Da Medicina Antiga Iª Parte

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]e Prisca Medicina (Sobre a antiga arte médica) é um dos textos mais importantes para se compreender a raiz e o desenvolvimento do pensamento humano. Nem vou fazer a distinção entre pensamento ocidental e oriental, nem vou aceitar que há pensamento oriental mas não há filosofia oriental, porque a explicação até pode basear-se em ideologia. O ponto não me interessa aqui. O decisivo é que o pensamento clássico de Platão e Aristóteles, mas também o dos chamados filósofos Pré-socráticos (Anaximandro, Parménides, Heraclito, etc., etc..) e, ainda o de Tucídides se baseia num texto médico ou sobre medicina, tenha sido produzido por Hipócrates ou por alguém da sua escola. E isto é espantoso à primeira vista mas é compreensível, se formos suficientemente secundários.

 

Uma nota sobre o título: medicina traduz a palavra grega “arkhê”. Embora também no singular no original grego, medicina quer dizer o conjunto plural de saberes, gerais e especiais, ao serviço da identificação das doenças, das curas, dos tratamentos, que estão na base da possibilidade de obtenção da saúde. Ou seja, não há uma única perícia ou saber específico, mas todo o saber reúne um conjunto de disciplinas que colabora para a compreensão do seu objecto específico. Formalmente, podemos compreender que é assim que os compêndios científicos estão organizados. Em primeiro lugar, expõem-se os princípios elementares de uma ciência. O alfabeto de cada ciência, por assim dizer. As letras no caso da gramática, os números, na aritmética, os elementos da geometria: o ponto, a linha, o plano, as figuras simples, os elementos da química, etc.. Assim, também a medicina tem os seus elementos na antiguidade: quente e frio, líquido e sólido. Tal como nas restantes ciências, também a medicina tem operações elementares. A adição e a subtracção, na aritmética e a formação de sílabas e de palavras estudada pela gramática tem fenómenos paralelos que são estudados pela medicina: aquecimento e arrefecimento, assimilação de sólidos e de líquidos, excreção de elementos não nutrientes e assimilação de nutrientes, o meio específico em que ocorrem: condições climáticas, hora do dia, época do ano, região do globo, etc., etc..

 

O ser humano não é estudado na sua anatomia nem no interior delimitado pelas fronteiras epidérmicas do corpo humano. O ser humano é estudado em relação intrínseca com o seu habitat, a familiaridade ou não com o nicho ecológico que é o horizonte estrutural onde vive a sua vida, a exposição e vulnerabilidade aos elementos não apenas meteorológicos, mas que se encontram no seu meio ambiente: a sua dieta, regime alimentar, circuito vital, actividade física e actividade profissional, não só hora a hora, dia a dia, mas em cada estação do ano e nas diversas idades da vida. Ou seja, a medicina identifica os elementos complexos da relação do ser humano com outros seres humanos num meio ambiente que é estruturante da sua própria vida. Uma vida humana não é dissociável do meio em que vive e esta relação tem de ser compreendida já ao pé da letra. Assim: o romper da aurora, a manhã, o princípio da tarde e a tarde, anoitecer e noite, mas também, as estações do ano, as idades da vida: infância, adolescência, idade adulta e velhice, fogo, ar, água e terra, os fluídos: bílis amarela e negra, fleuma e sangue, são elementos, “letras”, de um alfabeto complexo que requerem a formação de compostos agregados resultantes de operações elementares para produzirem um corpo humano bem formado que sobreviva e se conserve a si mesmo homeostaticamente.

 

Palavras simples como “ideia”, “forma”, por exemplo, que perpassam o pensamento antigo não querem dizer apenas “manifestação” (idea) e “aspecto” (eidos). São palavras usadas no diagnóstico de sintomas, no esboço da etologia, na reacção programática ao problema que a doença põe: o tratamento, as fases do tratamento, a obtenção da cura. A curva clínica pressupõe não apenas uma relação múltipla e complexa com a dieta alimentar, mas também com a temperatura do quarto, descanso ou actividade, sono e insónia. A curva clínica pressupõe uma relação simbiótica com o tempo. Não é unilinear nem homogénea, pode admitir recidivas, recuos, como obviamente pode ter sucesso. Uma ideia ou uma forma são sempre plurais. Podem querer dizer o aspecto do rosto de alguém, como quando dizemos de uma criança que “está murchinha”, pode ter que ver com o palpar da temperatura através dos lábios que tocam a testa de uma criança. Mas há também elementos “reflexivos” de apuramento do estado clínico em que de cada vez cada um de nós se encontra. Temos uma apercepção contínua do estado em que nos encontramos, depois de comer uma refeição pesado ou se não comermos nada, se bebemos água a mais ou de menos, se estamos “a chocar” uma gripe ou se apanhamos “uma carraspana”. A “autopsia” é um olhar-se a si a partir do interior mas que não requer uma abertura reflexiva. Acontece sempre de cada vez. O perigo existe sem dúvida quando não temos percepção de fenómenos que são subliminares aparentemente. Podemos estar a desenvolver doenças que nos passam despercebidas e é por isso que o diagnóstico deve ser feito através de exames regulares, porque há doenças assintomáticas.

 

Um dos outros pontos fundamentais da medicina antiga e que faz luz sobre o projecto de constituição de uma filosofia é que não é meramente teórica, o que quer que isso queira dizer, mas eminentemente prática. Fazer é saber. Quem não faz não sabe.

 

[Continua].

2 Mar 2018

Poesia de Georg Trakl

Ao anoitecer meu coração

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o anoitecer ouvem-se os morcegos trissar.

Dois cavalos pretos saltam sobre o prado

O ácer vermelho rumoreja.

Ao viandante aparece a pequena taberna à beira da estrada.

Delícia saborear vinho novo e nozes.

Delícia vacilar bêbedo na floresta ao crepúsculo.

Através da ramagem negra tinem aflitos os sinos.

Sobre o rosto goteja o orvalho.

 

Zu Abend mein Herz[1]

 

Am Abend hört man den Schrei der Fledermäuse.

Zwei Rappen springen auf der Wiese.

Der rote Ahorn rauscht.

Dem Wanderer erscheint die kleine Schenke am Weg.

Herrlich schmecken junger Wein und Nüsse.

Herrlich: betrunken zu taumeln in dämmernden Wald.

Durch schwarzes Geäst tönen schmerzliche Glocken.

Auf das Gesicht tropft Tau.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 20.

 

Dia de Todos os Santos
a Karl Hauer

Triste aliança, homenzinhos, mulherinhas,

Espalham hoje flores azuis e encarnadas

Sobre as suas sepulturas, que timidamente se aclararam.

Agem como pobres marionetas perante a morte.

 

Oh! Como parecem existir aqui cheios de angústia e humildade,

Como sombras de pé atrás de negros arbustos.

No vento de outono, lamenta-se o choro das crianças não nascidas,

Também se vêem luzes perderem-se na loucura.

 

Os suspiros dos amantes sopram nos ramos

E lá apodrece a mãe com a sua criança.

Irreal parece a dança dos seres vivos

E admiravelmente espalha-se no vento nocturno.

 

Tão confusa a vida deles, tão cheia de lúgubres tormentos.

Tem piedade, Deus, do inferno e do martírio das mulheres,

E do seu lamento mortal, desesperançado.

Sozinhas, em silêncio, vagueiam na sala das estrelas.

 

Allerseelen[1]
An Karl Hauer

Die Männlein, Weiblein, traurige Gesellen,

Sie streuen heute Blumen blau und rot

Auf ihre Grüfte, die sich zag erhellen.

Sie tun wie arme Puppen vor dem Tod.

 

O! wie sie hier voll Angst und Demut scheinen,

Wie Schatten hinter schwarzen Büschen stehn.

Im Herbstwind klagt der Ungebornen Weinen,

Auch sieht man Lichter in der Irre gehn.

 

Das Seufzen Liebender haucht in Gezweigen

Und dort verwest die Mutter mit dem Kind.

Unwirklich scheinet der Lebendigen Reigen

Und wunderlich zerstreut im Abendwind.

 

Ihr Leben ist so wirr, voll trüber Plagen.

Erbarm’ dich Gott der Frauen Höll’ und Qual,

Und dieser hoffnungslosen Todesklagen.

Einsame wandeln still im Sternensaal.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 21.

 

Os camponeses

 

À frente da janela, ressoam o verde e vermelho.

E na sala baixa enegrecida pelo fumo,

Sentam-se os criados e as criadas à refeição;

Servem o vinho e partem o pão.

 

No silêncio profundo do meio-dia,

Uma escassa palavra, por vezes, cai.

Os campos, sem cessar, cintilam

E o céu é de chumbo e vasto.

 

Grotesca a brasa cintila no fogão,

E um enxame de moscas zumbe.

As criadas estão à escuta, tontas e caladas,

E o sangue martela as suas frontes.

 

E às vezes cruzam-se olhares cobiçosos,

Quando um odor animal enche todo o quarto.

Monocórdico um criado faz as suas orações,

E debaixo da porta, um galo canta.

 

E de novo no campo. Um horror frequente apodera-se

Deles no fragor das espigas frementes,

E, tinindo, baloiçam, indo e vindo,

Numa cadência fantasmagórica, as foices.

 

Die Bauern[1]

 

Vorm Fenster tönendes Grün und Rot.

Im schwarzverräucherten, niederen Saal

Sitzen die Knechte und Mägde beim Mahl;

Und sie schenken den Wein und sie brechen das Brot.

Im tiefen Schweigen der Mittagszeit

Fällt bisweilen ein karges Wort.

Die Äcker flimmern in einem fort

Und der Himmel bleiern und weit.

Fratzenhaft flackert im Herd die Glut

Und ein Schwarm von Fliegen summt.

Die Mägde lauschen blöd und verstummt

Und ihre Schläfen hämmert das Blut.

Und manchmal treffen sich Blicke voll Gier,

Wenn tierischer Dunst die Stube durchweht.

Eintönig spricht ein Knecht das Gebet

Und ein Hahn kräht unter der Tür.

Und wieder ins Feld. Ein Grauen packt

Sie oft im tosenden Ährengebraus

Und klirrend schwingen ein und aus

Die Sensen geisterhaft im Takt.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 20-21.

27 Fev 2018

Ao domingo, ao fim da manhã

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]iver com ruínas humanas afastam-nos de pessoas cheias de futuro, mesmo que saibamos o que a vida é. Mais tarde ou mais cedo, ninguém terá futuro. Os sítios que revisitamos tanto em recordação, imaginação ou na realidade são “vistos” através de um ecrã. Há camadas. A da realidade ou como julgamos sem suspeita foi a realidade do lugar e do nosso estar por lá. A do sentido que dá a compreender que foi e não é já. Mas a significação compara sempre, de forma imediata ainda que oculta, a realidade pura com a realidade simbólica.

O que chamamos realidade é um horizonte completamente esfolado de todos os sentidos subjectivos, privados, únicos, resultantes da vida que acontece a cada pessoa. Se habitássemos sem cessar no cosmos projectado pela inteligibilidade astronómica, não era por muito tempo. Ainda assim, também a realidade depurada de toda a subjectividade não é tão reduzida que não ache estranheza à entidade que é o mundo e a nossa vida metida dentro da ciência.

Acreditar que a ciência é última realidade é uma superstição. Não que se saiba qual é verdadeiramente “a” realidade, e por comparação se pudesse dizer que a realidade do mundo astrofísico não é a realidade. O que sucede é que se cada pessoa vivesse no mundo com entidades científicas, estranharia, depois de se ter espantado por ter acordado nele. Acabando por chegar à beira da loucura.

Agora, pode pensar-se, então, que a realidade, contrariamente à tese objectiva, materialista, reducionista, descascada de toda a subjectividade, resulta de uma projecção subjectiva, privada, idiossincrática. Que há tantas realidades quantas as pessoas, que há tantos mundos quantas as pessoas que neles vivem, do mesmo modo que há tantas vidas para além da vida conforme as pessoas que as delimitam pelas suas próprias configurações.
Vivemos com a crença de que estamos metidos no meio da mesma realidade e que todos vemos exactamente o que os outros vêm.

Sem dúvida, há pessoas que vêm o que outros não vêm, mas, no fundo e na essência de cada percepção, todos temos um mundo em nosso redor que é o mesmo. E, contudo, o mundo em nosso redor é sempre parte tanto do mundo em si, vasto, extenso, infinito, quanto faz parte do “nosso pequeno mundo”, no limite do meu mundo interior. Um local onde estejamos, sei cá, numa esplanada a tomar o que for, a ver pessoas estarem ou passarem, a ler um livro, a ouvir música, a ver o Tejo confundir-se com o Atlântico,— pensamos que cada pessoa tem o seu conteúdo específico que a ocupa, mas, no fundo, todas estão grosso modo naquele sítio, aí. Ora o que distingue os diferentes aspectos de uma esplanada para as pessoas que lá se encontram a dada altura ou para cada uma delas de cada vez que lá vai não é apenas o sítio em que estão sentadas, nem a hora do dia, nem o tempo que lá estão. Todos os outros que lá se encontram são conteúdos objectivos para mim e escapam mentalmente ao que sei deles. Também eu sou um conteúdo objectivo, mesmo até só como quem faz parte da lotação do local. Todos somos reduzidos a uma anatomia, ao sítio onde estamos sentados, pelo menos.

Mas aquele tempo específico das nossas vidas não é o domingo de manhã. Cada domingo é diferente, como sabemos. Mas o que constitui a sua diferença é o estádio da vida em que cada um se encontra. Os domingos que eu tenho para viver são muito menos dos que eu vivi. Mesmo que a “esperança de vida” seja apenas reguladora, os domingos dos últimos quatro anos da vida de alguém são diferentes dos domingos da infância e da juventude, até mesmo para criaturas com vidas ceifadas cedo de mais. E há o estado de espírito específico da pessoa nesse momento da sua vida, e o modo de saber estar numa esplanada, de se alhear de si ou de estar ensimesmada com os seus pensamentos mortais de tédio e angústia.

Não sabemos, contudo, nenhuma dessas determinações: quantos domingos temos, quantas vezes nos sentaremos num local, qual é o estado de espírito dos outros, definido pelas suas vidas pessoais naquele preciso instante, como fazem a experiência do fim da manhã de domingo num sítio.

As determinações subjectivas são mais objectivas do que o Tejo ir fundir-se com o Atlântico, como é bela a rapariga que está sentada lá ao fundo, com a cabeça mergulhada na sua leitura, como são irritantes as crianças que guincham, como a manhã vai chegar ao fim, como é hora e ir almoçar com a minha mãe.

23 Fev 2018

Barajas em modo de espera

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] espera é milimétrica. Crónica. Escadas volantes sem apoio. Tractores que puxam carris. Mercadoria e malas de viagem. Passageiros a partir sem malas. E chegam ainda sem elas.

Alguém varre o chão. Há décadas a ver gente partir e chegar sem poder adivinhar a não ser o serem gente.

As mesmas horas da madrugada podem ser o princípio ou o fim do dia. Ou a continuação.

Várias línguas imperceptíveis à distância.

Tanto barulho para tirar um café espresso. O empregado bate com o manípulo para sacudir as borras do café. A máquina do café é accionada de novo.

Passageiros puxam ou empurram malas.

Mini-saias com pernas e calções bem moldados. Há mini saias que ficam tão bem em quem as traz vestidas.

DEVANEIO E FUGA: “Tenho de pagar o telefone. Não tenho ligação à internet. O céu “é” azul. Ser céu não é ser azul (sintético a posteriori). Não ecoa nenhuma música.

A realidade não mexe uma palha.”

Não sei como hei-de estar sentado.

DEVANEIO E FUGA: “As hospedeiras levitam. Umas pernas com vergão, por terem estado sentadas em cadeiras de vime, erguem-se de trás triunfantes. Ah! a glória daquelas pernas!

As sanduíches entram pela boca de pessoas empenhadas em fazer desaparecer tudo para o lado de dentro delas!”

A fila inteira à espera e a empregada diz num Castelhano franquista: “tienen” não sei o quê “esperar”.

Há 20 minutos que esta mesa espera comigo. Estou de viagem. Mas estou e não estou a ir. Estou a viajar enquanto espero pela ligação aérea? Parado, vou no tempo até daqui às 15h45. É uma crença, uma fé ou uma superstição? Com o tempo vem o avião e o momento para entrar para dentro do avião. Mas eu não estou a andar.

Deveria fazer-me ao caminho? Sentado, estou de viagem entre destinos. Não me entra dentro da cabeça, mas sei que é o tempo para chegar do destino de origem ao destino final.

DEVANEIO: “Nove minutos.”

Onde estive? Caio outra vez na realidade e ouço alguém perguntar a outrem: “O que bebes?” – “Uma coca cola zero.” Uma francesa diz ao namorado atrás de mim: “Je suis choisie?” – “qu’ est-ce que ça veut dire?”.

Faltam 4 horas e 15 minutos para o embarque. Estou em viagem?

Agora, 4 horas e 12 minutos.

Vou ser deslocado. De resto, vou a pé daqui até ao “Gate”, palavra internacional. Depois sento-me dentro do avião. Deslocam-me.

Agora, faltam 4 horas e 10 minutos. 250 minutos. Mas falta mais para chegar.

INTERPRETAÇÃO: “Este tem mesmo cara de português.”

Japoneses com máscaras na boca. SINISTROS.

Vou estar assim nos próximos 248 minutos. Não dormi nada.

DEVANEIO E FUGA: “a miniatura do carro dos bombeiros é aqui real e está lá fora.”

DEVANEIO E FUGA: “Família simpática troca de lugar com uma anciã. A velha não fica e vocifera não sei o quê. É contra o marido que não está nada bem. Péssimo aspecto. As muletas apoiam-se nele e a mesa dá-lhe com a aresta na barriga.”

Falho um letra no teclado.

 

Adormeci por um lapso de tempo.

São 10h41m no AIR.

Estou a ir para Lisboa e ainda não saí daqui.

DEVANEIRO E FUGA: “Percorro o teclado com os dedos e bato nas mesmas letras em tempos sempre diferentes. Palavras diferentes integram as mesmas letras. A mesma letra tem posições diferentes para poder intervir elementarmente em palavras diferentes.

Nunca se bate uma letra da mesma maneira, nem no mesmo tempo. Por exemplo, a letra “o” em “P-o-r” e em “exempl-o” e em “o”. 1, 2, 3, 4, 5, 6. Seis vezes bati na palavra “o” e, agora, mais duas.”

Afinal…

Enganei-me. Falta mais tempo do que eu pensava. “Que contas faço?”. Acho que vou adormecendo e acordando. Só não adormeço por completo, para estar alerta. Está aqui muita gente. Não gosto de dormir ao pé de gente. É íntimo.

Faltam afinal 5 horas. São 300 minutos.

Recontagem. Começa do princípio e com mais tempo por decorrer.

Faltam 4 horas e 35 minutos. 25 minutos desde que não olho para as horas.

As casas de banho estão todas em serviço ao mesmo tempo. Nunca percebi por quê. Ou então estão ocupadas. Andei de um lado para o outro. O aeroporto nunca mais acaba. Andei muito. 25 minutos, mas não foi para ir para casa. Vou de avião. Por isso andar por andar e andar para ir têm sentidos diferentes. Só um me leva. O outro fixa-me.

Qual o sentido desta circunstância? Eu sabia que isto ia ser assim. Não pude evitar.

Faltam 4 horas e meia para as 15h45m. Agora, agora, agora, agora, agora, agora, agora, agora. Tantos “o’s” em h-o-ras e em ag-o-ra. A: [A superfície das coisas é insuportável]. Nem um pensamento ocorre. Pessoas, empregada de mesa, a miúda ali à frente.

Um tipo deixa cair o casaco e segue em frente. “Perdoname”, grita um tipo atrás de mim. O estrangeiro não o ouve. Tenho de gritar: “HEY!”. -“Thank you”, responde. – “You’re welcome.” Este foi o momento alto da manhã. Fez afluir sangue ao cérebro.

Ia dizer que B: [A: [a superfície das coisas é insuportável]]. Só quando estão estagnadas. O casaco que caiu desequilibrou o universo. Foi “interessante”. O enfoque estava na película entre mim e a totalidade da apresentação, do lado de dentro de cá, silencioso, não interventivo. O casaco que cai mudou o enfoque. Anulou-se a minha absorção ainda do lado de cá do ecrã: “HEY!” (Gritei mesmo!). Mas o tipo olhou. Seria uma maçada ter de me levantar para o fazer ir buscar o casaco.

Bons cinco minutos os que entretanto passaram.

Qualidade de tempo???????????????????

Parou.

Altifalantes. Castelhano. Copos de plástico.

Há quanto tempo estou nisto?

São 11h27. Assinalei 10h41m.

O que sucedeu das 10h41m e às 11h28, agora?

Nada de interessante.

11:30

Please pay attention…diz o speaker.

Que mulher tão disformemente GRANDE.

11:32.

11:33.

11:34.

Vou para outro sítio.

11:56

Minutos divertidos. Fui buscar um carro para a mala. Depois, fui andar nos tapetes rolantes. Espectáculo! Só um grupo de três criaturas me iam estragando a brincadeira. Mas assinalei pesado a minha presença. Um desviou-se e os outros queriam brincadeira. Começaram a andar depressa também. Nada como acelerar. Deram passagem. Chato são os que se deixam ultrapassar e depois ultrapassam. Mas pronto também se divertem.

Vi duas louras espampanantes.

O melhor de tudo foi ver o voo anunciado no ecrã. 3 horas e 45 minutos para a partida. Mas 3 horas e 15 minutos para o embarque. A contar com o facto de que a expectativa de primeira ordem altera a percepção. Estimula-a intrinsecamente.

12:03

Sono. Muito sono. Não dormi nada esta noite.

12:52

Passou-me pela cabeça andar nos tapetes rolantes ao contrário. Mas não tive coragem. Houve muitos mais “cortados”.

Reparei que as pessoas ao fundo do corredor parecem ser mínimas. À medida que se aproximam parecem aumentar de tamanho. Será que quando passam por mim e ficam atrás das minhas costas continuam a aumentar de tamanho? Olho para trás. Não. Diminuem de tamanho. As coisas só têm o mesmo tamanho se não se mexerem.

1:04 pm

Dói-me tudo.

Nada de glorioso nem nobre, nem estético. Nada.

A seca. A seca de uma outra forma de vazio que não a que provoca a sede. A seca total.

2:20 pm

It moved.

2:21 pm

A expectativa altera a apresentação intransitiva do mesmo.

O tédio frita todo o desespero, toda a melancolia. A não ser que seja o tédio a melancolia sem apelo nem agravo.

6:29 hora local. Passaram mais de cinco horas.

21 Fev 2018

Poesia de Georg Trakl

A musa da noite

 

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] janela, em flores, regressam as sombras do campanário

E do ouro. A testa quente abrasa em repouso e silêncio.

Do ramo do castanheiro, uma fonte cai na escuridão-

E então tu sentes: É bom!, no esgotamento doloroso.

 

O mercado está vazio de fruta de verão e de grinaldas.

Em uníssono concorda a pompa negra dos portões.

Num jardim, ecoam os sons de um suave jogo,

onde amigos se encontram depois de uma refeição.

 

Os contos do mágico branco escuta com enlevo a alma.

Em redor, escuta-se o barulho do vento no trigo que o ceifeiro colheu à tarde.

Paciente calam-se duras as vidas em cabanas;

ilumina o suave sono das vacas a lanterna do estábulo.

 

Inebriadas pelos ares logo cerram as pálpebras

E abrem-se, sem barulho, para os sinais estranhos das estrelas.

Endimião emerge da escuridão entre carvalhos velhos

E curva-se sobre a tristeza profunda da águas.

 

Abendmuse[1]

 

Ans Blumenfenster wieder kehrt des Kirchturms Schatten

Und Goldnes. Die heiße Stirn verglüht in Ruh und Schweigen.

Ein Brunnen fällt im Dunkel von Kastanienzweigen –

Da fühlst du: es ist gut! in schmerzlichem Ermatten.

 

Der Markt ist leer von Sommerfrüchten und Gewinden.

Einträchtig stimmt der Tore schwärzliches Gepränge.

In einem Garten tönen sanften Spieles Klänge,

Wo Freunde nach dem Mahle sich zusammenfinden.

 

Des weißen Magiers Märchen lauscht die Seele gerne.

Rund saust das Korn, das Mäher nachmittags geschnitten.

Geduldig schweigt das harte Leben in den Hütten;

Der Kühe linden Schlaf bescheint die Stallaterne.

 

Von Lüften trunken sinken balde ein die Lider

Und öffnen leise sich zu fremden Sternenzeichen.

Endymion taucht aus dem Dunkel alter Eichen

Und beugt sich über trauervolle Wasser nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 18.

 

Gospel

 

Sinais, um raro bordado,

Pinta um ondulante canteiro de flores.

Sopra a brisa dourada de Deus

Para dentro da sala no jardim

Serena.

Ergue-se uma cruz na vinha selvagem.

 

Escuta na aldeia como tantos se alegram,

O jardineiro apara a relva junto ao muro.

Suave o órgão soa.

Mistura som e aparição dourada,

Som e aparição.

O amor abençoa o pão e o vinho.

 

Meninas pequeninas entram também,

E, por fim, o galo canta.

Devagar abre-se uma cerca podre.

E nas coroas de rosas e fileiras,

Nas fileiras de rosas,

Descansa Maria, branca e fina.

 

O mendigo, ali na pedra antiga,

Parece ter morrido em oração.

Suave desce a colina o pastor,

E um anjo canta no bosque,

Próximo do bosque,

Onde crianças adormecem.

 

Geistliches Lied[1]

 

Zeichen, seltne Stickerein

Malt ein flatternd Blumenbeet.

Gottes blauer Odem weht

In den Gartensaal herein,

Heiter ein.

Ragt ein Kreuz im wilden Wein.

Hör’ im Dorf sich viele freun,

Gärtner an der Mauer mäht,

Leise eine Orgel geht,

Mischet Klang und goldenen Schein,

Klang und Schein.

Liebe segnet Brot und Wein.

Mädchen kommen auch herein

Und der Hahn zum letzten kräht.

Sacht ein morsches Gitter geht

Und in Rosen Kranz und Reihn,

Rosenreihn

Ruht Maria weiß und fein.

Bettler dort am alten Stein

Scheint verstorben im Gebet,

Sanft ein Hirt vom Hügel geht

Und ein Engel singt im Hain,

Nah im Hain

Kinder in den Schlaf hinein.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 19.

No outono
Im Herbst

Os girassóis luzem junto à cerca,

Em silêncio, doentes sentam-se ao sol.

No campo, afadigam-se mulheres cantando.

Os sinos dobram no mosteiro.

 

As aves contam-te lendas distantes.

Os sinos dobram no mosteiro.

Do pátio, ouvem-se suaves os violinos.

Hoje, pisam o vinho castanho.

 

O homem mostra-se contente e terno.

Hoje, pisam o vinho castanho.

De par em par, abertos estão os jazigos

E bem pintados a raios de sol.

 

IM HERBST[1]

 

Die Sonnenblumen leuchten am Zaun,

Still sitzen Kranke im Sonnenschein.

Im Acker mühn sich singend die Frau’n,

Die Klosterglocken läuten darein.

 

Die Vögel sagen dir ferne Mär’,

Die Klosterglocken läuten darein.

Vom Hof tönt sanft die Geige her.

Heut keltern sie den braunen Wein.

 

Da zeigt der Mensch sich froh und lind.

Heut keltern sie den braunen Wein.

Weit offen die Totenkammern sind

Und schön bemalt vom Sonnenschein.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 20.

 

Sonho do mau
1ª versão

 

Desvanecendo os sons castanho dourados de um gongo –

Um amante acorda em quartos negros,

A cara junto às chamas que cintilam na janela

Na tempestade reluzem velas, mastros, cordas.

 

Um monge, uma mulher grávida ali na multidão.

Tinem guitarras, batas vermelhas cintilam.

Castanheiros sufocados no esplendor dourado definham;

Negra sobressai a pompa triste das igrejas.

 

Através de máscaras brancas olha o espírito do mal.

Uma praça, ao crepúsculo, horrível e lúgubre;

Ao anoitecer, agitam-se, nas ilhas, sussurros.

 

Do voo das aves os sinais confusos lêm

Leprosos, que, de noite, talvez, apodreçam.

No parque, os irmãos, tremendo, olham um para o outro.

 

Traum des Bösen

  1. Fassung[1]

 

Verhallend eines Gongs braungoldne Klänge –

Ein Liebender erwacht in schwarzen Zimmern

Die Wang’ an Flammen, die im Fenster flimmern.

Am Strome blitzen Segel, Masten, Stränge.

Ein Mönch, ein schwangres Weib dort im Gedränge.

Guitarren klimpern, rote Kittel schimmern.

Kastanien schwül in goldnem Glanz verkümmern;

Schwarz ragt der Kirchen trauriges Gepränge.

Aus bleichen Masken schaut der Geist des Bösen.

Ein Platz verdämmert grauenvoll und düster;

Am Abend regt auf Inseln sich Geflüster.

Des Vogelfluges wirre Zeichen lesen

Aussätzige, die zur Nacht vielleicht verwesen.

Im Park erblicken zitternd sich Geschwister.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 18-19.

 

14 Fev 2018

Colagens

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m texto sobre partes da carne e fragmentos. É do “corpo-aos-pedaços” de que se trata. “Este texto é feito de impressões, sobretudo visuais, que resultaram [da] infância”.

[…] “O texto tenta fixar algumas interrogações para tratar um assunto concreto: a representação dos fragmentos.” […] [É] tentar pensar essas imagens ‘aos bocados’. O fragmento, […] miniatura, isolado … e …inteiro em si mesmo (Schlegel). “São Vicente é o paradigma do corpo fragmentado, a sua expressão extrema”. [N]ão era senão aos pedaços”. […] “queimado, rasgado e despedaçado. […] [L]ançado às feras para estas o devorarem. [M]as são impedidas de o fazer. [I]ntervenção de um corvo. […] “[S]éculos mais tarde, [dá]-se um naufrágio e toda a tripulação soçobra.”[…] “[E]stratégias de recuperação das relíquias de um mesmo santo espalhadas pelo mundo. Com vista [à] reconstituição coesa.” “Mas [a]s nossas experiências da dor e, consequentemente, as representações do corpo a ela associadas, alteraram-se radicalmente.” […] “Hoje, [há] químicos.” […] “O contrário de uma imagem fragmentada do corpo [pode] ser simplesmente a parte da representação (da parte) do corpo que falta para investir de significado, […] complemento simétrico dessa parte no contexto do corpo, geralmente estruturado por dualidades simples (diretas: mão esquerda/mão direita, ou indiretas: peito/costas; ou , ao nível da linguagem, uma parte que se lhe oponha (cabeça/pés); ou sujeito a uma dimensão performativa do corpo (boca/ ânus ou boca/orelha); ou social, ou moral). Ou, ainda, em última instância, o salto que vai do fragmento do corpo biológico ao corpo cósmico ou divino.” (PHILIP CABAU)

“A paisagem é a natureza? Se a paisagem for o que o meu olhar abarca, que papel desempenha o meu corpo na apreciação de uma paisagem? São Vicente a caminho de Lisboa teria tido uma experiência da paisagem?” […] “A visão terá porventura primazia, mas a paisagem não é apenas o visível, ela reclama […] cheiros, sabores, sons, a sensação de frio, calor, humidade ou secura do ar, ao vento ou sua ausência, a percepção táctil da suavidade ou firmeza do solo e dos elementos que a compõem.” A experiência é “a reunião de todos os elementos percepcionados “existencial[mente]”: “[o] ciclo das estações do ano […] vegetal, mineral, animal, vital” (MOIRIKA REKER).

“A nau é um símbolo da segurança possível na travessia perigosa que é tanto a vida quanto a morte, remetendo no Antigo Testamento para a Arca da Aliança e no Novo Testamento para a Igreja. Muito profunda é a observação de Bachelard de que a barca simboliza simultaneamente um berço redescoberto, o seio ou a matriz e o caixão, que considera ter sido porventura a primeira barca (além de ser a última). Seja como for, quem embarca não desembarca igual. A barca é símbolo da mais profunda e constante viagem, a do espírito ou da consciência, aquela “na qual nasce o próprio viajante”, como escreveu José Marinho. A barca é símbolo de transição e passagem, de metamorfose, de conversão de um limite em limiar.” (PAULO BORGES)

“À flor da pele, bem te quero” (NELSON GUERREIRO)

“[N]os alvores do cristianismo, as relíquias de partes dos corpos de mártires eram importantes, pois considerava-se que seriam estes os primeiros a levantar-se no momento da ressurreição, liderando os fiéis a caminho da vida eterna.” É, pois, por isso, que “[n]a génese da visão de todo este Projecto está o cartografar dos farrapos de um mito que sobrevivem na memória colectiva (pavimentos em calçada portuguesa, candeeiros urbanos), mas igualmente a promoção de uma sensibilidade sempre emergente.” (MÁRIO CAEIRO)

“A referida proliferação de escritos íntimos e memórias, e não questionação do significado disso, vão contribuindo para reduzir a realidade a um conjunto de aparências nas quais nenhum objeto se inscreve, na medida em que o objeto é justamente o-de-fora-de-aparência, o seu vazio, aquilo que se inscreve nela como a sua eternidade, ou a sua desaparição.” […]“É na desaparição — dos objetos, que estão aí diante de nós carregados da morte com que os fixamos — que se guardam os vestígios da aparição do Outro, daquilo que no objecto é sem medida comum” (Mallarmé).” (NELSON GUERREIRO)

9 Fev 2018

Poemas de Georg Trakl

A musa da noite

 

À janela, em flores, regressam as sombras do campanário

E do ouro. A testa quente abrasa em repouso e silêncio.

Do ramo do castanheiro, uma fonte cai na escuridão-

E então tu sentes: É bom!, no esgotamento doloroso.

 

O mercado está vazio de fruta de verão e de grinaldas.

Em uníssono concorda a pompa negra dos portões.

Num jardim, ecoam os sons de um suave jogo,

onde amigos se encontram depois de uma refeição.

 

Os contos do mágico branco escuta com enlevo a alma.

Em redor, escuta-se o barulho do vento no trigo que o ceifeiro colheu à tarde.

Paciente calam-se duras as vidas em cabanas;

ilumina o suave sono das vacas a lanterna do estábulo.

 

Inebriadas pelos ares logo cerram as pálpebras

E abrem-se, sem barulho, para os sinais estranhos das estrelas.

Endimião emerge da escuridão entre carvalhos velhos

E curva-se sobre a tristeza profunda da águas.

 

Abendmuse [1]

 

Ans Blumenfenster wieder kehrt des Kirchturms Schatten

Und Goldnes. Die heiße Stirn verglüht in Ruh und Schweigen.

Ein Brunnen fällt im Dunkel von Kastanienzweigen –

Da fühlst du: es ist gut! in schmerzlichem Ermatten.

 

Der Markt ist leer von Sommerfrüchten und Gewinden.

Einträchtig stimmt der Tore schwärzliches Gepränge.

In einem Garten tönen sanften Spieles Klänge,

Wo Freunde nach dem Mahle sich zusammenfinden.

 

Des weißen Magiers Märchen lauscht die Seele gerne.

Rund saust das Korn, das Mäher nachmittags geschnitten.

Geduldig schweigt das harte Leben in den Hütten;

Der Kühe linden Schlaf bescheint die Stallaterne.

 

Von Lüften trunken sinken balde ein die Lider

Und öffnen leise sich zu fremden Sternenzeichen.

Endymion taucht aus dem Dunkel alter Eichen

Und beugt sich über trauervolle Wasser nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 18.

 

Ao menino Elis

 

Elis, quando na negra floresta canta o melro,

Esta é a tua decadência.

Os teus lábios bebem a frescura da fonte azul na falésia.

 

Deixa que a tua fronte sangre levemente

Lendas muito antigas

E a interpretação obscura do voo das aves.

 

Mas tu caminhas com suaves passos em direcção à noite,

Que pende cheia de uvas cor de púrpura

E tu agitas de forma mais bela os braços no azul.

 

Ecoa um arbusto,

Onde se encontram os teus olhos lunares.

Oh!, há quanto tempo, Elis, morreste tu.

 

Teu corpo é um jacinto,

No qual um monge mergulha os seus dedos de cera.

O nosso silêncio é uma caverna negra,

 

De lá sai, às vezes, um animal meigo

E lentamente fecha pesadas as pálpebras.

Sobre as tuas têmporas goteja orvalho negro,

O último ouro das estrelas caídas.

 

An den Knaben Elis[1]

Elis, wenn die Amsel im schwarzen Wald ruft,

Dieses ist dein Untergang.

Deine Lippen trinken die Kühle des blauen Felsenquells.

Laß, wenn deine Stirne leise blutet

Uralte Legenden

Und dunkle Deutung des Vogelflugs.

Du aber gehst mit weichen Schritten in die Nacht,

Die voll purpurner Trauben hängt

Und du regst die Arme schöner im Blau.

Ein Dornenbusch tönt,

Wo deine mondenen Augen sind.

O, wie lange bist, Elis, du verstorben.

Dein Leib ist eine Hyazinthe,

In die ein Mönch die wächsernen Finger taucht.

Eine schwarze Höhle ist unser Schweigen,

Daraus bisweilen ein sanftes Tier tritt

Und langsam die schweren Lider senkt.

Auf deine Schläfen tropft schwarzer Tau,

Das letzte Gold verfallener Sterne.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 17.

 

Noite de trovoada

Oh!, as horas encarnadas da noite!

Cintilante vacila na janela aberta,

Confusa a folhagem para o azul

Lá dentro os fantasmas da Angústia fazem o seu ninho

 

O pó dança no fedor das sargetas

O vento crepitante bate nos vidros das janelas.

[como] Um esquadrão de cavalos selvagens,

nuvens deslumbrantes atiçam relâmpagos.

 

Com estrondo estilhaça o espelho de água.

Gaivotas gritam no encaixe das janelas.

Um cavaleiro de fogo salta da colina

E desfaz-se no abeto em chamas.

 

Gemem doentes no hospital.

Azuladamente freme a plumagem da noite.

Cintilante troveja a chuva,

de súbito, sobre os telhados.

 

Der Gewitterabend[1]

 

O die roten Abendstunden!

Flimmernd schwankt am offenen Fenster

Weinlaub wirr ins Blau gewunden,

Drinnen nisten Angstgespenster.

Staub tanzt im Gestank der Gossen.

Klirrend stößt der Wind in Scheiben.

Einen Zug von wilden Rossen

Blitze grelle Wolken treiben,

Laut zerspringt der Weiherspiegel.

Möven schrein am Fensterrahmen.

Feuerreiter sprengt vom Hügel

Und zerschellt im Tann zu Flammen.

Kranke kreischen im Spitale.

Bläulich schwirrt der Nacht Gefieder.

Glitzernd braust mit einem Male

Regen auf die Dächer nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, pp. 17-18.

 

Gospel

Sinais, um raro bordado,

Pinta um ondulante canteiro de flores.

Sopra a brisa dourada de Deus

Para dentro da sala no jardim

Serena.

Ergue-se uma cruz na vinha selvagem.

 

Escuta na aldeia como tantos se alegram,

O jardineiro apara a relva junto ao muro.

Suave o órgão soa.

Mistura som e aparição dourada,

Som e aparição.

O amor abençoa o pão e o vinho.

 

Meninas pequeninas entram também,

E, por fim, o galo canta.

Devagar abre-se uma cerca podre.

E nas coroas de rosas e fileiras,

Nas fileiras de rosas,

Descansa Maria, branca e fina.

 

O mendigo, ali na pedra antiga,

Parece ter morrido em oração.

Suave desce a colina o pastor,

E um anjo canta no bosque,

Próximo do bosque,

Onde crianças adormecem.

 

Geistliches Lied[1]

 

Zeichen, seltne Stickerein

Malt ein flatternd Blumenbeet.

Gottes blauer Odem weht

In den Gartensaal herein,

Heiter ein.

Ragt ein Kreuz im wilden Wein.

Hör’ im Dorf sich viele freun,

Gärtner an der Mauer mäht,

Leise eine Orgel geht,

Mischet Klang und goldenen Schein,

Klang und Schein.

Liebe segnet Brot und Wein.

Mädchen kommen auch herein

Und der Hahn zum letzten kräht.

Sacht ein morsches Gitter geht

Und in Rosen Kranz und Reihn,

Rosenreihn

Ruht Maria weiß und fein.

Bettler dort am alten Stein

Scheint verstorben im Gebet,

Sanft ein Hirt vom Hügel geht

Und ein Engel singt im Hain,

Nah im Hain

Kinder in den Schlaf hinein.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 19.

5 Fev 2018

O lugar das coisas

[dropcap]O[/dropcap]s sistemas de rotina nem sempre coincidem de pessoas para pessoas. Basta perceber que há pessoas arrumadas e pessoas desarrumadas. Há quem ache que um terceiro vive no caos, quando esse terceiro se dá perfeitamente com o ambiente que criou. O ponto fundamental parece ser este. Um objecto pode ser identificado num “topos” que não é a sua “chora”, o seu território, por assim dizer. Cada objecto tem o seu território e o território identifica também outros objectos com os quais está relacionado. Sem esses outros objectos, um objecto pode estar isolado. Há um sistema, uma rede de forças, que identifica logo uma coisa no seu sítio com uma relação intrínseca com outra coisa que pode não estar no seu sítio. Imaginemos as loiças da casa de banho e as da cozinha. Um bidé não fica na cozinha por razões óbvias e o lava-loiças não fica bem na casa de banho. Mas o lava-loiças implica uma zona para ter tachos, pratos e talheres sujos e uma outra zona onde eles são colocados para serem enxugados.

O armário onde serão arrumados está próximo, etc., etc.. A própria relação do território de cada objecto pode ser alargado. Pensemos na relação que há entre pôr a mesa ou equipar a mesa e levantar a mesa para lavar a loiça. Há uma relação entre os sítios próprios onde se arrumam copos e pratos, os armários da loiça, e os sítios próprios onde estão tachos, panelas e fervedores, por exemplo. Há um sítio onde está o pão e o seu cesto. Um sítio onde estão os talheres. As gavetas dos talheres têm divisórias para garfos, facas e colheres, e até para colheres de várias dimensões. Estes “artigos” viajam até à mesa. São colocados sobre a toalha posta. Têm um sítio apropriado, cada lugar está reservado para cada pessoa específica da família e sem grandes cerimónias. Podemos alargar a consideração. Olhemos para a nossa mesa de trabalho. Pode ser a secretária onde uma miúda ou um miúdo estão a fazer os seus trabalhos de casa. Pode ser a secretária de um arquitecto, engenheiro, médico, filólogo. A secretária é estruturalmente diferente para cada profissão e cada profissional tem a sua maneira de arrumar as coisas. Por exemplo, a sua posição relativamente à luz. Um dextro recebê-la-á pela esquerda. Será posta junto à janela ou afastada dela, para não haver distracções. Há livros que eu tenho à esquerda e outros à direita. A posição do computador tem de ser confortável para escrever, para prevenir até a fadiga física. Se pensarmos nos sítios das nossas vidas, percebemos que ginásios, hospitais, cafés, sítios públicos e privados têm os seus sítios estruturalmente determinados para as suas coisas. A nossa vida lida com sítios inteiros, espaços públicos, locais e localidades precisamente como lida com o açucareiro, leite e café. Organizamos a nossa vida de acordo com os sítios pelos quais a nossa vida está distribuída. Essa organização é temporal.

2 Fev 2018

A Bela Cidade

A bela cidade

 

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]elhas praças solarengas calam-se.

No azul profundo e ouro imersas,

Precipitam-se sonhadoras freiras doces,

Para baixo das faias abafadas e sufocantes.

 

Das claridades castanhas das igrejas,

Contemplam da morte imagens puras,

belos escudos de grandes príncipes.

Coroas cintilam nas igrejas.

 

Cavalos emergem da fonte.

Ameaçam das árvores garras de flores.

Meninos brincam confusos pelos sonhos,

À tarde, em sossego, ao pé da fonte.

 

Meninas de pé estão junto às portas,

Olham tímidas para a vida colorida.

Estremecem os lábios húmidos

E aguardam junto à porta.

 

Trepidantes vibram os sons das campânulas,

Ecoa o tempo de marcha e a chamada dos guardas.

Estrangeiros escutam sobre os degraus.

Alto no azul há sons de órgão.

 

Claros instrumentos cantam.

Através da folhagem dos jardins,

ecoa o riso de mulheres belas.

Baixinho cantam jovens mães.

Furtivo sopra em janelas floridas

As fragrâncias de incenso, alcatrão e lilases.

Prateadas cintilam cansadas as pálpebras

Através de flores à janela.

 

 

Die schöne Stadt

 

Alte Plätze sonnig schweigen.

Tief in Blau und Gold versponnen

traumhaft hasten sanfte Nonnen

unter schwüler Buchen Schweigen.

 

Aus den braun erhellten Kirchen

schaun des Todes reine Bilder,

großer Fürsten schöne Schilder.

Kronen schimmern in den Kirchen.

 

Rösser tauchen aus dem Brunnen.

Blütenkrallen drohn aus Bäumen.

Knaben spielen wirr von Träumen

abends leise dort am Brunnen

 

Mädchen stehen an den Toren,

schauen scheu ins farbige Leben.

Ihre feuchten Lippen beben

und sie warten an den Toren.

 

Zitternd flattern Glockenklänge,

Marschtakt hallt und Wacherufen.

Fremde lauschen auf den Stufen.

Hoch im Blau sind Orgelklänge.

 

Helle Instrumente singen.

Durch der Gärten Blätterrahmen

schwirrt das Lachen schöner Damen.

Leise junge Mütter singen.

 

Heimlich haucht an blumigen Fenstern

Duft von Weihrauch, Teer und Flieder.

Silbern flimmern müde Lider

durch die Blumen an den Fenstern.

 

TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, pp. 15-16

31 Jan 2018

A clepsidra existencial não é vista de fora nem de dentro

[dropcap style≠’circle’]”T[/dropcap]odo o meu ser suspenso, Não sinto já, não penso, Pairo na luz, suspenso… Que delícia sem fim!” … Ó Morte, vem depressa, Acorda, vem depressa, Acode-me depressa, Vem-me enxugar o suor, Que o estertor começa.”

Camilo Pessanha

Um relógio de água ou clepsidra (grego κλεψύδρα de κλέπτειν kleptein, ‘to steal’; ὕδωρ hydor, ‘water’) é qualquer relógio em que o tempo é medido pelo fluxo regulado de líquido que entra para (tipo de entrada) ou de líquido que sai de (tipo de saída) um recipiente em que a quantidade é medida.

Este relógio é diferente dos modernos analógicos ou dos contemporâneos digitais. Estes objectos cronométricos são orientados pela abstracção do tempo apontado no momento agora que é indicado pelo ponteiro. Do ponto de vista da percepção humana podemos ir aos décimos de segundo, eventualmente aos centésimos de segundo, mas tempos mais rápidos e curtos a passar não são tidos pela percepção humana. De qualquer forma o ponteiro aponta para um momento no tempo agora mesmo, ensanduichado entre o momento há pouco que já passou e o momento daqui a nada que ainda não chegou. Isto é, o momento agora apontado é um istmo entre dois tempos que não são na realidade. Não são ainda e não são já, porque há pouco já passou e não existe em lado nenhum no mundo e daqui a nada não existe ainda.

A clepsidra é uma metáfora viva do tempo que é vivido do futuro para o presente e do presente para o passado, sob base interpretativa do tempo que escoa. Ou seja, o momento agora da clepsidra é um momento no esvaziamento no escoamento do fluxo da água no recipiente que é substituída gota a gota, até esgotar completamente, por água. Se o relógio diz que horas são agora, mesmo para avaliar o tempo que falta para A, B ou C, se há ou não há tempo, quanto tempo temos, a clepsidra vê cada agora numa qualidade de duração que tem os olhos postos na sequência da passagem irreversível da água que é a passagem irreversível do tempo, sem repetição, nem ultrapassagem. Quer dizer, o que está a ser medido é uma duração qualitativa da vigia de noite do quartel, da sessão no tribunal, do tempo que é em função do tempo que há e que inexoravelmente há-de deixar de ser. Ou seja, o tempo clepsídrico é o tempo que há partida é vista em antecipação projectada e previsivelmente como tempo que há de ter acabado. O momento agora é o integrado no derradeiro momento quando tiver acabado toda a unidade temporal de duração bem como no primeiro momento, que é primeiro relativamente a um segundo, terceiro, quarto e último momentos pensados todos eles em contagem decrescente.

Nós todos desde sempre, em todas as gerações de gerações de humanos, passadas, presentes, futuras estamos no recipiente complexo com a água fluída a afluir continuamente para continuamente escoar até esgotar-se completamente o tempo dado para a vida total de que todos os humanos são portadores e para a vida individual de cada um. A proto estrutura do tempo mergulha-nos na água que continuamente está a ser roubada, a esgotar-se, de uma forma maciça, sem percepção desse facto irreversível, o mais das vezes.

A clepsidra é um nomen agentis, isto é, só quem tem uma compreensão intrínseca do tempo, tempo que não é nenhum objecto, nem exterior nem interior, nem dentro nem fora, mas a própria forma da vida pode tornar a clepsidra analógica da vida na sua totalidade como tempo cronologicamente finito, desde sempre a acabar, desde o primeiro de todos os instantes. A medição do tempo e não as horas é o que é tido em vista pela clepsidra com conteúdo real e físico, a água que se escoa, o ar que entra, em função de unidades de sentido temporais: a madrugada que irrompe, a manhã que passa, a tarde que vem, o crepúsculo que cai, agora no Verão e depois no inverno, no princípio da vida, na infância, juventude, quando era tempo, no ocaso da vida, tudo numa universal e cósmica clepsidra que também ela própria está no interior de outras clepsidras que contem as de menor capacidade e são contidas nas que têm maior capacidade e todas elas dentro da mega clepsidra do tempo que passa e não regressa nunca mais.

A clepsidra existencial não é vista de fora nem de dentro.

26 Jan 2018

Autópsia de Tucídides

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo se podem compreender palavras como prova indirecta (tekmêrion), prova directa ou sintoma (sêmeion), e testemunho directo (autós parên). Como constituir rigor (akribeia) no apuramento da verdade (alêtheia) em Tucídides? Tucídides opera com palavras que diagnosticam a irrupção de um conflito civil do mesmo modo que descreve a febre tifoide. É assim também que se debruça sobre o modo como enfoca a realidade a partir do ponto de vista de escritor: historiógrafo: o da autopsia.

Assim, as considerações metódicas, o diagnóstico da guerra civil em Corcireia e a descrição da Peste, poderão dar-nos pistas da lógica da descoberta da verdade, do carácter exaustivo da análise de Tucídides. A autopsia leva a um redução à causa ou às causas que principalmente podem explicar o horizonte de sentido em que ocorrem. As três frentes de análise exploram o horizonte do humano (a anthrôpeia physis). Elas partem do meio em que nos encontramos inseridos. Põem-no a claro nos seus contornos. É no campo da essência humana que os sintomas se manifestam. A sua análise é uma etologia que visa a remoção dos obstáculos da doença e procuram obviar a potência destruidora da guerra.

É no horizonte de sentido do humano que o próprio quadro de sentido se perde, se esvazia, se deturpa, mas assim também procura recuperar o sentido de palavras como a honra e a glória e destruir os efeitos nocivos do que nos constitui a nós como humanos: a luxúria do poder (archê), a ganância (pleonexia) e a ambição (philotimia).

A vida é susceptível de uma epidemia pandémica. Mas é no interior dessa pandemia que procuramos viver. A identificação da causa das coisas é uma peculiar forma de projectar em antecipação essa possibilidade.

O acesso ao passado tem uma difícil base de credibilidade. Não há um tekmêrion, uma marca distintiva, que permita saber o que efectivamente se passou em cada episódio. O tekmêrion é uma prova argumentativa. O substantivo é o complemento directo do verbo τεκμαίρομαι. Numa primeira acepção significa “atribuição”, “investimento de sentido”, mas também intenção. Depois de Homero quer dizer ajuizar a partir de sinais ou pistas. Fazer estimativas. Conjecturar. Formular hipóteses. Um tekmêrion enquanto o complemento de um tekmairesthai, permite uma interpretação de cada dado avulso, pondo-o em conexão, num contexto com uma sequência. A interpretação da sequência ou série é mais do que a soma de cada episódio avulso. A evidência não resulta, contudo, de um contacto directo, ao vivo, com os acontecimentos que estão em causa.

A investigação da verdade é difícil para a maior parte das pessoas. É por isso que tendem a voltar-se para o que está pronto, disponível e à mão.

A passagem do tempo cria um distanciamento inultrapassável. Dilui-os no reino da pura mitologia. Como é possível desconstruir toda a camada lírica e mítica da narrativa? Como podemos reconstruir a situação para vermos olhos nos olhos a realidade? Será o processo de trazer o passado ao presente? Ou viajar no tempo e ficar deposto no passado? Percebemos que muitos dos que estiveram presentes contam de modo diverso o que aconteceu com uma identidade de sentido. De resto, estar no presente em que uma situação se dá pode não querer dizer senão criar um facto avulso.

O método alternativo é o de tentar descobrir a partir dos sinais (sêmeia) mais evidentes o que aconteceu no passado. Há uma enorme dificuldade em emitir um juízo sobre o que se passa num presente sobretudo quando esse alguém está completamente envolvido nesse presente. Depois, quando o tempo passa, o vigor eficaz do presente perde-se e é o passado que assume a importância.

Um dos problemas fundamentais que se põe resulta do relevo e acentuação que se dá ao que acontece. O nosso envolvimento directo com uma determinada situação presente cria uma posição. O passado pode, portanto, ofuscar o presente. As situações por que passamos quando o tempo era o tempo cria uma marca indelével. É relativamente a esse passado que podemos desvalorizar a importância do presente de agora. Mas decisivo é isolar e reconhecer os elementos que caracterizam o passado já a projectarem-se para o futuro, a constituírem futuro.

19 Jan 2018

Fonseca Santos. 2018. Inês. Suite sem Vista. Lisboa. Abysmo.

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a poesia da Inês, há uma situação paradoxal que é explorada no laboratório vital. De uma forma activa, a compreensão faz ver, dá a ver. Por um lado, a interpretação estrutural dos espaços privados, públicos, subjectivos e cósmicos, é feita toda ela a partir do interior íntimo da sua habitação.

Este interior é tudo menos geométrico. Não se opõe a nenhum exterior. É antes o ponto de irradiação da nossa vida. É heterogéneo. Permite uma geografia da instalação da existência e, por isso, faz vibrar também o desenraizamento. O existencial é constituído a partir da privacidade. Sente-se tensa a relação entre o limite extremo abobadado e o aquém, onde cada um tem, não o seu ponto de vista, mas o seu corpo próprio.

Opera-se a personificação dos objectos. Melhor, porque não há objectos, das coisas. Há peças. Peças de mobiliário. O mobiliário é a totalidade das coisas, cidades e campo, edifícios públicos e privados, casas, quartos, hotéis: o recheio do mundo, as peças de mobiliário da nossa existência.

Em ambos os casos, percebemos que é o quarto, recesso recôndito do amor e de tudo o que lá se faz sem amor, a partir de onde se expandem as vidas dos amantes num único mundo, numa única vida, numa eternidade à escala universal. E nem mesmo quando é uma suite de Hotel deixa de ser o sítio inóspito para onde somos atirados, despidos de nós. A morada provisória transforma-se numa morada permanente. Inverte-se o sentido habitual. Afinal a vida não é mudança mas a imobilização que nos pode prender a um sítio, num tempo que nunca mais se transformará. E, contudo, está em permanente mudança como Jonas na barriga da baleia no seu percurso interior e submarino. Ou, como nas antigas cosmogonias, a vida é a barca em que embarcamos e de onde desembarcamos.

A cidade inteira, a Terra, o céu é o interior. Embora a astronomia tivesse afastado irremediavelmente a subjectividade das estrelas, para as transformar em objectos regimentados por regras e leis, ainda subsiste a compreensão para a claustrofobia das vidas das pessoas no seu encaminhamento, as pessoas que encontramos e aquelas de quem nos desencontramos, os que ficaram para sempre e os que se foram não menos para sempre. Em XII, lê-se este lugar, “suite sem vista”, “passa a subúrbio”.

Mas é no próprio ponto de vista, na perspectiva, ou talvez melhor do acesso, que percebemos sempre de um modo negativo a presença dos objectos das nossas vidas, presentes, passados e a haver.

Em I., lemos a “cegueira voluntária”, o “encobrimento” como espaço estrutural criador de opacidade para o presente, mas também o “esquecimento”. O esquecimento não é um acto psicológico negativo que nos faz esquecer apenas, ou não nos deixa lembrar, do passado, mas é o que pode apagar um mundo e por sua ineficácia também o manter vivo. Por mais que se possa “tapar os olhos”, não é possível “esquecer o cheiro do outro”. O outro está presente, mas é apenas a sua impressão, deixada em nós do passado. Com ele somos o estado em que fomos deixados.

A vida é a lentidão do tempo reflectida na lentidão do movimento, da deslocação e na dificuldade ou aparente impossibilidade de acontecer qualquer transformação e mudança. “Os passos lentos/ devolvem o peso ao corredor”. O outro não é residual: “a sujidade das unhas como a humidade ou bolor interno”. A rapariga “cega atravessa paredes”, tem a densidade de um fantasma, porque como diz a filosofia existe em e por si, exclusivamente para si. Não é vista. É um fantasma a conviver com o fantasma daquele outro.

Só olha para “A cama: só cama, demasiada, insultuosa/ tudo a dobrar ou excessivo para quem fica numa casa sem outro que a houvera habitado”. O quarto todo, a casa toda, é como se fosse o hotel, mesmo que habitado na suite, no melhor quarto. Mesmo que o hotel não fosse de beira de estrada, porque tinha sido um sítio para dois. E tudo sobra: “dois lavatórios pelo preço de um, dezenas de miniaturas// para o asseio, cofre, minibar, canetas, um postal,// a garrafa de Evian por cortesia.”

Em II, descreve-se esta sobra. Há “metade da vida”, quando se “respirava a vida inteira cronométrica”. Desce-se ou sobe-se até “Ao lado, [até a]o casal demasiado brando,// roupões brancos, lençóis brancos, dedos brancos”. Qual o sentido da brandura? A da ternura ou a do tédio que permite ver o desfecho cruel mas inevitável de quem quer literatura e não a vida? A verdadeira solidão, porém, não é compreendida na sua dinâmica sem se perceber na ”desolação da abominação” como diz a teologia.

Em III., a geografia da solidão é a da desolação da abominação, é a do abandono. E o gato vadio que é levado para casa e “mija” em cada canto não reclama um espaço para si. O que faz é para se reconhecer ainda, a partir de um detrito de si próprio: A cartografia da vida é ““um mapa mental que jaz sepultado onde outra mulher exibe a cabeça dele, um troféu// terra devastada de ninguém.”

O outro é outro, é adulterado e alienado. E é afirmado na sua impermeabilidade a nós. Segue a sua vida, faz a sua vida, com outra pessoa. É esquizofrenia pensar numa criatura da nossa cabeça ser a criatura na cabeça de outrem, a fazer vida com outra pessoa.

Se os espaços amplos permitem espraiar-nos, lidamos com espaços estreitos, espeleologicamente: a “escavar” (IV). Por onde vamos é “túnel”, só há “dentro” e é “sem vista”. E na demanda minimal por um sítio onde se possa estar, havemos de topar com a “caixa do primeiro luto”, “minúsculo caixão do passarinho negro”, “esqueleto do pássaro e o que outrora terá sido a rapariga.” O “passarinho” (Catulo) símbolo zoológico das delícias do amor, da promessa, da esperança. E também da despedida, da morte, do desespero.

As formas de acesso identificáveis permitem-nos descer à altura do passado, ao subterrâneo, ao tesouro da vida (Santo Agostinho). Nenhuma memória sobrevive impune. É necessária a sua reconstituição afectiva. Todas as mortes, todas as nossas sobrevivências, estão arredadas do quotidiano. É necessário esconjurá-las, mesmo que depois nunca mais nos larguem. A vida é habitada por estes vários revestimentos. Somos variadíssimas pessoas que ainda temos contacto residual com vidas passadas, habitualmente em sossego.

As memórias afetivas permitem esta compreensão de diversas vidas que temos e a dificuldade em acedermos ao modo como éramos sós ou com alguém, antes ou depois, nas diversas idades das vidas. A solidão configura a existência, crucifica-a. O outro despega-nos e desprega-nos como “iunx”, a ave condenada a vaguear uma existência sem fim, pregada às rodas de um carro, a rodar por todo o terreno, a toda a velocidade. A roda não é a da fortuna mas a da prisão onde Afrodite e Ares foram presos com cavilhas por um Hefesto ciumento.

Outrora (V), era o tempo das cerejeiras. Era o tempo que marca o fim do inverno e o princípio da primavera. Era o tempo da contemplação da transitoriedade que é metáfora viva da vida na sua crónica curta duração, símbolo do Samurai no Japão não apenas da guerra mas também da sensualidade do fruto da cerejeira. Aqui há “cerejeiras a avançar agressivas pela rapariga dentro”.

A sujidade luto das unhas, vestígio residual do outro, requer (VI): “corta-unhas”, “lâminas”, “eixos metálicos”, “dedos”. Mas também sobraram “peles”, “pensamentos”, “spleen”. O baço está cheio de bílis negra. E a melancolia actua como todos os grandes impérios: “ferindo e alastrando, sangrando”. (XIII): “Espelho e parede dão o mesmo a ver”. “Bebe de novo o tédio do lado rachado do corpo. E da boca da rapariga sai a palavra sangue.”

É com o cerco feito à cidadela que pode nascer uma outra possibilidade (VII): viver e fazer literatura fazer amor e escrever sobre o amor escrever e ser inscrito. Mas a possibilidade de oferecer resistência ao vazio de sentido, à partida do outro, à abominação da recusa, à amargura da interdição pode não existir. Talvez o da nossa usura da vida por mor da arte e não por mor da vida.

Porque só há outros para poder não haver outros. Só há encontros para poder haver desencontros. Só há promessa para poder haver despedida. E demora muito tempo a perceber que foi sempre esta a chave para a nossa compreensão do mundo. E sim (VIII) haverá “Silêncio, nenhuma voz, descanso ruminante de electrodomésticos, limpeza de quartos, porta, paredes, suite sem vista”, porque “A rapariga é a própria suite dentro da qual ela se encontra” (IX). A rapariga vê-se no seu interior como dentro de uma suite sem vista para a rua. Mas a rapariga poderá nunca ter saído de si. Quem quer ter a sua vida configurada pelo sentido da arte já deu a sua alma ao diabo ou tê-la-á vendido. Terá de compreender, e o mesmo quer dizer aceitar, que não há volta a dar. Foi para além do ponto, a partir de onde não há regresso: “Não te será permitido amar”. “O artista é irmão do louco e do criminoso.” (Thomas Mann).

A presença invisível àquele outro único que poderia ter olhos para ela e de cuja presença depende a sua existência não é já actual. Ter pertencido a alguém é reflexo da memória no espelho. Um reflexo do reflexo, inconsistente outrora. Mas agora já não existente. Já só tínhamos o reflexo do próprio que era o outro. Agora, existindo só como fantasma, temos o reflexo do reflexo. O outro insinuou-se e ficou inoculado no próprio. O próprio é um reflexo que age ou reage ao outro na sua ausência. É residual em si de qualquer coisa que ainda tempera e dá um gosto, melhor, um travo do que foi. Mas, agora, é só “o amargo de boca”.

Como sobrevive a rapariga “amputada de si, do outro que lhe dá prazer naquele sítio que como na alma acolhe o geodésico instante da loucura” (XI)?: “o olho do medo brilha e amplia o espaço onde não se pode estar// dentro das palavras é dentro das paredes da suite sem vista// cheiro insuportável da rapariga era o de quem escreve.” (XIV).

16 Jan 2018

Tédio profundo (“acedia”)

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]oão Cassiano, João Damasceno, João Crisóstomo com São Tomás de Aquino consideram a “despreocupação” um pecado mortal. Não um pecado venal (“perdoável”). A tradução do substantivo feminino latino “acedia,-ae” é polissémica.

Ou “aborrecimento”, “tédio”. Ou “despreocupação”, “ausência de cuidado”. A etimologia da palavra na segunda acepção vem do grego “akedos”. “Kedos” quer dizer “cuidado”, preocupação. A grafia “A” em “A+kêdos” representa o alfa privativo. Assim, a palavra quer dizer “sem cuidados ou preocupações” “desprovido de cuidados ou preocupações”.

O interessante é que a primeira acepção da palavra é inteiramente latina. Tomás de Aquino na Questão 35 da Suma Teológica concebe-a como um processo, não apenas como um estado de espírito, mental ou corporal. “A-cedere” é a situação de estar a tentar fugir a Deus. Esta fuga não é passiva mas é um debate dramático para nos libertarmos de Deus e do seu sentido (Theunissen). Deste modo podemos ler o sentido etimológico da palavra grega: tédio, aborrecimento, exaustão, fadiga, neura, etc., como o resultado de um processo activo de fuga.

“Ab-horresco” é um verbo incoactivo de fuga em face do horror. Todo o aborrecimento é, de facto, o que provoca uma fuga em face do horror. Não é um horror que meta medo por causa de um ente, que crie a angústia do pavor, o pânico. É um horror que é interpretado como esvaziamento activo, falta de sentido, inanidade. As horas do dia não levam a lado nenhum, o tempo parece não passar. O tempo não passa. As horas passam ao largo. O fim do dia é exactamente tão estagnado como o princípio do dia. As semanas trazem sempre o mesmo desespero, o mesmo vazio, não fazem sentido, não orientam nem dirigem.

São João Cassiano diz que a hora da “Acedia” chega ao meio dia, para inquietar os monges com a sua força máxima. A situação do aborrecimento inquietante do tédio de não ter nada para fazer, estar des-preocupado, é estudada no laboratório existencial que é a vida monástica. A divisão do tempo do dia é dado pelo tempo da oração, das refeições, do trabalho comunitário. Mas as pessoas que se encontram nos mosteiros afastaram-se das preocupações do dia-a-dia do mundo, da sua ambição, das várias tentações provocadas pela “cobiça, dos olhos e da carne”. A vida num mosteiro é pensada “de fora” como afastamento, exclusão, reclusão. No interior da vida pessoal quer dizer uma escolha activa para viver uma vida “a fazer a vontade de Deus”, uma vida que expressa a exposição ao sentido dos dias que vem de uma dimensão diferente, absolutamente diferente, da agenda do nosso quotidiano, seja ela profissional, seja ela afectiva ou até mesmo religiosa. Este ponto fundamental decide o princípio de compreensão de um fenómeno que projecta de certo modo a modernidade.

O mosteiro e a vida monástica representam a vida com sentido, a cumprir-se na realização da vontade de Deus. É a possibilidade extrema e radical em que se fizeram todos os votos positivos para a consagração a Deus, uma vida dedicada a Deus. Não se trata apenas de abdicar do mundo nem de abdicar da ambição mundana. Trata-se de uma escolha positiva em que todas as acções são acções de graça. Orar é a expressão máxima da vida, porque resulta do contacto em “conversa” com o Pai. A “dieta” e o “regime” do dia são o resultado da renovação, que é o processo de “meditação” no sentido que configura o “monge” sob o “desígnio” e a vontade do Pai. Esta hipótese existencial faz sentido, preenche, enche o coração de alegria. O mundo e as suas ambições ficam de lado, esquecidas, obliteradas. Deixam de fazer sentido.

Mas o que se passa na sexta hora quando a inquietação do monge é máxima? Há alguma recidiva? Quererá o monge regressar ao mundo, como o prisioneiro quer sair da sua cela para um mergulho atlântico ou sentir o calor do sol no rosto? Não. A possibilidade extrema do aborrecimento é o da fuga à vida, ao quotidiano, da repetição, da ausência de novidade, do mesmo que é inultrapassável. A eternidade é a vida no mosteiro com as mesmas divisões de horas, as mesmas refeições, o mesmo trabalho. Deus desapareceu do mosteiro. Um mosteiro sem Deus é como um templo em ruínas. O monge não tem já o mundo para onde regressar, porque nem o mundo é habitado por Deus. Atirado violentamente para a interrupção total da passagem das horas, o momento é de horror, desespero, angústia. Não há apenas a abertura à consciência de si próprio como eu. É a vida, o mundo, e Deus que surgem na abertura resolutiva (“Erschlossenheit”, Heidegger) total.

12 Jan 2018

Poesia – Georg Trakl

Música em Mirabell[1] 2ª versão

 

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma fonte canta. As nuvens estão

No azul claro, brancas, ternas.

Pensativos, homens caminham em silêncio

À noite através do velho jardim.

 

Dos antepassados o mármore encaneceu.

Aves em migração tracejam o longe.

Um fauno com olhos mortos vê

Sombras que deslizam para a escuridão.

 

A folhagem cai encarnada da velha árvore

E entra em círculos pela janela aberta para dentro de casa.

Uma chispa de fogo encandece no espaço

E pinta fantasmas perturbados pela angústia.

 

Um estranho branco entra dentro de casa.

Um cão precipita-se por corredores apodrecidos.

A criada apaga uma vela.

O ouvido escuta de noite sons de sonatas.

 

Musik im Mirabell
Zweite Fassung

Ein Brunnen singt. Die Wolken stehn

Im klaren Blau, die weißen, zarten.

Bedächtig stille Menschen gehn

Am Abend durch den alten Garten.

Der Ahnen Marmor ist ergraut.

Ein Vogelzug streift in die Weiten.

Ein Faun mit toten Augen schaut

Nach Schatten, die ins Dunkel gleiten.

Das Laub fällt rot vom alten Baum

Und kreist herein durchs offne Fenster.

Ein Feuerschein glüht auf im Raum

Und malet trübe Angstgespenster.

Ein weißer Fremdling tritt ins Haus.

Ein Hund stürzt durch verfallene Gänge.

Die Magd löscht eine Lampe aus,

Das Ohr hört nachts Sonatenklänge.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 13.

 

Crepúsculo de Inverno[1]  Dedicado a Max von Esterle

 

Negro céu de metal.

Nas tempestades encarnadas gralhas

enlouquecidas de fome, voam de noite

Lívidas, sobre o relvado do parque.

 

Nas nuvens, congela um raio até morrer;

E ante as maldições de Satanás, elas contorcem-se

em círculo e em número

de sete descem para poisar sobre a terra.

 

Na podridão, doce e sem sabor,

Aparam, em silêncio, os seus bicos.

Ameaçam as casas das paragens em redor;

Há claridade no teatro.

 

 

Winterdämmerung[2]
An Max von Esterle

 

Schwarze Himmel von Metall.

Kreuz in roten Stürmen wehen

Abends hungertolle Krähen

Über Parken gram und fahl.

 

Im Gewölk erfriert ein Strahl;

Und vor Satans Flüchen drehen

Jene sich im Kreis und gehen

Nieder siebenfach an Zahl.

 

In Verfaultem süß und schal

Lautlos ihre Schnäbel mähen.

Häuser dräu’n aus stummen Nähen;

Helle im Theatersaal.

 

Kirchen, Brücken und Spital

Grauenvoll im Zwielicht stehen.

Blutbefleckte Linnen blähen

Segel sich auf dem Kanal.

[1] KL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 14.

[2] https://lyricstranslate.com/pt-br/duu07-winterd%C3%A4mmerung-cr%C3%A9puscule-dhiver.html#ixzz50H6qb4AY

8 Jan 2018

Party Girl

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] passado atravessa-se-nos. Já não é como dantes. Outrora, as memórias rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez, mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário. Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas. Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação. Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças, pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa. Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo “cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças, mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá em cima” (Rimbaud).

E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente. São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser irrepetível?

Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como sou.

5 Jan 2018

Somos Contemporâneos do Impossível (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m VASOS DE GUERRA “homens como nós” são descritos como “nascidos do que perdemos/ e ficámos – guardadores de lugares/ calados por dentro”” (55) e em RETRATO PÓSTUMO lê-se “tudo morre, só o nada é/ para sempre” (58).

O título MELANCOLIA DA CATÁSTROFE expande o próprio conceito “melancolia”. A ambiguidade da expressão não permite decidir inteiramente se é a catástrofe o objecto da melancolia ou se é o seu sujeito. É o carácter paradoxal da formulação extrema a possibilidade de melancolia. Podíamos, numa primeira aproximação, achar que a melancolia é uma lembrança de bons tempos, de uma doce saudade do que já passou. Mas faz parte da própria melancolia a compreensão de que o pior de tudo por que passamos, com a distância do tempo, fica filtrado de tal maneira que é doce a sua memória. Sentimos saudades do que passamos. Assim também acontece aqui com a catástrofe. A perda da esperança é a perda de

“uma cobra esguia

o tempo irrelevante para a pedra que cai”

(60)

 

A esperança tem vários motivos. Um dos mais poderosos na vida humana é a chegada do outro com quem nos encontramos. Tu que:

 

“representavas a esperança de uma possibilidade de passado

o afecto que abre as portas ao comércio

na cidade que ainda acredita”

(Ibid.)

 

A melancolia é a esperança de uma possibilidade de passado, um passado que é invocável pela memória cognitiva. Podemos até ter documentos e testemunhos desse passado, mas não sabemos regressar a ele sem o esconjurar na vibração modal que nos canaliza para lá, que nos abre o portal de acesso afectivo e emocional para a sua dimensão característica. A possibilidade não havida angustia. Vivemos entre um passado a que não acedemos na sua dimensão modal, vibrante, afectiva, emocional, um presente que é prefigurado por esse haver sido, e um futuro que não admite tal como não admite o passado nem o presente qualquer conteúdo que não o da angústia.

 

“angustiado por essa memória de uma possibilidade

de uma só possibilidade, antes de morrer”

60

 

Em MIMESIS, em face dessa impossibilitação, o outro afinal não apresenta nenhuma abertura, nem representa, na verdade, nada do tudo que primariamente prometia. A esperança do passado é a esperança do presente e a esperança do futuro. O outro dá sentido à vida por representar tudo. Mas o outro, objecto e agente do amor, apenas é visto no que foi, quando já não está connosco, quando é perfil sem conteúdo, horizonte vazio, projectado na, e pela, distância.

 

“invenção da distância única definição de amor

que alguma vez consegui compreender

.

.

.

Uma distância que exprime o tempo irreversível da anulação da própria distância, porquanto a realidade retira todo o carácter onírico ao objecto da falta sentida, do desiderium daquilo mesmo que é a única coisa que quero ter. Quando se aproxima, aproxima-se da realidade e afasta-se da sua impossibilidade onírica, do sonho de amor. A realidade mata todo o amor.

e assim te dei por completo

e sem forma

de desistir”

(62)

 

Ou na formulação de DISCRONIA DE UM ENCONTRO:

 

“sentámo-nos na mesa toda iluminada de um só canto

acolhidos inesperadamente pela tua silhueta

recortada e familiar

.

.

.

 

mas só te vim a reconhecer muito mais tarde”

(63)

 

Só reconhecemos o outro num amor infeliz, perdido, ausente, irrecuperável. Desse amor, não tendo nós a certeza de haver outro, não se recupera, não se fica imune nem incólume a um coração desfeito. Mas simultaneamente há uma diferença entre ter havido esse amor nas nossas vidas e não ter havido esse amor nas nossas vidas, porque não somos os mesmos, apesar de virmos a encontrar-nos na solidão de uma forma mais espessa e com contornos muito mais definidos do que alguma vez conhecemos. A esperança da possibilidade dá um sentido, direcção e orientação, que nos faz ser por aí além. Há futuro escancarado, um futuro que transcende o longo prazo e por maioria de razão o médio e o curto. Este futuro aberto pela esperança é simplesmente possibilitante.

 

A mais completa descrição da melancolia da catástrofe lê-se n’O TERCEIRO PASSO

 

“dantes não era assim

não havia esta proximidade

não estávamos lá

mas havia caminho

um caminho em tempo discreto perecível

.

.

.

 

o terceiro passo é o que já lá estava

do que ficou no fim

depois do resto

o próprio fim desaparecer

não temos consciência dele

só ele tem noção do seu próprio mistério

e consciência de nós

é passo paralelo contínuo impossível

nem é possível habitá-lo

não é caminho que percorras

mas que te percorre a ti

como se dele nascesses”

(68)

 

A proximidade de que se trata aqui não é o oposto da distância referida há pouco. Esta proximidade é a tangência do fim, a aproximação “inexorável” de quem habita a zona mortal na expectativa iminente de um impacto letal. Agora, não há caminho, quando “havia caminho”, ainda que em tempo discreto, episódico e perecível. O terceiro passo é o passo final, na contagem, o momento do princípio do fim, do desaparecimento.

 

“Só ele tem noção do seu próprio mistério” (68), só ele “tem consciência de nós” (Ibid.). Ou seja, não razão nenhuma para se pensar que só começa a acontecer a partir de determinada altura da vida e não que esteja desde sempre já a acontecer, lá desde o fundo da infância. Ainda que nós não tivéssemos tido noção dele ou não tivéssemos pensado na noção que pudéssemos ter tido dele, é ele que nos tem a nós, que radioscopa e radiografa a nossa vida. Caímos na consciência do fim, porque ela nos é dispensada pelo seu próprio mistério.

 

A configuração deste ser no encaminhamento do desaparecimento não é exclusiva da subjectividade poética, nem é particular ou individual. Constitui o nosso sermos uns com outros. A acção deste ser, a sua particular actividade, que nos implica desde sempre nos outros não é anulável e tem características complexas. Elas estão expostas em SUBROGAÇÃO DAS SOMBRAS:

 

“o predador de sombras é também refém

da vida projectada dos outros

o estranho que se detém perante a fotografia abandonada

que lhe dá

e ganha vida

enquanto novo sujeito no destino aleatório

da contemplação

alguns objectos representam

a vida no seu sentido adjectivo

sendo da mais elementar ciência que a vida é o único

absoluto substantivo que não perde a sua qualidade

quando tornada objecto

perante o homem ilustrador”

72

 

O que temos um do outro dos que são nossos, nos constituem o âmago do nosso ser, sem os quais não seríamos nós, a não ser outros insuspeitados?

 

Somos sombras uns para os outros. O que quer dizer que não temos nem relativamente a esses coincidentes connosco acesso à pessoa ou ao si mesmo deles. Temos não apenas a fachada, o rosto e os seus infinitos cambiantes, expressões e jogos faciais, o corpo trabalhado pelo tempo desde a infância até à velhice, os estados de alma, a maneira de ser, o jeito, a forma, a personalidade e tudo isso é ainda sombra perante o abismo do outro quando se converte em mistério. Até quando existe como agente de fascinação e encantamento, o outro é sombra, projecção do exercício do fascinante e do encantamento que se abate sobre mim.

 

Podemos ser agentes provocadores de fascínio, impressão e encantamento no outro e o outro é o sujeito metamorfoseado no seu interior. Mas nas possibilidades extremas da fraternidade, da amizade, da filiação e da paternidade, nos mais diversos graus de parentesco, há sempre esta projecção de nós sobre os outros e dos outros sobre nós a maquilhar as personalidades, os protagonistas, destas afecções. Tudo não é senão qualidades, modificações, alterações, transformações da vida em nós.

 

É a vida de que somos portadores quem é o grande protagonista, o destino, a sorte, o sujeito dos sujeitos do próprio e do outro, da intersubjectividade contemporânea e entre gerações. Este mega sujeito produz sujeitos e, neles, a consistência permanente do tempo sequencial, transitório, irreversível da passagem.

 

“talvez a repetição seja a nossa grande criação”

86-87

 

 

IV CORPO EM QUEDA, a identificação da dificuldade de ser, quando não se aguenta, não se é capaz e não pode, projecta outras possibilidades ou então somente a possiblidade de não ser impossível. Mas o que une as sombras substitutas é a sua relação recíproca de sub-rogação e cada um é substituto de si próprio e há substitutos dos outros para o próprio.

 

“escapar, apenas

para descobrir

que a sua verdadeira

prisão

é a impossibilidade

de regressar”

136

 

Na odisseia que é a descoberta de si, de onde se zarpa e onde ser aporta, como “loci” da poesia dependem da viagem. Uma viagem nunca é uma deslocação no espaço. Podemos também nunca sair de uma mesma localidade e sermos no fim da vida mutantes do que fomos no princípio.

 

“na invenção da distância a morte

foi disparada à nascença

para se percorrer em várias direcções

ao mesmo tempo

fio e caminho tenso esticado

vibrando toda no rombo do passo”

(126)

 

Um dos riscos corridos na odisseia que depende da abertura do próprio horizonte de sentido ou, antes, do origem e fonte do próprio sentido, é a descoberta da totalidade a perder de vista da essência das coisas (DE RERUM NATURA )

 

“comecei por escrever o que se passava comigo e terminei

a escrever o que não se passava

uma forma de descobrir a verdade

onde ela já não existia

(142)

 

Conhecer-se a si próprio é a realização do poema escrito como descrição da antecipação e invenção da possibilidade ou da sobrevivência à impossibilidade. A única vida possível é a acrobacia sobre um arame que está a ser tramado e esticado e ao mesmo tempo percorrido. A vida é assim, sempre, a descrição do fecho, da impossibilidade de regresso à infância onde localizamos temporalmente quem fomos no princípio e com a possibilidade que o princípio oferece. Agora, a vida dá a compreender o fecho ao presente e ao futuro.

 

Neles só nos instalamos extaticamente na dimensão do tempo dimensionado no sonho. O poema é o produto do sentido, da conotação, do significado. Eu convertido em conteúdo de poema sob pena de não obter compreensão para mim. A verdade é produzida pelo sentido e não é um facto, ainda que se faça a experiência da não anulabilidade desta experiência de sentido. A verdade só vibra na melancolia da catástrofe.

 

“não antecipei a tua morte

sou eu

aquele que devia ter desaparecido

e não tu”

(145)

 

Será sempre a vida abortada por ausência de outrem?

O ostracismo é o sentido ao pé da letra da navegação figurada. Não se sai de onde se está, ainda que nos possamos deslocar no espaço. Nunca se regressa, porque somos diferentes e os outros e os sítios distinguem-se pela metamorfose do tempo. E se nunca sairmos do mesmo sítio, a imobilidade transmuta-nos, ainda. A motivação é uma ânsia pela eterna saciedade, uma saciedade indeterminada quanto ao seu conteúdo ou nunca satisfeita com o mesmo conteúdo nem com a sua própria variação.

 

“navego pela eterna saciedade

não há lugar no mundo

que me chegue

apenas a profundidade implacável

de um movimento

inexistente”

(120)

 

O movimento descrito não é uma deslocação espacial. É óbvio. É um ir. Um ir na demanda, em frente. Coincide com movimentos de rotação e translação, o percurso dos astros no cosmos, o cosmos no universo, a passagem das horas e dos dias, a passagem das estações do ano e a transfiguração que operam nas “costas da terra”. O único eixo do movimento certa tudo: “as constelações das coisas”:

 

“tudo anda em frente

um único eixo de movimento

gera as constelações das coisas

e do vento

só existe presente

só um campo corre pelo rio”

(125)

 

A inexorável caminhada em demanda pela saciedade da fome que constitui o humano compreende a possibilidade que a morte traz como sossego ou ainda como a antecipação misteriosa que se projecta além da vida, como espera pela próxima fome:

 

no fim a vida foi só

isto:

esperar

pela próxima fome

121

 

De nada em nada, de falta que se fez sentir em falta que se faz sentir, projecta-se o ser da ausência. A presença da ausência é o ponto de fuga da existência. Só se sente a substituição da miséria, precariedade, precisão, necessidade. Numa situação de insatisfação, na inquietude complexa da relação de si consigo e de si com outrem, a vida não assenta bem. A ânsia pode ter como objecto outros percursos existenciais, outras biografias, com outros personagens, outras vidas, outros próprios. A vibração que se constitui não é já a de uma hipertrofia que resulta do nosso lance de antemão para uma versão cada vez mais melhorada de nós próprios, uma optimização superlativa do que é já a forma do nosso encaminhamento.

Faz parte desta outra ânsia complexa ser outro, porque não somos como gostávamos de ter sido e acabamos por nunca ter vindo a ser como gostaríamos de ter sido. O mesmo é dizer gostaríamos que a vida no seu ser a ser fosse radicalmente diferente daquela que é. Ou na formulação da primeira forma da sabedoria de Sileno: o melhor de tudo era acabar já. Ou, talvez, ainda de forma mais extrema, na segunda forma da sabedoria de Sileno: o melhor era nunca ter vindo a ser (Sófocles, Nietzsche).

 

“queria ser outro

o homem do futuro talvez

morar nas tuas mãos, tanto que fomos

ah, tanto que somos contemporâneos

do impossível”

124

29 Dez 2017

Um mergulho no abysmo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos conectados com o mundo. A nossa vida estende-se desde sempre já até ao presente e ao futuro. A ideia que temos de privacidade é complexa. Somos invadidos na nossa própria casa. O nosso passado não mora lá atrás. Nunca ficamos imunes ao que aconteceu. Está sempre à nossa espera. Somos assaltados com as lembranças do passado. Kant chamava-lhe auto-afecção nos escritos do espólio. Sem saber bem como, nem quando, nem onde chegam até nós do passado imagens e cenas de memórias antigas, inaugurais. Pode ser uma fragrância. Pode ser um sentimento que nasce de novo em nós não se sabe bem por quê.

Não estava a falar da nossa exposição a nós próprios. A nossa vulnerabilidade é tremenda. Desde sempre estamos expostos à fragilidade do tempo. Podemos seguir em frente e ultrapassar amores perdidos, histórias passadas. A vida infeliz é absolutamente interessante e a solidão é o elemento complexo onde há telepatia e canalização para outros mundos, para os mundos dos outros que ficaram no passado, ainda com vidas ou com os mundos dos outros que ficaram vida fora. A trama da nossa existência é feita com as vidas de todas as pessoas que conhecemos, com quem deixamos de falar, mas também com as vidas dos outros que nos deixaram. Sentimos a sua presença. Reagimos às suas vidas interrompidas. Não são meras possibilidades inertes. São realidades.

Mas há recantos onde não conseguimos ir. Situo-os no fundo talvez do mar que há em mim. Como quando dizemos “naquela altura” para nos referirmos “àquele tempo”. O acesso ao passado é feito por mergulho, como se nadássemos por cavernas mergulhadas em águas profundas e fossemos como enguias visitar os tesouros que lá se encontram. É sempre escuro e de pouca visibilidade e as memórias são memórias nocturnas de noites de inverno. O que está lá escondido e nunca assoma à superfície são histórias de encontros com pessoas. São épocas de séries de filmes com episódios onde nos encontramos todos nós lá a viver a vida sem saber no que vai dar.

Não temos roteiro, não temos itinerário, vivemos hora a hora sem saber como responder à vulnerabilidade e à nossa exposição ao outro. Estou a falar desse único outro que nos fez sair de nós próprios, da nossa redoma, da nossa solidão, da nossa ilha desconectada de tudo. Estou a visar esse outro em nome do qual todas as nossas preces se convertem em súplicas e o seu rosto é o rosto do amor que irradia por toda a nossa vida e transforma metamorfoseando tudo pelo seu olhar. São episódios avulsos em que este outro, o outro, entra. Estão conservados sob um manto gigantesco de água oceânica. O outro está mergulhado no recanto mais recôndito da caverna mais arredada onde ainda chega a água oceânica do tempo. E mergulhamos até lá por vezes. E lá está tudo como se tivesse sido ontem, como a entrega foi tão absoluta que nunca mais nos reavemos.

Vivemos devolutos mas nunca inteiramente livres. Nunca ninguém fica livre do amor e tal quer dizer da sua possibilidade seriamente encarada. Não sei se sou eu puxado por águas subterrâneas, correntes subliminares até esses mares escuros onde está mergulhada a minha vida. Não sei se as cenas do passado com todas as suas impressões se despregam do local onde estão fechadas a sete chaves e assomam à superfície. Sinto-me sempre embargado e vou sendo puxado para baixo, sem haver nunca senão o precipício sem fundo, o abismo dos abismos. Nunca sei onde fica a superfície porque para onde quer que eu olhe é escuro, não há fundo, nem forma. E vejo um rosto que me olha e um corpo que me toca. Não é já o rosto que encarava próximo do olhar à beira do abraço. É outra coisa. Como aquela tortura de que Aristóteles fala feita pelos piratas etruscos aos seus prisioneiros. Eram unidos rosto como rosto, corpo com corpo, apertados num único abraço com cadáveres. E é assim até ao fim da vida.

Os cadáveres são aqueles outros de quem sentimos falta, nunca mais serão substituídos, nunca mais haverá aquele outro. A nossa vida é a solidão descarnada da ferida exposta. Habitualmente aguentamo-nos. Mas, às vezes, vem das profundezas das nossas existências de novo aquele sonho que dormimos acordados. Parece real. Parece possível. E mergulhamos de novo até ao fundo dos tempos.

29 Dez 2017

Somos contemporâneos do impossível (Parte II)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] futuro é narrativo, não no sentido em que narrativa quer dizer pode querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que entroncam numa dimensão a haver.

A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio. É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita, proibida.

As narrativas da possibilidade projectam-se no próprio interior do poema em construção, não são a sua formulação gráfica na escrita, na palavra dita. São a própria constituição, concepção, produção poéticas. O narrar-se a si, o dizer-se a si como é consigo, o contar o que se passou consigo são situações que projectam cada si a quem lhe acontece ser na dimensão latente, não descoberta, da profundidade da experiência fáctica da vida. Não se trata de adivinhas interpretativas, estocásticas. É o próprio sentido da possibilidade que está a assomar o horizonte. A narrativa da realidade é meramente indicativa, usa o enunciado declarativo como meio de expressão. O seu mundo pode existir sem ninguém. Pode resultar de um esforço, de uma concentração, de uma atenção: técnica, teórica ou estética. Mas o narrar-se a si que diz de si como é consigo no que se passou exprime a abertura activa e espontânea da exposição possível à cadência e à vibração, ao ritmo e à melodia no interior dos quais o significado ganha corpo de conteúdo.

Como se lê em A DESTRUIÇÃO DO GESTO

 

“é preciso pensar o poema sem pensar

o poema

já acabado sem ter existido

a vida só existe no seu próprio revestimento

para isso é preciso vestir o poema antes do poema”

(42)

 

Em DIÁRIO DE UM CORPO MENOR lê-se a forma específica em que o poema é dado à luz. Espírito e o corpo da letra são o resultado de um debate: “tento definir os seus breves contornos” (43). Os contornos do poema são breves não porque tenha um corpo mínimo a ocupar espaço, mas porque a sua dimensão é temporal e dura um abrir e fechar de olhos, um piscar de olhos “até chover a sua própria carne” (Ibid).

 

“a nuvem escura de um poema

paira à minha frente

como uma pulga crepitando

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves

contornos

entre a certeza de cada salto

que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre

sombra

mordendo mordendo sempre

até chover a sua própria carne

um gesto visível

para quando

cair sobre a luz”

(43)

 

Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:

 

“o poema nasce da colisão

entre o projéctil tatuado por gestos e lugares

e o peito voluntário que lhe serve de alimento

fosse ele o seu momento seminal”

(44)

 

O poema numa das suas actividades possíveis:

 

“o poema fere mata desvela”

(Ibid.)

 

O poema descrito na sua camuflagem e dificuldade de ser agarrado:

 

“é difícil apanhar o poema no rasto do gato

que ainda vive em transgressão

ao seu mal intrínseco”

(Ibid.)

 

É existência dependente do leitor como o é do seu inventor:

 

“se o poema tem de morrer que não seja por dúvida

que seja por culpa e sentença de quem o lê”

(44)

 

É no poema que eu compreendo o haver sido abismal da noite eterna do passado:

 

“sou a impossibilidade de olhar para trás

a distância toda antes do nascimento”

(45)

 

O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:

 

“o poema é só

uma face possível de veludo

na parede do problema”

(47)

 

“O poema nasce da colisão”, “o poema fere, mata desvela”, “anda no rasto de um gato”, “se o poema tem de morrer que não seja por dúvida, que seja por culpa e sentença de quem o lê”, porque quem o escreve diz na primeira pessoa do singular: “sou a impossibilidade de olhar para trás a distância toda antes do nascimento” e é quem tem, por isso, a consciência de finitude: “o poema é só/ uma face possível de veludo/ na parede do problema”. Não tem lugar, porque o seu elemento é a viagem, depende de um pensamento que nos é oferecido, líquido, fluído ou não. Servirá se “chegar a algum sítio”.

 

“um lugar sem lugar é o sítio onde acordei

a querer estar como se pertencesse

e existia

agora a minha cabeça explode como um barco no rio

afinal, o pensamento líquido só serve se para chegar

a algum sítio

foi tão bela a viagem mas temo que me tenha afogado

e o meu coração é agora um planeta, tantos são

os oceanos onde deixei viagens

por acabar”

(48)

 

O poema não é um conjunto de versos ou uma composição de um só verso, numa formulação sintaticamente bem formada. Pode ser uma só palavra, pode ser um verso, pode ser um conjunto de versos que procuram fazer sentido. Mas um poema é sempre uma versão da realidade, uma versão de veludo que é forma de um plano de fundo complexo. Como se todos os momentos auto-biográficos de uma vida pudessem ser expressos por um poema do qual temos apenas poemas avulso, episódicos, sem um fio condutor. Mais, como se cada vida humana, em todas as gerações passadas, presentes e futuras tivesse um único poema composto caleidoscopicamente de poemas avulsos, episódicos sem fazer sentido nem composição, para além do que compreendemos deles: serem dados auto-biográficos de uma narrativa de futuro a haver sem concretização real.

 

“sei que tudo é pontual

mas tem de haver uma frase para se chegar ao ponto

o que pressupõe sempre a construção de um texto:

dos pontos usufrui-se a percepção da viagem

o seu sentido pleno

sem frases não haveria pontos

e é impossível ler para trás

isso seria a própria definição de peso”

(48)

.

“todos os livros

sejam viagens sólidas por acabar

talvez seja essa a proposta que me resta navegar:

a construção de um sentido líquido

o único possível?

para conquistar um porto não definitivo

o resto resolve-se em conjunto”

(49)

 

Em III, sob designação de FUNDAMENTOS DO ECO, symposium ou a invenção da distância, encontramos uma expansão dos elementos fundamentais de I e II, o mundo próprio e a vida, por um lado, e a expressão desse mundo e dessa vida tal como a semiótica e a significância os conotam. O referente não existe em si, mas sob a dependência do horizonte poético. Um poema é a unidade mínima não apenas da expressão ou da descrição do que acontece, mas fundamentalmente do próprio sentido. A realidade é uma parede, um fundo superficial ou profundo, com uma topologia complexa.

Tudo existe alicerçado no tempo irreversível da existência.

Sem poema, não há realidade poética. Sem realidade poética, há factos. A realidade pura e dura depende de um mundo criado por um irreducionismo sem ponto de vista. A vida sem poesia é dada a ver para um ponto de vista que tudo perspectiva a partir de nenhures (Thomas Nagel) ou é uma vida pensada por ninguém (Husserl). A narrativa resulta da reconstrução ou da prefiguração que dá forma às figuras do passado e do presente, num lance que se projecta em antecipação como realidade possível e nunca como facto. Habitamos a possibilidade e, por isso, é que há impossíveis. Nunca há a realidade do modo indicativo, tendencialmente desprovida de possibilidade, simplesmente objectiva.

“é preciso regressar ao fundo do abysmo

sem o deixar ganhar

.

até onde vamos para entender o desaparecimento?”

(53)

Agora aparece uma possibilidade extrema de nos relacionarmos com outro, num sistema complexo de antecipação que paira em suspenso sobre o vazio, onde as falas são inventadas a cada instante, as conversas requeridas por dois a serem um com o outro como possibilidades e não realidades. Esta possibilidade de ser um com outro é a que inventa um futuro, porquanto o próprio si está encerrado na cápsula do seu tempo e, quando muito, reage como reflexo ao reflexo da realidade dos outros, que existem apenas como impressões. Ora as impressões, mesmo que indeléveis, são impressões. Foram deixadas em nós. Podem ser alimentadas com a nossa imaginação e fantasia ficcionais.

“sim, o futuro existiu na distância percorrida de um para o outro

entre o gesto e o eco que o espelho devolvia secretamente

carregado de partículas geradas por essa impossibilidade

que os anos, morrendo à distância, vieram ridículos

a chamar de paixão”

(54)

A distância percorrida de um para o outro: gesto, eco, são fundidos como reflexos de quem gesticula ou de quem fala, sempre para outro. O próprio reage ao gesto ou ao eco do outro como reflexos num espelho que nunca é visto como espelho, mas como a própria realidade. A reacção ao que aparece no espelho é uma reacção ao próprio e nunca a um reflexo. Na paixão, como a descreve Platão, é por nós que estamos apaixonados. Não é pelo outro. Isso é imperceptível a quem olha. Não percebemos que somos nós lá plasmados no outro.[1]

(continua)

[1] Shakespeare na Comedy of Errors, põe Antifolo de Siracusa a dizer: “Call thyself sister, sweet, for I am thee. Thee will I love and with thee lead my life: Thou hast no husband yet nor I no wife. Give me thy hand.”

28 Dez 2017

Somos Contemporâneos do Impossível – Uma apresentação

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]omos contemporâneos do Impossível desdobra-se em quatro grandes frentes: I. Uma casa no Mar, II. A habitação do gesto, III. Fundamentos do Eco e IV. Corpo em queda. Cada uma destas partes faz sistema com um todo orgânico. Neste todo orgânico, há um espírito que aí encarna, que aí se incorpora, e o dota de uma alma que habita a forma especial deste corpo existir. A geografia peculiar do sentido de José Anjos raras vezes é directa, nem é de compreensão simples ou imediata. O mundo que lhe serve de referente não é “real” nem primária nem o mais das vezes. Não o é, pelo menos, numa primeira leitura, que se quisesse rápida ou desatenta.

Não o é também, porque a própria realidade objectiva, material, visada de modo literal, no indicativo, é já uma construção complexa resultante de despojamento, abandono, desaparecimento, morte.

O horizonte poético de Somos Contemporâneos do Impossível abre-se numa dimensão extrema da vida, onde tudo é radicalmente problemático. Tendencialmente, o ser do sou eu é extremo e vive a fazer espargata entre o horizonte de um passado havido (que não é já habitável) e o horizonte de um futuro por haver (que não está ainda à nossa disposição). Ambos fixam-se em projecções. O passado deixa uma marca indelével em nós. Não o recuperamos tal como terá acontecido. Tem uma vida independente no nosso espírito. As impressões que foram no passado deixadas em nós permanecem, mesmo adormecidas, à espera de nós na hora da nossa morte. São mutantes e metamorfoseiam-se. O futuro resulta muitas vezes da nossa capacidade de imaginação e fantasia para criar ficções, fora do âmbito da realidade, onde viver poderá ser possível.

Entre os escombros da memória e a fantasmagoria do futuro: real, onírico, ficcionado, o “si mesmo” procura um protagonismo que parece só ter de facto, mas não de iure. Todas as formas, outrora salientadas do plano de fundo da vida, encontram-se assim, imersas, latentes. Um acontecimento do passado pode durar uma véspera, a véspera de Natal, por exemplo. E, contudo, é trabalhado pelo olhar interior e ciclópico da vida, acabando por transformar o que quer que tenha acontecido: descobertas, invenções, modos de ser nossos e dos outros.

Ao passado só podemos aceder por processos complexos de melancolização de horizonte, exumação da existência das pessoas que aí estiveram connosco, reinvenção de cidades inteiras, antes vivas e, agora, fantasma. Os referentes podem ser os mesmos, mas o seu sentido, a sua conotação, é produzido pelo ser poético que os revisita, ou antes, que os recria, dando-lhes significação.

Nada já existe como era. O eu passado foi-se para sempre e com ele todos os que tratamos por tu. A entidade “nós” é irrecuperável como foi. Tudo se desmorona continuamente, existindo como ruínas, sob a acção (e na dependência) de uma memória afectiva e uma protensão de futuro que se projectam entre nós e o presente, resultante de uma incapacidade real para se poder ser, nos aguentarmos, conseguirmos estar vivos.

A constituição do presente, do passado e do futuro implica assim uma abertura a um horizonte que neutraliza, tanto quanto tal é possível, o facto da realidade e afirma exclusivamente a existência de significados. O referente existe em face da presença de espírito do poeta e, enquanto tal, parece existir de forma ainda mais presente do que todas as actualidades para o ponto de vista natural que lida apenas com realidades: situações, circunstâncias, conjunturas: coisas, pessoas, os próprios, as geografias das nossas vidas reais, o passado, futuro e o presente como achamos que são na realidade.

Mas este referente implica-se totalmente num (está absolutamente dependente de) um sentido. A exploração poética, a criação de um poema, é a produção do único horizonte de habitabilidade num mundo de escombros, num presente que lhe é devedor, num futuro que se perspectiva, no limite, como o lado negativo de um diapositivo em que a vida foi visivelmente a ponta de um iceberg, mas com uma base invisível, que é forma e fundo de todas as possibilidades não encaradas, muito menos concretizadas.

Em UMA CASA NO MAR, José Anjos abre o jogo. Lemos a descrição do tempo. Os verbos de movimento representam o ser. Topamos com as geografias complexas da superfície e da profundidade, constituídas em significado. Aqui, o regresso é apenas mental. Dá-se conta da sua irreversibilidade temporal. Identificamos a primeira ligação entre carne e espírito, corpo e alma.

Em Ecologia Fenomenal, a casa onde o tempo nasceu, podemos compreender como a lógica corresponde a uma tentativa de criar uma compreensão do sentido, no interior do habitáculo do humano, no seu nicho ecológico, no seu habitat natural. Mas também aqui se esboçam formas de compreensão para comportamentos e relações humanas que existem em prol de uma agenda que é tudo menos pragmática. A luta diária esforça-se por ser um combate contra a possibilidade da ininteligibilidade e, por vezes, da loucura. Os tópicos são para Anjos operatórios e não apenas paisagens descritivas da sua poesia.

Em causa está a criação de uma semiologia, de uma regra simbólica, que permita, ao mesmo tempo que está a ser inventada, descrever a própria realidade embebida em horizontes complexos de significação. O tempo é a dimensão em que cada um de nós nasce. É cada um de nós na sua singularidade individual. O tempo não é de um “eu” em que cada um caiba. Sou crónica e definitivamente temporal. Sou tempo. O tempo não é geral e universal no sentido em que é uma sequência a perder de vista para todo o sempre: a noite do passado, o presente, a noite do futuro. Antes, o tempo em que cada um nasce, a poder dizer “sou eu”, mergulha em si a casa onde se nasceu e na verdade é à escala mundial. Não apenas existe espalhado pelo mapa da sua existência. Ou antes, existe à escala universal. Este tempo de que cada um “sou” é portador tem como atmosfera inaugural a infância. A sua sequência é a da passagem. Ora toda a passagem é irrepetível, porque é irreversível. Nada é ultrapassável.

 

“no lago submerso

da infância

há uma casa habitada

pelo tempo que ficou

pendurado

na memória de um lugar

infinito sob os degraus”

(17)

 

Os primeiros instantes não são biológicos. São oníricos como todo o passado recuperado por uma memória afectiva e não cognitiva. Melhor, recuperados por uma memória simbólica:

 

“voo inaugural do sonho e

do corpo itinerante da cidade

empurrado pelo pulso de um remo

nas águas proibidas”

(15)

 

Numa tensão com a possibilidade de não vir a ser ou, sendo já, com a possibilidade de vir iminentemente a deixar de ser:

 

“depois do terror de quase ter desaparecido

sem ter perdido a lucidez”

(Ibid.)

 

Todo este espectro de sentido é um excesso relativamente ao que muitas vezes surge designado por “paredes”. A realidade material de uma casa é tão diferente, quando é tornada tão própria pela nossa habitação e partilha dela com outros. E é tão estranha, quando comparamos essa mesma casa habitada por nós com a casa que agora é: outra, alienada, estranha. Basta estar à venda e ser visitada por estranhos, ser habitada por outras pessoas ou já só um andar em ruínas:

 

“são memórias que transbordam como terra de um vaso

forçado à entrada do futuro em visita

ao seu próprio nascimento

repetido

discreto, vezes sem conta

– escoando pelas horas para dentro da casa

de onde nasce e ao mesmo tempo

deixa de pertencer”

(Ibid.)

 

O tempo da visita à casa sc. à infância escoa do lado de fora para o lado de dentro. É um fluir contínuo e discreto. Cada nascimento pode ser compreendido como cada visitação possível ao passado, pela chegada do passado até nós. Como pode ser entendida a compatibilidade do esquema da existência em geral com o facto de cada um de nós ter só uma vida e esta ser individual, singular? Cada ser humano encerra em si a marca do ser da vida e, por outro lado, é individual, único, singular. Cada um de nós existe desde sempre num escoar de fora para dentro e de novo de dentro para fora. A vida dá definição aos contornos dos corpos, em movimentos basculantes, oscilatórios, como um baloiçar sobre o posso do abismo. O escoamento, a infiltração, fomentam fantasmas negros. O envelhecimento é o tempo em que nos sobrevivemos a nós próprios. Ao envelhecemos, compreendemos que sobrevivermos a nós próprios. Tudo o resto fica alagado por esse significado do tempo inescapável.

 

“a cada nascimento produz-se um som tão definido

como o contorno de um corpo que perde volume

entra e sai da casa

como um baloiço sobre o poço (cada vez mais visível)

dos anos que se infiltram através das paredes

um fantasma negro

um bolor que cresce na carne até ser só carne e peso

e corpo que já não sabe ser corpo e que atira o corpo

e espírito ao chão

o tempo envelhece a casa

dentro do homem

como um visitante irreversível

até que nas paredes esboroadas

se abrem janelas lençóis esvoaçantes

por onde a vida inteira sai disparada

numa só respiração

frágil e determinada

como a flecha que o vento roubou das mãos de uma criança

para ir morrer dentro da árvore

.

.

.

infância:

lugar que esquece o sobrevivente

sem se fechar

nem o deixar sair”

(18-19)

 

Se o poema inaugural marca o princípio do fim, em PALÁCIO descreve-se, de alguma maneira, um desses momentos em que caio em mim à lupa: “entrar para dentro de mim” é ganhar a “nitidez dos contornos que se habituam/ à escuridão”, “devolver à luz baça da cozinha o seu amor pelas manhãs de sábado”, “as manhãs violentas e doces assim – com a sede/ à boca do leite e da manteiga” (20).

Na lógica dos dias, sábado é o dia partilhado com a família, mas que é sempre diferente de domingo. O domingo é antes de segunda-feira. A segunda-feira já exerce pressão sobre nós. Sábado, pelo contrário, vem depois de sexta-feira e faz corpo com ela. É um dia com tempo. Está ligado ao verão da infância ou da primeira juventude:

 

“sinto a fragrância quente da tarde a tentar morder a penumbra

do meu quarto no verão”

(21)

 

As partes do dia de sábado são entidades complexas que fazem um sistema orgânico e com um sentido de tempo que nos constitui. O acesso a esse passado, não necessariamente o acesso a essas memórias (porque as memórias despertam quando o passado se acende, intrometendo-se entre nós e a actualidade real) resulta de uma canalização, de uma sintonização, com o havido de mim naquelas situações e circunstâncias. É como se ficassem acesos ou iluminados dias e dias de sábado da minha infância e juventude, perdidos para a escuridão:

 

“que penetro sem dor

sou como se respirasse uma leve brisa

que se acende e me faz entrar

por portas sublimes

até descobrir os sítios onde não sou

mas ainda consigo estar”

(21).

 

As portas não são metáforas para entrar ou sair, prender ou soltar. São os operadores activos que coincidem e estão sincronizados com o acesso. É complexa a condição para a lucidez despertar o haver sido, o ser e o haver de ser no horizonte da significação, do sentido. Não se trata aqui de possibilidades físicos que nos permitem transitar para espaços contíguos em geometrias simples. São portais que dão para dimensões de significação que não estão disponíveis para um olhar desprevenido ou ingénuo. E ao falar de canais devemos entender não a simples sintonização de um posto de rádio ou canal de TV, mas um meio de transporte telepático que encosta a nós dimensões mediúnicas que nos fazem entrar em transe, numa êxtase compreensiva sem nos fazer perder inteiramente na loucura da ininteligibilidade.

 

Em A ESTE VERÃO lê-se uma descrição desta êxtase centrífuga inteligível:

“há uma criança que corre pelos campos

deixa-se levar pelo tempo

como uma gazela caça o caminho

foi um lugar que me esqueceu

mas é impossível reduzir a produção do sol

a uma janela só”

(22)

 

Tal como em EXPLICAÇÃO DE UMA TEMPESTADE, há uma cristalização do domingo obtida por uma revisitação da cadência própria, do ritmo entediante de Domingo:

 

“bátegas que embatem contra

a parede lenta de domingo

desfazendo-se com a brevidade

de um pássaro acabado de voltar

a casa pedindo

para entrar no texto

como o vácuo pelo ar”.

(24)

 

Nos três NOCTURNA, identificamos a contradição paradoxal que anima o significado que se projecta sobre a realidade objectiva, existência em e por si que não é independente da realidade da subjectividade poética. Antes, depende inteiramente dela para dizer a impossibilidade da habitação: o peso do desaparecimento, a plenitude da morte.

A estratégia poética é a de alterar campos sensoriais e campos semânticos com um referente complexo já na rede de sentidos e significados, onde não há factos nem realidade. Um facto só existe pela anulação e neutralização paradoxal do que é já acamado num sentido. Um facto esvaziado de sentido tem ainda sentido, no limite é irredutível para um sujeito. É possível obter esta nudez de todo o revestimento de sentido a respeito de tudo quanto acontece a cada uma das nossas vidas. Mesmo até quando há diferentes pessoas a viver na mesma casa e a partilhar as mesmas horas, o sentido de “a mesma casa”, “partilhar as mesmas horas” pode ser intradutível por cada pessoa para cada outra pessoa. Sobretudo, quando a diferença é apurada no ser que faz de cada sou uma singularidade absoluta, expressa, por exemplo, em formulações como “morada exacta do tempo” (30) ou o próprio título do poema JANELA IRREVERSÍVEL (31).

Em NOCTURNUM, declara-se essa atmosfera:

 

“há um silêncio dentro desta casa que rasga

o manto de tranquilidade que deixaste para trás

nesse silêncio a casa resume-se ao sonho

de uma escuridão exterior – como se não tivesse portas

mas medo em vez delas

só uma réstia de luz derrama ainda

a consciência infinita de uma infância sonhada

entre estas quatro paredes

que agora se fecham nos meus pulmões

uma penumbra irreal desmaia

esmagada pelo peso da tua mitologia

 

é um silêncio inflamável, tempestuoso, que traz a aridez líquida

de um quadro pintado há muito tempo

escuro como a noite que nasceu do teu leito

e cai agora ao meu lado estremecendo

já sem qualquer espanto”

(25)

 

“Silêncio”, “manto de tranquilidade”, “sonho”, “escuridão exterior”, “sem portas”, “réstia de luz”, “quatro paredes fechadas”, “penumbra irreal”, “desmaio”, “esmagamento”, “mitologia”, “aridez líquida”, “noite”, “já sem qualquer espanto”. A ambiência gótica pode despegar-se da casa em que nos encontramos agora, por poder ser a mesma da infância. É a casa abandonada pelas pessoas que lá viviam, por mim que lá esteve. Agora que aquelas pessoas já não vivem e eu já não sou quem sou. Quem assoma o horizonte é outro e sou eu. Pode ser uma memória que emerge no horizonte e visitamos uma casa sem ninguém que era a nossa casa de infância. A casa e o prédio, a rua e o bairro surgem mergulhados neste halo onírico que nos transforma estruturalmente durante o tempo em que todo esse mundo perdido vem à memória e nós vivemos efectivamente a memória. Perdemos a percepção da própria realidade, ainda que possamos sentir frio ou calor conforme seja o caso. Mas estamos completamente metidos numa dimensão estruturante do passado que nos trabalha a partir do seu interior.

Em NOCTURNUM II lemos claramente:

 

“já não é uma casa

as divisões não são as mesmas

dentro delas o tempo sangra parado sobre mim

como uma recordação ferida

as horas que compunham o conteúdo dos dias

perderam o seu significado

por entre paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento

a casa perdeu a sua definição

onde antes era casa é agora outro lugar

embora com feições semelhantes e ainda a mesma

regra de tijolo, madeira e linho

materiais despidos de uma realidade que desapareceu

cofres de memórias apenas visíveis pela sua ausência

nos interiores demasiado amplos, demasiado obsoletos

para conter o deserto que agora esvazia a casa por dentro

como uma nuvem ardendo

depois da tempestade

a casa onde nasci era um ventre que se fechou

numa só madrugada

 

*

agora

há uma porta que se abre

para nada”

(25-27)

 

“Já não é uma casa”, “as divisões não são as mesmas”, “as horas que compunham o conteúdo dos dias perderam o seu significado”, “paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento”, “casa sem definição”, “antes casa, agora outro lugar”, “materais despidos de uma realidade que desapareceu”. Agora/ há uma porta que se abre para nada. A conclusão preparada pelas premissas Nocturnum I e II vem agora sem apelo nem agravo, a realidade pura e dura da atmosfera peculiar que habitamos em NOCTURNUM III:

 

“este lugar só agora existe

no futuro, é uma ruína

este lugar não existirá e será

para sempre uma casa

que o tempo trancou

chovendo à sua volta

sem parar”

(28)

 

O Futuro existe, mas aparentemente trancado, sem conteúdos inovadores ou sem a possibilidade deles. Não há vasos comunicantes nem um canal de sintonização que permita compreender que a cada instante a realidade do facto puro e duro, em bruto, é a única coisa que estará presente no futuro a haver. Mas, nesse futuro, as paredes não falarão connosco. Serão paredes habitadas por outras pessoas, gente estranha, que nunca poderá perceber como é que dentro de paredes as histórias falam para quem as olha mas são diferentes quando outras gentes as habitam.

Quando lemos UM COPO DE VINHO DA CASA, estamos já no universo poético onde há só sentido, significação, e o que possam ser factos ou a própria realidade só podem ser detectados a partir do esforço de cair na própria realidade ou então quando o sortilégio poético nos abandona e desaparece, fechando a sua dimensão.

Perdemos a sintonização. Quem aparece como gente surge a um ponto de vista dissociativo.

 

“e inundaram as praças de gente provisória e outras só casacos

ainda rígidos pelo repouso da obrigação

gente em cujo movimento fresco habitei contigo a vontade

– que tomei de empréstimo –

de descobrir o que sou sem saber qual a direcção

gente aos magotes toda unida (nós também)

na reinvenção diária da escolha

que tínhamos conquistado por direito e por dinheiro

 

Quem é esta gente?”

(29)

 

“Gente provisória” como eu que habitei a “vontade que tomei de empréstimo”. A descoberta de quem se é dá-se à custa de não se saber “qual a direcção”. “[G]ente aos magotes”- não em conjunto- a reinventar diariamente “a escolha conquistada por direito e por dinheiro”, ou seja, por tudo aquilo que não permite, genuína e autenticamente, fazer escolhas ou tomar opções. Esta gente não consegue sequer vislumbrar a hipótese hermenêutica que na verdade se constitui como um processo ou um encaminhamento que está plasmado em DE UMA JANELA IRREVERSÍVEL:

 

“A infância como possibilidade a perda da infância é a perda de possibilidade.

queria poder dar-te uma escada

para inverter o pensamento

tornar mais alta a distância

abreviar a infância inacabada

e o desaparecimento de todas as possibilidades”

(31)

 

“aí nesse sítio onde ainda era verão

vivias como um lugar sem lugar

como o silêncio vive por baixo

da chama”

(32)

 

A gente é adulta e não é já criança. A vida que perdeu a infância perdeu a possibilidade. Viver é ver desaparecer todas as possibilidades. Não esquecê-las, porque expor-se a elas é estar “nesse sítio onde ainda era verão” (32). A infância descrita em O HOMEM ACRESCENTADO é uma praesentia in absentia: a “morte uma longa irmã” (33). A casa da infância:

 

“um cristal de tempo

repetia-se todos os dias, rodopiando centrípeta

para dentro das supremíssimas cabeças

das crianças que conheceram o fortúnio – o tão legítimo fortúnio

de serem crianças sem o saber

ainda rodopia

talvez a tentar mudar

talvez a tentar fugir

talvez apenas eu já só force

a minha entrada

para a impedir”

(34)

 

Em II, na A HABITAÇÃO DO GESTO lemos uma meditação poética sobre a expressão do sentido ou do horizonte de significação que é a própria atmosfera que filtra a realidade. Esta parte analisa o sentido da semântica, a relação complexa entre palavras e coisas, entre poema como constituição do sentido e a realidade como o seu referente. em fingerspitzengefühl, lê-se

 

“procuro a porta a palavra

a fonte semântica

de todas as coisas”

(40)

 

E abre-se a porta à EXPLICAÇÃO DO POEMA que ainda não existe

 

“uma porta

uma chave para abrir

e outra para fechar

por dentro

a semente contínua de um gesto

a colher o homem

por fora, o eco

repetição interminável

de um corpo irrepetível

e o sonho de um gato depois de morrer

guardam a sua natureza

irreversível”

(41)

 

JOSÉ ANJOS (2017). Somos Contemporâneos do Impossível. Lisboa. Abysmo. https://www.abysmo.pt/livros/94-somos-contemporâneos-do-imposs%C3%ADvel

27 Dez 2017

Natal

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma vibração muito especial na época natalícia. Consoante as idades da vida sentimos a sua metamorfose. Pode começar logo com a contagem decrescente 24 dias antes, nos países em que se calendariza o Advento. Pode ser a partir do período dos feriados, como nos Estados Unidos, a começar com o Dia de Acção de Graças. Lembro-me de ter vivido aspectos diferentes da altura natalícia de forma mais ou menos distendida, com mais ou menos neve.

Há sempre uma vibração disposicional que forma a atmosfera como as pessoas do mundo cristão vivem a época natalícia e, pese embora o politicamente correcto- deseja-se festas felizes e não feliz Natal- a época é transversal a todos os habitantes do ocidente. De cada vez que a época se aproxima, qualquer que seja o calendário que a marca, há uma projecção automática para Natais passados. A época é celebrada em família como é assinalada nas escolas. E para pessoas que nunca saíram da escola como eu, o ano lectivo contempla as férias do Natal como fim do primeiro semestre. O fundo dos tempos ressoa com os seus acordes. O primeiro Natal de que há memória vem até nós.

Na geografia da nossa existência está localizado na casa onde o passamos e a casa onde o passamos está numa zona de Lisboa. Lembro-me da noite luminosa em Alcântara. Talvez seja uma das primeiras noites de que me lembro. Sem saber bem que a Avenida de Ceuta iria dar onde dá, ou que o 31 da Armada antecipava a Infante Santo ou que o rio iria dar à marginal e ao Atlântico. Mas lembro-me dessa noite inaugural, provavelmente antes do jantar de ceia. Lembro-me do dia seguinte e de presentes embrulhados com fitas brilhantes. As lembranças efectivas são de “partes da cidade”, “fases do Natal” (véspera e dia). Mas a envolvência era de uma natureza completamente diferente. Talvez porque as pessoas trazem consigo os seus Natais.

Um Natal é o que é e o que devia ser, como se trouxesse consigo o rosto da vida como nós gostaríamos que fosse. O Natal traz a vibração da vida possível que nós gostaríamos de ter, como nós gostaríamos de ser. E somos assim ou não. É a ficção de nós a sermos bons. E não só: o farisaísmo de querermos ser bons e merecedores. Ora o humano é quem é: humano. Tal pode querer dizer que não nascemos com nenhuma hominização. Somos influenciados pela ficção de toda a gente e não pela vida real das pessoas. Nós somos a nossa realidade e a ficção de quem gostaríamos de ser e de como a vida poderia ter sido. Na infância, contudo, a vida está por ser e os Natais têm como referência, durante essas semanas, a antecipação, a vida em redor de árvores de Natal, presépios, canções de Natal, filmes, contos e livros. Ah! E toda a gente estava viva e não tínhamos ainda tido tempo para as grandes decepções das nossas vidas.

Na juventude o Natal mantém ainda a traça dos natais da infância, mas começam a ser infames de alguma maneira. Há os enfeites de Natal na cidade, a casa das vésperas é a mesma, mas estamos a caminho para nós: da indefinição da infância ou da juventude indeterminada, estamos numa aproximação de nós próprios. O Natal metamorfoseia-se. O contraste entre possibilidade de ficção e brutalidade da vida acentua-se. Há os outros aí e a época das festas nos lugares de diversão são favorecidos. Pomos gorros de pai Natal e saímos à noite como se fosse uma noite só diferente, porque abriram-se as hostilidades. Lembro-me de vir de férias da Alemanha e era jantares todas as noites, muitas vezes com as mesmas pessoas mas com grupos diferentes. Tudo iria terminar algures depois da passagem do ano. Mas o Natal era etílico.

Agora, os natais sobrevivem a outros natais, tal como muitos de nós sobrevivem com os escombros da infância, promessas de juventude. Sobretudo, com quem não somos como adultos e já não importa muita coisa, a não ser fazer tudo para a vida dos mais velhos não piorar mais do que já é. Só agora os natais são futuros. O espectro da passagem de natais fora do seu acontecimento, como se fosse possível escolher uma nova religião ou ser colhido por um outro Deus sem Natal. Ou então, sermos e ficarmos completamente esquecidos de possibilidades inaugurais: de que a vida é possível, de que seremos como gostaríamos de ser.

Mas como podemos sobreviver à maior de todas as decepções: à decepção do amor que era a grande esperança?

26 Dez 2017

Poesia – Georg Trakl

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

 

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

Das raparigas os cabelos amarelos flutuam

Junto à cerca, onde estão os girassóis.

Uma carruagem dourada atravessa as nuvens.

 

Nas castanhas sombras, calam o silêncio

Os velhos, que estupidamente se abraçam.

Os órfãos cantam as vésperas com doçura.

No vapor amarelo, zumbem moscas.

 

No ribeiro, as mulheres lavam ainda a roupa.

Ondulam estendidos os lençóis de linho.

A pequena que há muito me agrada

Vem de novo através da noite cinzenta.

 

Do céu ameno, os pardais precipitam-se

Na direcção de buracos verdes cheios de podridão.

Iludem o faminto ante a convalescença

O aroma do pão e ervas secas.

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

Der Mädchen gelbe Haare wehen

Am Zaun, wo Sonnenblumen stehen.

Durch Wolken fährt ein goldner Karren.

In brauner Schatten Ruh verstummen

Die Alten, die sich blöd umschlingen.

Die Waisen süß zur Vesper singen.

In gelben Dünsten Fliegen summen.

Am Bache waschen noch die Frauen.

Die aufgehängten Linnen wallen.

Die Kleine, die mir lang gefallen,

Kommt wieder durch das Abendgrauen.

 

 

Romance à noite

 

O solitário, sob a tenda de estrelas,

Caminha através da meia noite silenciosa,

O menino acorda perturbado dos seus sonhos,

O seu semblante decai cinzento ao luar.

 

A louca chora com o seu cabelo desgrenhado

À janela que está inflexivelmente gradeada.

Ao largo do pequeno lago, num doce passeio,

Andam à deriva os amantes tão maravilhosos.

 

O assassino sorri pálido no vinho,

O horror da morte agarra os doentes.

A noviça reza ferida e nua

À frente do sofrimento na cruz do salvador.

 

A mãe canta baixinho a dormir.

Muito tranquilo a criança olha para a noite

Com olhos que são completamente verdadeiros.

Na casa de putas, soltam-se gargalhadas.

 

À luz da vela no buraco da adega

O morto pinta com mão branca

Um silêncio sorridente na parede.

O adormecido sussurra ainda.

 

 

 

Romanze zur Nacht

 

 

Einsamer unterm Sternenzelt

Geht durch die stille Mitternacht.

Der Knab aus Träumen wirr erwacht,

Sein Antlitz grau im Mond verfällt.

Die Närrin weint mit offnem Haar

Am Fenster, das vergittert starrt.

Im Teich vorbei auf süßer Fahrt

Ziehn Liebende sehr wunderbar.

Der Mörder lächelt bleich im Wein,

Die Kranken Todesgrausen packt.

Die Nonne betet wund und nackt

Vor des Heilands Kreuzespein.

Die Mutter leis’ im Schlafe singt.

Sehr friedlich schaut zur Nacht das Kind

Mit Augen, die ganz wahrhaft sind.

Im Hurenhaus Gelächter klingt.

Beim Talglicht drunt’ im Kellerloch

Der Tote malt mit weißer Hand

Ein grinsend Schweigen an die Wand.

Der Schläfer flüstert immer noch.

 

(Traduções de António de Castro Caeiro)

19 Dez 2017

Estigmatismos

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma das características dos modernos foi a tendencial afirmação da subjectividade. A descoberta de cada um de nós como sujeitos individuais, mais do que sublinhar a nossa singularidade, é uma forma de atomização. O nosso ponto de vista tal cartesiano é estigmático, monocular, ciclópico eventualmente. Mas mais do que tudo esta operação, nas descrições de Descartes e Kant, é uma revolução, pelo menos no interior do horizonte cognitivo, epistemológico, ou como os antigos lhe chamaram teórico. Esta revolução deve poder restituir-nos o lugar merecido não só no planeta, nem tão pouco só no universo de que há em nós, mas no ser, o que quer que “ser” queira dizer. Eu penso-me a pensar coisas pensadas. O “-me” é o primeiro complemento, directo, “posto” com o “eu” sujeito de “penso”. Todas as coisas são por isso mesmo “pensadas”, particípio passivo, resultante do impacto da acção do verbo sobre as próprias coisas.

A situação não é nova. Um ponto de vista aponta para um alvo, mira-o. O que daí resulta é a distância entre o arqueiro e o alvo. A perspectiva produz o aspecto do alvo: a distância, a localização de arqueiro e alvo, o tamanho aparente do alvo, a configuração geométrica, etc., etc.. Entre a perspectiva e o aspecto abre-se um espaço estrutural, um prisma cónico, no interior do espaço mais alargado que o engloba. Podemos perceber que o modelo do arqueiro que faz mira sobre o alvo é analógico relativamente a todos os nossos objectivos, alvos, metas, propósitos, fins. Há sempre um ponto de vista que abre uma perspectiva que faz depender de si a aparição de uma coisa, que é sempre dada a ver com um determinado aspecto. Mas o aspecto não é uma coisa. De cada coisa tenho apenas o lado dela que está virado para mim e a descoberto. O lado de dentro de cada coisa, o lado de baixo, o lado de trás, as partes que podem estar eventualmente tapadas, nada disso eu vejo. Pomos lá esses lados ocultos e invisíveis, mas não os estamos a ver.

Outra coisa decisiva é que os lados das coisas, que estão descobertos e virados para nós, são sempre vistos pela perspectiva que se abre sobre eles. Se o ponto de vista mudar, muda a perspectiva e assim também se produz uma alteração na morfologia do que estamos a ver. O lado da coisa não é um aspecto. O lado da coisa a descoberto e virado para mim depende de mim para ser esse lado, a descoberto e virado para mim. Se virar uma mesa de pernas para o ar o lado de baixo da mesa, coincidente com o tampo da mesa virado para o chão, invisível e não a descoberto, enquanto olhava para ela há pouco com livros, a taça de café e tudo o que lá se encontrava, passa agora a estar à vista e a descoberto. É esse, agora, o lado visível e a descoberto, quando há pouco estava invisível e encoberto. O mesmo se passa quando pensamos nos lados de uma taça, o lado de dentro e o lado de fora, a sua apresentação côncava para receber o café e a sua apresentação convexa quando a arrumo na prateleira: côncavo e convexo são descrições geométricas de um mesmo objecto, mas são o inverso uma da outra. Uma mesa rectangular surge-me sempre conforme a perspectiva que me abre para ela como um trapézio, escaleno, isósceles, como um losango, mas nunca como um rectângulo. A deformação do aspecto da mesa não é uma deformação da mesa. As deformações são dinâmicas e conformam os múltiplos aspectos que as múltiplas perspectivas podem abrir sobre uma coisa, sobre o mundo envolvente, o milieu, o mundo.

Ao aproximar-nos do que quer que seja, parece aumentar de tamanho. Ao andar de um lado para o outro a parede do lado oposto ao que me encontro aumenta de tamanho, à medida que diminuo e tendo a anular a distância entre mim e ela e quando me viro a parede de onde parti na direcção desta parece menor e aumenta à medida que ando na sua direcção. Se me afastar de autocarro, sentado de costas para o sentido do destino, tudo diminui de tamanho. As bermas da estrada tendem a encontrar-se lá ao fundo, afunilam. O ponto de vista é o de um prisma cónico em que as coisas tendem a convergir para um ponto de fuga, deslizando rapidamente até esse ponto para desaparecerem por serem reduzidas a tal ponto que já não as conseguimos captar pela percepção óptica. Eu vejo-me a ver coisas vistas por mim. Eu penso-me a pensar coisas pensadas por mim.

Mas do ponto de vista mais alargado, percebemos que o mesmo se passa com os nossos objectivos, fins e metas a curto, médio e longo prazo. Os objectivos podem ser precisos e assomarem o horizonte porque os estabelecemos e fixamos. São fixos sempre num futuro. Não existem ainda na realidade, não foram realizados e não foram cumpridos. Mas criam sobre nós já agora uma tensão. Agem retroactiva e retrospectivamente sobre nós. Acendem-nos. Fazem-nos virar para eles. Dirigimo-nos para eles. Prosseguimos na sua direcção. Pode ser beber um café. Quando nos apetece beber um café, surge-nos essa vontade que nasce em nós. Nós não imaginamos a cena ou o conjunto de cenas que nos levam do quarto à cozinha, nem todas as fases do processo que está envolvido no fazer um café. Assim como ninguém quer a coisa projecta-se todo um conjunto de acções implícitas no fazer café que se vão desdobrar numa cadeia ordenada de elos, que têm a sua constituição intrínseca. Levanto-me, caminho até à cozinha, tiro a lata do café do armário, encho a cafeteira de água, ponho o filtro, o café no filtro, acciono o botão da cafeteira, espero que a água seja passada pelo café no filtro, encho a taça com café, deito um farrapo de leite e bebo. O que se passa entre a vontade que me dá de beber café e o momento em que bebo café passou tempo. Estar efectivamente a beber café é atingir o alvo do objectivo “beber café”. Querer beber café é a afectação do ponto de vista que abre uma perspectiva no mundo que constitui um dado auto-biográfico. Se não me apetecesse beber café, ficava sentado onde me encontrava sentado. Não “teria viajado” até à cozinha, não tinha usado o tempo daquela maneira. Não teria bebido café e o dado auto-biográfico teria sido completamente diferente: “passei a tarde a trabalhar e nem sequer me levantei para beber um café”.

Quantas decisões destas tomamos, quantas opções adoptamos entre o sim e o não, entre fazer e não fazer, entre levantar-nos e não nos levantarmos. Ao longo do dia podemos ter 100.000 pensamentos. São muitos segundos por minuto e muitos minutos por horas e horas num dia em que de um momento para o outro, num abrir e fechar de olhos nos pode dar para muitas coisas, nos pode apetecer muitas coisas. Querer ter essas coisas, cumprir objectivos, implica uma alteração do mundo, uma imposição da nossa perspectiva e do nosso ponto de vista que altera até a percepção da nossa casa: ora sentados onde estamos à secretária a olhar para as coisas, ora levantando-nos e afastando-nos da secretária. Vêmo-la mais distante e quando lhe viramos as costas não a vemos nem a parede que lhe serve de fundo. Vemos a porta do quarto e, aberta, o corredor e percorremo-lo até entrarmos na cozinha. E se antes víamos livros sobre a secretária, agora vemos a parafernália toda da cozinha. Se há pouco estava a ler e concentrado, agora a concentração é na tarefa. Posso ainda ter o sentido da última frase lida, mas a minha atenção está toda ela dada ao café. Talvez o nosso ponto de vista não seja estigmático e “eu” e “-me“ e “a mim” elementos complexos de uma lucidez ou de uma mente desdobrada. Veremos.

 

15 Dez 2017

Melancholia revisitada

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]correm-me imagens de cenas da vida familiar. Era miúdo. Viajávamos de carro. O Atlântico olhava-nos de sul. Era verão. Lembro-me perfeitamente de ver, deitado no banco de trás, as cópulas das árvores a passarem rapidamente no ecrã da janela lateral do carro. Tinham a abóbada de um azul crepuscular em fundo. Ao anoitecer, no outro dia, o sono trouxe-me ao convívio o avô e o pai. As avós não têm vindo. Não tenho justificação. Vem-me depois à lembrança estar estendido numa cama de rede, a olhar o céu azul de Agosto. Ramos de árvores e a sua parte superior destacam-se, salientando-se do azul do plano de fundo azul. Assaltava-me o espírito que não havia nenhum conteúdo “real” que me revelasse a diferença entre essa apresentação, por altura da minha adolescência e uma qualquer outra apresentação do passado, que alguém pudesse ter tido em séculos anteriores. A única diferença é haver passado tempo, uma diferença reconhecida por uma consciência. Aquela percepção era a primeira antes de começar o quotidiano das férias grandes, quando havia mundo.

Agora, não há quotidiano de férias. Não sinto já “aquele” primeiro mergulho atlântico, como outrora. Nem estou em lado nenhum sem trabalhar, nem espero fazer qualquer experiência de encantamento, de fascinação, ou do maravilhamento de estar vivo, uma experiência que apenas existe invariavelmente sob dependência de grandes expectativas, grandes esperanças, que inauguram antecipações a projectar o haver por acontecer, a alegria efusiva, um exaltação eufórica, sem perdas ou então minimizáveis.

É neste contexto que me surge, irradiando, centrífuga, excêntrica uma disposição melancólica. Vibra. É uma onda. Como atmosfera, envolve tudo. Não está circunscrita à percepção da cena onírica nem à percepção da lembrança do passado, com as suas geografias delimitadas. E só agora me acomete, exportando-se para mim agora, volvidos tantos dias já. Está aqui. Mergulha-me no seu clima, arrasta-me na corrente do seu próprio elemento. Dá-me a compreender como o tempo passou. Atira-me para a verdadeira dimensão em que existo no meu presente e não apenas na actualidade. Como o tempo passou! É a desolação que põe de pé vidas passadas e futuros a haver? Voltarei a existir em voo rápido? E depois é sempre a cair rapidamente, num voo em precipício. Por quem esperas? Por quem dos teus si-mesmos esperavas? Quem te salvará de ti da loucura de teres de conviver com a vida? A vida é a protagonista da tua vida? Essa figura complexa que tudo tinge, o tempo e o espaço da ciência que seriam sem a vida que faz deles tempo vital e espaço vital e me leva nas horas, horizonte a correr para o mar, em fluxo, a fugir. Tudo está dentro desse oceano, dessa correnteza? Que verdade encerra em si o piscar de olhos da melancolia? Deixa-me fora de mim ou vê-me num ápice e perpassa-me?

Talvez que se quisesse a morte, a morte era a última amiga a quem dirás sim, sem querer, mas desistindo. Sem quereres ir com ela, mas tu és eu, oh! morte. Eras tu por quem eu tinha esperado toda a vida e davas a entender que a vida era possível, todas as expectativas com preenchimento ou então com o mínimo de dor possível que não era possível. Todas as minhas esperas não eram em vão, tudo por que tinha lutado era obtido e conseguido, a minha vida não se perdia na permanência do que era suficiente, mas quando vinha um sonho era logo desfeito como se não fosse para mim.

O desconsolo vem da solidão em que sou eu a sós com o resto de mim, a seguir não há nada a não ser o vazio. Tudo sem mim cá, sem memória e, por isso, sem futuro. E continua-se-nos mais um dia.

Acordamos e mais um dia na convalescença, mas sem esperança de sair um dia, de rejuvenescer. Vou para onde decrépito, demente, em sofrimento, desolado: o desconsolo de não conseguir engolir nem líquido nem sólido, de os meus dentes não servirem para nada e não ouço e não vejo. De quando em vez, a mão é tocada, mas dói-me tudo quando me lavam e vestem. Não era como a minha avó me vestia ainda a dormir, para ir para a escola, como se de repente estivesse pronto, vindo de um sonho.

Os outros continuam cá mas eu não tenho inveja deles.

Eu vou e fico. Sei que fico durante algum tempo, depois o tempo passa, um ano ou dois. E o tempo passará até quando já nada nem ninguém remeterá para mim. Terei acabado. Só a morte trará consolação? A noite obscura da ausência.

 

15 Dez 2017

Amnésia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida tal como nos encontramos nela é espontaneamente metafísica. Tendemos a “produzir doutrina” sobre a vida. Temos opiniões fortes sobre o que é. Em cada situação em que nos encontramos, há tentativas e desistências de interpretação do que nos acontece, se estamos bem ou mal, se vamos indo, qual o estado em que nos encontramos, que impressão temos de todo e qualquer conteúdo. Não nos é indiferente percebermos ou não percebermos o que se passa, como se estivéssemos sob uma pressão contínua de saber que se manifesta de forma mais evidente, quando sofremos de incompreensão, não conseguimos perceber o que se está a passar.

É o caso, por exemplo, quando não nos conseguimos lembrar de “certas coisas”, de conteúdos específicos como nomes próprios de alguém ou, quando esquecemos “coisas”, tanto e de tal forma que nem percebemos como ficou “apagado da memória”, obliterado, desaparecido. O paradoxo da lucidez humana é que não podemos equacionar logicamente o que é e o que não é com o que existe e o que não existe ou com o que está presente e o que está ausente. Há coisas que nos escapam, sem dúvida, e não nos apercebemos de que nos escapam, pelo menos durante algum tempo. De outro modo, não falaríamos delas. Aparecem num estádio ulterior da vida e percebemos que estiveram inertes e inactivas num qualquer “lugar” da mente. Mas há situações que estão ausentes como um buraco negro visível, tangível.

A indeterminação determinável de um nome que não nos lembramos ou da presença emocional com que vivemos um momento do passado. Podemos perceber que nos esquecemos do que acontece não apenas quando fazemos a experiência desagradável de não nos lembrarmos de um conteúdo específico. O meu esquecimento do nome de alguém é o esquecimento inequívoco do nome dessa pessoa e não de outra coisa a respeito dela nem do nome próprio de outra pessoa. Mas o que acontece o mais das vezes é que o presente que se activa na actualidade transita para um reino da alma ou do passado, e esta transição é contínua.

A esmagadora maioria dos conteúdos de vida transitam da expectativa mais ou menos activa do futuro para o presente e da vivência mais ou menos atenta do presente para o passado. E no passado moram a esmagadora maioria dos conteúdos vividos, todos os momentos da nossa vida até agora, sem que estejam explicitamente lembrados, em pormenor, isolados uns dos outros, vistos no seu começo, meio e fim.

Se nos perguntarem pela banda sonora das nossas vidas, podemos recordar muitos nomes de canções, mas não nos lembramos da esmagadora maioria, o mesmo se passando para os livros das nossas vidas, pessoas que conhecemos, modulações disposicionais, vivências afectivas, estados emocionais, etc., etc..

A perda de actualidade do presente faz que o passado absorva e sugue todas as nossas vivências e a lupa do presente altamente sensível cria o núcleo duro do sentido e deixa tudo o resto para a sua periferia. Assim é quando há dissociação entre o rosto de alguém, outrora agente do fascínio e encantamento e esse rosto fora do sortilégio e do enfeitiçamento. Pode também acontecer que nos lembremos de todo o sortilégio, feitiço, encantamento e fascinação, mas sem rostos.

É assim que pode surgir toda uma época da vida, décadas até, a primeira juventude de coração selvagem. E, contudo, nem na altura tínhamos qualquer hipótese de percepção de uma presença contínua da vida na dependência e sob presença do fascinante que propulsionava futuro, abertura, possibilidade.

De caminho, há momentos em que nos surpreendemos a ser com o sentido indespedível da actualidade presente. Como foi que a vida veio a dar até esta orla? O que a transformou? Quem eu era e quem eu sou? Vultos do passado ficaram congelados num tempo sem tempo. Aparecem, às vezes, no sonho acordado nas tardes passadas ao largo, como fantasmas que quererão dizer alguma coisa, mas nem sabemos o que por eles sentimos e, por isso, também não percebemos o sentido das suas aparições. Rostos conhecidos e com nomes mas como se fossem completamente desconhecidos.

Uma pessoa é a sua aura afectiva, o halo que descontinua o ambiente específico da nossa vida e o altera, a mudança do clima afetivo em que nos conhecemos. E desconhecemo-nos como se tivéssemos sido vítimas de um ataque de amnésia. Não se trata de um apagamento das memórias de longo prazo, dos seus conteúdos. Na verdade, podemos lembrar-nos de tudo, mas como num sobrevoo em que vemos “assim como ninguém quer a coisa” toda a nossa vida e todos os seus conteúdos, mas como se tivesse acontecido a outro, como se não fosse a nossa vida, como se nós fossemos alheios de nós próprios, sem saber verdadeiramente quem somos.

Podemos perder memória de todos os conteúdos como quem não sabe dar-lhes um nome próprio e, ainda assim, sabemos quem somos.

Saber quem se é, é saber-se como se é, do que se é capaz em situações extremas. É estar exposto à atmosfera rarefeita mas translúcida do sentimento que nos faz sentir ser quem somos. Muitas vezes esse sentimento existencial diz-nos da desorientação e do desnorte, da desistência da espera, de quem não somos quem supostamente éramos para ter sido.

A necessidade de memória não dá a entender apenas a necessidade de recuperar o tempo havido. Sem recuperar o que foi, não há orientação possível para o futuro, para o trânsito. A lembrança do passado traz consigo a possibilidade da abertura ao futuro. A presença do passado ausente erige uma possibilidade onde se pode vir a ser.

A invocação do passado não é uma invocação do conteúdo vivido, do dado auto-biográfico, mas uma edificação do possibilitante, da esperança sóbria que é dada pela onda espontânea que nos sintoniza a nós no nosso tom, onde aparece o que os outros representam para nós e como eles definem as nossas vidas, a nossa disponibilidade para existirmos com eles no espectro disposicional onde a vida aumenta a sua potência, onde há futuro e não apenas a passagem do tempo de quem ficou para morrer.

1 Dez 2017