Angst

“Lembro-me de ter acordado de madrugada numa manhã. Sentia uma tal atmosfera de possibilidade. Tu sabes, aquele sentimento. E eu… Lembro-me de ter pensado lá comigo: então isto é o princípio da felicidade. É aqui que ela começa. E, com certeza, haverá sempre mais. Nunca me ocorreu que não era o princípio. Era a felicidade. Tinha sido exactamente o seu momento.”

Michael Cunningham, The Hours

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] estranho como a vida muda. Nem sempre para melhor. Quase sempre para pior. Percebemos que a vida mudou sem necessariamente termos percebido o exacto momento quando mudou. Mas o modo como a vida nos acontece é percebido melhor, por contraste. A maior parte do tempo, não somos surpreendidos por diferenças. É o que é, como tem sido. Nascemos e crescemos com estas estruturas de sentido. Aos domingos, sempre houve almoços de famílias, alegrias e tristezas, mas também a vida de todos os dias, domesticada como pôde ser pelo quotidiano das avós que nos criaram e da ausência diária de quem trabalhava, para regressar ao fim do dia. O que regimenta o quotidiano é tão complexo quanto as pessoas que existem e o convívio que têm ou não têm com outros. A liberdade onírica da infância talvez nunca mais regresse. Tinha criaturas inventadas pela nossa imaginação, jogos e brincadeiras que desfaziam a plástica habitual das divisões das casas e dos seus conceitos rígidos. Deixavam de ser salas de jantar para ser campos de batalha e os quartos da infância estavam cheios de possibilidades de que já não nos apercebemos. E nas diversas transições biográficas que existem, ida para a primeira escola e a habitação dos edifícios de educação e formação vão abrindo mundos, porque o número dos outros que conhecemos aumenta, amplia, cria mundos diferentes, habitados pelas vidas diferentes que temos à nossa frente e às que todos temos latentes, escondidas, mas que fazem de nós quem somos. E há a mudança da idade. Não muda apenas a altura, o tamanho, a pele, a voz, cresce e envelhece. Como se o tempo nos trabalhasse a partir do seu interior que nos esculpisse por dentro e por fora o corpo todo. O corpo é o órgão do tempo. Talvez, se não houvesse tempo não teríamos corpo, como não teríamos olhos se não pudéssemos ver.

As primeiras épocas da vida, as várias infâncias e as várias juventudes tinham mais de onírico do que de realidade, pesadelos e amores de sonhos, não importa. O princípio tem em si o possibilitante a projectar-se, a adiantar-se para além do que está dado a ver com os nossos próprios olhos à nossa frente. Há personagens que encarnamos, porque dão um revestimento diferente às vidas, o desportista, o estudante, o político, exemplos radicais com queremos eventualmente dar sentido às vidas indefinidas, então, mas definíveis no futuro.

E no princípio que permite adivinhar o que está por vir, há o encantamento, o emaravilhamento, com alguns dos outros, como se fosse um catalisador inebriante com a sua específica alteração não só de estados de consciência, mas da vida toda. O seu resultado era centrífugo, propulsor, tenso. Os dias de praia da infância eram criações tão perfeitas que nunca mais regressam, mas também as vésperas de sexta-feira à noite, quando se adivinha apenas com espanto e maravilha o que a noite pode oferecer, mas nunca oferece, nem que levemos para casa o que queríamos. Nunca nada é realmente o que foi quando era uma mera possibilidade. A realidade recorta toscamente a possibilidade. E  tudo era véspera de tudo, sem nunca se estafar, o último dia de aulas antecipava as férias e o último dia de férias antecipava o primeiro dia de aulas. E tudo era a possibilidade romântica sem o recorte da realidade. A cara de alguém incendiava vidas e nunca seria a cara do dia seguinte. E os corações eram só selvagens e tudo era apenas sob tensão do por ser futuro, do advento quase religioso não da segunda ou terceira vindas, mas do que era então a única vinda, a única presença por toda a nossa vida.

Mas não é só a decepção de uma ilusão. Há dias bons e não os três meses em que estávamos de férias do mundo. Há dias bons e não os semestres que vivemos com o entusiasmo de principiantes. O primeiro olhar não é só promessa é já a despedida. E, contudo, não é só isso. De quando em vez chega até nós réplicas leves dos abalos sísmicos do passado, de verdadeiros terramotos que alteraram as morfologias das nossas vidas. Não conseguimos invocar já o poder daquelas emoções, dos sentimentos fortíssimos com que vimos alguém pela primeira vez. É já não percebermos como chegamos onde estamos e temos vivido há décadas assim, como se nos aguentássemos como podemos, mas sem plano e definitivamente sem itinerário. É este caminho para nenhures? É?!

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