António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA jovem criada – Dedicado a Ludwig von Ficker 1 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde, junto ao poço, ao entardecer, Vemo-la, enfeitiçada, de pé, a Tirar água, ao entardecer. Baldes a subir e a descer. Nas faias, esvoaçam gralhas, E ela parece-se com uma sombra. Os seu cabelos amarelos esvoaçam E no pátio chiam os ratos. E fascinada pelo declínio, Baixa as pálpebras inflamadas. Erva seca em declínio Cai a seus pés. Die junge Magd Ludwig von Ficker zugeeignet 1 Oft am Brunnen, wenn es dämmert, Sieht man sie verzaubert stehen Wasser schöpfen, wenn es dämmert. Eimer auf und nieder gehen. In den Buchen Dohlen flattern Und sie gleichet einem Schatten. Ihre gelben Haare flattern Und im Hofe schrein die Ratten. Und umschmeichelt von Verfalle Senkt sie die entzundenen Lider. Dürres Gras neigt im Verfalle Sich zu ihren Füssen nieder. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag. 2 Silenciosamente, trabalha no quarto E o pátio há muito que está deserto. No sabugueiro, à frente do quarto, Um melro canta o seu lamento. Prateada a sua imagem, no espelho, olha estranhamente para ela, no lusco-fusco, E a imagem entardece pálida no espelho, E estremece perante a pureza da rapariga. Como num sonho, canta um criado na escuridão, E ela olha-o fixamente, abalada pela dor. Uma vermelhidão goteja através da escuridão. De repente, o vento sul sacode o portão. Die junge Magd 2 Stille schafft sie in der Kammer Und der Hof liegt längst verödet. Im Hollunder vor der Kammer Kläglich eine Amsel flötet. Silbern schaut ihr Bild im Spiegel Fremd sie an im Zwielichtscheine Und verdämmert fahl im Spiegel Und ihr graut vor seiner Reine. Traumhaft singt ein Knecht im Dunkel Und sie starrt von Schmerz geschüttelt. Röte träufelt durch das Dunkel. Jäh am Tor der Südwind rüttelt. 3 De noite, sobre o prado nu, Ela agita-se em sonhos febris. Amuado lamenta, no prado, o vento, E a lua está à escuta nas árvores Logo empalidecem as estrelas em redor E, exaustas de queixumes, As suas faces de cera empalidecem. Uma podridão exala da terra. Triste, sussurra o canavial na lagoa E, encolhida sobre si, gela de frio. Ao longe, canta um galo. Sobre a lagoa Dura e cinzenta, estremece a manhã. 3. Nächtens übern kahlen Anger Gaukelt sie in Fieberträumen. Mürrisch greint der Wind im Anger Und der Mond lauscht aus den Bäumen. Balde rings die Sterne bleichen Und ermattet von Beschwerde Wächsern ihre Wangen bleichen. Fäulnis wittert aus der Erde. Traurig rauscht das Rohr im Tümpel Und sie friert in sich gekauert. Fern ein Hahn kräht. Übern Tümpel Hart und grau der Morgen schauert. Na forja, retine o martelo, E ela apressada pelo portão passa. Incandescente o martelo o criado brande, E ela olha para ele como se estivesse morta. Como num sonho, ela é atingida pelo seu riso E cambaleia em direcção da forja. Agacha-se envergonhada com aquele riso, Duro e grosseiro como o martelo As centelhas espalham-se claras pelo espaço E com gestos impotentes, Ela procura agarrar as selvagens centelhas E cai aturdida por terra. Die Junge Magd 4 In der Schmiede dröhnt der Hammer Und sie huscht am Tor vorüber. Glührot schwingt der Knecht den Hammer Und sie schaut wie tot hinüber. Wie im Traum trifft sie ein Lachen; Und sie taumelt in die Schmiede, Scheu geduckt vor seinem Lachen, Wie der Hammer hart und rüde. Hell versprühn im Raum die Funken Und mit hilfloser Geberde Hascht sie nach den wilden Funken Und sie stürzt betäubt zur Erde. 5 Muito magra, estendida na cama, Acorda cheia de uma doce angústia E vê a sua cama suja Completamente coberta por uma luz dourada, As resedas ali na janela E a claridade azul do céu. Às vezes, o vento traz até à janela O hesitante tinir de um sino. Sombras deslizam sobre a almofada. Bate lentamente o meio dia E ela respira pesadamente na almofada, E a sua boca é como uma ferida. Die Junge Magd[1] 5. Schmächtig hingestreckt im Bette Wacht sie auf voll süßem Bangen Und sie sieht ihr schmutzig Bette Ganz von goldnem Licht verhangen, Die Reseden dort am Fenster Und den bläulich hellen Himmel. Manchmal trägt der Wind ans Fenster Einer Glocke zag Gebimmel. Schatten gleiten übers Kissen, Langsam schlägt die Mittagsstunde Und sie atmet schwer im Kissen Und ihr Mund gleicht einer Wunde. 6 À noite, esvoaçam lençóis ensanguentados. Esvoaçam nuvens sobre florestas mudas, Estão envoltas em lençóis negros, Pardais fazem alarido nos campos. Ela está deitada completamente branca no escuro. Debaixo do telhado, sopra um arrulho. Como no bosque à volta de uma carcaça negra Moscas redemoinham à volta da sua boca. Como num sonho, ecoam na aldeia castanha Sons de dança e violino. O seu semblante paira sobre a aldeia E o seu cabelo sopra em ramos desfolhados. Die junge Magd 6 Abends schweben blutige Linnen, Wolken über stummen Wäldern, Die gehüllt in schwarze Linnen. Spatzen lärmen auf den Feldern. Und sie liegt ganz weiß im Dunkel. Unterm Dach verhaucht ein Girren. Wie ein Aas in Busch und Dunkel Fliegen ihren Mund umschwirren. Traumhaft klingt im braunen Weiler Nach ein Klang von Tanz und Geigen, Schwebt ihr Antlitz durch den Weiler, Weht ihr Haar in kahlen Zweigen.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasErôs, eróticus, erótismus [dropcap]U[/dropcap]ma das palavras antigas mais difíceis de traduzir para as línguas contemporâneas é erôs. A sua versão adjectiva substantivou-se. O erótico assumiu expressão, contudo, de um conjunto de fenómenos que vai desde a pornografia em versão suave até ao amor romântico. O substantivo é nome de acção, exprime uma acção. Sem se fazer a experiência desta acção, não se percebe de que se trata. Tal como a semântica de caminho implica o caminhante, de outro modo o caminho não sai do sítio em que se encontra, estático e morto para a possibilidade que oferece. O grande teórico de erôs é Platão. Tão grande que podemos ter dúvidas, não terá sido Platão a inventar o fenómeno e a inculca-lo na humanidade. Enfim, há algumas características que o distingue do “amor” latino, tal como da “cupido”, mas importa mergulhar no coração do fenómeno, pelo menos como ele é expresso por Platão, e tentar perceber até que ponto se trata de uma palavra para referir o “sentido”, a “orientação”, a “direcção” que a vida toma. Em função da presença de um sentido numa ou noutra direcção, com orientações ou sem orientações, compreendemos que faz sentido ou não faz sentido nenhuma a vida que levamos, a vida que temos, a vida. Um dos componentes não negociáveis de erôs é a epithymia. A palavra compõe-se de um prefixo “epi-” e da variação do substantivo “thumos, -ou”, palavra que em sentido estrito quer dizer “ira” mas em sentido lato quer dizer todo o acontecimento disposicional, vibrações, modulações, estados de alma disposições do espírito. O prefixo quer dizer que o fenómeno é activo e nós estamos-lhe expostos quando acontece. É invasivo, dominador, deixa-nos no estado que provoca, com a impressão que cria. Mas o que é estranho e aparentemente paradoxal é o conteúdo da epithumia, do desejo, da ânsia. O seu conteúdo está ausente. A ausência do conteúdo por que ansiamos vivamente ou que muito desejamos não é nada. Antes pelo contrário é uma presença. Esta prasentia in absentia tem toda a nossa atenção. Por outro lado, o momento triunfal, meramente hipotético, da sua posse é projectado para o futuro. Sente-se já um anseio no presente de um acontecimento que a dar-se, dar-se-á no futuro, promete enquanto houver esperança, mas faz-nos desesperar pelo alongamento até ao infinito da espera. Mata de tédio. A falta, a precisão, a necessidade, a carência descrevem esta forma particular de anseio do erôs. Não é como se tivéssemos tudo o que precisássemos à nossa disposição, com níveis satisfatórios de contentamento. Só nos faltaria aquilo que especificamente não temos mas de que sentimos precisão e de que temos necessidade. Não. Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho. Ora, há tantos desejos, ânsias, necessidades, precisões, carências, conforme a escassez específica que temos relativamente às mais diversas coisas. Há um elemento “erótico” na relação entre sede e o que a mata, entre a fome e o que a mata, entre todos os apetites, todos os nossos desejos e o que os mata ou sacia. O erôs descreve resta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento. Mas erôs não se verifica obviamente apenas só na periferia concreta e indespidível do acontecimento humano. Refere até tudo aquilo que não sabemos que não temos. Há todo um conjunto de sentidos que não identificamos como sentidos que constituem a ausência por causa da qual as nossas vidas são por essa ausência e não por qualquer particular presença. E mais, o erôs perpassa todas as nossas vidas, desde antes de termos sido, durante o tempo em que existimos até ao derradeiro momento em que tivermos sido, mesmo que não vivido conscientemente, mesmo que antecipado apenas mas nunca verdadeiramente vivido, por já não fazermos parte deste mundo. Dizem que o melhor de tudo não é nem a saúde nem a riqueza, mas encontrar na vida o que se ama. E, depois, ser esse amor de vida.
António de Castro Caeiro PolíticaAngst “Lembro-me de ter acordado de madrugada numa manhã. Sentia uma tal atmosfera de possibilidade. Tu sabes, aquele sentimento. E eu… Lembro-me de ter pensado lá comigo: então isto é o princípio da felicidade. É aqui que ela começa. E, com certeza, haverá sempre mais. Nunca me ocorreu que não era o princípio. Era a felicidade. Tinha sido exactamente o seu momento.” Michael Cunningham, The Hours [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] estranho como a vida muda. Nem sempre para melhor. Quase sempre para pior. Percebemos que a vida mudou sem necessariamente termos percebido o exacto momento quando mudou. Mas o modo como a vida nos acontece é percebido melhor, por contraste. A maior parte do tempo, não somos surpreendidos por diferenças. É o que é, como tem sido. Nascemos e crescemos com estas estruturas de sentido. Aos domingos, sempre houve almoços de famílias, alegrias e tristezas, mas também a vida de todos os dias, domesticada como pôde ser pelo quotidiano das avós que nos criaram e da ausência diária de quem trabalhava, para regressar ao fim do dia. O que regimenta o quotidiano é tão complexo quanto as pessoas que existem e o convívio que têm ou não têm com outros. A liberdade onírica da infância talvez nunca mais regresse. Tinha criaturas inventadas pela nossa imaginação, jogos e brincadeiras que desfaziam a plástica habitual das divisões das casas e dos seus conceitos rígidos. Deixavam de ser salas de jantar para ser campos de batalha e os quartos da infância estavam cheios de possibilidades de que já não nos apercebemos. E nas diversas transições biográficas que existem, ida para a primeira escola e a habitação dos edifícios de educação e formação vão abrindo mundos, porque o número dos outros que conhecemos aumenta, amplia, cria mundos diferentes, habitados pelas vidas diferentes que temos à nossa frente e às que todos temos latentes, escondidas, mas que fazem de nós quem somos. E há a mudança da idade. Não muda apenas a altura, o tamanho, a pele, a voz, cresce e envelhece. Como se o tempo nos trabalhasse a partir do seu interior que nos esculpisse por dentro e por fora o corpo todo. O corpo é o órgão do tempo. Talvez, se não houvesse tempo não teríamos corpo, como não teríamos olhos se não pudéssemos ver. As primeiras épocas da vida, as várias infâncias e as várias juventudes tinham mais de onírico do que de realidade, pesadelos e amores de sonhos, não importa. O princípio tem em si o possibilitante a projectar-se, a adiantar-se para além do que está dado a ver com os nossos próprios olhos à nossa frente. Há personagens que encarnamos, porque dão um revestimento diferente às vidas, o desportista, o estudante, o político, exemplos radicais com queremos eventualmente dar sentido às vidas indefinidas, então, mas definíveis no futuro. E no princípio que permite adivinhar o que está por vir, há o encantamento, o emaravilhamento, com alguns dos outros, como se fosse um catalisador inebriante com a sua específica alteração não só de estados de consciência, mas da vida toda. O seu resultado era centrífugo, propulsor, tenso. Os dias de praia da infância eram criações tão perfeitas que nunca mais regressam, mas também as vésperas de sexta-feira à noite, quando se adivinha apenas com espanto e maravilha o que a noite pode oferecer, mas nunca oferece, nem que levemos para casa o que queríamos. Nunca nada é realmente o que foi quando era uma mera possibilidade. A realidade recorta toscamente a possibilidade. E tudo era véspera de tudo, sem nunca se estafar, o último dia de aulas antecipava as férias e o último dia de férias antecipava o primeiro dia de aulas. E tudo era a possibilidade romântica sem o recorte da realidade. A cara de alguém incendiava vidas e nunca seria a cara do dia seguinte. E os corações eram só selvagens e tudo era apenas sob tensão do por ser futuro, do advento quase religioso não da segunda ou terceira vindas, mas do que era então a única vinda, a única presença por toda a nossa vida. Mas não é só a decepção de uma ilusão. Há dias bons e não os três meses em que estávamos de férias do mundo. Há dias bons e não os semestres que vivemos com o entusiasmo de principiantes. O primeiro olhar não é só promessa é já a despedida. E, contudo, não é só isso. De quando em vez chega até nós réplicas leves dos abalos sísmicos do passado, de verdadeiros terramotos que alteraram as morfologias das nossas vidas. Não conseguimos invocar já o poder daquelas emoções, dos sentimentos fortíssimos com que vimos alguém pela primeira vez. É já não percebermos como chegamos onde estamos e temos vivido há décadas assim, como se nos aguentássemos como podemos, mas sem plano e definitivamente sem itinerário. É este caminho para nenhures? É?!
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAmpliação e redução “…a graça liliputiana das velas brancas sobre o espelho azul onde elas pareciam borboletas adormecidas, e alguns contrastes entre a profundidade das sombras e a palidez da luz.” Marcel Proust “The Colossus”, Goya [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inegável que vamos conhecendo pessoas ao longo da vida. Desde sempre se estabeleceu contacto com um círculo mínimo de pessoas. O contacto está já desde sempre estabelecido. Não se dá o caso de virmos a conhecer alguém que já vimos. O contacto está feito e já pronto. Crescemos dentro desse mar onde há gente. Aparecemos também aos outros desse modo. Para os que já estão temos a vida marcada e é por nós que esperam, a mãe e o pai, os avós e família mais chegada, amigos próximos, vizinhos. Há outros que conhecemos à medida que o tempo passa. Dão-nos o mote, o tom, a melodia, o ritmo, a música própria das nossas vidas. Nós compomos também em conjunto a melodia de nós para eles. O ritmo e o tempo não são inteiramente particulares ou individuais. Extravasam para fora das nossas vidas, mas às vezes é difícil de perceber que os outros desde sempre escutaram a mesma banda sonora que nós e fizeram a mesma experiência que nós, ainda que pudessem não a ter verbalizado. Mas há formas de conhecermos os outros que são acentuadas e marcaram as nossas vidas de diferentes modos. Talvez fosse outra forma de magia diferente da primeira, onde o local de encontro era a casa onde nascemos, a praia onde mergulhamos pela primeira vez, a casa de férias, a nossa cidade. Os sítios são feitos pelos encontros. Os outros connosco fazem os sítios, anulam-lhes o carácter factual e constituem-nos como horizontes de sentido e de significado. Há outros que encontramos em sítios mágicos em tempos inaugurais. O primeiro dia de aulas e o colega ou a colega de carteira, com quem vamos ter ou quem encontramos no recreio. Porquê estas e estes e não aquelas ou aqueles? Que espécie de sentido outro diferente dos que dão a matéria à percepção nos permite detectar afinidades electivas? Os encontros pressupõem uma escolha ou são eles que constituem as afinidades e assim a escolha? Os encontros e os desencontros são muito mais do que princípios básicos de atracção, sobretudo na infância, embora haja paixão na infância, mas é diferente daquela que depois mais tarde na vida acontece para nos marcar a carne e o espírito a ferro. Um encontro com outro na escola ou com os miúdos novos que vieram para o prédio, aqueles que encontramos na praia com os pais de férias ou os que vamos encontrando no liceu, na faculdade, no emprego, no ginásio dá-se não porque duas pessoas têm uma percepção mútua uma da outra, mas porque há um horizonte de sentido e significado que vibra de uma forma tal que os outros podem ser percebidos por nós e nós pelos outros mas de uma forma completamente diferente. E um encontro pode não ser apenas a dois. Pode ser em grupo. Pode haver um conjunto de pessoas com quem temos afinidades, um mesmo encanto e um mesmo fascínio estão a forrar o tempo que é sempre marcado, a escola, o liceu, a faculdade, o ginásio, o emprego. Pode ser só duas semanas e nunca mais vamos ver essa pessoa. Ainda que não desaparece é apenas um conteúdo onírico que assome ao horizonte de quando em vez já com o rosto desfocado. Pode ser anos e décadas. Há pessoas com quem convivemos décadas e que desaparecem. Regressam a um campo de latência e desaparecem. Podem desaparecer sem nos lembrarmos bem de como era com eles. Às vezes têm uma presença nítida do seu perfil característico. É como se estivessem connosco na sala vazia onde se escreve uma carta, mas pode ser no trânsito, quando tudo está parado e passa na rádio uma melodia ou então sem nenhuma razão aparente. Uma vida humana tem essas vidas todas em si. E o próprio, protagonista de uma vida ou personagem secundária na vida de outros ou até só figurante, é composto destas múltiplas pessoas que são os terminais das nossas mais diversas relações e comportamentos. É estranho como de nada se convertem em gigantes nas nossas vidas, mas como também antes de desaparecerem são liliputianos. Entre a ampliação hipertrofiada de alguém na nossa vida e a sua redução a uma memória fugidia tem de haver alguma verdade. Ou a verdade é sempre entre os Yahoos e os Liliputianos que somos nós uns para os outros, mas sem um verdadeiro enfoque, sem uma verdadeira sintonização?
António de Castro Caeiro PolíticaA repetição [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azer uma viagem não é locomover-nos. O tempo de uma viagem não é o tempo da deslocação. A repetição quotidiana de uma viagem converte-a em deslocação. O caminho de casa até à escola ou até ao ginásio nas primeiras vezes é diferente de quando já faz parte das nossas vidas. A distância entre o sítio onde vivemos e o sítio para onde vamos de férias ou até viver não é medida apenas em quilómetros. Não, nas primeiras vezes. Não, sem antes a viagem ter sido feita vezes sem conta ou raramente, a ponto de nunca lembrarmos a experiência que fizemos durante as primeiras vezes, quando vamos a um local ou a um sítio. A primeira vez que vamos a um sítio: impermeabilidade, estranheza. Quando vamos pela primeira vez a um sítio, fazemos a experiência do que a filosofia chama “objecto”. É uma experiência de resistência. O sítio está impermeável. Não que nos seja vedada a entrada, mas desde a aproximação à entrada até que estamos lá dentro sem nos conseguirmos bem orientar, por não sabermos onde se encontram os lugares das coisas, tudo parece barrar-nos o caminho. Pode ser a escola. O edifício é opaco e maciço. Entramos. Não sabemos se a sala de aula é à esquerda ou à direita ou nos andares de cima. Onde estão as casas de banho, cafetarias, cantinas, bibliotecas, o pátio do recreio? Todos os outros são desconhecidos: colegas e alunos. Estamos lá e não chegamos ainda completamente. É preciso fazer a travessia do dia, cumprir horários. É preciso que passe uma semana, um mês, um trimestre ou semestre. O tempo qualifica a duração. Passado tempo não é como se a estranheza, a impermeabilidade, a opacidade se mantenha. Abrem-se janelas, entramos por portas, na verdade, portais do tempo transportam-nos como vasos comunicantes que diluem a rigidez. Não vivemos já na antecipação provocada pela ignorância. Interiorizamos os espaços. O tempo assimila os sítios, a escola inteira. Vestimo-nos da escola inteira onde passamos a caber ou onde tem cabimento a duração qualificada do tempo que lá passamos. Quando passamos pela escola da infância ou pelo liceu da juventude não vemos já só a fachada ou o lado visível que oferecem a ver. Podemos nem lá entrar através da nossa memória ou imaginação. Podemos não invocar estórias do passado. E, contudo, é completamente diferente ver agora os edifícios de fora e quando os vimos pela primeira vez. Entramos por eles adentro, ensopados nas suas vísceras, que não é apenas a sua geografia específica, mas nós e os outros que lá vivemos dentro, no âmago do seu ser. Quando regressamos a um local onde vivemos há muito tempo, fazemos uma experiência idêntica à que fazemos quando passamos pelo velho liceu, já desactivado. É um sítio a céu aberto e não um local fechado. Mas se nos lembrarmos do momento quando lá chegamos, temos a percepção de que se tinha apresentado também de uma forma impermeável. Chegamos à estação de comboios ou ao aeroporto ou como quer que seja à rua onde vamos viver. A fachada do prédio esconde os andares e as escadas e as pessoas que lá vivem no interior dos seus apartamentos. Ao entrarmos não sabemos onde nos leva o corredor, onde fica o nosso quarto, a casa de banho, a sala de estar, a cozinha. Não sabemos qual é a qualidade da luz no inverno e no verão e como a casa toda falará connosco e se apresentará acolhedora ou inóspita, vazia ou cheia de gente real ou imaginada. A mesma impermeabilização veda a nossa entrada imediata nos locais por onde se distribui a nossa vida: faculdade, cantinas, bibliotecas, ginásios, edifícios públicos, locais de lazer, casas de amigos que ainda não conhecemos. Um dia vivemos a cidade do lado de dentro, metáfora do útero ou do coração que mede o pulso, o ritmo da vida, a interioridade onde se dá a assimilação da nossa vida pela cidade e os outros que lá se encontram. A primeira vez de todas as primeiras vezes é quando somos assimilados, e a nossa vida é tragada pelos sítios por que o tempo das nossas vidas se distribui. Mas pode ser a vida toda, o horizonte temporal de que dispomos mas nada conseguimos fazer dele. Podemos rever os sítios da geografia singular das nossas vidas, os itinerários que os ligam, o tempo que há para viver. E, contudo, podemos não regressar. A vida segue sempre em frente e nunca permite um regresso. Espacialmente, deslocamo-nos até onde vivemos. Temporalmente, nunca. Fui a um desses sítios da minha vida e não houve repetição. Atravessei ruas, vi as casas de pé, cheguei até ao rio. Vi erigirem-se cidades fantasma com os fantasmas daqueles que me constituem, mas já desapareceram como se com o seu desaparecimento também os sítios tivessem desaparecido. Estórias de possibilidade, esperança e expectativa estão por terra como pó que assentou. Tudo fica impermeável. Não neutro. Tudo é um possível havido que morreu.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasCaminhos tomados. Percursos feitos [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lex Cross (Morgan Freeman): Tu fazes o que és, Jezzie. Jezzie Flannigan (Monica Potter): Queres dizer tu és o que fazes. Alex Cross: Não. Eu quero dizer que tu fazes o que tu és, se nasceste com um dom. De outro modo, tornas–te boa em qualquer coisa ao longo da vida. E aquilo em que tu fores boa, não podes tomar como garantido. Não o trais. Jezzie Flannigan: E se tu traíres o teu dom? Alex Cross: Então, trais-te a ti própria. É triste. In A Conspiração da Aranha (Along Came a Spider, 2001) Somos o que fazemos. É inexorável. “Fazer” tem múltiplos sentidos. “Fazer” pode ser exercer uma profissão, executar tarefas, desempenhar funções. Tem um sentido eminentemente pragmático. “Fazer” pode querer dizer “agir”. “Agir” é “pôr em prática”, mas também “omitir”. É dizer palavras da boca para fora ou cheias de significado. Ou calar-se. “Fazer” exprime acções aparentemente incompreensíveis. É quando se pergunta o que alguém está a fazer. É o que sempre fazemos e temos feito. Fazemos também nada ou tudo e mais alguma coisa. Há uma razão para reduzirmos “ser” a “fazer”. O que é feito tem conteúdos e diversos, tem diversas camadas. Fazer enquanto trabalhar, produzir, agir, actuar, deixar estar tem o seu próprio sujeito. Somos o que fazemos em múltiplas frentes. O registo é biográfico. O seu espectro tão amplo quanto pode ser amplo tudo o que fazemos. Os interesses que temos, os nossos gostos, preferências, inclinações. O que fazemos resulta numa expressão de nós próprios. Fazer exprime o nosso ser. A nossa biblioteca de livros lidos, a discoteca com a banda sonora da nossa vida, os amigos que temos, toda a nossa produção profissional, consoante as profissões. Fazer é ser em acção. Mas pode ser também todas as palavras que pronunciamos e as que nem percebemos como nos vieram à cabeça. O que é feito, o que se faz, tem um conteúdo específico. Pode ser altamente especializado. Pode ser banal, como o café da manhã. Quando somos o que fazemos, num sentido mais radical, não queremos dizer que somos o conteúdo do que fazemos. Não é o trabalho feito, independentemente das mais diversas profissões. Há profissões quase que exclusivamente remetidas para os outros e percebe-se que não somos os pacientes curados, os alunos formados, os clientes satisfeitos, os cidadãos felizes. Todas as profissões e trabalhos têm o outro como pano de fundo, mas directamente podem não estar ao serviço do público. Há quem trabalhe no escritório, portanto, indirectamente com o público e quem atenda ao público. Fazer implica sempre um conteúdo e tempo, muito ou pouco. Pode fazer-se sempre a mesma coisa e pode fazer-se uma coisa uma vez na vida. O que se faz ou tem feito depende assim da vida que se leva. O próprio conteúdo da vida, fixo em diários, agendas e biografias, com o seu ritmo e o seu tempo- é o que fazemos. O que fazemos não é assim apenas o que produzimos, o resultado do trabalho, pensamento, palavras, actos e omissões. É também o tempo do lazer, quando não fazemos nada, desanuviamos, espraiamos, vamos apanhar ar. Há quem não faça nada a vida inteira. Há quem esteja sempre a fazer coisas. Ainda assim, oscilamos entre as horas em que fazemos o que fazemos e as horas em que não fazemos nada. Estamos sempre a fazer alguma coisa, então. A vida que temos é a vida que levamos. Todas as nossas acções resultam de escolhas. As escolhas implicam acções. Mas se somos o que fazemos, parece que reduzimos todo o nosso ser, a vida que levamos e temos, à ponta de um Iceberg. É, sem dúvida, a nossa realidade. Não podemos negar que fazemos o que fazemos, porque é esse o conteúdo das nossas vidas. O que fazemos expressa como conteúdo a nossa vida. E, contudo, há um elemento casual, acidental, no que fazemos. Os outros que encontramos influenciam as nossas escolhas. Seguimos rumos numa direcção e não noutras. Retomamos possibilidades abandonadas no caminho. Outras rejeitamos para sempre. Podemos fazer o que somos? Pode o fundo do nosso ser acontecer-nos primariamente e só depois pôr em prática o que quer que isso seja? Podemos ocupar-nos e todos temos de trabalhar, podemos fazer a vida inteira tudo sem termos sido nós próprios? A saudade de um talento nunca tido, a possibilidade de um dom nunca reconhecido, a oportunidade de uma abertura nunca havida. A vida pode ser o nada que é feito por não ter havido nada para ser. E, contudo, estamos continuamente forçados a ser, a ter de ser. Mesmo sem nunca termos sido nós próprios, até quando nunca pudemos fazer nada. Somos nada, quando nada fizemos. Somos nada, tendo tudo feito?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA jovem criada A jovem criada [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e noite, sobre o prado nu, Ela agita-se em sonhos febris. Amuado lamenta, no prado, o vento, E a lua está à escuta nas árvores Logo empalidecem as estrelas em redor E, exaustas de queixumes, As suas faces de cera empalidecem. Uma podridão exala da terra. Triste, sussurra o canavial na lagoa E, encolhida sobre si, gela de frio. Ao longe, canta um galo. Sobre a lagoa Dura e cinzenta, estremece a manhã. Die Junge Magd Nächtens übern kahlen Anger Gaukelt sie in Fieberträumen. Mürrisch greint der Wind im Anger Und der Mond lauscht aus den Bäumen. Balde rings die Sterne bleichen Und ermattet von Beschwerde Wächsern ihre Wangen bleichen. Fäulnis wittert aus der Erde. Traurig rauscht das Rohr im Tümpel Und sie friert in sich gekauert. Fern ein Hahn kräht. Übern Tümpel Hart und grau der Morgen schauert. A jovem criada Na forja, retine o martelo, E ela apressada pelo portão passa. Incandescente o martelo o criado brande, E ela olha para ele como se estivesse morta. Como num sonho, ela é atingida pelo seu riso E cambaleia em direcção da forja. Agacha-se envergonhada com aquele riso, Duro e grosseiro como o martelo As centelhas espalham-se claras pelo espaço E com gestos impotentes, Ela procura agarrar as selvagens centelhas E cai aturdida por terra. Die Junge Magd In der Schmiede dröhnt der Hammer Und sie huscht am Tor vorüber. Glührot schwingt der Knecht den Hammer Und sie schaut wie tot hinüber. Wie im Traum trifft sie ein Lachen; Und sie taumelt in die Schmiede, Scheu geduckt vor seinem Lachen, Wie der Hammer hart und rüde. Hell versprühn im Raum die Funken Und mit hilfloser Geberde Hascht sie nach den wilden Funken Und sie stürzt betäubt zur Erde.
António de Castro Caeiro PolíticaDesistir [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]odos os meus dicionários tinham o verbo “desistir” riscado a vermelho. Desistir não era opção. Mas a vida não exprimia a insistência à beira da desistência, como tantas vezes acontece. Já não apetece. Perdeu-se o gosto, e, de seguida, o sentido. Fica-se farto. Poder vencer uma contrariedade não é vencer a adversidade. Há tantas formas de insistência quantos os seus objectos. Não desistir varia sempre consoante o seu complemento. Há tempos também diferentes. Pode parar-se para recomeçar mais tarde. Há recuos tácticos, para podermos avançar. É uma espécie de descanso activo, em que não ir e ficar permite perceber o quanto gostamos de uma actividade a que nos dedicamos, física e desportiva ou literária ou de qualquer outro tipo. Não desistir e insistir pode ser um comportamento gizado nas nossas vidas. Como se não desistir e insistir fosse uma opção, a qual, ainda que difícil, é a certa, uma maneira de ser, uma compreensão da própria vida. Aderimos ao que aderimos por gosto, amor, entusiasmo e paixão, actividades e pessoas, o que fazemos, tudo é assim descoberto. Como se não houvesse opção, dedicamo-nos a tudo o que começamos por entusiasmo ou com alguma dúvida mas sempre com espaço de manobra para progressão. Podemos dedicar-nos com devoção ao que quer que seja, e talvez toda a devoção seja acompanhada de renúncia. Na renúncia e na recusa, percebemos o lado negativo das nossas vidas. O lado positivo é o que fica registado nas nossas agendas e diários, define calendários e horários, a nossa vida tal como tem sido, com tudo o que fizemos e tudo o que não fizemos. Não desistir é não desistir do que temos feito, de alguém que faz parte da nossa vida, de nós tal como nos conhecemos. É como se houvesse um apego aos momentos inaugurais: os primeiros dias na prática de um desporto, os primeiros ensaios de um grupo musical, os primeiros dias de uma qualquer prática ou habilitação. E há um mundo de coisas e de pessoas que deixamos cair porque a devoção implica insistência, presença e tempo. O que acontece quando o que definiu as nossas vidas tende a perder o encanto, o fascínio, aquele filtro que cria para nós uma atmosfera e uma dimensão onde, como no amor, não há tempo? Há tempo, mas é como se não percebêssemos a sua passagem, tal como nos sábados de outrora ou nos dias da infância, quando, diziam as avós, nos esquecíamos do tempo. Tudo aquilo a que nos dedicamos tem esse condão de esconjurar em nós o tempo em que reinamos e excluir o tempo todo daquelas coisas que têm de ser feitas mas sem gosto e contra a nossa vontade. Quando insistimos em ficar naquilo a que nos dedicamos é porque o amor perdido e a falta de entusiasmo, o fascínio ainda poderão ser ressuscitados. Não se sabe bem como, mas se lá ficarmos, se repetirmos gestos, se entoarmos canções, se fizermos cópias de textos antigos, se deixarmos que o tempo venha na sua onda magnífica de outrora, talvez o tempo do fascínio de outrora nos leve daquele instante parado, estagnado, sem por ir por lado nenhum. Pode ser um dia, uma semana, um mês, um semestre. Insistimos junto do fantasma do fascínio: um ginásio, uma sala de aula, um estúdio de ensaio. Pode ser também o pensamento de alguém que se eclipsou e foi, mas tentamos que fique, como se a nossa própria vida dependesse de fantasmas sob o eclipse, na latência das vidas. Mas é também em nós que insistimos, porque aquilo a que nos dedicamos, o que fazemos, define-nos na sua presença e no exercício da sua actividade. É nós que não queremos deixar ir, porque uma das figuras da morte é deixar-nos ir com quem amamos, quando o amor desapareceu. Não apaguei ainda o risco encarnado que expulsa o verbo “desistir” dos dicionários. Mas, como nos versos finais do poema “A Palavra” de Stefan George “Assim, com tristeza, aprendo a renúncia. Coisa nenhuma existe, quando lhe falta uma palavra.”
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAuto-decepção [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a antiguidade, um dos fenómenos considerados mais estranhos era a auto-decepção. Há várias expressões para formularmos este acontecimento. “Enganamo-nos a respeito de nós próprios”. “Estávamos enganados”. “Foi uma grande desilusão”. “Nunca pensáramos que tal viesse a suceder”. “Estamos na ignorância” tanto que “nem queríamos acreditar”. Em todas as formulações há ambiguidade quanto ao objecto, isto é, quanto ao conteúdo específico da decepção, do engano, da ignorância. Pode ser uma circunstância ou uma situação, circunstância ou situação que podem ser episódicas ou crónicas, avulsas ou continuadas. Há vários exemplos a considerar, dos mais anódinos aos mais complexos e dolorosos. Pensávamos que ia estar bom tempo para a praia e não estava. Pensávamos que a neve para fazer ski ia estar em boas condições. Pensávamos que os resultados eleitorais iam ser uns e foram outros. Mas há também crónicas, como o tempo que passa, que envelhecemos, ou como diz o povo, não estamos a ir para mais novos. Também nos enganamos sobre pessoas. Achamos que são de uma maneira e são de outra. Temos sobre os outros expectativas baixas e eles superam-nos. Assim como temos grandes expectativas para nos enganarmos. Nós próprios podemos ser essas circunstâncias episódicas e anódinas. Achávamos que conseguíamos ir, mas não fomos. Gostávamos de ser de uma determinada maneira e não somos. Decepcionamos, ferimos, enganamos. Umas vezes sem querer outras vezes por querer, com gosto e com vontade. Mas a auto-decepção dos antigos era mais esquiva. É mais difícil de identificar. É uma decepção que tem origem no si mesmo e que fere ou atinge esse mesmo si mesmo, esse protagonista estranho da vida. Diferente de todos os eus, de todos os eus que cada um de nós é na relação distinta que temos com cada um dos outros. Somos diferentes com todos os nossos amigos ainda que sejamos os mesmos. Somos diferentes com irmãos, irmãs, pais, mães, tios, tias, avós, porque temos uma relação construtivamente diferente com cada um deles. E somos diferentes porque com cada um deles é-nos pedido, exigido, reclamado ou dado sempre o diferente. A auto decepção é a do si, a do “heautos”, uma qualidade estranha do que é próprio. Qualidade estranha porque é o que cada um de nós propriamente é, não os eus que cada um protagoniza, mas o próprio dos próprios. Simultaneamente é o que está mais afastado de nós, porque não nos tornamos ainda em nós próprios. O si é extenso e prolongado do primeiro ao último instante da nossa vida. Mas o si não é apenas o da realidade, aquele si do indicativo, que foi, é e terá sido. É sempre o agente complexo do condicional. O protagonista do que poderia ter sido e não foi e do que não deveria de todo ter sido e foi mesmo o que aconteceu. O agente do condicional irreal confronta-se com a realidade, sem dúvida. Sabe que o que é é mesmo o que é e o que não é é mesmo o que não é. Mas tem uma ânsia que tudo fosse de uma maneira diferente. Em certa medida o si próprio projecta-se do futuro em direcção ao presente e ao passado. Projecta-se de um modo normal a partir das suas expectativas reais, que haja continuidade, que todos estejam bem e de saúde e o próprio também. Depois projecta-se como num sonho. Tem aspirações e vontades que saem para fora do que é normal. Atira-nos para fora da vigília, eleva-nos ao horizonte onírico onde podemos dormir acordados. Faz-nos vibrar em dimensões contrárias, diferentes da própria realidade. O si próprio é também o horizonte do inferno e do pesadelo. Leva-nos aos sítios esconsos, aos lugares mais recônditos onde fomos, estivemos e habitamos. Relativamente a esses sítios intoleráveis, o irreal é a realidade. A própria realidade da vida que tínhamos parece ser um sonho que não conseguíamos ver enquanto estávamos a viver a nossa vida despreocupados com o que havia. Do ponto de vista do si, na sua viagem ao pesadelo do inferno, a nossa vida de todos os dias, neutra, passageira, anódina, leve parece ser um horizonte onírico onde viver é quase bom. A auto-decepção resulta nisto: não percebemos bem o que temos nem conseguimos fazer uma avaliação concreta, muito menos não influenciada por nós próprios. Parece que tudo pode ser sempre melhor e que o que há é mau ou aborrecido. Mas quando os factos da vida nos mostram efectivamente sem apelo nem agravo como podem ser as coisas na dimensão onírica do inferno, a vida de todos os dias é o nosso paraíso perdido.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPoesia de Georg Trakl A jovem criada[1] Dedicado a Ludwig von Ficker 1 Amiúde, junto ao poço, ao entardecer, Vemo-la, enfeitiçada, de pé, a Tirar água, ao entardecer. Baldes a subir e a descer. Nas faias, esvoaçam gralhas, E ela parece-se com uma sombra. Os seu cabelos amarelos esvoaçam E no pátio chiam os ratos. E fascinada pelo declínio, Baixa as pálpebras inflamadas. Erva seca em declínio Cai a seus pés. Die junge Magd Ludwig von Ficker zugeeignet 1 Oft am Brunnen, wenn es dämmert, Sieht man sie verzaubert stehen Wasser schöpfen, wenn es dämmert. Eimer auf und nieder gehen. In den Buchen Dohlen flattern Und sie gleichet einem Schatten. Ihre gelben Haare flattern Und im Hofe schrein die Ratten. Und umschmeichelt von Verfalle Senkt sie die entzundenen Lider. Dürres Gras neigt im Verfalle Sich zu ihren Füssen nieder. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag. A jovem criada 2 Silenciosamente, trabalha no quarto E o pátio há muito que está deserto. No sabugueiro, à frente do quarto, Um melro canta o seu lamento. Prateada a sua imagem, no espelho, olha estranhamente para ela, no lusco-fusco, E a imagem entardece pálida no espelho, E estremece perante a pureza da rapariga. Como num sonho, canta um criado na escuridão, E ela olha-o fixamente, abalada pela dor. Uma vermelhidão goteja através da escuridão. De repente, o vento sul sacode o portão. Die junge Magd 2 Stille schafft sie in der Kammer Und der Hof liegt längst verödet. Im Hollunder vor der Kammer Kläglich eine Amsel flötet. Silbern schaut ihr Bild im Spiegel Fremd sie an im Zwielichtscheine Und verdämmert fahl im Spiegel Und ihr graut vor seiner Reine. Traumhaft singt ein Knecht im Dunkel Und sie starrt von Schmerz geschüttelt. Röte träufelt durch das Dunkel. Jäh am Tor der Südwind rüttelt.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias“Affairs” humanos [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]êm início relações humanas, mas não têm fim. Acabam mas não no sentido em que é como se nunca tivessem sido. Pelo menos, não, algumas. Mas talvez falemos de relações humanas, daquelas que se travam no núcleo duro das nossas existências, aí onde a batida cardíaca ganha o seu bombear. A própria expressão “relações humanas” é complexa e ambígua. Todas as relações do humano são humanas. O mundo em que vivemos está completamente revestido pelo ser do humano. Nós próprios reconhecemos de algum modo ser humanos. A relação do humano com Deus é humana, ainda que de Deus para nós possa não o ser, a partir de uma certa teologia. Tudo o que é humano é em relação: de si para si, de si para o mundo, de si para Deus, de si para os outros. Ainda, desde sempre que estamos remetidos para outros, outros que estão vivos e na proximidade espacial e afectiva. Outros também que sabemos terem existido, os antepassados que estão na boca daqueles que nos estão próximos, pais e mães dos avós, conhecidos contemporâneos deles. Pode ser também com um sem número de pessoas que constituam a nossa árvore genealógica incógnita e as árvores genealógicas dos outros que conhecemos. Cada pessoa é constituída pela ausência de todas as pessoas que são condições de possibilidade da sua história, mesmo que não façam parte da sua história. Sem haver histórias para contar acerca delas que tenham sido vividas na primeira pessoa. Podemos ainda compreender que estamos remetidos para incógnitas futuras, quem serão, como serão, os nossos descendentes, os descendentes dos descendentes dos nossos familiares e amigos? Como são os pais para os órfãos de pais incógnitos? Todos nós somos um feixe complexo e emaranhados de relações com todas as pessoas que conhecemos e com todas as pessoas que não conhecemos, como se a nossa fachada apenas fosse a ponta de um iceberg constituído pela multidão de gente com quem convivemos mas também com a multidão de gente muito mais vasta, a perder de vista, que não conhecemos, a humanidade, as gerações de gerações passadas e futuras e todos os nossos contemporâneos que nunca veremos a não ser a porção finita e limitada das pessoas que conhecemos. Das pessoas que conhecemos, umas houve e há que sempre lá estiveram, pai e mãe e avós e tios e irmãos ou primos mais velhos, aquela parte da família que já vive quando acordamos para a vida. Outros há que conhecemos ao longo da vida, fomos tendo como amigos, como os outros que se tornaram nossos. Fazer um amigo é um acontecimento histórico, não apenas porque existe um momento em que não o conhecemos e um momento em que o conhecemos, mas também porque nós próprios somos diferentes se não tivéssemos conhecido essa pessoa. Seríamos diferentes, se não tivéssemos os amigos que temos. Seríamos outros. Nem saberíamos distinguir quem seríamos agora que somos conjuntamente com esses outros que se tornaram e ficaram amigos. Somos definidos pela presença de familiares e amigos que são os nossos. A sua presença é indelével. Podemos não os ver com a frequência com que os víamos nas tardes infinitas e oníricas da infância e da juventude. Podemos já não os ver. Houve outros que morreram e outros que se afastaram e ficaram, por isso, vida fora. E, contudo, vivem em nós, mesmo se não vivem já connosco. É que os interrogamos, quando queremos saber como reagiriam, o que fariam, que conselhos têm ou teriam para dar. A sua presença é completa, ainda que desaparecidos. São os nossos mortos, que cruzam as nossas casas e as asas das suas vidas desaparecidas batem ainda o ar das nossas cidades, fazem a corrente de ar que bate portas e estilhaça os vidros das janelas. Passam por nós com a densidade suficiente para lhes adivinharmos a presença. Há também aqueles que por um qualquer mal-entendido, bem entendido para uma das partes e mal entendido para a outra das partes, se afastam e irremediavelmente para sempre. Até podem reencontrar-se algures, décadas mais tarde, ao abrir de uma porta, ao dobrar de uma esquina ou lá ao longe. Não sabemos bem como os dois reagirão, se mal se bem. Se será indiferente e é como ver um fantasma já morto, mas que não enterráramos. Mas esses outros de que nos afastamos e nós afastados dos outros somos habitamos uma dimensão diferente do ser. Nunca nos despedimos e vive em nós a amargura da injustiça que fica em nós, objectiva ou só nossa. Viverá também talvez alguma alegria dos dias felizes, se calhar pouca, porque tudo se esfuma em face da tristeza e da melancolia. Não é é como se nunca tivesse sido. Ninguém desaparece como se nunca tivesse existido. A amargura atesta-o e a amargura é a abominação da desolação.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDias de outono [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo da comunhão é cada vez mais passado. É cada vez menor. Mais curto. É uma franja de tempo em que nos encontramos, como numa refeição, agora, quando há tempo. Cada vez mais almoços de trabalho e jantares de colegas. Cada vez comemos mais sós. Com a cabeça apoiada no armário da loiça. Engole-se a sopa da tigela, sem colher. Mete-se pão à boca. Não há tempo a perder. E para quê já nem sabemos bem. Uma interrupção mínima no que achamos que é o trabalho. Mas nem é tempo para o trabalho. Podemos perder tempo sem o lamentarmos. É o tempo em que estamos blindados a exercer uma profissão, o momento em que convivemos mais connosco. Nem é para reflectir ou para progredir. É para nos esquivarmos ao outro tempo vazio em que somos obrigados a ter que nos ver a sós connosco. Quando olhamos o abysmo de tudo a ser sorvido rapidamente, décadas de tempo engolidas, pessoas desaparecidas e as divisões das casas que se mantêm iguais. Talvez com os livros que envelheceram e ganham a cor do tempo. Tudo desbota, perde saturação e cor. Nos momentos em que se percebe a passagem do tempo, já nem tristeza se sente. É uma angústia colossal. Ciclópica. O início dos anos lectivos, os aniversários, o fim das férias grandes que agora é como se fossem as últimas. Não sabemos quantos de nós vamos sobreviver até ao final do ano lectivo, se vamos celebrar o Natal e vamos de férias. Quando o Outono chega, mata um Verão que não foi bem Verão a não ser porque a estação é quente. Já nem vamos à praia, nem temos tardes infinitas à espera do jantar, nem noites de véspera de dias grandes. Fazemos exactamente o mesmo que fazemos se não fosse Verão. Já nem saímos para lado nenhum. Ficar é ter partido. A estranheza dos sítios é essa. Tudo igual. Tudo muda, sendo igual. E inventam-se os sortilégios que nos resgatam um pouco ao abysmo, uma memória que voa até nós pesada com o bater de asas de aves antigas, já sem existência biológica. Frases musicais soltas das crianças que brincam no pátio da escola, como se as gargalhadas soltas tivessem sempre o mesmo suporte: crianças ou adolescentes à beira de mergulharem para o abysmo, sem perceberem que os dias dourados são estes, sem serem especiais a não ser por serem vividos por quem está a começar a vida e tudo é novo e nada é estafado. Fica tudo depois velho de mais, esbatido, esfumado, neutro. A idade em que toda a gente é gira ou o parece e o mundo é hospitaleiro, não há assassinos e ninguém traiu outrem só por ser. Só por ser traímos outros, sempre sem querer. Nem sabemos porque só por sermos ferimos outros. E somos feridos por outros. A ausência não é só a da distância. Nunca é, mas pode confundir. As fronteiras coexistem paredes meias em campos de vida que não se tocam já. E quando do passado vem alguém que ainda tem contas a prestar ou quer que lhe prestemos contas, não se apercebe que nada nunca chega bem, quando chega ao fim. Somos diferentes de nós e a distância a que nos encontramos dos outros é inexorável. Se houvesse uma abertura disposicional, dar-se-ia a viagem ao passado. A vibração, modulação, baloiço, embalo. Cair na juventude, na disposição de que tenho num breve lapso de tempo uma ténue penumbra, como uma brisa ou corrente de ar que me traz o aroma de então, o modo de sentir as coisas. O Outono transfigura a paisagem. Regresso ao ano lectivo de todos os anos lectivos. Nunca saí da escola. A disposição de uma vida cheia de salas de aulas, caloiros que pela primeira vez têm o primeiro semestre do primeiro ano. Já nem sei bem o que ensino e regressar à escola é regressar a qualquer coisa como uma prótese que me protege de não sei bem o quê: salas de aula e recreios e bibliotecas e jovens pessoas a quem ensino as condições de possibilidade da experiência. O fim da tarde é mortiço como é a vida toda transformada numa segunda-feira. Realmente o Outono é uma grande segunda-feira que não chega a terça, nem vem depois de domingo. O ano lectivo não tem as férias grandes entre si e o final do ano lectivo transacto. É um começo estilizado. Já sem início. Um começo falso. Tudo à beira do fim. Sinto brisas, ventos, correntes de ar, ventanias, tudo como uma inundação, um alagamento. Chegam aromas de paisagens improváveis com fragrâncias quentes. Entre obscurecimentos e o clarear da aurora, há uma iluminação irreal, tonalidades de Setembro. Tudo mergulha no Inverno que virá. Há uma saturação no ar que frustra o início. Disposição no seu sentido: Nada do que é parece. Não há dentro nem fora, nem entrada nem saída, nem fundo nem superfície. E, contudo, é frustrante este mega em mim. A mim.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasOs Corvos Os Corvos [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre o canto negro, precipitam-se, À tarde, os corvos com um forte grasnar. As suas sombras tocam, ao de leve, nas corças, E, às vezes, são vistos, de mau humor, a descansar. Oh! como eles perturbam o castanho sossego, No qual um campo se exalta, Como uma mulher que um grave pressentimento enfeitiça, E, às vezes, podem ouvir-se estrilar, Por causa do cheiro de uma carcaça que algures sentiram. E, de repente, dirigem o voo para norte E desaparecem, como um cortejo fúnebre, Na atmosfera que estremece de volúpia. Die Raben Über den schwarzen Winkel hasten Am Mittag die Raben mit hartem Schrei. Ihr Schatten streift an der Hirschkuh vorbei Und manchmal sieht man sie mürrisch rasten. O wie sie die braune Stille stören, In der ein Acker sich verzückt, Wie ein Weib, das schwere Ahnung berückt, Und manchmal kann man si keifen hören Um ein Aas, das sie irgendwo wittern, Und plötzlich richten nach Nord sie den Flug Und schwinden wie ein Leichenzug In Lüften, die von Wollust zittern. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag.
António de Castro Caeiro PolíticaNas ondas. Sob o signo de VW. [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre que a porta se abre. Já vi a porta abrir-se e fechar-se vinte vezes. A cada vez a ansiedade aumenta. De cada vez que a porta se abre, tem toda a nossa atenção. Olha-se com uma expectativa. É frustrada de cada vez. Sempre que a porta se abre, o que quer que alguém esteja a fazer, instalado na sala, é interrompido. A leitura atenta, os olhos postos na TV, a rádio escutada, a roupa a engomar ou apenas o estar lá, tudo isso, o que quer que seja que nos absorva e serve de terminal no mundo é suspenso. Olhamos para a porta que se abre sem saber quem lá vem, se não se enganou na porta. Podemos não estar à espera de ninguém como podemos estar à espera de alguém. Nos dois casos o olhar esboça em antecipação a partir do facto “a porta abre-se” possibilidades. Vem aí alguém. X chegou. Não é X, mas é alguém. Há decepção ou alívio. Poderia não se querer que alguém em particular chegasse. Ou não, o contrário. Poderia querer-se que alguém chegasse ou já tivesse chegado. Sempre que a porta se abre, interrompe-se a agenda do quotidiano: ler, coser, engomar, comer, sentar-se, distrair-se, assistir a…, escutar. Não é apenas a porta ser aberta. Um movimento empurra-a para dentro da sala ou puxa-a para fora. É a indicação dessa notícia: alguém vem aí. A interrupção do sentido do serão para quem se encontra na sala. A porta abre-se vinte vezes. Vinte vezes a sala desfaz-se como o campo em que as pessoas se encontram, inseridas na sala, a fazer o que estão a fazer. Vinte vezes cabeças olham na direcção da porta. Frustra-se a expectativa ou ela é preenchida. Enceta-se uma outra linha de acção. Regressa-se ao que se estava a fazer: bebe-se um golo de chá, volta a engomar-se, presta-se atenção ao que o locutor diz, o livro permite a leitura. Ou então, fala-se com quem entrou, pergunta-se e responde-se, puxa-se uma cadeira para se sentar à mesa, abre-se um novo rumo. O serão é descontinuado. O serão é retomado. Alguém entra na sala. Tudo se modifica. Não apenas porque a pessoa ocupa o espaço na sala que o seu corpo requer. O corpo é a fronteira da ocupação do lugar em que se encontra. A pessoa enche a sala inteira com a sua presença, mesmo quando não é vincada, quando a presença de alguém não nos diz nada, é apagada. Mas a presença de alguém pode ser intensa. Quem lá se encontra interrompe o que está a fazer, fica preso da conversa, contente ou triste. Os maples, a mesa de jantar, os candeeiros de pé alto e o suspenso do tecto, a rádio antiga e a TV, a tábua de engomar, toda as peças de mobiliário sem excepção, o chão alcatifado, as paredes e as janelas, o tecto, o espaço vazio entre os objectos e as pessoas, as pessoas que lá se encontram ficam revestidas pela presença de quem entrou, contaminadas por ele, como ele é contaminado pela sala toda e as pessoas que lá se encontram, banhadas pelo fluxo complexo em trânsito, os rápidos que são as existências de casa pessoa a fluir, na torrente do seu ser. A sala de jantar antes e depois é diferente. A mesa de jantar é diferente consoante são diferentes as pessoas que a ela se sentam para jantar. E há pessoas que não virão já nunca mais juntar-se a nós. A mesa de jantar povoada outrora é diferente e irrecuperável, agora que está despovoada, esvaziada desses outros que já não virão sentar-se a ela. A sala toda é diferente se for impossível que alguém entre já ou se for possível que alguém entre nela. A diferença não é apurada nos conteúdos. Podem ser exactamente os mesmos. Mas quando alguém já não se pode sentar à mesa connosco, estar na sala, nela tomar lugar, a sala é radicalmente diferente da sala quando alguém ainda pode vir simplesmente para lá estar connosco. Já não é habitável por esse alguém. A sala não admite ser alagada pela presença desse alguém. Ficou seca dele. Sem o seu revestimento, clima ou atmosfera. Ou melhor, a sala contém desse outro que desapareceu ainda vestígios da sua presença passada, o sofá vazio da pessoa que se costumava lá sentar, o lugar à mesa vazio, o armário onde ainda estão relógio e óculos, mas sem interacção. É lá que estão e ficaram. O espaço todo da sala esvaziado da presença, idas e vindas desse alguém. O desaparecimento, aspirado, implosão da vida de alguém para fora da sala para sempre desse alguém, ainda presente na sua ausência. À hora do jantar, sento-me no meu lugar. Vim mais cedo, para poder gozar um momento de antecipação. Esperar por ti, como costumava fazer, quando dizias para começarmos, que estava a chegar. Já não sobes as escadas como eu ouvia que subias por elas, a cadência particular do andar que sobe, o tom do contacto com cada degrau, o ritmo e a velocidade com que chegavas ao nosso andar. Já não metes a chave à fechadura. Ninguém metia a chave à fechadura como tu. Cuidadosamente, não para surpreenderes alguém num qualquer delito, mas porque não atinavas bem com a ranhura e depois giravas a chave na ranhura com velocidade e precisão. Abrias a porta da sala de jantar que dava diretamente para a porta da rua. Eu, agora, do lado de dentro finjo que sei que não virás. Abre-se a porta. A casa está agora cheia de gente estranha, hóspedes, jovens universitários. O exercício de antecipação é tão bem feito que estou mesmo na expectativa de que estás aí a rebentar. E não. Não vens. Não vieste. Não virás. A sala toda mergulhada no ambiente de expectativa da tua vinda é diferente da sala inteira quando lá estavas sentado. As pessoas existem de uma forma radicalmente diferente de como uma mesa está posta no meio da sala, com as respectivas cadeiras, pratos e talheres, o cesto do pão, copos, galheteiro e vinho. Quem lá se senta à mesa hoje vai e vem, dizem bom dia, bom apetite, até logo. A sala está num campo de forças diferente do campo de forças de outrora. Metamorfoseou-se. Tudo lá está como dantes. Tudo é diferente. Irreconciliável. É onde estou à espera. A sala de jantar não perdeu nenhuma mobília, nem cor, nem reposteiros, nem armários. Está, contudo, escaqueirada. Vazia da possibilidade de alguém. Cheia da impossibilidade de alguém que não vem. Os talheres inertes, o prato sem sopa, o copo vazio, o lugar por ocupar para sempre. Da mesa não sairás, porque já não podes vir. O mesmo da casa. Não regressarás à noite nem sairás de manhã. O mesmo se passa nas escadas, já não as sobes nem desces, a porta da rua, a esquina ao fundo, a cidade inteira, o mundo na sua totalidade indicia a tua ausência definitiva. O mundo é o mesmo na realidade física e material. É diferente. O mundo sem alguém que o habitou é uma transfiguração do mundo quando alguém que desapareceu o habitava. É isso que “me diz” a porta quando se abre e não deixa perceber a tua vinda. Vinte vezes a porta abre-se, mas já não vens.
António de Castro Caeiro PolíticaSobre a vida dos candeeiros [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma diferença entre recordar pessoas e ter lembrança de objectos. O processo, porém, parece, em tudo, semelhante. Cada objecto e cada pessoa são invocados individualmente ou em contexto. Cada parte de uma coisa e cada parte de uma pessoa são inseridos no acto da lembrança. A cada parte da lembrança corresponde uma parte da coisa ou da pessoa lembradas. Assim, quando me lembro de um candeeiro de secretária, do meu tempo de estudante aos 18 anos, lembro-me especificamente desse candeeiro e não de outro. Quando me lembro desse candeeiro verde, maciço, de lâmpadas gordas, à luz do qual costumava estudar, sentado à secretária, com os meus 18 anos, lembro-me dele nesse ano e não noutro. Surge-me numa situação particular, contudo. O candeeiro sobre a secretária, ao lado esquerdo. A secretária, lá ao fundo. Os livros sobre ela. Cada objecto tem a sua memória. O acesso da memória, porém, não é individual. Há sempre um contexto. O objecto surge-me sempre à frente, em cima de qualquer coisa, de pé ou deitado, próximo de outros objectos, etc. Etc.. Por outro lado, é inegável que o candeeiro é o candeeiro e nenhum outro objecto, cada coisa é uma coisa e não outra coisa. Mas mesmo que depositemos no passado objectos, podemos confundir as alturas em que estivemos presentes, face a face com esses objectos. O candeeiro pode ser lembrado como contemporâneo da secretária, mas eu posso não ter uma memória nítida da secretária. Posso pôr no passado a minha secretária actual. Sobre a secretária, “ponho” o candeeiro de que tenho uma viva memória. A secretária contemporânea do candeeiro não era a mesma de agora. Ou seja, podemos compor “as cenas” do passado com objectos existentes em tempos, ou alturas, diferentes. Há objectos que fazemos coexistir com outros objectos, mas sem qualquer direito à coexistência. De resto, não nos lembramos sequer de todos os objectos que eram coexistentes entre si, por exemplo, no nosso quarto de juventude, nem da sua disposição. Não conseguimos inspeccionar todos os objectos que estiveram presentes por exemplo nas tardes de Outono do ano lectivo de 1984-1985, que livros estavam em que estantes. Podemos lembrar-nos da cor da alcatifa, da roupa espalhada pelo quarto, mas há muitas coisas de que não temos uma presentificação. Não, pelo menos, não com o vigor com que me surgem os objectos que agora estou a ver à minha frente. Posso olhar para o conjunto infindável dos objectos que se encontram sobre a minha secretária, mas a janela da memória não me dá os objectos que estavam presentes naquela altura, contemporâneos do candeeiro verde. E, contudo, o candeeiro verde surge-me, agora, de um modo mais nítido do que o candeeiro que tenho à esquerda sobre a minha contemporânea secretária. Não sei porque me lembro dele, mas lembro-me dele muitas vezes. Aparece-me assim sem qualquer esforço de lembrança ou propósito. Impõe-se na sua presença. É catalisador da cena do passado de que me lembro. Enfraquece a eficácia da percepção contemporânea do tempo presente. Há uma memória afectiva daquele candeeiro tosco. Aquele candeeiro ressuscita os primeiros tempos em que comecei a estudar. Lembra-me os primeiros livros que li. Sobretudo, lembra-me da passagem de momentos em que vivia à deriva para os primeiros momentos em que passei a interessar-me pela presença do espírito guardada nos livros. Eram tempos em que se abriam avenidas para uma qualquer esfera do sentido, e não era real. Nos livros estavam encerradas formulações mágicas que conjuravam o ser das coisas. Escancaravam-se céus serenos e limpos ou então cheios de tempestades, de nuvens a passar rapidamente. A leitura de fórmulas mágicas criam climas frios ou quentes, secos e húmidos. Dão origem a tempos em que a travessia da tarde se fazia página a página. As palavras que compunham as frases eram compreendidas uma a uma, por composição, sem permitir uma inteligibilidade do todo que era a unidade mínima do sentido. Cada frase compreendida era ínfima relativamente a todas as frases que não eram compreendidas. Nesse esforço, a cabeça não pendia apenas em direcção das linhas da página dos livros, ao serviço do movimento ocular. Era no candeeiro que me fixava. Aquela presença tosca, metálica, de um verde feio. Mas a parte que sustentava a grande lâmpada branca pendia como um girassol iluminador sobre as páginas. Aquela “cabeça” com aquele “olho” iluminava por completo as frases todas das duas páginas abertas como se tivesse um “olhar” fulgurante, abrindo para o sentido. O candeeiro era o instrumento, o meio, a condição de possibilidade daqueles meus 18 anos e das décadas que vieram. Abria caminho. O candeeiro ganhava luz à escuridão. Arrancava horas ao sono. Permitia ressuscitar o espírito encerrado nos livros, levantado das letras impressas, mudas e cegas, se não as lermos. Permitia tocar com a alma, como diz ainda Aristóteles o sentido. Dava luz à escuridão da ininteligibilidade. A luz amarela incidia sobre a página aberta, com a força máxima que permitia distinguir com absoluta nitidez o branco do papel, plano de fundo para a forma dos caracteres impressos. Desse núcleo duro, irradiava até um campo de luz que se difundia até se dissipar por completo na obscuridade. Para lá desse halo de luminosidade, o mundo inteiro estendia-se na escuridão. Sentia-se a presença do mundo para lá das letras, existindo no horizonte de escuridão em que tudo mergulha, quando lemos. Mundos presentes, passados e futuros coexistiam extáticos e permeáveis uns aos outros, articulados pelo tempo da transição que faz continuamente a passagem irreversível de tudo. O mundo e a vida são abertos, contudo, por essa outra possibilidade oriunda da leitura nocturna. O candeeiro estará numa caixa de cartão, guardado numa dispensa qualquer. Pode ter sido deitado para o lixo. Já não ilumina nem páginas nem a noite que tinha 18 anos e era a do início do que havia de vir. Agora, esvoaça até mim. Está de dia sobre a secretária daquele tempo. Não tem finalidade. Tem a luz apagada. E, contudo, mergulhou para o horizonte de sentido, outrora opaco, para lá das letras. Transitou para um reino da alma, desmaterializado. Uma forma desse candeeiro habita ainda a minha existência. Faz-se sentir. É ele todo alma e só visto por uma alma. A sua presença não vem de uma capacidade de retenção ou lembrança do passado. A sua presença é testemunha de que não nos esquecemos nem do candeeiro, nem da secretária, nem dos livros, nem do nosso quarto, na casa dos pais, nem da rua no bairro, nem do bairro na cidade— aos 18 anos. Todas as coisas que compõem tudo têm de estar algures. Não se sabem bem onde, mas anunciam ainda a sua presença.
António de Castro Caeiro PolíticaNocturnos [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uanto tempo se demora a chegar? Demoramos tempo a partir. Nenhuma viagem coincide com uma deslocação. Estamos de partida semanas ou dias antes de partirmos. Demoramos tempo a chegar, mesmo tendo aterrado. Quanto tempo dura uma viagem? As semanas em que a antecipamos e as semanas de dias que vibrarão em nós. Há partidas sempre. Se calhar não fizemos senão chegar. Chegamos verdadeiramente? Partimos? Quando partimos o que deixamos? Quando chegamos o que encontramos? Há chegadas e partidas circunscritas ao quotidiano. De casa para o trabalho e de regresso. Dos sítios onde vamos até casa. Vamos de férias e regressamos. A distância também fixa a viagem. Sim: podemos estar à distância de poucos quilómetros ou até metros. Quando vou ver alguém no quarto ao lado para lhe perguntar coisas banais. Estás bem? Precisas de alguma coisa? Essa viagem curta pode ser dramática ou banal. Também podemos viajar durante um dia. Não é uma viagem habitual. E, contudo, a estranheza pode ser enorme. A língua desse sítio pode ser impenetrável, as ruas escuras e mal iluminadas. A roupa pode colar-se ao corpo. Encontramos alívio nos espaços gelados pelo ar condicionado. Viajar só e com amigos é completamente diferente. Com amigos podemos encontrar outras pessoas como encontraríamos se estivéssemos sós. Mas em conjunto a viagem é diferente. Sobretudo, se houver uma cumplicidade. Há várias cumplicidades, mas as mais intrigantes sempre foram para mim as que têm origem no espírito da palavra, no recorte da imagem fotografada ou pintada, no som do acorde. Macau é uma cidade de pé. Há hotéis que parecem bairros. Há também ruas que são as entranhas de uma cidade cheia de camadas. Onde se sedimenta a vida humana, em caracóis viscosos e peçonhentos, pássaros que são levados em gaiolas a passear, no cheiro das diversas cozinhas, nos interiores de casas onde pessoas falam no seu universo. Joga-se no casino como se fosse a metáfora da vida. Ganha-se ou perde-se. Na vida, talvez se perca sempre. Ecoam as cordas de uma viola, num rio ondulante. É calmo. Exposto, porém, a tufões furiosos que alagam as partes baixas da cidade. A chuva é como água que se solta de paredes cheias de vapor. Raparigas muito magras e de uma brancura só coberta pelo negro da roupa que trazem. Motas que atravessam o trânsito como se não houvesse amanhã. Conduz-se no sentido contrário mas numa mesma direcção. O lugar do morto é do motorista. Houve-se português falado por pessoas que há muito aqui vivem e também de chineses, coisa estranha. Como se fossem configurados por um horizonte onde nunca irão. Se calhar não terão de ir. Como eu aqui, sem perceber palavra alguma. Testemunho com espanto quem tem o talento de falar uma língua reservada para tantos que nela nasceram e para tão poucos que nela mergulham. Cheira a violetas, forte, azul. Chove sem cessar. O tufão açoita. Há uma electricidade no ar. Tudo à beira de implodir, como o corpo na roupa que faz escoar a vida. O fuso horário confunde o dia. Aqui e agora não é lá sabe-se lá quando. E não esperarei. Porque poderia partir e ficar sem tentar regressar, sem ter por quem regressar, sem querer regressar. Acordo e peço noodles. Volto ao Ardbeg. Vou para a cama já sem imaginação para o que quer que seja e vejo séries para adormecer. Perguntei-te se esperava por ti. Não. Não era para esperar. Foi uma figura de retórica. Já vivo no oriente onde é casa só com a referência das horas de todos os dias. Olho o meu corpo irreconhecível e é para mim como o Chinês que ouço, as cores berrantes das lojas. O longe de onde parti e a que nunca regressarei. Querendo, não saberia como. Já só de caminho, já sem saber a que regresso, de onde parti e para onde vou. Houvesse uma rotina com um itinerário e eu saberia com disciplina adormecer. Mas entre mim e mim há a noite. E se o dia é difícil ao princípio, a meio da tarde vem a dobra. Com o jantar, encho-me e encharco-me. Com a noite vem a anestesia para o que não é dor, porque nada me dói. E preferiria o desespero, com os olhos postos no futuro para sempre. Preferia isso a “isto”. Já nada esperar. “Ao longo da viola morosa”, “mas já sem coração que me prenda”. Primeiro, esqueço-me de ti, dela, dele, de vós, de nós, dos outros. Depois, esqueço-me de mim. Oblitero-me e só ecoa a viola morosa com acordes que vêm de aves estranhas. O som agudo da tristeza é dilacerante. Já não me revejo, nem escuto, nem ouço. “Mas que cicatriz melindrosa”. Entre idas e vindas, textos lidos e por escrever, jantares com os sabores da Tailândia e cheiros opulentos. O picante exige cerveja. “Ao longo da viola morosa”, há quem tenha vidas. Eu, porém, queria partir, sem chegar. Ou estar só por estar. Buscando o quê, quando me queria despedir de mim e não tenho talento. Vistas as coisas, nada mais há. A não ser a espera. Nem é tristeza. É uma incompetência incómoda e desagradável. Trabalho a partir do interior do que quer que seja que é interior a extirpação da espera. Há ainda um resquício humano que em mim faz que pudesse esperar. Mas o que mais gosto de ver é o tufão que vem me faz não ser vulnerável, nem estar exposto a nenhuma maré, a não ser à definitiva.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDobras [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] passar do tempo em que me confundo com as paredes do quarto onde me encontro, as que estão à minha frente, não as que estão atrás das minhas costas, mais especificamente esta extensão de parede que serve de plano de fundo à janela, através da qual vejo apenas farrapos de azul e ramos de uma árvore, e não do tronco até à raiz. O passar do tempo funde-me com o que tenho perante mim, infinitamente mais contraído do que o que não vejo, o tecto ou o chão. E é agora que me distraio da página neste dia de Dezembro de há 20 anos. Entrei por essa dobra temporal do tempo em que não havia pequeno almoço nem início do dia, nem almoço, nem ninguém, só eu e a casa, ou o mundo todo fechado nesse agora em que entro e me faz perder totalmente a atenção ao presente. Esse agora passado enquanto era vivido, tinha já em si contraídos os vinte anos que se seguiram? Há instantes que são entornados para o vasilhame de água em que vivemos. Embora não nos apercebamos de que estamos mergulhados em não se sabe bem o quê, verdadeira corrente e fluxo do tempo que muda, envelhece e mata. As águas do tempo são diferentes das reais, porque são habitualmente imperceptíveis e o seu calendário é multidimensional. A vida nessa dimensão do tempo não é unidimensional nem partilhável com todos como os dias são. Podemos surfar do presente para o passado e para passados cada vez mais antigos ou dar saltos para o futuro ou ir e ver do futuro para o presente e do presente para o passado e do passado para o futuro e do futuro para o passado. Também podemos viver na fantasia onírica do que poderia ter sido, do que poderá ser, ou com a imaginação que cria mundos paralelos de onde podemos regressar só para tomar refeições. As dobras do tempo podem estar fechadas como se podem abrir, do tempo da realidade para o tempo da fantasia onde mundos inteiros, complexos e variegados são sonhados, de mundos imaginados para mundos fantásticos, oníricos e reais. Há tantas casas e vidas quantas as dimensões que criam mundos e vidas só nas nossas cabeças, mesmo sem qualquer consciência. O quarto fica sombrio e depois vem o sol com a mesma tonalidade de há pouco. Debruço-me sobre o que estava a fazer. Desse instante até agora passaram-se mais dez anos. Mais ainda. Olhava para o candeeiro e para a secretária, quando comecei a ler. Teria seis anos? Cinco anos? Já a vida a ler era numa outra dimensão. Coexistia bem com as outras, mas ler e viver são coisas diferentes. E ler faz parte da vida. E se viver fosse ler? Arrasta-me viscosa a vida pelos próximos seis meses, difícil de passar, só a custo, mas sempre em frente. A vida é inexoravelmente sempre para a frente, com os olhos postos no futuro, mas às vezes o próprio presente está embargado como qualquer mercadoria na alfândega, no espaço geográfico de um país, mas confiscada, sem que possamos levantá-la ou fazer uso dela. Assim vivemos, às vezes, um qualquer presente que dura seis meses mas pode durar também décadas ou a vida inteira. A vida pega em mim, encarna em mim, ela é eu e eu não sou nada e faz-me resvalar com a casa inteira a rua que não é onde moro, na noite da insónia, pela vida, com a consciência absoluta da impermeabilidade inacessível que me isola claustrofobicamente de mim como dos outros. O meu corpo é expandido e explode pelas paredes, a rua, o bairro, o Tejo, oriente e ocidente, tudo é estendido pelo agora nesse momento estranho em que sou rio e tudo é rio e o oceano temporal a fluir, onde estou mergulhado como que dentro de água, só que a água é o tempo, a corrente do rio é a corrente do tempo. Num campo de forças com limites mais ténues do que a brisa ou a abóbada celeste vista através de uma atmosfera que aparentemente não influencia nem destorce o que vemos. Olho para uma nuvem que passa e imagino que está parada e a nave da vida em que me encontro e tudo o resto metido lá comigo é que se desloca. Não sou eu parado e a nuvem que passa, mas sou eu quem passa e a nuvem está parada! Sou coextensível com a abóbada celeste e o as profundezas da terra. Penetro na escuridão de bolsos e de gavetas e do lado de lá da superfície de ladrilhos e calçadas e alcatrão. Existo como existem em mim pessoas, todas as pessoas. O mundo é um balão complexo de tempo com um ecrã total que não é ecrã, mas muito mais perfeito porque camufla as coisas como se fossem em si e elas estão todas a escoar ao mesmo tempo para nenhures, para o nada. E eu com elas escorrego no rápido a pique no precipício, sempre, sem chegar, sem pé, sempre mais fundo ou então a subir para uma águas cada vez menos profundas, mas sem perceber se subo à superfície ou se me afundo mais e mais e mais. As paredes atravessaram a tarde na qualidade da sua duração e são as mesmas. Só vejam que não são porque conheço casas desabitadas, onde famílias moraram e viveram e agora resistem mas deterioradas, já sem ninguém. Uma parede só de uma divisão sem tecto nem chão nem as outras três paredes que albergaram noites de febre e amor e consolo ou desolação. A casa é a mesma num breve instante de percepção e durante todo o tempo da vida em que alguém lá viveu. Os objectos inertes e a sua natureza morta só são percebidos quando percebidos por um ponto de vista que abre o olhar de nenhures. São essas paredes que aí estão pintadas de fresco mas que eu vejo já no bolor do tempo. A velocidade estonteante do comboio a galgar terra, o avião que se precipita na velocidade máxima, o carro veloz, as piruetas dançantes, a transformação do mundo no movimento e na ilusão do movimento quando tudo está parado, o amarelecimento das folhas, a queda dos frutos, ficar alagado e enxugar, dormir e acordar, ler e escutar música, o tempo que passa é o plano de fundo a todos os tempos durante os quais duram as mais pequenas acções do quotidiano, as mais pequenas percepções em que se vê de repente que vai chover ou que o dia vai abrir. Num instante sou entornado todo eu para a paragem de mim estagnação de uma vida que de há trinta anos para cá desde aquele instante me converti no buraco negro para onde entrei por ele adentro até agora. Tenho menos trinta anos e mais trinta anos. O que se passou entretanto é já nessa dimensão complexa em que sou distendido desde a imagem fotográfica de então até à imagem fotográfica de agora com todas as imagens que se desdobram e fazem o filme da minha vida até agora, mas desaparecidas ou comprimidas num único instante integrante.
António de Castro Caeiro PolíticaCronologias [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me desde sempre perguntar como é que o tempo altera o olhar para o que é visto. Senti sempre uma enorme dificuldade em percebê-lo, não apenas em mim, mas no exterior. Sempre tive a convicção de que o tempo altera o ponto de vista e que era por causa dessa alteração que sentia a perplexidade da mudança. Como é que, porém, nos apercebemos da alteração no ponto de vista, pressupondo que o ponto de vista se altera com o tempo? Se recordarmos Agosto de um ano passado e compararmos com Agosto de um ano seguinte, podemos não apurar nenhuma diferença. Pode, pelo menos, não haver nenhuma diferença na realidade. É na mesma toalha que nos deitamos de costas para olhar o céu azul, é idêntica a temperatura que sentimos. O som de vozes das pessoas na praia, das ondas lá ao fundo, da cigarra, do vento, tudo é o mesmo. Porém, tudo mudou. Em que sentido? A realidade é a mesma, com a diferença de entre Agosto de um ano passado e um Agosto de um ano seguinte haver passado anos. Houve experiências tidas. O tempo trabalha-nos do seu interior para o seu exterior. O núcleo duro do tempo não é um espaço recôndito, mínimo, mas é o trânsito, a passagem, a sequência irreversível em qualquer breve lapso de si. Amanhecer, entardecer, anoitecer, arrefecer, aquecer, chegar e partir, tudo requer tempo e não acontece sem tempo. Mas também ter uma ideia e não ter nenhuma, esquecer e lembrar, sentir e não sentir, ter uma percepção e não ter percepção, compreender e não compreender nada. Tudo é exterior e interior ao tempo. O mundo interior é tão exterior ao tempo como o mundo exterior só acontece na breve distensão do tempo que requer para poder durar. Mas o mundo parece o mesmo. Esta perspectiva a abrir, neste sítio, com a mesma latitude e longitude, para a mesma percepção, tem o mesmo conteúdo: o céu azul de Agosto na praia. E, contudo, há mudança. Partiram pessoas e chegaram outras, aprofundou-se ou perdeu-se fundo nas relações humanas, progredimos ou regredimos no desporto, nas actividades a que nos dedicamos. Tudo é diferente. Há menos tempo do que no ano passado. Na mesma percepção tenho a noção de tempo, embora não surja ao olhar. O mesmo sítio com menos um ano ou o mesmo sítio com um ano de diferença não é o mesmo sítio. O sítio tem a mesma localização geográfica e é em mim que vejo o mundo, mas não tem o mesmo tempo. O ano passado foi-se na enxurrada do tempo, no cataclismo do tempo que leva o instante de há pouco para um tempo irrecuperável pelo presente. O ano passado foi-se e não voltará nunca mais. Esta noção de que um sítio tem um tempo e o mesmo sítio é diferente em tempos diferentes e que o mesmo sítio este ano e no ano passado são sítios diferentes, esta diferença, é esbatida. Não estou no ano passado e no ano passado, quando estava aqui, não estava no seu futuro passado que só agora, este ano, existe. Eu sou outro. O outro que eu era no ano passado morreu e não volta e o eu que sou agora estava ainda por nascer outrora, como a minha versão de 2018 não está presente ainda e quando estiver, agora será outrora, eu já não estarei aqui no presente como estou agora, mas serei outro no aqui e agora, que terá passado. O tempo trabalha-nos extaticamente a partir do seu interior, um interior ao qual somos extrínsecos mas fora do qual nada existe. E tudo está continuamente a ser trabalhado entre o agora mesmo aqui que será há pouco mas já sem ser agora e não é ainda daqui a nada, sendo-o já de alguma maneira. Lembro-me de chegar a cidades onde vivi e delas partir e regressar vezes sem conta para novas fases da vida nelas. Lembro-me de chegar a locais para férias e de os deixar como me lembro de deixar Lisboa para trás e a reencontrar no fim do Verão. A realidade pode ser sempre a mesma, os mesmos sítios, as mesmas casas e a mesma mobília. Pode não haver perceptibilidade da mudança e, mesmo que a mudança tenha ocorrido, é como se não se tivesse dado. Mas tudo muda de um instante para o outro. A vida transforma tudo, diferencia tudo de um momento para o outro e a travessia dos momentos é compreendida como boa e má, curta ou longa, por cuja passagem damos ou não damos. Com os olhos postos nas traseiras, no lado que veremos depois de dobrada a esquina, no interior de edifícios que vemos de fora ou no seu exterior, visto de dentro, com os olhos postos sempre no instante seguinte, traga ou não novidade, seja o mesmo confirmado ou defraudado, o tempo futuro acama o presente e sustenta um passado como o mesmo ou como completamente diferente. É quase indiferente que tudo seja fotograficamente o mesmo ou diferente. A diferença está numa dimensão invisível, anónima o mais das vezes, mas que transfigura e metamorfoseia tudo. Quando partimos a sul, deslocamo-nos e não viajamos já. Não regressamos nunca ao passado e o que encontramos é sempre a mesma coisa, como se não tivéssemos saído do mesmo sítio onde nos encontramos. Mas há momentos em que somos surpreendidos pelas paredes das nossas casas, nas divisões que mais habitamos, como se delas exalasse uma névoa ou uma brisa despegada da realidade concreta da cor e da sua lisura. Uma névoa temporal que forma o ambiente e a atmosfera que são os próprios elementos da percepção. Somos transportados para a infância ou a juventude, como se o tempo lá fora fosse o do calendário e o tempo cá dentro tivesse uma outra agenda, sem tempo havido, e o tempo presente é o passado, sem futuro ou então com o mesmo sentido do passado cristalizado onde um dia fomos. Aí percebemos que tudo aí fora pode ser o mesmo. Que a vida é o clima complexo onde caímos. Assola-nos, paira sobre nós ou embrulha-nos como num sonho impermeável onde as vidas dos outros são sonhadas como as nossas. Não se sabem por quem ou pelo quê.
António de Castro Caeiro PolíticaLos Otros Para Alejandro Amenábar [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uantas vezes não damos connosco em paisagens sem vivalma? Pode ser uma praia, uma montanha, um lago, um bosque. As paisagens podem ser também interiores. Para quem trabalha em casa, pode ser qualquer das divisões da casa, desabitada momentaneamente dos outros que lá vivam ou porque lá ninguém vive. Podem ser também vibrações disposicionais, estados de alma, manifestações do espírito a criar as paisagens onde nos encontramos a sós connosco sem vivalma. Neste último caso, podemos estar ao pé de outros seres humanos: em transportes públicos, igrejas, museus, cafés, hospitais, estádios, enfim, nos locais onde se pode produzir a homilia humana, até na rua onde nos cruzamos com desconhecidos. Cada ser humano é portador deste horizonte, onde se pode encontrar sem ninguém. Não quer dizer que se sinta só, isolado ou desolado. Pode estar fisicamente só e sentir-se na presença dos outros, daqueles de quem se despediu até mais tarde e com quem há-de encontrar. Os outros com quem está e a quem dirá “até mais tarde”. Estar fisicamente sozinho pode ser almofadado com a presença ausente dos outros que dão sentido às nossas vidas, com quem temos uma agenda comum, de quem partimos e a quem regressamos, e tal pode ser de manhã para a noite, de uma semana para a outra, por um mês de férias ou até por uma temporada. Todos os seres humanos estão nesta paisagem, que pode estar fisicamente despovoada de outros e nem por isso se sentem sozinhos. Mas pode também ser uma paisagem despovoada de outros específicos. Nenhum ser humano existe sem estar remetido para os outros, os antepassados e os descendentes, os de outrora e os vindouros. Mas pode existir num horizonte de despovoamento daqueles que fazem sentido nas suas vidas. Esses outros podem nunca ter existido. São os outros de quem estamos sempre à espera, amores hipotéticos, filiais, românticos, ideais ou reais. São os outros de que falam os mais velhos e de quem nem sequer há registo fotográfico: bisavós, personagens só vistas e referidas por quem conhecemos em histórias que nos contam. Pessoas anónimas mas que protagonizaram episódios importantes nas vidas desses que nos falam deles. Pelo menos ao ponto de nos falarem neles. Muitas vezes encontramo-nos em paisagens onde não há nenhum vestígio da presença humana, como as paisagens que câmaras captam ao longo de meses, para apanhar o ecossistema ou o drama da modificação do mundo. As imagens captadas parecem existirem sem perspectiva. A câmara pode mudar de ponto de vista, mas dá sempre a ver o mar, a savana, o céu, um quarto, o que for. Como se não interviesse no mundo e como se não houvesse outros lá, mesmo que ausentes. Somos nós que vemos as imagens captadas pelas câmaras obscuras. Somos nós que vemos paisagens sem vivalma, sem outros, sem nós. Mas este despovoamento de nós próprios e dos outros não é como se não fosse nada. A ausência é um elemento fundamental. Podemos querer estar sós ou acompanhados. O ponto não é esse. Os horizontes vazios e despovoados das vidas dos outros ou povoados e cheios de gente estão sempre connosco. Uma paisagem despovoada está cheia das pessoas que lá poderiam estar, que lá estiveram e que poderão lá estar. Uma paisagem despovoada tem sempre um olhar a constitui-la. Por isso, pode ser desoladora ou cheia de sentido. Mas também podemos passar a vida impermeáveis uns aos outros. Não apenas no sentido em que não somos vistos por quem gostaríamos de ser vistos. O ser humano é iluminado pelo olhar de outros que lhe são especiais. Também é apagado pelo fechar de olhos desses outros que são especiais para si. E é também verdade que podemos durante algum tempo iluminar a vida dos outros com o nosso olhar para eles. E podemos acabar com eles quando os ignoramos, não reconhecemos e deixamos de os ver. Mas deixemos esta hipótese de lado. A impermeabilidade aos outros pode ser total, como se não houvesse ninguém já que fosse testemunha do nosso passado, da nossa juventude ou infância. Uma impermeabilidade complexa em que somos os sobreviventes de uma vida que houve, e é inegável ter havido, mas não consegue ser ressuscitada, porque é necessário um outro ser humano para ressuscitar o nosso passado, em conversa de lembrança, na invocação de uma memória. Quando somos vistos nessa impermeabilidade, não somos metade das pessoas que fomos. Não somos nada do que fomos. Somos nós só fachada a apresentar o que é visto de nós, o nosso exterior absoluto, na idade que temos, no sítio onde estamos a ser vistos: mas sem passado, nem presente, nem futuro. Sem por ir, para onde ir e sem de onde vir. Somos nós aí desconectados do passado, do presente e do futuro, dos outros que povoaram as nossas vidas, sem expectativa de que haja outra oportunidade para um outra origem que dê início a um outro tempo, sem poder começar de novo. Os outros a quem dirigimos uma palavra não respondem. Os outros que vemos não nos vêm. Os outros existem, e nós não. Não são os outros que são os fantasmas impermeáveis às nossas vidas. Somos nós próprios os fantasmas de nós próprios na multiplicidade de “si próprios” que é cada um de nós. Somos nós que não existimos já para ninguém e por isso ninguém nos dirige a palavra, e quando olham na nossa direcção, é para nos atravessar o corpo e fixar o que está atrás de nós, sem nos verem, como se não estivéssemos lá, como se não fôssemos, como se nunca tivéssemos sido. Somos nós os fantasmas, aparições, para os outros, os que não cabem, são sem pertença. Inexistentes.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias MancheteFérias grandes do mundo [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]asso os dias a olhar para o Atlântico e o azul do céu. Não sei bem se há uma relação directa ou causal. Vim para um Hotel para recuperar. Nem sei bem do quê. Não leio, durmo e acordo para ir para a praia, para onde vou. Preciso agora de uma banda sonora. Já nem me lembrava do que tinha para ouvir. Gosto de tudo. O ponto não é a música. É que nunca tive banda sonora, muito menos na praia. Agora, tenho. Estou numa praia diferente onde nunca tinha estado. E estou sozinho. Não que isso me importe. Mas sem trabalho, tudo muda. Mas o ponto não é esse. É outro. São as famílias que vão de férias. Levam crianças. As crianças vão construir a sua história: numa família e numa paisagem. Haverá sempre o azul e a água fria. Se forem repetitivos regressam ao sítio onde estiveram. Nem sei como se constrói memórias. Sei que aconteceram. Hoje, estive pela segunda vez na praia sozinho. Sempre de pé, porque não consigo deitar-me e a ouvir música porque não consigo ler. Escolho sempre um sítio distante das outras criaturas que lá se encontram. São famílias, uma mãe com um filho, uma família a ler. E depois o sol que persiste. Nunca olhei uma praia a norte. Foi sempre a sul. Ou tão a sul que pensava em África, no Brasil, mas nunca em Lisboa, Porto ou no Norte. Mas há o azul que é o plano de fundo da areia. É uma praia diferente de todas as outras. As pessoas serão as mesmas. Não ia à praia há tantos anos. Caminho. E fico num sítio onde estendo a toalha. Não me deito nunca. Fico de pé. Troco os óculos. Não vejo bem ao pé e o sol cega-me. Antigamente, vinha de casa cheio de carcaças com manteiga e as vésperas. Sabia para onde ia à noite. E dormia. Coisa que raramente acontece ou só com álcool ou comprimidos. As férias antigamente eram gregárias. Agora, vim “descansar”, fazer não sei bem o quê. É bom sair. O azul ajuda. Se tivesse ficado em Lisboa o azul não seria evidente e não tenho conseguido ter um quotidiano. São sempre os mesmos dias há muitas décadas. As férias grandes do mundo acabaram. Lembro-me de jogos de bola na praia e de grupos de gente. Cocktails de hormonas juntos à beira mar. Lembro-me dos jornais lidos a seguir à revolução de Abril como se fossem bíblias. Lembro-me de rostos que envelheceram casados e outros que continuam por casar. O azul vem do céu e vem do mar. Olho para o azul com tantas tonalidades que não consigo expressar, porque não sou músico nem poeta. Só analítico. A praia era o dia seguinte e era o dia. Era de onde partíamos para a noite. Era onde regressávamos de manhã. Pequenos almoços tomados a cerveja depois da noite e antes de dormir o pouco sono que a juventude permite. O azul da praia é diferente de manhã, à hora do almoço e ao entardecer. As pessoas que vão a horas diferentes têm praias diferentes. E nós tínhamos todos os momentos. À hora do almoço e até à hora do lanche a praia é como um pesadelo: sol ao pino e água gelada. De manhã, espera pelo almoço com o sol a desenhar o seu dourado triunfante. Mas à tardinha, adivinha a calma da vila, sem som ou apenas com o do jantar. O Azul transforma-se em negro. E a melancolia aparece não já só à noite, mas na tarde e na manhã que não existe. Esperava os dias grandes do Verão e agora espero que eles tragam o Outono ou o Inverno. Mas no Outono ou no Inverno espero pelo Verão. Mas o Verão pelo qual eu espero é aquele outro das férias grandes do mundo. Não virão mais. Ou então eu sou incompetente para trazer essas férias. Vejo o azul transformado em negro na noite e espero que seja azul negro, fundo. Hoje, na praia, estiveram as famílias da infância. Estiveram todas. Estiveram as que se estão a fazer, com crianças e jovens pais e futuros mortos, já moribundos. Como eu gostava de fazer parte não sei bem do quê que já não existe. “Ainda vais ter saudades destes tempos”. Dizia o Beta.
António de Castro Caeiro Política [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m movimento. Em mudança. O humano não gosta de estar parado. É uma contradição. Não somos tidos nem achados para a mudança. Não, pelo menos, aquela mudança formal que é o facto de estarmos sempre a caminho. O tempo não para, e, com diz o povo, parar é morrer. Mas, às vezes, parece, também, que gostaríamos de parar, de não estar sempre ir. A “coisa” é confusa. Queríamos parar, quando não conseguimos respirar, nem sequer um minuto, por causa do stress da vida, das solicitações, de querermos estar à altura de lhes correspondermos. Por outro lado, é um facto que o tempo formalmente está continuamente em trânsito. Portanto, quer queiramos quer não, estar parado parece não ser uma opção. Por outro lado. ainda, e pelo contrário, não gostamos de ficar presos no momento, não lidamos bem com a estagnação. Queríamos era ir nas horas, passar ao largo, em trânsito, na viagem que não para e opera a mudança. As primeiras experiências que fazemos de euforia, na infância longínqua, são abismais. É como se a forma temporal da mudança coincidisse com o nosso gosto pela mudança. Há uma coincidência entre o movimento extático do tempo da vida, a própria vida pessoal e o próprio momento que se está a viver. Ora, esta coincidência é estranha porque é como se o êxtase não fosse apenas pessoal, um momento eufórico numa dada circunstância. É que o desdobramento temporal da vida coincidem com o desdobramento do tempo pessoal. O caudal do tempo da vida coincide com o caudal do fluxo pessoal. E não vale a pena procurar pensar quando caímos em nós para a irreversibilidade do decurso temporal. Os momentos eufóricos da infância combinam de uma forma absolutamente feliz: o momento da vivência, a experiência pessoal, a forma do tempo da vida se desdobrar. Essa onda vem do lado de dentro da cabeça e vem do lado de fora, do relvado onde se joga a bola, do mergulho primeiro asfixiante do Verão atlântico, do primeiro dia de aulas ou das primeiras chuvas. E vem simultaneamente do caudal da vida. O conteúdo do momento, a vida de que esse momento é um conteúdo, a própria vida que se distribui por todos os seres humanos— tudo coincide nesse movimento estonteante que tudo metamorfoseia. Exultação. Exaltação. Alegria. Felicidade. Estes substantivos têm conteúdos diferentes para a pessoa A, B ou C. São os conteúdos x, y e z das nossas vivências e até podem ser repetidos ao longo do tempo como as férias da infância nos locais onde são passadas ou as vésperas de natal ou o reencontro com amigos ou um pequeno sucesso ou êxito, mesmo banais. Estas experiências são as impressões digitais que, depois, projectam para todo o sempre a forma da exultação e da alegria. Podemos encontrá-las ou tentar recriá-las com substâncias que alteram o estado da consciência, mas elas também acontecem em segundas vezes, já sem a novidade das primeiras nem ainda a habituação que vem com as terceiras vezes. O êxtase da embriaguez e a alteração do estado de consciência têm a mesma matriz, lá longe, na infância, quando a criança a brincar no mundo não sabe nem adivinha o adulto a trabalhar na terra. Nenhum mágico branco recria a êxtase violenta da impressão deixada em nós nesses momentos. Essa impressão é um piscar de olhos da vida, um abrir e fechar de olhos da eternidade, que sacode a terra toda e nos confunde com o céu azul de agosto ou o atlântico gelado vivido a partir do mergulho e da ascensão de novo à sua superfície. Nada nunca se repete, nem por revisitarmos sítios ou revermos pessoas. Nem nós ao espelho rompemos as camadas de metamorfose que o nosso rosto de crianças sofreu. Não é pelo envelhecimento, pelas rugas, pela falta de cabelo. Não é isso que nos veda o acesso à êxtase que deu lugar à implosão recessiva da vida e dos momentos e das nossas vidas pessoais. Apagou-se algo no olhar que não será reacendido. Ou, talvez, sê-lo-á, ainda, outra vez.
António de Castro Caeiro PolíticaLove is Blindness [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma canção egípcia entoa o encontro entre dois olhares. “Ah! No primeiro instante a promessa!” Um amor à primeira vista. Não importa se é amor, aquele amor que os amantes casados dizem que se transformou em amizade. Não importa se o amor é o olhar de si para o outro e o olhar do outro para o próprio. Não. Não tem que ver com atracção sexual. É outra coisa. “Ah! No primeiro instante a promessa!” O que importa é a promessa. Nem sequer é o futuro que aqui está em causa. É outra coisa. É ver-nos pela primeira vez como nunca nos víramos antes. É esse o sentido do futuro. Não é ser arrancado à solidão, porque podemos nunca ter-nos sentido sós. É outra coisa. Pode acontecer, quando nos sentimos tão bem que achamos que não há mais ninguém de quem precisemos. O futuro é um arremesso único. É como se até então nunca estivéssemos estado vivos, como se toda a auto suficiência, toda a nossa estabilidade recebesse um outro apelo. Um apelo vindo não se sabe de onde mas que é compreendido como uma forma de exclusividade. “Ah! No primeiro momento a promessa!” Esse olhar é um olhar-se o outro e sermos arrancados à exclusividade de si próprio. E anos mais tarde percebemos que é esse o olhar da eternidade, como dizem os teólogos. É a vida, mas a vida projectada pela eternidade. Porque esse instante dura um piscar de olhos. Vemos a beleza e a beleza a olhar para nós. Pode ser ao virar de uma esquina, nos lugares mais anódinos, mas é sempre onde nos encontramos. Encontramo-nos num canto do mundo e é nesse canto do mundo que alguém abre o azul para nós e nós esquecemo-nos de nós. No primeiro olhar, o relâmpago. A beleza encarnada como se houvesse um anjo sem asas a aterrar. Sem sabermos parece que a salvação, a esperança, nós próprios inamovíveis, somos transportados para outros sítios, para outros lugares. Pela primeira vez, há uma outra vida que sem apelo nem agravo, num outro corpo, num outro olhar, nos resgata. Sem sabermos que era para sermos resgatados. O olhar é azul, recíproco e simétrico. Toda a linguagem cala o que há para dizer ou então tem de ser inventada. Primeiro, há o silêncio. Não, não é o silêncio. É a mudez. Uma mudez que vem do corpo. Não, não vem do corpo. Vem do olhar. Como se toda a eternidade da noite do passado em que tínhamos permanecido antes de termos nascido fizesse sentido. Um olhar o outro e um olhar do outro para nós incendeia não se sabe bem o quê. Podemos nunca mais ter aquele encontro. Tivemos encontros, mas não como aquele. Um relâmpago é um deus que se intromete no acaso do tempo que faz o acaso do espaço para aquele encontro. Naquele primeiro olhar, a promessa. Naquele olhar, a promessa simples de tudo. E o tempo passa. Não pode passar muito tempo. A repetição da revisitação não nos trás aquele momento. Quando é correspondido, sabemos sem saber que o outro esteve lá em si onde nós estivemos em nós. E há a primeira palavra trocada. Uma palavra banal. Como te chamas? De onde vens? O que fazes? E a tarde passa sem tempo a falar abstracta mas concretamente de nós, um com o outro. O mundo metamorfoseia-se, porque a promessa vem do futuro tal como o sentido. É do futuro que vem o sentido. Não é um futuro limitado como uma semana ou um mês ou um ano. É o tempo todo que encarna naquele olhar azul. Pensamos fugir. O olhar azul pensa fugir. Mas ambos cedem ao encontro. Para o encontro é preciso a película daquela dimensão que transtorna um e outro e leva um para o outro. Naquele ano, ido, e ao mesmo tempo futuro, mas já sem preenchimento, existimos ou só um existiu, não se sabe bem. De todo o tempo, houve dias que repetiram aquela promessa. Poucos, porque somos humanos e os humanos lidam mal com a vida de todos os dias. De dois que éramos queríamos reaver-nos, mas como é possível? O ser dos dois é um único. Ficamos devolutos, mas ninguém se recupera. Talvez só um. Dizem-me que continuas deslumbrante, que constituíste família. Que és mãe. E vives longe. “Ah! No primeiro olhar, a promessa. Ah! No primeiro olhar, a despedida”. Diz a canção.
António de Castro Caeiro PolíticaEm nome do pai “à sombra das meninas em flor” [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á velho sentado numa cadeira à beira do jardim. Tenho os óculos postos mas os olhos fechados. E durmo. Durmo. Estou sempre a dormir. Mas abri os olhos. Levanto-me. No sonho de onde acordo era ainda jovem. Havia biquinis a destapar raparigas que mergulhavam em conjunto na água do rio. Ainda era garboso. Mesmo sem o ter sido, pensava que o havia sido. Mas quando se olha para raparigas em grupo a mergulhar as águas do rio, não se pode pronunciar palavra alguma. Não se pode visar nenhuma em particular. A acústica da palavra apaga o sortilégio idílico do que acontece: “raparigas em grupo”. “Um grupo de raparigas” é uma existência metafísica e só existe para um sujeito transcendental. Um sujeito para quem nada mais existe a não ser raparigas no Verão de biquinis, em grupo, a comer gelados, a criar a existência do sol e do rio e do Atlântico. Eu, velho, ando com passos curtos. Quando me acenam, transformo o rosto como posso para fazer um sorriso que me deforma a cara toda já deformada. Atrás das lentes estão ainda os olhos. Havia pouco tempo e estavam fechados. Em todo aquele sofrimento, havia uma nuvem em redor daquele corpo estropiado pelo Alzheimer. Do canto do olho caiam penduradas pelas pálpebras raparigas em grupo, destapadas por biquinis, para dentro do rio, transparente e quente à luz do sol. Eu velho sento-me de novo na cadeirinha à espera de poder adormecer e peço a quem puder que não me acorde ou então que me deixe dormir o tempo suficiente para não ter medo de acordar. As raparigas aos gritos correm para a beira mar e mergulham para aflorarem a superfície da água com os cabelos corridos a terminarem no rio. Vejo o meu pai com morfina e tento adivinhar-lhe os sonhos. “Lembro-me dos teus dedos a cheirar a tabaco. No teu colo ouvia Frank Sinatra. Um dia dei-te um tiro com uma pistola de brincar. Fizeste-te morto. E fiquei angustiado. Oxalá tivesses sobrevivido agora, como na altura. Perdias-te na cidade. Ia atrás de ti. E sempre soube que chegaras a casa quando eu te procurava. Decidimos que só sairias comigo. Assim foi. Falavas de como não vias e do dinheiro que precisavas e levantavas às centenas. Não tinhas medo e era eu quem tinha medo. Desculpa, pai. Tinha medo por mim. Não era por ti. Andy Williams estava sempre no teu tom e na tua atmosfera. Os livros que perdeste por os teres emprestado a amigos já mortos seriam para mim. Mas falavas-me deles como da tua irmã perdida para a morte. Quando chegava da faculdade, estavas de roupão e agasalhado. E às vezes dizias que estavas farto, farto do corpo velho. Levava-te, então, ao rio e bebíamos uma cerveja. Olhavas ainda para as miúdas e sobretudo para as crianças. Desculpa-me: nunca fui corajoso como tu, não acredito como tu na pátria, na mãe, nos filhos e no teu querido Partido Comunista como dizias: “o meu querido Partido Comunista”, como se fosse a tua igreja, a tua religião. Tu que, quando a tua mãe morreu, apoiado na janela, gritaste à minha frente: “Deus é um cabrão”! Nunca tive a tua coragem. Mas tu tiveste o meu amor. Quando o teu melhor amigo morreu, choraste. Disseste: “está acabado”. Pedi-te para sobreviveres. Querias falar comigo e falámos. Daquela senhora que te queria mas era velha demais. Pedi-te para não morreres. Disse-te que eu e o mano não éramos, juntos, metade do homem que eras. Disseste-me que éramos. E quando querias meter-nos medo dizias que o pai do Presidente Kennedy lhe dizia: “não há número dois”!” Ainda vejo já velho o meu pai e o meu avô, como se fossem agora meus irmãos. Eu já da idade deles e eles da minha idade. E os três olhamos para a sombra das jovens raparigas em flor. Ainda haverá nelas qualquer coisa que nos fará apaixonar, mas já são filhas e netas e é difícil perceber as mulheres futuras nelas. É nelas que ressuscitamos. Esqueci-me do ano e do dia. Vivo ainda com a mãe. Nunca saí de casa, como queria Píndaro. Na Rua da Horta Seca passam raparigas. E fazem a sombra, o santo espírito. Queria que soubesses que tenho os mesmos amigos que tu e que não acredito em Deus. Mas acredito que vou ter contigo. E voltaremos ao Tejo que tanto amavas.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias“Vai correr tudo bem” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]oda a grande filosofia é sistematicamente céptica. Não o é dogmaticamente. Na infância e na juventude, escutamos dos pais e dos mais velhos, dos que têm responsabilidade e carinho por nós: “vai correr tudo bem”. No que é decisivo, em todas as situações críticas, não correu nada tudo bem. Nem correram algumas coisas bem ou só uma. Correu sempre tudo mal. Acabou. E o fim dá sempre cabo de tudo. Destrói. Apaga. Anula. Esvazia. Logo para começar o que quer dizer este “tudo”? A “vida toda”? Ou “tudo” é conteúdo da situação específica em que nos encontramos? E porque é que alguém nos diz que “tudo vai correr bem”? O que sabem as pessoas de nós e da vida para nos dizer que tudo vai correr bem? Tudo! Bem! Correr! Em que situações é que nos dizem que tudo vai correr bem. São situações em que estamos remetidos para os outros, e essa remissão configura a nossa própria vida. Não são apenas aqueles outros que são importantes para nós, por a eles nos unirem laços estreitos. São aqueles outros que causam um impacto devastador nas nossas vidas. São agentes do mal. A sua importância nas nossas vidas vem do sofrimento que causaram, do poder destrutivo, moral, afectivo, sentimental, numa palavra: existencial. Os outros projectam-se em nós de diversas maneiras e o que nos liga a eles não são apenas laços positivos de afecto são também laços negativos. Os protagonistas das nossas vidas não são heróis apenas. Há também os maus da fita. São ruins, vis, criaturas com níveis de agressão e impacto incomensuráveis. No rescaldo de situações críticas, alguém nos diz que tudo vai correr bem. Tudo? Bem! Como? Quando tudo está a correr mal, quando a situação de impactos emocionais e crises afectivas são inultrapassáveis, não são anuláveis, nada é repetível para que o pudéssemos contornar! Tudo é simplesmente irreversível. Não quer dizer que não sobrevivamos. Ficamos para contar a história e temos tantas roupas para a nossa alma quantas as suas cicatrizes. O mapa das nossas almas é vincado em baixo relevo, nas nossas almas, e algumas pessoas têm as suas existências estampadas nos seus rostos. No final da vida, tudo está lá marcado. Mas também podemos perceber que nada nunca corre bem nas separações. Achamos que está bem separar-nos, porque é difícil o amor. O amor incha numa casa com um peso insuportável ao qual o quotidiano não sobrevive. E rebenta-se pelas costuras. Entre os apaixonados há uma divindade, uma atmosfera divina. Quando ela é dissipada, os amantes passam a ser os próprios, mas sozinhos e sem os outros. É difícil conviver com os outros, quando já somos só nós e não somos ainda com aqueles outros sem os quais, achávamos, não teríamos identidade. Na separação afectiva, nada pode correr bem. Tem tudo mesmo para correr mal. E quanto à possibilidade de refazermos a vida, ela não é negada, mas é muito difícil sobreviver só, quanto mais acompanhado. Podemos levar a vida inteira para nos reavermos. Achamos que não sobrevivermos a outra história de amor, aquele amor infeliz que foi a primeira vez de todas as primeiras vezes. Nem queremos saber do que se passa com essas pessoas. Desejamos vagamente que sejam felizes, mas sobretudo que não se cruzem nunca mais connosco. E há dias sem dúvida em que lhes desejamos mal, quando nada corre bem e só há amargura, sem um consolo que desfaça o horror. Mas também nada correrá bem quando ficamos na estrada sem pai, como naquele livro, “The road”, em que a criança sobrevive ao pai. O pai tentou prepará-lo o melhor possível para a sobreviver ao holocausto. Todo o filho que sobrevive ao pai sobrevive para atravessar um holocausto. Na infância, perder o pai é tremendo. Como se os adultos e velhos que perderam os pais não estejam na infância, desprotegidos, sem poder obviar o que quer que seja! Não. Não acredito que tudo vá correr bem. Começou a correr mal e vai ser para sempre assim. Tudo vai ser diferente. A diferença não quer dizer ainda a sobreposição do mal ao bem. Quer dizer apenas que estamos sem mapa, sem bússola nem rosa dos ventos. Sem tempo já ou só desesperados. E poder-se-á pensar que estas palavras celebram o cepticismo e o mal ou o desespero. Nem pensar nisso! Nem tão pouco se deseja que tudo corra mal, como se isso fosse possível. É só uma resposta homeopática ao tudo que corre mal, ao nada que corre bem, para poder sobreviver mais umas horas na maquinaria da ansiedade e da preocupação que estanca o decurso do tempo, atrasa-o, para-o.