Dia quinze da quarentena

[dropcap]N[/dropcap]ada tenho a acrescentar ao que li numa entrevista de Juan Eslava Gálan, ao ABC: «Vivemos hoje uma experiência histórica excepcional. Quando tudo isto passar, o que acontecerá, acho que seria bastante inteligente para a Humanidade – a começar por aqueles que a governam – considerar que nem tudo vale e que talvez a natureza esteja clamando para que mudemos as nossas vidas. Além de mudanças climáticas, existem muitos sinais que nos vão sendo endereçados e há que mudar de comportamentos se pretendemos continuar a ser viáveis como espécie».

Escrevo na madrugada de segunda, dia 25, depois de ter sido declarado o primeiro caso de um infectado com corona na favela Cidade de Deus, do Rio. O rasto que esta brasa deixar na favela permitirá adivinhar o que podemos esperar nas periferias de Maputo. Tanto vai depender do comportamento destes barris de pólvora.

Como alguns privilegiados, vou “exilar-me” numa península perto do mar e sem vizinhos. É uma ilusão, mas a possível em país com vinte ventiladores hospitalares.

Em vez de ouvir falar do corona vírus, ouvir o mar: outra das motivações deste meu refúgio.
Mas aqui vos deixo o poema possível, nestes dias do luto:

 

DIA QUINZE DA QUARENTENA

As imagens de drone confirmam
o vírus unhou o silêncio
e o riso, nas ruas da cidade

embutem-se enxames
de pálpebras roxas, dolentes,
num sonho de corais.

Ao décimo quarto dia de quarentena
é lícito concluir: és mais
difusa do que as estrelas

e como o coração se deslassou
no skipe, aonde a mentira esquece
que caminha sobre andas.

Foram os amantes de ocasião
os primeiros a ceder neste transe
em que o inimigo é o outro.

Porfia a beleza, mas quem a admite
isolada numa caldeira
sem árvores?

Depois do século ter emudecido
os sinos, assistimos à repentina
invisibilidade dos aviões, temerosos

que até dos espelhos possamos desertar.
Só os cães abandonados reaprendem
a uivar. Chafurdámos até aos bordos

na medula do consumo e volvemos
retraídos bichos-de-conta
em cujas retinas um raio tatuou

os caninos da maldita. Como se fora
novidade, a morte, como se morrer
não fosse restituir um dente

à gengiva nua, o reverso
da alma que arrogámos imortal.
Tudo invenções que urdimos:

o amor, a dignidade, o lustroso
pêlo da liberdade que com felina
e orgulhosa determinação escovámos

– e de que agora cogitamos abrir
mão, pelo indulto de que o vírus não
nos vele o pulmão com o seu kilt.

Balimos de medo como a virgem
arrastada para o negrume da caserna,
bloqueados, à mercê. O que me espanta

nesta crise é a obsessão de imaginar
que a nossa morte possa sagrar
o fim do mundo, a velocidade

com que o medo particular
se tornou global. Segurança
ou morte: o novo mandamento,

a vizinha que adorava hortênsias
há vinte dias que não as rega e repete
merda para as hortências, merda,

e algures a vida tremula distante
como um placebo à cata de interruptor:
quem por último ficar que apague a luz,

dirá o último homem, cego ao sem sentido
do que diz. Mas as imagens de drone
confirmam: nunca o medo

teve tanto marketing,
nunca o homem foi tão oco.
As pessoas relacionam-se como fantasmas

com cordilheiras de permeio,
desairoso velório dos perfumes.
Era tremenda a energia nestas avenidas

e agora sorumbáticas desplumam-se
em nome duma responsabilidade
que antes nunca exibiram.

Embora coisas positivas, tremendas,
re-activem a esperança: aos canais
de Veneza voltaram peixes,

há finalmente um sentimento
de que as soluções têm de ser globais
e de que não há milionário impermeável

ao coração da maleita – de má postura
no retrato ninguém se livra!
Sete da manhã, saio nesta deserta

hora para um passeio à Catedral.
Ao fim de tantos dias duma seca
taciturnidade, desta travessia a vau

entre os gentios, apetece-me
ver vitrais, sentir a sós (porque o templo
vai estar vazio de beatas e de inúteis

preces) como a colatura daquela luz
me banha a pele e me filtra o sigilo.
Anima-me estar calado diante

da investidura duma transparência
que me tome como cúmplice
e não como seu observador acidental.

Há catorze dias que não saio de casa,
apetece-me aquele silêncio húmido,
penumbroso, uma cunha

entre a reverência acéfala e o respeito
dos ateus, uma medida sem ruído.
Assusta-me mais a tenacidade

de quem vê que a beleza persiste
mas resiste a plantar a semente
na caldeira sem árvores.

Voltemos ao terceto, Dante – afinal,
duas rodas de bicicleta e um selim:
que triste voltou a ser o nosso tempo.

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