Ao décimo quarto dia de quarentena é lícito concluir: és mais difusa do que as estrelas e como o coração se deslassou no skipe, aonde a mentira esquece que caminha sobre andas. Foram os amantes de ocasião os primeiros a ceder neste transe em que o inimigo é o outro. Porfia a beleza, mas quem a admite isolada numa caldeira sem árvores? Depois do século ter emudecido os sinos, assistimos à repentina invisibilidade dos aviões, temerosos que até dos espelhos possamos desertar. Só os cães abandonados reaprendem a uivar. Chafurdámos até aos bordos na medula do consumo e volvemos retraídos bichos-de-conta em cujas retinas um raio tatuou os caninos da maldita. Como se fora novidade, a morte, como se morrer não fosse restituir um dente à gengiva nua, o reverso da alma que arrogámos imortal. Tudo invenções que urdimos: o amor, a dignidade, o lustroso pêlo da liberdade que com felina e orgulhosa determinação escovámos – e de que agora cogitamos abrir mão, pelo indulto de que o vírus não nos vele o pulmão com o seu kilt. Balimos de medo como a virgem arrastada para o negrume da caserna, bloqueados, à mercê. O que me espanta nesta crise é a obsessão de imaginar que a nossa morte possa sagrar o fim do mundo, a velocidade com que o medo particular se tornou global. Segurança ou morte: o novo mandamento, a vizinha que adorava hortênsias há vinte dias que não as rega e repete merda para as hortências, merda, e algures a vida tremula distante como um placebo à cata de interruptor: quem por último ficar que apague a luz, dirá o último homem, cego ao sem sentido do que diz. Mas as imagens de drone confirmam: nunca o medo teve tanto marketing, nunca o homem foi tão oco. As pessoas relacionam-se como fantasmas com cordilheiras de permeio, desairoso velório dos perfumes. Era tremenda a energia nestas avenidas e agora sorumbáticas desplumam-se em nome duma responsabilidade que antes nunca exibiram. Embora coisas positivas, tremendas, re-activem a esperança: aos canais de Veneza voltaram peixes, há finalmente um sentimento de que as soluções têm de ser globais e de que não há milionário impermeável ao coração da maleita – de má postura no retrato ninguém se livra! Sete da manhã, saio nesta deserta hora para um passeio à Catedral. Ao fim de tantos dias duma seca taciturnidade, desta travessia a vau entre os gentios, apetece-me ver vitrais, sentir a sós (porque o templo vai estar vazio de beatas e de inúteis preces) como a colatura daquela luz me banha a pele e me filtra o sigilo. Anima-me estar calado diante da investidura duma transparência que me tome como cúmplice e não como seu observador acidental. Há catorze dias que não saio de casa, apetece-me aquele silêncio húmido, penumbroso, uma cunha entre a reverência acéfala e o respeito dos ateus, uma medida sem ruído. Assusta-me mais a tenacidade de quem vê que a beleza persiste mas resiste a plantar a semente na caldeira sem árvores. Voltemos ao terceto, Dante – afinal, duas rodas de bicicleta e um selim: que triste voltou a ser o nosso tempo.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasSem telhados de vidro [dropcap]S[/dropcap]ó quando, há muitos anos, fui morar para a Holanda é que percebi o que era a confissão. Foi por contraste que lá cheguei, mas não por ter comparado o mundo católico com o calvinista como quem separa o branco e o preto. Ao longo do tempo, verifiquei que as pessoas nos países baixos, na sua larga maioria, não dependiam do facto de terem que estar sempre a ‘contar-se uns aos outros’. Enquanto em Portugal os grupos de pessoas – nas suas mais variadas morfologias – dependiam dos entreactos teatrais que construíam entre si (os ‘desabafos’ em cadeia), na Holanda aquilo que os orientava era uma palavra dificilmente traduzível para Português: “zelfstandigheid” (que significa, mais ou menos, um estado de ser em que se é independente face ao outro). No mundo da cultura latina, a teia criada pelas relações dissolve amiúde a individualidade no meio das declarações, dos envolvimentos e dos afectos; no mundo protestante esse apagamento resiste bastante mais. A confissão, compreendi então, seria muito mais do que a herança de um dever de controlo social; ela poderia definir-se como um acto continuado de dramaturgia em que ‘a minha voz’ e a ‘voz do outro’ se atropelam. Com este tipo de anuência, é evidente que em Portugal a eficácia social perde muito terreno e isso acontece em nome, sobretudo, de um ‘pathos’ emotivo (em que o corpo dificilmente consegue sair do seu polvo para se soltar). O universo calvinista, ao invés, segreda a cada ser humano a capacidade de falar com deus, de ser deus, isto é, de ser individualizadamente livre. Os impactos desta diferença são enormes e revelam-se nas mais variadas áreas, hábitos e organizações da sociedade. Vem toda esta memória a propósito do que me acontece quando estou a meio de um romance, ou, com mais razão, se estou a iniciá-lo e ainda não sei bem que livro tenho em mãos. Nessas alturas, há uma grande atracção pelo silêncio que me prende de pés e mãos. Custa bastante, porque a tentação de dizer, de contar ou mesmo de dar a ler é enorme. Delatar é terrível. Levinas esclareceu o que se esconde nesta tentação, ao referir que “o Dizer é uma des-situação do sujeito”. Por outras palavras: ao contar ou ao dizer, o sujeito deixa de ser o que é, expõe-se e com isso arranca-se a si próprio nessa exposição. Desta forma, dizer ou contar é uma expulsão da ‘minha casa’ a que ‘eu próprio me condeno’. Ao revelar, estou a extraditar-me. Trata-se em suma de uma evasão (de mim mesmo) que deixa de ter qualquer retorno. Ao revelar apago-me e desencanto o mais profundo de mim, arruinando um dos sentidos essenciais da linguagem, enquanto morada do ser. Talvez seja por isso que os místicos e alguns poetas escrevem para atingir o silêncio. Apesar de ser conhecida esta vocação, também é verdade que os humanos – calvinistas ou não – são atravessados pela urgência de dizer. Esse apego (ou apelo) pela proximidade implicará, de qualquer modo, o termo de um lugar próprio e a entrada em cena de um nomadismo que é sempre, ainda que figuradamente, ‘uma expulsão de si’. Mas é justamente isso que um escritor mais necessita: uma habitação secreta em que se saiba posicionar, o que implica que verbalizar significa muitas vezes perder essa conquista íntima (que, no quadro da criação literária, é uma conquista única). O silêncio do escritor (que escreve literatura ou poesia) oscila entre os ímpetos da confissão latina e o sentido da holandesa “zelfstandigheid”. Há, de facto, escritores palavrosos e dados a entrevistas (sempre a postarem e a re-postarem nas redes sociais) e outros que preferem permanecer estoicamente reservados. Mas aquilo que urge guardar-se nada tem que ver com a palavra que mais me irrita neste tema – “spoiler” (detesto quando a ouço soletrar) -, geralmente reservada para partes de uma história (preferencialmente para o fim de uma história). Não, não se trata da história; trata-se dos segredos da construção, daqueles que são quase invisíveis mesmo para quem escreve: o alinhavar das frases, a voz que se domina, a sintaxe dos capítulos, fragmentos súbitos, fórmulas inesperadas, ligações entre personagens e os seus rascunhos, demolição de partes do discurso, cadências, inversões súbitas, partes que se cortam e colocam no início, processos narrativos paródicos, palavras perdidas, ordenações, sonoridades que se repetem, deixas e pontas por pegar, anunciações antes de tempo, cascatas que pareciam planeadas, cortes violentos na caracterização de personagens, músicas de fundo, ratoeiras discretas, prolepses estudadas, truques para enganar o leitor, oficinas de incipits, domínios do tempo, manobras involuntárias, elipses intencionais, manufactura de imagens, nomes que se alteram, paisagens diferidas, diálogos riscados, enfim: uma inconfessável fábrica que precisa de tudo menos de consumir telhas e telhados de vidro.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasRir em tempos de cólera [dropcap]E[/dropcap]scuso então de dar-vos as boas vindas a esta escuridão partilhada. Sabemos pelo que estamos a passar, sabemos que o tecto é o mesmo, que o que nos atinge e ao mesmo tempo nos une não respeita nada: nem fronteiras, nem juízos e por enquanto, nem a nós. A nossa função enquanto espécie tem sido fazer com que a última parte da oração anterior seja invertida. E sabemos, oh como sabemos: já aqui estivemos antes e de muitas formas. Sempre resistimos, de uma maneira ou de outra, mesmo que os custos disso tenham sido trágicos. No instante em que escrevo chega-me a notícia de mais uma vítima famosa do vírus, minha paixão adolescente e primeira musa de Antonioni: Lucia Bosé. Logo a seguir a televisão reporta que só em Madrid morreram já 1200 pessoas. Não há outra maneira de dizê-lo: dias terríveis e incertos. E como podemos responder? Já se sabe das várias solidariedades que do maior ao mais pequeno gesto atravessam o mundo. É bonito e deveria ser praticado mesmo quando o quotidiano regressar a uma suposta normalidade. Mas de todas as formas de reacções que vêm de todo o globo a minha preferida e atrevo-me, a mais humana, é a do riso. Já o devem saber, amigos. Terão recebido memes, vídeos, relatos de gente que de uma forma ou de outra ri da tragédia, de nós todos e de si próprio. Agora mesmo vejo um cidadão espanhol dizer que a sua agenda ficou sobrecarregada com as diversas manifestações e grupos que nasceram desta pandemia. E queixa-se, com graça, que isolamento é isolamento e suplica que o deixem estar sossegado. A misantropia é fácil mas responder humanamente às crises é o mais difícil. O riso é um mecanismo de defesa exclusivo da humanidade que quando utilizado faz exactamente isso: humaniza. Aqui e agora estamos distantes da função purgativa do riso que Bergson defendeu no seu triplo ensaio de 1899. Não: estamos no território do famoso risus purus de Beckett, a defesa última do condenado, boca aberta em vírgula perante a desgraça e a infelicidade. Sempre existiu e por vezes em circunstâncias muito mais extremas do que vivemos: basta lembrar as anedotas que os prisioneiros dos campos de extermínio nazi ou dos gulags inventaram e trocaram entre eles. Porque rir é isto: é desafiar a morte, trocar-lhe as voltas, driblá-la. É a vingança possível sobre a nossa pobre condição finita. Não se trata de romantizar esta situação concreta nem sequer um acto de alienação. Pelo contrário: é pegar o bicho pela cara, estar rosto a rosto com ele e seja qual for o desfecho, ganhar. E à medida em que me chegam provas sortidas deste riso de combate fico confortado e com a certeza que mesmo perdendo no fim dos fins, esta batalha assim já está ganha.