António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDois poemas de Georg Trakl traduzidos Melancolia – 3ª Versão [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros, Que longamente me fixam, ao passar. Acordes suaves de guitarra acompanham o outono, No jardim, dissolvido em lixívia castanha. As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria Da morte. Lábios podres sugam leite de Peitos encarnados e na lixívia negra Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol. Melancholie[1] Bläuliche Schatten. O ihr dunklen Augen, Die lang mich anschaun im Vorübergleiten. Guitarrenklänge sanft den Herbst begleiten Im Garten, aufgelöst in braunen Laugen. Des Todes ernste Düsternis bereiten Nymphische Hände, an roten Brüsten saugen Verfallne Lippen und in schwarzen Laugen Des Sonnenjünglings feuchte Locken gleiten. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 22. Humanidade Humanidade posta perante gargantas de fogo, Rufar de tambores, semblantes escuros dos guerreiros, Passos através de um nevoeiro de sangue. Ressoa o ferro negro. Desespero. Noite em cérebros tristes: Aqui as sombras de Eva, a caça e o dinheiro encarnado. Nuvens que a luz trespassa, a ceia. Um silêncio suave habita o pão e o vinho E aqueles ali reuniram-se. Doze em número. À noite, gritam a dormir debaixo dos ramos da oliveira. São Tomé mergulha a mão nas feridas. Menschheit[1] Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt, Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen, Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt, Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen: Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld. Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl. Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen Und jene sind versammelt zwölf an Zahl. Nachts schreien im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen; Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal. [1] Trakl, Georg. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 27.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA hipótese de Alan Shore Para o José de Freitas [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]ames Spader, como Paul Shore, diz à personagem de William Shatner, Denny Cane – n’ A série Boston Legal – que existiremos no Céu como nos dias mais felizes da nossas vidas. Mas nós não sabemos se haverá vida no além. Não se pode provar que não há nem provar que há. Tal como na “Aposta” de Pascal – sobre se Deus existe ou não existe – também não se podem provar nenhuma das teses. A fé faz depender de si a existência de Deus. Mas a fé é a fé, uma determinação modal que depende da crença, e a crença depende da mente, mesmo quando resulta da Graça. Ora isso faz que a tese: “Deus existe”, “há vida eterna”, conteúdos de um acto mental. Actos mentais são actos mentais e não podem extrapolar o seu conteúdo para nenhuma realidade. Ainda assim, é sabido que podem ser eficazes. Por outro lado, pelo contrário, a tese de que Deus não existe, pior, de que Deus não pode existir, depende também de um acto mental. Não querer que Deus exista tem consequências, porque se anula toda e qualquer religiosidade, toda e qualquer epifania ou revelação. Todo o ateu tem um trabalho árduo em destruir o sentido de Deus, mas a sua tese também resulta de um acto mental. Na “aposta” de Pascal, o laboratório é o jogador a fazer a sua aposta num jogo de possibilidades repartidas, 50%-50%. Agora, o jogador está com os seus olhos nos dados, mas a sua mente está completamente virada para o futuro. O jogador vive da antecipação. O jogador está como o pescador se encontra a olhar para a linha, mas a ver se ela mexe e as boias se afundam. O jogador está lançado para um momento futuro. Todo ele é antecipação. Ele não está à espera apenas de saber se ganhou ou perdeu. Tal como o pescador não está à espera de saber se pescou muito, pouco ou nada. Nenhum está à espera do desfecho, porque na verdade não querem nenhum desfecho. A Realidade deles depende da antecipação. Nenhum espera o desfecho da situação de prospecto, de antecipação. Quando o peixe é apanhado ou o jogo acaba, suspende-se a antecipação. Qualquer que seja o resultado, a vida deixa de depender do momento da antecipação e passa a requerer acção, uma reacção pragmática. Por isso, mesmo quando se ganha, ao desfazer-se a antecipação, perde-se a riqueza da transcendência, a forma excessiva que ultrapassa o dado na percepção. Na antecipação, não há sincronização entre percepção e conteúdo. O conteúdo está projectado para mais tarde. Ao mesmo tempo, o conteúdo do momento que se tornará realidade – mas ainda não aconteceu – exerce o seu efeito sobre o presente. É retroactivo como é prospectivo. Existiremos numa outra vida a reviver os dias mais felizes das nossas vida? E como existiremos? Teremos o corpo na nossa melhor forma? Estaremos com todas as pessoas que amámos em simultâneo, quando as amámos umas a seguir às outras? Os nossos melhores amigos serão quais? Teremos os amigos de infância que morreram violentamente por acidente ou não sobreviveram? Teremos os amigos desavindos tal como os amámos e eles a nós? Seremos uma comunidade de pessoas no seu melhor sem o cuidado e a aflição de acompanhar os seus na via da cruz que é a antecipação da morte? Como resolver a equação? Vivemos nós já a antecipar esse momento, como quando revisitamos vésperas de férias na infância? Será a vida futura caucionada pela antecipação de que dias melhores virão? Ou anteciparemos o sossego da paz eterna, em que nada se passa, quando apenas há a grande noite? A grande noite é como nos tempos anteriores ao nosso nascimento, quando não se sabe de nada, na era eterna que nos é pré-natal. Ou será que fazemos a aposta de Alan Shore e vaticinamos para os Denny Cane das nossas vidas? Existiremos então para todo o sempre, desmultiplicados por todos aqueles que nós somos nas relações intrínsecas que temos com os outros que amamos? Existiremos como nos nossos melhores momentos, os momentos mais felizes das nossas vidas? A aposta dá-nos a antecipação do momento. A antecipação pode trazer a realidade pragmática do não. Tudo será como a abominação da desolação. A antecipação, contudo, pode dar-nos um pouco de esperança. A esperança é uma velha decrépita com olhar de menina. É também o que nos poderá trazer um pouco de fé. O pior de tudo é não poder ser enganado.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDois poemas de Georg Trakl traduzidos Proximidade da morte 2ª versão [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]h! a noite que chega até às aldeias lúgubres da infância. A lagoa entre as pastagens enche-se com os suspiros pestilentos da melancolia. Oh! a floresta que mergulha suavemente nos olhos castanhos, para aí das mãos ossudas do solitário a púrpura dos seus dias delirantes decair. oh! a proximidade da morte. Rezemos. nesta noite, desfazem-se sobre almofadas mornas amarelecidos pelo intenso os frágeis corpos dos amantes Nähe des Todes Fassung O der Abend, der in die finsteren Dörfer der Kindheit geht. Der Weiher unter den Weiden Füllt sich mit den verpesteten Seufzern der Schwermut. O der Wald, der leise die braunen Augen senkt, Da aus des Einsamen knöchernen Händen Der Purpur seiner verzückten Tage hinsinkt. O die Nähe des Todes. Laß uns beten. In dieser Nacht lösen auf lauen Kissen Vergilbt von Weihrauch sich der Liebenden schmächtige Glieder. Dia de Todos os Santos a Karl Hauer Triste aliança, homenzinhos, mulherinhas, Espalham hoje flores azuis e encarnadas Sobre as suas sepulturas, que timidamente se aclararam. Agem como pobres marionetas perante a morte. Oh! Como parecem existir aqui cheios de angústia e humildade, Como sombras de pé atrás de negros arbustos. No vento de outono, lamenta-se o choro das crianças não nascidas, Também se vêem luzes perderem-se na loucura. Os suspiros dos amantes sopram nos ramos E lá apodrece a mãe com a sua criança. Irreal parece a dança dos seres vivos E admiravelmente espalha-se no vento nocturno. Tão confusa a vida deles, tão cheia de lúgubres tormentos. Tem piedade, Deus, do inferno e do martírio das mulheres, E do seu lamento mortal, desesperançado. Sozinhas, em silêncio, vagueiam na sala das estrelas. Allerseelen[1] An Karl Hauer Die Männlein, Weiblein, traurige Gesellen, Sie streuen heute Blumen blau und rot Auf ihre Grüfte, die sich zag erhellen. Sie tun wie arme Puppen vor dem Tod. O! wie sie hier voll Angst und Demut scheinen, Wie Schatten hinter schwarzen Büschen stehn. Im Herbstwind klagt der Ungebornen Weinen, Auch sieht man Lichter in der Irre gehn. Das Seufzen Liebender haucht in Gezweigen Und dort verwest die Mutter mit dem Kind. Unwirklich scheinet der Lebendigen Reigen Und wunderlich zerstreut im Abendwind. Ihr Leben ist so wirr, voll trüber Plagen. Erbarm’ dich Gott der Frauen Höll’ und Qual, Und dieser hoffnungslosen Todesklagen. Einsame wandeln still im Sternensaal. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 21.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAmor de mãe [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]mei algumas mulheres. Muitas mais, na imaginação. Agora, vejo-te andar e abrando o passo. Não faço a mínima ideia das tuas dores. E andas. Levo-te para todo o lado, porque não quero deixar-me só. Não é por ti. É por mim. Seguimos a vida a dois. Tu aturas-me o álcool, a filosofia, o Muay Thai. Foste sempre assim. Olhavas para mim com olhos espantados como se eu estivesse para morrer. Conheces-me melhor do que eu. Eu queria ser bom. Queria ser melhor. Mas, sabes, herdei a melancolia da tua mãe. E que posso eu fazer. Eu não tenho muitas certezas. Tenho, sobretudo, dúvidas. Mas, lembras-te? Foste ter comigo à Alemanha. Pensava eu que já era adulto. Nem agora, depois de 24 anos. Falávamos castelhano. Íamos ver São Patrício e comer aquele bolo: schwarzwälder kirschtorte. Depois, havia a namorada, os amigos alemães. Compravas tudo na bela turca que não falava a tua língua nem tua a dela e havia três: turco, alemão e português. Seguimos sempre. O mano e eu a pensar que éramos filhos únicos, porque o teu amor é assim. Um filho único, mas duas vezes. Agora, o tempo é diferente. O pai partiu, mas está-nos sempre na conversa. Os dias passam e eu vivo contigo como um filho decadente, porque não constituiu família. Não: porque queria ser sacerdote ou militar e foi professor. Amei algumas mulheres na minha vida. Muito mais na imaginação do que na realidade. E sei por quê. Sou tudo menos marido ou pai. Sou o que as paredes no silêncio da casa me dizem. Saxa loquuntur, dizem os antigos: as pedras falam. Era o silêncio, depois de terem partido. É o silêncio que não deixas que aconteça, quando, de manhã, me vens falar dos teus sonhos. São sempre sonhos com a C. São os filmes que vês. Vês cinco filmes e misturas tudo. E és adorável por isso. Porque a vida é a trama que vamos tecendo e tu tens dois filhos completamente doidos, doidos varridos. Mas levamos-te nos anos de limusina. Amei muitas mulheres na minha vida: na imaginação mais do que na realidade. A casa não é a mesma sem o pai nem o mano. Mas esta casa era a do avô. Morreu há 20 anos. Estava na Alemanha. O pai disse-me ao telefone para não ir a Portugal e que o seu pai tinha encontrado o seu Deus. Lia tanto para não se perder. Disse-me um dia que agora é que ela me deu. “Agora é que ela me deu”. Era a velhice. E a morte a seguir. Mas o pai nunca morre. Nunca. Ele prometeu-me e eu acredito. Ainda não fala comigo nos sonhos. Mas o Zorba Anjos disse-me que ele ia falar um dia comigo. Também o Zorba Anjos ficou um dia sem o pai. Amei muitas mulheres na vida, na realidade e na imaginação. Mas como tu, mãe…
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDois poemas de Georg Trakl traduzidos Dämmerung1 [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]m Hof, verhext von milchigem Dämmerschein, Durch Herbstgebräuntes weiche Kranke gleiten. Ihr wächsern-runder Blick sinnt goldner Zeiten, Erfüllt von Träumerei und Ruh und Wein. Ihr Siechentum schließt geisterhaft sich ein. Die Sterne weiße Traurigkeit verbreiten. Im Grau, erfüllt von Täuschung und Geläuten, Sieh, wie die Schrecklichen sich wirr zerstreun. Formlose Spottgestalten huschen, kauern Und flattern sie auf schwarz-gekreuzten Pfaden. O! trauervolle Schatten an den Mauern. Die andern fliehn durch dunkelnde Arkaden; Und nächtens stürzen sie aus roten Schauern Des Sternenwinds, gleich rasenden Mänaden. Crepúsculo No pátio, enfeitiçado pela luz láctea do crepúsculo, Ternos doentes deslizam através do outono acastanhado. Os seus olhos redondos em cera pensam nos seus tempos dourados, Cheios de sonhos e paz e vinho. A enfermidade fecha-os fantasmagoricamente nela. As estrelas espalham uma tristeza alva No cinzento, cheios de ilusão e repiques, Vê como, horríveis, se dissipam confusamente. As figuras sem forma do escárnio esgueiram-se, de cócoras E esvoaçam sobre sendas negras negros de cruzamentos. Oh! Tão tristes as sombras nos muros. As outras fogem pelas arcadas sombrias. E à noite precipitam-se com as rajadas rubras Do vento estrelar, quais Ménades em fúria. De profundis Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt. Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht. Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist. Wie traurig dieser Abend. Am Weiler vorbei Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein. Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams. Bei ihrer Heimkehr Fanden die Hirten den süßen Leib Verwest im Dornenbusch. Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern. Gottes Schweigen Trank ich aus dem Brunnen des Hains. Auf meine Stirne tritt kaltes Metall. Spinnen suchen mein Herz. Es ist ein Licht, das meinen Mund erlöscht. Nachts fand ich mich auf einer Heide, Starrend von Unrat und Staub der Sterne. Im Haselgebüsch Klangen wieder kristallne Engel. De profundis Há um campo de restolho sobre o qual uma chuva negra cai. Há uma árvore castanha, que aí está de pé, sozinha. Há um vento sibilante à volta das cabanas vazias. Como é triste esta noite. Ao longo da aldeia, A doce órfã colhe ainda escassas espigas. Os seus olhos, redondos e dourados, pastam ao entardecer, E o seu peito anseia pelo noivo celestial. No regresso, Os pastores encontram o seu doce corpo A apodrecer nos arbustos de espinhos. Uma sombra eu sou, longe das lúgubres vilas. De Deus o silêncio Eu bebi na fonte do bosque. Na minha fronte, aparece metal frio. Aranhas procuram o meu coração. Há uma luz que a minha boca extingue. À noite, dei por mim numa charneca, petrificado pela sujidade e pó de estrelas. No bosque das avelaneiras, Ressoam, de novo, anjos de cristal.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasVila Nova de Milfontes – Na véspera de partir [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]arregávamos o carro de noite. A mãe arrumava o quotidiano da casa num carro pequeno: roupa, tachos, farmácia, livros. Descíamos vezes sem conta as escadas. O carro ficava cheio de véspera. Nem conseguíamos dormir. A carga da nossa vida estava lá toda. E acordava-se cedo. Um café era engolido. Os últimos sacos, levados para baixo. Partíamos às 7h00 da manhã. Aparecia a Avenida da Índia em direcção a Alcântara. Atravessava-se a Ponte Sobre o Tejo. As pernas eram esticadas ainda em Palmela. Depois, era rumo a sul. A viagem não era apenas a deslocação a sul. Não era para ir e vir. Não se ia tratar de um assunto rápido, para seguir com a vida. Era uma viagem. De Kilómetro a Kilómetro, tudo muda. A paisagem deixa a cidade atrás de si, sem ser vista. Mergulha-se numa dimensão rural, interior. O olhar está no Mira ou no Atlântico, mas não se avistam, verdadeiramente. Parávamos para almoçar. Na altura, ainda havia a avó com pastéis de bacalhau e arroz e vinho. Partíamos às 7h00 mas íamos a 60 km hora, a velocidade do pai. Passávamos Alcácer do Sal já à hora do almoço. Víamos viandantes que comiam connosco ou bebiam um copo de vinho. Recolhia-se a parafernália do farnel. Lá íamos nós. Aproxima-se Cercal do Alentejo, já com outros odores e cores. A cidade de pé tinha ficado para trás há algumas horas. Era como um sonho inteiro de ano lectivo. Lá tinha ficado o Natal, a Páscoa, o fim do ano lectivo. Agora, era outra coisa. Demorei muito tempo a perceber o que era. Conduz-se. A mãe acende o cigarro ao pai, não sem o molhar. O pai refila. Mas mete o cigarro à boca que aspira. Vou no lugar da frente. Olho pela janela e vejo só o céu. Embora lá em cima, é como se fosse uma astronauta. O carro pouco veloz, leva-me nas horas. “Hás-de lembrar-te deste tempo”, dizia o Beta. Chegamos ao Cercal do Alentejo. Pára-se para um café. Falta pouco tempo. Mas não será de seguida. Paramos ainda para beber água da fonte. O pai bebia com a mão a fazer concha. Bebia como tinha bebido na sua infância pobre de dinheiro mas rica de tudo o que a Terra dá. Enchem-se garrafões. Metem-se no carro. Aconchegamo-nos no carro mas só para o último troço. Sente-se o horizonte. Pressente-se a orla marítima. A infância tinha ficado umas temporadas antes, mas ainda fazia-se sentir. A juventude estava já quase aí. Terá sido assim? Chegamos a Milfontes. A terra dizia-se das três mentiras. Na altura: Vila Nova de Milfontes. Não era vila. Não era nova. Não tinha Milfontes. Anos mais tarde, descobri que seria Melis Fons ou Fontes: a fonte ou as fontes do mel. Os piratas subiam o mira para roubar o mel aos apicultores. A chegada não era agradável. Descobria-se uma casa vaga. Faziam-se as camas. A roupa ia para os armários. Os tachos iam para a cozinha. A farmácia para a casa de banho. Havia o primeiro reconhecimento. Íamos a pé até ao café da Dona Maria ou do Artur. Chegávamos ao fim da Barbacã, com a fortaleza do lado direito. Lá estava ele: o Mira a olhar para o Atlântico, como o meu Tejo. Esta, contudo, não era a chegada absoluta. Havia a noite. Íamos encontrar aos poucos como peças de um puzzle complexo os amigos do verão passado. Entretanto, tinham ficado amigos em Lisboa. Outros tinham a sua inauguração àquela terra mágica de pais e avós, tios, primos, irmãos e amigos. A noite era invariavelmente um reconhecimento. O que se tinha passado entretanto? Quem tinha 16 anos tinha agora 17. Como estávamos. Antecipávamos Setembro no fim e ainda era Julho ao princípio. Descemos lentamente ao Malhão. Só a partir de uma dada altura, percebemos o Atlântico. Arruma-se o carro. Desce-se desfiladeiro abaixo. Despimo-nos até aos calões. Corremos até à beira-mar. E o mergulho é o baptismo de renovação que sufoca. Oxalá houvesse sempre esse mergulho.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasMelancholia revisitada [dropcap style=’circle’] F [/dropcap] austo na versão de Thomas Mann vende a alma ao diabo para obter anos livres de criação. Em troca, o compositor Adrian Leverkuhn não podia amar. Nem sequer “abrasar-se”. Era paradoxal, segundo uma das projecções da configuração do diabo. O diabo inspira a luxúria, a violência, o priapismo. O próprio casamento para o apóstolo Paulo era a segunda melhor opção. Melhor seria que nunca ninguém vivesse com outrem. O celibato era a melhor opção para o cristão militante. O exercício da castidade é o método. Fausto, Adrian Leverkuhn, não chega a fazer bem a promessa. Facto é que durante 24 anos, qualquer forma de amor que o ligue a um qualquer ser humano: a uma mulher ou a um sobrinho, acabaria sempre por abortar. Ninguém fica impune a um coração partido. Como se sobrevive a uma decepção romântica? Uma mulher amada que faça a vida longe com outro homem com quem teve filhos é uma abstracção concreta. Não é nunca ninguém. É sempre alguém com o volume espesso do inatravessável. É compreendida com o coração como uma transparência absolutamente opaca. Uma criança amada que tivesse morrido ou fizesse vida fora das nossas vistas é o quê? É um vulto com uma biografia e uma cronologia que passam ao largo da nossa vida. Revisita-nos de quando em vez ou sempre, na realidade ou em sonho, mas não tem a espessura que o quotidiano dá às relações humanas. O pacto de Fausto com o Diabo é feito, quando o artista é jovem. Na versão de Goethe é completamente diferente. Fausto é um homem velho que se apaixona por uma rapariga muito jovem. Compreende-se fora de prazo para o amor. A sua compleição física não é erótica nem sensual para a menina. Vende a alma ao diabo em troca de tempo. O tempo agora é de juventude e é um tempo para amar. O sábio abdica de tudo para regressar a um tempo em que era possível recomeçar de novo. Este recomeço é feito com a certeza de que não esbanjará de novo a vida com o estudo. Será para ter uma vida amorosa, banal para o teólogo e o filósofo, burguesa para o artista. Não nos enganemos, vivemos a projecção existencial que compreende a vida a partir da situação esboçada por Thomas Mann. Talvez Nietzsche lhe sirva de modelo. E poderá mesmo servir, porque na sua biografia há elementos importantes que o deixam na situação de Fausto. Não se sabe se terá sido ou não correspondido. Não terá sido de certeza correspondido por quem quis ter e com quis ser, pressupondo que teria tido o talento para ser marido. As vidas fora da ordem da normalidade não são compatíveis com nenhuma forma de amor, não pelo menos aquela forma de amor que faz do outro a representação do tudo que nos diz. O ricochete dessa impossibilidade não dá a paz da neutralização. Dá outra coisa. Se todas as acções ficam em quem as pratica, a renúncia ao amor é a mais poderosa das acções. Não se rejeita toda a gente, nem todas as mulheres, nem todas as crianças, nem todas as pessoas em geral. Só aquelas que nos podem tornar escravos delas. É que a renúncia ao amor que tem como objectos amores efectivos, reais, poderosos, violentos, traz consigo o poder criativo. É desse poder criativo que vive o sacerdote, o artista, o político, o poeta, o filósofo. Sem querer pode ter-se feito o pacto. É-nos concedido tempo, muito tempo. Mas o pacto não nos blinda em absoluto. De quando em vez, vem até nós um sonho de amor. Como teria sido se tivesse ficado com alguém para ter sido a outra versão de mim próprio? Talvez o Fausto de Goethe seja a versão velha do Fausto de Thomas Mann. Na verdade, quer-se tudo e não se pode ter verdadeiramente nada sempre nem da mesma maneira. As asas da melancolia, ao baterem, afastam qualquer espécie de vida que tenhamos escolhido, presumindo que a escolhemos efectivamente.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO nada esvazia [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] negação na vida não é apenas lógica. Fazemos a experiência do “não” de diversos modos. Logicamente podemos perceber que não nega um predicado dito de um sujeito: o quadro não é preto, o tampo da mesa não é branco. Pode também negar a existência ou a disponibilidade de um sujeito: já não existem dinossauros, já não há leite, no sentido em que dizemos que acabou o leite na dispensa. A forma como a lógica e a linguagem pensa a negação é complexa porque a operação de negação se complexa conforme os horizontes semânticos que se constituem. É possível que não chova é diferente de é provável que não chova e diferente ainda de é necessário que chova. A complexificação do pensamento modal implica todo um conjunto de correlações entre o ser necessário e o ser possível. Mas também podemos trazer quantificadores à colação. É possível que nem todas as pessoas tenho os mesmos gostos. Não é possível que algum ser humano não seja mortal. A predicação negativa, a negação da existência absoluta de um objecto expresso como sujeito gramatical, a negação modal e a negação quantificada enquanto tais e individualmente e numa relação entre si dá para podermos perceber a densidade do operador de negação. Se acrescentarmos ainda a dupla negação e compreendermos como a afirmação pode daí resultar, então a análise terá de sempre sempre também semântica e pragmática e não apenas sintática. Há, assim, muitas maneiras de dizer “não”. Há muitas maneiras de expressar a negação. Com pronomes: ninguém, nenhures. Com advérbios: nunca, nenhures. A antiguidade pensa a “negação” não apenas como apofático (enunciado declarativo negativo, como demos alguns exemplos lá em cima) mas também como privação (sterêsis). A cegueira é uma negação essencial da possiblidade da visão. Ter olhos não quer dizer ter a possiblidade da visão. Há coisas em sonhos e ficção que não são vistas com os olhos. Toda a forma de mutilação que resulte de amputação não é uma mera negação. O corpo humano é um todo que sem partes deixa identificar diversas impossibilidades, de outro modo possíveis se não estivesse privado delas. Se a mesa não tiver tampo ou não tiver pernas, se a porta não tiver trinco ou não estiver encaixada, se a estante ou a tenda não estão montadas, sucede não apenas uma negação lógica mas a compreensão da impossibilidade de uma possibilidade. E, contudo, a vida ensina-nos outras formas de negação bem mais profundas, apesar da complexidade “lógica” daquelas que enunciamos. Mais abissal do que a mera negação que se adequa ao pensamento do que não existe e não há é a dureza da contrariedade. A abominação da solidão é duríssima e não anulável. É agudíssima. Em toda a recusa, encontramos uma dor impiedosa. Toda a interdição e proibição nos faz ver o que não é para nós, quem não é para nós. Faz-nos ver também quem nós nunca seremos. Em toda a carência, haverá mais amargura? A interdição, a abominação, a rejeição, a contrariedade, não são ausências de registo de possibilidade, mas possibilidades impossibilitantes. Trazem simultaneamente consigo, na verdade da noite da angústia, o que corresponde ao sentido do ser na sua possibilidade de problematização extrema. O que é possível é arrancado ao nada.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPoesia de Georg Trakl ALMA DA VIDA Decadência, que suave ensombra a folhagem. O seu amplo silêncio mora na floresta. Em breve, uma aldeia parece inclinar-se, como um fantasma. A boca da irmã sussurra nos ramos negros. O homem solitário vai desaparecer em breve, Talvez seja um pastor, sobre caminhos sombrios. Sai em silêncio um animal da arcada de árvores, Enquanto as pálpebras se abrem bem perante a divindade. O rio azul escoa, belo. Nuvens mostram-se de noite. A alma está num silêncio angelical. Figuras passageiras decaem. Seele des Lebens Verfall, der weich das Laub umdüstert, Es wohnt im Wald sein weites Schweigen. Bald scheint ein Dorf sich geisterhaft zu neigen. Der Schwester Mund in schwarzen Zweigen flüstert. Der Einsame wird bald entgleiten, Vielleicht ein Hirt auf dunklen Pfaden. Ein Tier tritt leise aus den Baumarkaden, Indes die Lider sich vor Gottheit weiten. Der blaue Fluß rinnt schön hinunter, Gewölke sich am Abend zeigen; Die Seele auch in engelhaftem Schweigen. Vergängliche Gebilde gehen unter. Dia de Todos os Santos a Karl Hauer Triste aliança, homenzinhos, mulherinhas, Espalham hoje flores azuis e encarnadas Sobre as suas sepulturas, que timidamente se aclararam. Agem como pobres marionetas perante a morte. Oh! Como parecem existir aqui cheios de angústia e humildade, Como sombras de pé atrás de negros arbustos. No vento de outono, lamenta-se o choro das crianças não nascidas, Também se vêem luzes perderem-se na loucura. Os suspiros dos amantes sopram nos ramos E lá apodrece a mãe com a sua criança. Irreal parece a dança dos seres vivos E admiravelmente espalha-se no vento nocturno. Tão confusa a vida deles, tão cheia de lúgubres tormentos. Tem piedade, Deus, do inferno e do martírio das mulheres, E do seu lamento mortal, desesperançado. Sozinhas, em silêncio, vagueiam na sala das estrelas. Allerseelen An Karl Hauer Die Männlein, Weiblein, traurige Gesellen, Sie streuen heute Blumen blau und rot Auf ihre Grüfte, die sich zag erhellen. Sie tun wie arme Puppen vor dem Tod. O! wie sie hier voll Angst und Demut scheinen, Wie Schatten hinter schwarzen Büschen stehn. Im Herbstwind klagt der Ungebornen Weinen, Auch sieht man Lichter in der Irre gehn. Das Seufzen Liebender haucht in Gezweigen Und dort verwest die Mutter mit dem Kind. Unwirklich scheinet der Lebendigen Reigen Und wunderlich zerstreut im Abendwind. Ihr Leben ist so wirr, voll trüber Plagen. Erbarm’ dich Gott der Frauen Höll’ und Qual, Und dieser hoffnungslosen Todesklagen. Einsame wandeln still im Sternensaal.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDa noite para o dia [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] história de Rip van Winkle descreve um dia na vida do protagonista em que se dá a passagem para uma outra dimensão da vida. Rip vai à caça. Sobe às montanhas de Kaatskill com o seu cão Lobo, escapa ao quotidiano do casamento. À medida que o tempo vai passando, sente-se o carácter líquido das montanhas. A atmosfera é diferente. Lá em cima é longe. É de lá que se vê “lá em baixo”. O sítio onde se encontra: ermo e desgrenhado, o fim do dia, são literais, mas também figurados. O tempo começa a alterar-se com os seus conteúdos: fora da azáfama do dia a dia, longe da cidade e de casa, num outro sítio, mas também numa outra dimensão. Fica absorto naquele cenário durante algum tempo e ouve uma voz chamar pelo seu nome. Pode ser irreal, mas ele vai atrás desta personagem que o leva para junto de homens não menos estranhos. Joga às cartas e bebe uma poção destilada. Tudo é como habitualmente, depois da hora de expediente na taberna ou como nos dias feriados. À medida que vai bebendo, o tempo altera-se. Altera-se também a relação com o tempo. A consciência de tempo metamorfoseia-se. Perde a consciência de tempo. Perde o contacto com o tempo. Cai num sono profundo. Quando Rip acorda, procura assegurar-se de que não ficou ali a noite inteira, como se o problema do tempo que entretanto passara fosse de curta duração, ainda que de uma noite. Não sabia bem o que se tinha passado. Não tinha acompanhado o tempo a passar. O tempo da noite que decorreu entre ontem e hoje está fora da relação com a consciência. A tentativa de recuperação do último instante antes de ter perdido a consciência revela o esforço complexo em que nos encontramos sempre com preocupação de não inconsciência. A espingarda que era novinha em folha enferrujou. São os primeiros conteúdos concretos com que Rip se debate. Apontam para a passagem do tempo. Uma passagem do tempo que não se percebe enquanto tal mas que se projecta sobre conteúdos. O corpo não é o mesmo: não depois da convalescença de uma gripe, não, no dia de ressaca em comparação com a véspera, não durante as décadas em convívio com ele. Mas a diferença de conteúdos é também genérica. Não conheçe ninguém, quando achava conhecer toda a gente. A estranheza dos rostos é comparada sem dificuldade com a familiaridade dos rostos outrora. A roupa, por exemplo, é diferente. A moda muda. Mas a forma como os outros nos olham reflecte também o próprio reconhecimento que o outro tem de nós ou a ausência de reconhecimento. Sabemos quando alguém conhecido está a olhar para nós e não nos reconhece. Sabemos como se dá o olhar de ex-amantes, sabemos como é o olhar dos amigos desavindos. Provavelmente é o mesmo que os outros reconhecem em nós, quando passou tempo desde a infância sem nos vermos, quando acabou uma relação romântica, quando tudo se alterou. Toda a aldeia estava modificada: O aumento dos pequenos pormenores está reflectivo nas pequenas percepções ou percepções do desequilíbrio: há o reconhecimento do sítio como geograficamente o mesmo, com características complexas mas abstractas. Já não é o que era. Só se encontram objectos em macro estruturas temporais: montanhas, o rio, colinas e pequenos vales. Definitivamente o álcool como o tempo têm o condão de tudo alterar, a partir do seu humor. A casa está em ruínas. A estalagem da aldeia sumira-se. Tudo se encontrava singularmente metamorfoseado. E procura saber o que se passou com as personagens da sua vida: Nicholas Vedder, Brom Dutcher, Van Buymmel, a mulher, a filha, o filho, mas também o próprio. As personagens da nossa vida envelhecem ao mesmo tempo, desaparecem afectivamente, fisicamente, mas não deixam de ser figurantes ou personagens das nossas próprias vidas. O mais interessante é o desconhecimento de si próprio, o desconhecimento do outro, a possibilidade de sermos confundidos com outros em quem estamos plasmados. A estrutura do próprio é o mesmo e outro. Mas a confusão da alteração complexa entre mim e mim de uma hora para a outra é absolutamente problemática. Uma só noite dura 20 anos. Um qualquer instante pode durar muitos anos. Um instante tem uma distensão temporal. 20 anos podem também ter exactamente os mesmos conteúdos e nós não damos por eles.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasCinco poemas de Georg Trakl traduzidos De profundis [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á um campo de restolho sobre o qual uma chuva negra cai. Há uma árvore castanha, que aí está de pé, sozinha. Há um vento sibilante à volta das cabanas vazias. Como é triste esta noite. Ao longo da aldeia, A doce órfã colhe ainda escassas espigas. Os seus olhos, redondos e dourados, pastam ao entardecer, E o seu peito anseia pelo noivo celestial. No regresso, Os pastores encontram o seu doce corpo A apodrecer nos arbustos de espinhos. Uma sombra eu sou, longe das lúgubres vilas. De Deus o silêncio Eu bebi na fonte do bosque. Na minha fronte, aparece metal frio. Aranhas procuram o meu coração. Há uma luz que a minha boca extingue. À noite, dei por mim numa charneca, petrificado pela sujidade e pó de estrelas. No bosque das avelaneiras, Ressoam, de novo, anjos de cristal. De profundis[1] Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt. Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht. Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist. Wie traurig dieser Abend. Am Weiler vorbei Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein. Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams. Bei ihrer Heimkehr Fanden die Hirten den süßen Leib Verwest im Dornenbusch. Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern. Gottes Schweigen Trank ich aus dem Brunnen des Hains. Auf meine Stirne tritt kaltes Metall. Spinnen suchen mein Herz. Es ist ein Licht, das meinen Mund erlöscht. Nachts fand ich mich auf einer Heide, Starrend von Unrat und Staub der Sterne. Im Haselgebüsch Klangen wieder kristallne Engel. Humanidade Humanidade posta perante gargantas de fogo, Rufar de tambores, semblantes escuros dos guerreiros, Passos através de um nevoeiro de sangue. Ressoa o ferro negro. Desespero. Noite em cérebros tristes: Aqui as sombras de Eva, a caça e o dinheiro encarnado. Nuvens que a luz trespassa, a ceia. Um silêncio suave habita o pão e o vinho E aqueles ali reuniram-se. Doze em número. À noite, gritam a dormir debaixo dos ramos da oliveira. São Tomé mergulha a mão nas feridas. Menschheit Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt, Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen, Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt, Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen: Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld. Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl. Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen Und jene sind versammelt zwölf an Zahl. Nachts schreien im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen; Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal. Alma da vida Decadência, que suave ensombra a folhagem. O seu amplo silêncio mora na floresta. Em breve, uma aldeia parece inclinar-se, como um fantasma. A boca da irmã sussurra nos ramos negros. O homem solitário vai desaparecer em breve, Talvez seja um pastor, sobre caminhos sombrios. Sai em silêncio um animal da arcada de árvores, Enquanto as pálpebras se abrem bem perante a divindade. O rio azul escoa, belo. Nuvens mostram-se de noite. A alma está num silêncio angelical. Figuras passageiras decaem. Seele des Lebens[1] Verfall, der weich das Laub umdüstert, Es wohnt im Wald sein weites Schweigen. Bald scheint ein Dorf sich geisterhaft zu neigen. Der Schwester Mund in schwarzen Zweigen flüstert. Der Einsame wird bald entgleiten, Vielleicht ein Hirt auf dunklen Pfaden. Ein Tier tritt leise aus den Baumarkaden, Indes die Lider sich vor Gottheit weiten. Der blaue Fluß rinnt schön hinunter, Gewölke sich am Abend zeigen; Die Seele auch in engelhaftem Schweigen. Vergängliche Gebilde gehen unter. Crepúsculo No pátio, enfeitiçado pela luz láctea do crepúsculo, Ternos doentes deslizam através do outono acastanhado. Os seus olhos redondos em cera pensam nos seus tempos dourados, Cheios de sonhos e paz e vinho. A enfermidade fecha-os fantasmagoricamente nela. As estrelas espalham uma tristeza alva No cinzento, cheios de ilusão e repiques, Vê como, horríveis, se dissipam confusamente. As figuras sem forma do escárnio esgueiram-se, de cócoras E esvoaçam sobre sendas negras negros de cruzamentos. Oh! Tão tristes as sombras nos muros. As outras fogem pelas arcadas sombrias. E à noite precipitam-se com as rajadas rubras Do vento estrelar, quais Ménades em fúria. Dämmerung Im Hof, verhext von milchigem Dämmerschein, Durch Herbstgebräuntes weiche Kranke gleiten. Ihr wächsern-runder Blick sinnt goldner Zeiten, Erfüllt von Träumerei und Ruh und Wein. Ihr Siechentum schließt geisterhaft sich ein. Die Sterne weiße Traurigkeit verbreiten. Im Grau, erfüllt von Täuschung und Geläuten, Sieh, wie die Schrecklichen sich wirr zerstreun. Formlose Spottgestalten huschen, kauern Und flattern sie auf schwarz-gekreuzten Pfaden. O! trauervolle Schatten an den Mauern. Die andern fliehn durch dunkelnde Arkaden; Und nächtens stürzen sie aus roten Schauern Des Sternenwinds, gleich rasenden Mänaden. Melancolia – 3ª Versão Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros, Que longamente me fixam, ao passar. Acordes suaves de guitarra acompanham o outono, No jardim, dissolvido em lixívia castanha. As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria Da morte. Lábios podres sugam leite de Peitos encarnados e na lixívia negra Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol. Melancholie Bläuliche Schatten. O ihr dunklen Augen, Die lang mich anschaun im Vorübergleiten. Guitarrenklänge sanft den Herbst begleiten Im Garten, aufgelöst in braunen Laugen. Des Todes ernste Düsternis bereiten Nymphische Hände, an roten Brüsten saugen Verfallne Lippen und in schwarzen Laugen Des Sonnenjünglings feuchte Locken gleiten. [1] Trakl, Georg. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 27.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDecisão I [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] partir de determinada altura, deixamos de ter aniversários. Fazemos anos todos os dias. Ficámos, de algum modo, à espera. O que era para nós um projecto vital pode ficar hipotecado. Não tanto relativamente à promessa que temos com a vida, seja nós a fazê-la, seja a vida a fazê-la a nós. Mais relativamente ao meio que escolhemos para ser quem somos. Há muita gente que não terá tido essa possibilidade. Mas eu conheço muita gente que teve. Há alturas em que parece que ficamos desavindos com amigos. Sem sabermos bem por quê. Acontece. A resposta imediata de parte a parte resolve a situação. Não ficam ressentimentos. Voltamos a estar como se não houvessem mal entendidos. Os entusiasmos passados lentamente se tornam cruzes que temos de carregar. Todas as nossas decisões tomadas de ânimo leve ou difíceis abrem horizontes temporais que podem ser de longo prazo. Mesmo que achemos que foram acertadas no momento da escolha, a partir de determinada altura na vida, pensamos o que teria sido se não as tivéssemos tomado. Podemos pensar que não havia alternativa, mas o resultado que é esta vida, a única que temos, parece, se não, negativo, pelo menos difícil. O modo de vermos as coisas pode ter sido o do ultimato. A decisão podia ter parecido inevitável. Mas pensamos sempre se não poderíamos ter esperado mais um dia, se não poderíamos ter visto “melhor” as consequências das nossas acções: do sim e do não. De algum modo, parece que podemos ter cedido a tentações: a do prazer a que dissemos sim e à da fuga ao sofrimento a que dissemos não. Sabermos, ainda assim, se não foi uma decisão motivada por princípios “patológicos” como Kant lhes chamava: por um lado, a cedência à promessa do prazer, por que nos decidimos como se não houvesse amanhã. Por outro, a fuga à ameaça de sofrimento como se só houvesse um amanhã sem alternativa, difícil de suportar. Em ambos os casos vemos a promessa como o que vai ficar para sempre. Tudo será como é agora no presente. Todo o prazer será bom e cada vez mais frequente e intenso. Por outro lado, todo o sofrimento é visto no presente como a ameaça não anulável de um futuro onde só haverá condenação sem redenção. A racionalidade promete a possibilidade de um escrúpulo da não cedência à primeira dificuldade ou facilidade. Mas como podemos percorrer as nossas vidas na fantasia da imaginação para ver o que efectivamente vai acontecer se ficarmos ou se formos, se partirmos ou insistirmos, se mudarmos ou ficarmos na mesma? É a racionalidade que transcende o prazer e o sofrimento, a promessa e a ameaça, a abertura possível a uma escolha que vai contra todo o prazer e tolera todo o sofrimento, que anula o vigor de promessas e ameaças como futuros aparentes e falsos? E esta elucubração sobre a possibilidade da racionalidade aparece por quê? Pode ela modificar o passado ou antecipar boas resoluções para o futuro? Posso eu ficar sossegado ao ver em retrospectiva as decisões passadas como boas decisões e que tudo estaria pior se tivesse optado pela outra alternativa? E no futuro, poderei eu decidir fora do âmbito do prazer ou do sofrimento e perceber que as coisas já acabaram e eu não sabia ou ainda não acabaram e eu também não sei? Nenhum sossego vem, contudo. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Em qualquer dos casos, há alturas em que achamos que todas as nossas decisões tomaram o curso errado. Mas a aparência de resolução desta possibilidade cai por terra, quando se multiplicam as decisões no âmbito de todas as frentes da vida. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Só podemos ter uma vida e com ela há uma possibilidade infinita de vida que corre paralela a esta vida. Mas é só na nossa imaginação. Viver todas as vidas de todos os amores possíveis, viver em todos os países que vivemos, ter todos os trabalhos que gostaríamos ter tido, viver todas as aventuras possíveis. E, contudo, só há isto que podemos viver. Mesmo que nos multipliquemos não seremos artistas, sacerdotes, amantes ou lá o que pudemos ter sido e ser. Amamos muitas coisas na realidade e na imaginação, mas haverá um único verdadeiro amor? Porque achamos que é um único o verdadeiro amor e que é o amor a motivação intrínseca para sermos quem somos. Há amores infelizes e amores felizes, amores que dão prazer e outros que são duríssimos. Há assim as pessoas das nossas vidas e as relações que com elas temos e as actividade a que nos dedicamos e que nos definem. Mas que seremos sem essas pessoas todas? O que seremos sem as atividades que são as nossas vidas? O que seremos sem conteúdos? Posso ser sem biografia? Posso ser sem o conteúdo dos dias como se fosse uma tábua rasa de tudo sem nada? E poderíamos viver na indecisão? A não decisão tem consequências também. A angústia invalida até o horizonte em que as possibilidades de decisão ocorrem.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasLinguagem II Noite de inverno Georg Trakl [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela Longamente tocam os sinos. A mesa está pronta para muitos, E a casa está bem arrumada Alguns chegam à porta, Pelos caminhos sombrios da peregrinação. Dourada floresce a árvore das bênçãos, O suco fresco que vem da terra. Caminhantes entram em silêncio. O limiar petrifica a dor. Aí, reluzem num clarão puro Pão e vinho sobre a mesa[1] “A linguagem designa o tempo de uma noite de inverno. O que é este denominar […] Denominar não distribui títulos. Não emprega palavras. Chama à palavra. Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade. De igual modo, esta aproximação não torna o que é chamado disponível numa região mais próxima do presente, para aí o acolher. O Chamamento chama, de facto.Ele traz à proximidade o que é chamado. […] Ele traz o presente do que não tinha sido chamado até então a uma proximidade. Mas enquanto o chamamento convoca, dirige-se para o que foi chamado para o trazer. Para onde? Até ao longe, onde o que é chamado permanece ainda mas na sua ausência.“ (18) As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são as mais fácil e directamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é expressão, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes, como no exemplo de Quine a respeito do arunta, uma língua desconhecida, com a palavra “gavagai”. Quando um coelho é avisado a passar, um nativo pronuncia a palavra. O antropólogo que não conhece a língua, reage ao coelho que passa: pode ser: “comida”, “caça”, e para além de outras hipóteses: “parte de coelho”, “coelho” ou “coelhidade”. A linguagem transforma o que é visto como facto ocorrido num acontecimento de sentido. Há significado. Não, factos. A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos. Pode ser todos os sonhos destruídos que nunca desaparecem mas nos fazem viver uma vida com a possiblidade perdida da primeira vez de todas as primeiras vezes ou como dizem os românticos um amor infeliz. A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos aliviados da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro. Obs.: Denominar, dar nomes, designer, chamar. Trazer à presença, afastar da presença, não falar ou falar sobre alguém ou alguma coisa pode corresponder ao querer ou não querer lembrar-se de alguém. A revogação, o chamar o passado, a provocação, a chamada no presente, lembrar para o futuro, o que se chama do passado e se apresenta como o que virá a ser. A lógica da expressão é completamente diferente porque está alicerçada numa lógica de causalidade e portanto de presença ou então na relação entre interior daqui para aí ou exterior de lá para cá, quando o que se passa é no próprio comportamento da acção: faz favor? O que pretende? O pedido, a súplica, a interrogação, o comando. Nem sequer se dá quando há relações pragmáticas quando temos de ir a sítios tratar de assuntos particulares com alguém. A linguagem também não é reflexiva nem se reduz à palavra, embora a palavra seja a sua condição inalienável. Nem o que diz é o indicativo mas pode ser o possível, a ficção, a biografia e o futuro a haver mas no interior das veleidades. A linguagem pode dizer o impossível, o que não se aguenta, ressuscita mortos com quem nos faz conviver mais intensa e dramaticamente do que com qualquer pessoa viva: amores abortados, vidas interrompidas. No chamamento, há um convite. O convite convida as coisas a aproximarem-se dos seres humanos e a serem compreendidas no seu sentido como coisas. Não como factos. A queda da neve, o anoitecer, o inverno não são factos. Esses acontecimentos estão impreganados pela própria linguagem. São dizíveis no que são meteorologicamente, na hora do dia e na estação do ano. Mas existem num acontecimento conjuntamente com o ser humano no horizonte universal onde acontecem como sentidos. “A linguagem do poema traz as pessoas sob o céu que escurece ao anoitecer. O som do sino à noite traz os mortais enquanto mortais diante do divino. Casa e mesa ligam os mortais à terra. […] Este fazer e deixar permanecer da reunião faz das coisas as coisas. […] Na nomeação, estas coisas são chamadas na sua essência.” (20) Nós existimos num horizonte estrutural que Heidegger identifica como o espaço intermédio, o meio intermédio. Não nos encontramos como sujeitos à janela do mundo a espreitar ou a assistir ao que acontece. Não somos polarizados pelo mundo como objecto. Antes, sujeito e objecto existem na relação intrínseca entre um e outro. O sentido da relação entre um sujeito e um objecto é cognitivo ou teórico. Mas este não é o único. Também a teoria nos implica a nós como sujeitos e ao mundo e às outras pessoas num espaço interior. “O meio de duas coisas é designado pela língua: o espaço intermédio o espaço “entre” (“das Zwischen”). A língua latina diz: “inter”. Corresponde-lhe o alemão “unter”. A interioridade de mundo e coisa não é uma fusão. A interioridade reina apenas, onde o interior, mundo e coisa, puramente se separam e permanecem separados. No meio de dois, no entre do mundo e coisa, no seu “inter”, neste “entre” reina a fissura.“ (25). Mas é a dor “que se metamorfoseia em pedra não se endureceu no limiar para se fixar nela. A dor como dor manifesta-se e apresenta-se duradoura no limiar. […] A dor é a inserção da fissura. A inserção é o limiar. Ela suporta o entre, o meio entre os dois que se separaram. A dor insere a fissura da diferença. A dor é a própria diferença.” (24) A dor não é um fenómeno subjectivo. Pode acontecer no corpo ou na alma. A dor é uma realidade não anulável. Sente-se numa das suas dimensões de tal sorte que faz implodir e filtra toda a vida, sem apelo nem agravo. Custa. Dói, isto é, faz doer. Nos caminhos da peregrinação, encontramo-nos todos. Ou na via sacra da teologia da cruz ou nos caminhos contemporâneos que tornaram o planeta terra à quase ausência de distância. Nenhum animal peregrina. Só o ser humano se pode deslocar na forma de uma peregrinação, de uma viagem, até sem se deslocar. O limiar da porta é o portal de entrada para uma outra dimensão. Chega-se a casa onde se é acolhido. Mas só se chega desta maneira a casa com a percepção da dificuldade da dor que é fazer o caminho. Ou antes, o caminho do tempo usa o humano para o seu próprio acontecer. Mesmo sem nunca sairmos do mesmo local, sem sairmos do próprio corpo, o tempo faz o seu percurso em nós mesmos. Há silêncio, porque o que acontece não tem referente. O pão e o vinho sobre a mesa não são comida e bebida, não são meros alimentos. Estão sobre a mesa de uma casa bem arrumada. O encontro entre o peregrino e a mesa permitem um chamamento. Não apenas do passado, da infância, das refeições em família, nem da importância da refeição na vida de uma família, no quotidiano e nos dias de festa. O que é invocado é convocado da ausência: é o próprio clarão puro. É o brilho do que aí acontece que alegoricamente metamorfoseia simplesmente tudo para fora do âmbito estrito da realidade factual e para a dimensão do significado. [1] Winterabend Wenn der Schnee ans Fenster fällt, Lang die Abendglocke läutet, Vielen ist der Tisch bereitet Und das Haus ist wohlbestellt. Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden. Golden blüht der Baum der Gnaden Aus der Erde kühlem Saft. Wanderer tritt still herein; Schmerz versteinerte die Schwelle. Da erglänzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein. TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 58.
António de Castro Caeiro PolíticaLinguagem I [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um dos seus textos icónicos sobre linguagem poética (A linguagem “Die Sprache” in Unterwegs zur Sprache, 9-33, 1959), Heidegger “destrói” o seu sentido habitual ou, pelo menos, o sentido que Heidegger determina como o habitual na tradução ocidental. A) A primeira qualificação essencial da linguagem é ser uma forma de expressão. B) A segunda é ser uma actividade. C) A terceira implica a linguagem no próprio horizonte configurado pelo humano. A tese positiva que Heidegger diz ser a que resulta da inteligibilidade intrínseca da linguagem é formulada numa tautologia: “Die Sprache spricht” impossível de verter directamente para português: “a linguagem fala”. À letra seria a “linguagem língua”. A tese que subjaz a este enunciado procura mostrar como a linguagem fala a partir do ser do humano, do acontecer não anulável em que de cada vez desde sempre já somos. A língua diz, enuncia, permite falar, conversar. E na verdade, já à partida em cada um de nós que diz “sou”. Cada um de nós existe numa conversa de si para si sobre si. Proferimos em sons o que queremos dizer. Mas também em interjeições, inflexões e pausas. Muitas vezes também não emitimos som algum. Outras vezes falamos sozinhos. No sonho ou na realidade, na ficção ou na lembrança agradável ou desagradável do passado, na relação com o futuro a haver com e sem esperança, com pessoas ou sozinhos estamos sempre numa atmosfera de linguagem em que se diz e há coisas dizíveis, se sabe o que se quer dizer ou não se consegue dizer o que se sabe. A) A linguagem é uma forma de expressão. De acordo com Heidegger não há nada de errado com esta tese. Mas fica aquém de uma determinação constitutiva. A argumentação parece ser retórica. Há um conteúdo a decorrer no interior de cada pessoa, seja mental, anímico ou espiritual. Ocorrem-nos ideias, vêm-nos à ideia pensamento, temos lembranças, fazemos previsões, dizemos o que vamos fazer, antecipamos situações. A linguagem formula uma expressão desses acontecimentos interiores, que mais ninguém vê no momento em que são tidos, num nível de representação subjectivo. Por outro lado, há conteúdos do mundo real que vêm a uma expressão. Como está o dia, quem vemos à nossa frente, percursos tomados, sítios onde vamos, tarefas que executamos, funções que desempenhamos, livros que lemos, cafés que tomamos, etc., etc.. A linguagem exprime conteúdos reais, pessoas reais, circunstâncias, situações com agentes reais. A crítica visa fundamentalmente um esquema de correspondência e de espelhos ou de reflexos que tem na base substâncias e um sistema de traduções. A diferença entre um em si e a referência ou a referência e um ou mais sentidos implica uma abertura à compreensão que dá ou reteria inteligibilidade ao facto de a linguagem fora do âmbito de correspondência “querer dizer algo de si ou acerca de outrem, acerca das coisas que não são o próprio”. E tudo de tal forma em que a expressão está já constituída- como de resto todas as impressões e os modos como se nos inculcam e o estado em que nos deixam- no ser desde sempre já da existência humana num “espaço lógico”, “numa atmosfera linguística”, na relação de compreensão que ganha inteligibilidade ou não sobre o que quer que seja inclusivamente sobre si. B) Ser uma actividade é outra das determinações da linguagem. Não apenas no sentido linguístico em que podemos obter denotações dos factos de que as coisas são o que são numa descrição ao pé da letra e objectiva. Mas também podemos visar sentidos por conotação, indo até um sentido figurado ou literário, não imediato e não factual, pelo menos aparentemente. Há enunciados declarativos que resultam de uma pergunta. Há respostas a pedidos, desejos formulados, ordens recebidas, vozes de comando que estão numa tensão imperativa. Há perguntas que se fazem directa e indirectamente. Todo o sistema verbal modal, o aspecto perfectivo e imperfectivo, os tempos, as vozes está implicado numa estrutura muito mais complexa do que aparentemente se possa compreender. No fundo, a actividade resulta no que se põe em prática à luz da linguagem. Há tanta expressão de linguagem na explicação de um poema ou de um teorema como na actividade de fazer café, acender e apagar luzes, descer e subir escadas, ir e vir, partir, ficar e regressar. C) O humano tem uma relação com a linguagem não no sentido em que se exprime com a linguagem, diz-se a si próprio, diz de si ou negativamente não tem palavras que não encontra para o fazer, não consegue imaginar-se no lugar do outro, não sabe como é que o outro se encontra. O humano é tido pela linguagem. A sua atmosfera é a linguagem no sentido em que está sob pressão de esclarecimento e explicação de si para si sobre o que acontece na vida real, na realidade objectiva e sobre aquilo para que lhe dar. A língua é o meu de resolução de todos os problemas que lhe são postos, questões levantadas. Só dela virá sossego e é ela que traz toda a inquietação. Mas ela não diz apenas o que está já aí, que possa ser espelhado pela formulação linguística. A linguagem põe de pé o futuro, projecta resultados, antecipa situações, faz prognósticos, dá previsões, permite-se predizer o que é constituído pela própria potência da linguagem. A linguagem chama, convoca, apresenta, esquece, faz desaparecer.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasMelancolia do fim [dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á horas que olho para conteúdos cinematográficos. Não me mexo a não ser para me virar. Quando viajamos, há uma mesma apresentação encenada do que está fora. Há um guião. Deslocamo-nos, contudo. Quando, ao ver conteúdos cinematográficos, não. A viagem no tempo é numa dimensão diferente. O tempo excede os conteúdos reais. É a verdadeira viagem. O passar das hora do almoço para a hora da tarde. O passar o serão logo a seguir ao jantar com os sons da vida: de quem chega a casa, liga a TV, as crianças que gritam e correm. Pisam com convicção o corredor. A mesma dimensão está presente, quando nos leva ao passado, ao princípio dos princípios. Há muitos princípios e muitas primeiras vezes. Não são sempre auspiciosas. São más. Podem ser muito más. Podem ser boas. Mas há um princípio de entusiasmo. Não é por nenhum conteúdo que objectivamente possa ser descrito enquanto tal. É um conteúdo fascinante pelo tempo que o traz. Há um encantamento com o fascinante. É uma configuração temporal na época das nossas vidas. A juventude transfigura tudo na primavera ou no verão da existência. É tudo de véspera. Mesmo sem possibilidades enormes ou oportunidades objectivas, filtra todo e qualquer conteúdo, sem excepção, com a compreensão da véspera auspiciosa do que aí vem. O que aí vem vibra com a excitação do tempo para vir. O tempo para vir é como na véspera de natal, na véspera da ir de férias, na véspera do primeiro dia de aulas, na véspera da inauguração de um tempo que traz consigo ascensão e um deslize velos em direcção a um fim. Este fim não é lá no fundo. É uma descida para de novo ganhar balanço. É o entusiasmo de quem cavalga o cavalo do tempo, de quem desce e sobe vagas, de quem encosta abaixo esquia ou nas dunas se atira para sentir cair, o que justifica toda areia mordida. O fascinante é o modo como o futuro acontece para quem tem futuro. Não há fascínio, embora possa haver espanto, na sobrevivência, muito menos numa sobrevivência a si próprio. Quando todo o futuro está atrás das costas, não há fascinante, nem encanto, nem expectativa, nem esperança. Há o que é e o que é tem sido como sempre e repetir-se-á assim. Não é o pior. O pior é não ser enganado, o que pressupõe que o fascinante do feitiço deixa de actuar. Perde vigor. Às vezes voltamos atrás como se arrancássemos os olhos da cara de alguém para os inserir nos nossos. É como se assim víssemos uma rua pouco glamorosa, mas onde há antecipação, onde há ainda véspera, onde há esperança e a expectativa da mudança não é a rotina inultrapassável de tudo sempre cada vez mais na mesma. Onde está essa renovação do olhar que antigamente era tão poderosa que era mesmo o modo de olhar para as coisas. Agora, tudo estafado na rotina da repetição não vem sequer uma leve brisa que se levanta e nos faça olhar para outro sítio. O pior de tudo não vem com o tempo. Não se trata de quantidade de tempo. Pelo menos não no sentido em que se tratasse de um aumento homogéneo da quantidade do tempo. A nossa vida é marcada por épocas. O nosso tempo tem momentos de viragem. Datamos assim autobiograficamente sem sabermos bem como a nossa história como a história das nossas decepções, das nossas desilusões, das nossas perdas, das nossas mortes. Em cada um desses momentos perdemos a possibilidade de sermos objecto do fascinante, do feitiço que nos atrai para fora do sítio imóvel do presente. Para haver grandes decepções houve grandes esperanças. Quanto maior é a esperança maior é a decepção. Os espíritos jovens são formalmente obrigados a viverem montados no haver que lhes dá futuro. A sobrevivência é resistir a essa decepção. Tudo muda para pior. Nada fica como é. É possível, contudo, conviver com a derrota. Mas é à espera, à espera de que tudo acabe. Todo o fim é sempre redentor.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUma nota sobre o olhar. Para o João Paulo Cotrim. [dropcap style=’circle’] H [/dropcap] á um modo “normal” de olhar para as coisas. Corresponde a uma espécie de média estatística. As coisas surgem-nos, também, o mais das vezes e à primeira vista, quotidianamente, sempre da mesma maneira. Há uma modulação que tende para esta média quotidiana. Neutralizam-se as diferenças de aspecto das coisas. Contamos com a alteração. As diferenças de olhar e visto são, por assim dizer, esperadas, tidas em consideração, antecipadas. E, contudo, é assim na essência das coisas e na essência da nossa lucidez. Quando se produz uma alteração radical no modo de ver as coisas e no modo das coisas aparecerem, pode haver um abalo na normalidade habitável. Desde sempre na antiguidade que esta estranheza no modo de as coisas aparecerem foi traduzida na linguagem do espanto e da admiração, da reverência, até. Mas a maior estranheza não se dá apenas com a alteração visível das coisas. Dá-se quando aparente e objectivamente nada muda. A experiência que fazemos da alteração não deixa de ser evidente. Contamos com ela. A maré a vazar e a vazia, a maré a encher e cheia no rio da praia da infância, por exemplo, testemunham-no. O rio é sempre diferente, embora haja dias que parece igual. O mesmo se passa numa mesma paisagem de praia em horas diferentes do dia. De manhã, quando ainda o sol não aperta e a luminosidade é da manhã. À hora em que o calor aperta e se sente a sua luz crua. À tarde, quando há uma luz mortiça a antecipar o crepúsculo. De noite, quando se acende uma lareira e se ouve o som do rio a ir contra o Atlântico na rebentação. De manhã à noite, em todas as estações do ano, há apresentações diferentes. O rio nunca é o mesmo, porque o dia é sempre diferente. O próprio dia é uma fracção temporal do mesmo tempo de onde se projecta e plasma sobre todos os conteúdos. A diferença do tempo não está apenas na diferença dos conteúdos. Ela constitui-se na própria diferença entre tempo que passa e salpicos de tempo que são os momentos. Um dia e os seus momentos e os dias como momentos de um único tempo. O olhar capta a diferença no interior de uma duração qualitativa. Captamos com espanto a diferença entre um rio nos seus momentos, consoante as marés, horas do dia, estação do ano. Mas também captamos a estranheza na aparente igualdade entre apresentações. É sabido que a casa é uma entidade “viva”, uma personagem animada nas nossas vidas. É lá que estiveram a viver os nossos. É para lá que antecipamos virão irmãos e irmãs para serem acolhidos no seio de uma família. É de uma casa que saem para a última morada, avós e pais. Sem as diferenças óbvias que se registam entre uma casa habitada cheia de gente e uma casa vazia de gente, podemos perceber que uma casa é diferente a uma hora de um dia em que não costumamos estar lá. Se tivermos de ir a casa a uma hora de um dia da semana em que não costumamos estar lá, a casa aparece toda ela numa atmosfera de estranheza e num ambiente totalmente diferente de como me surge a casa quando lá me encontro a uma hora de um dia em que costumo estar em casa. De resto, a casa à mesma hora, mas em dias diferentes, é sempre diferente. À segunda-feira e ao sábado a casa “é diferente”. Como se capta esta diferença? É porque costumamos estar em casa depois de um dia de trabalho e se lá formos de dia, ela é diferente? Em que sentido? Não é diferente como o rio nas suas marés diferentes, de verão ou de inverno, de férias ou em dia de trabalho. A diferença é apurada para lá dos conteúdos que são exactamente os mesmos. A sala de jantar é a mesma com toda a sua mobília e peças de ornamento. O que muda, então? Tudo. E nada. Na verdade, a estranheza é apurada porque tudo o que parecia igual, no mesmo sítio, sem tirar nem pôr, é diferente. A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasRaccord I [dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]udo o que vemos está à nossa frente. Os olhos estão dirigidos para fora, têm uma orientação, uma direcção, nem sempre um alvo. Podemos perder-nos no horizonte ou nos objectos espalhados pelo hemisfério que captamos. Entre o céu azul em cima de nós e o plano que se estende dos nossos pés até lá ao “fundo” à linha do horizonte, o olhar pode apanhar tudo o que aí está pulverizado em cima e em baixo, distante e próximo, dentro e fora, à direita e à esquerda. É assim que vemos o pôr do sol. Uma vez posto, viramo-nos para a direcção contrária. O que tínhamos à nossa frente “desfaz-se”, desaparece da vista para fora, fica literalmente atrás das nossas costas, e passamos a ter à nossa frente outro hemisfério. Vejo agora também lá ao fundo o céu ainda azul do fim de tarde de onde se perfilam as casas da aldeia concentradas em diferentes planos fundidos, mas diferentes, uns mais próximos dos outros. Entre a concentração de edifícios na aldeia e o sítio onde estou estendem-se a estrada e os passeios que a ladeiam, a praia, as pessoas que ainda lá se encontram. Há sempre um arredondamento dos conteúdos do mundo, mesmo que do meu mundo. Só vemos o que está à nossa frente e para onde nos dirigimos. É por aí que nos orientamos. À medida que nos viramos, rápida ou lentamente, desaparece o que tínhamos e aparece o que não tínhamos. Há sempre apenas a sensação de que temos mundo atrás das costas, para onde não estamos a olhar. Para o activarmos, porém, temos de olhar nesse sentido e nessa direcção. O plano de fundo tende a atrair objectos que concentra espalhados numa abóbada. As estrelas espalhadas pelo céu na noite de Agosto estão todas aparentemente numa mesma película, num mesmo plano, com um brilho diferente. E, contudo, se ainda lá estiverem, e estão sempre enquanto brilham, estão a distâncias diferentes de cada um de nós. Podemos perceber a lua e o sol mais próximos de nós. Mas a partir de determinada distância todos os objectos são empurrados para o seu limite homogéneo, todos eles lá ao fundo. Só a proximidade nos dá o relevo, alto e baixo, permite resolver com nitidez os contornos dos objectos e, com as diversas, percepções ter uma imagem mais completa da realidade do que são. Com o tempo passa-se o mesmo. Há um aparente predomínio do presente. É agora que estamos a atravessá-lo com uma velocidade configurada pela actualidade das actividades ou inactividades a que nos dedicamos. A manhã passa rápida ou lenta, não damos pelo tempo passar ou damos por ele a passar tão lentamente que parece que ouvimos cada segundo a passar no relógico cósmico. A actualidade do presente mantém aderida a si ainda o dia de ontem, como decorreu, o que fizemos, como se estivéssemos a olhar para uma página do diário em que tudo foi apontado tim tim por tim-tim, ou como quando tentamos lembrar-nos do que comemos de véspera, se fizemos ou não fizemos X, Y e Z. A actualidade mantém também o estilo de experiência com que esperamos o que se passará no dia de amanhã, que dia da semana é e o que costumamos fazer nesse dia da semana, se é dia feriado ou um dia normal, que dia da semana é. Ainda assim, é do tempo presente e vivo da actualidade que mantemos esses dois olhos virados para o passado e para o futuro. Quando pensamos no dia de ontem e tentamos reconstituí-lo temos à nossa frente os objectos como se estivéssemos a percepciona-los. A lembrança tem sempre uma orientação e direcção para o olhar. Mesmo quando me lembro do pequeno almoço, a janela está à minha frente quando entro na cozinha e só quando lhe viro as costas vejo a porta de entrada. A lembrança segue o padrão da percepção. Quando antecipo o jantar de hoje e as pessoas que irei encontrar, vejo-as também de frente e se lhes virar as costas sei que não as verei. Apenas “as farei a ser”. Quando não penso no dia de ontem nem no dia de amanhã, percebo que me aparecem em lembretes as impressões deixadas e as antecipações do que há-de ser uma impressão no presente. Mas a actualidade do presente está sempre impregnada do próprio sentido da impressão deixada pelo que foi vivido e pela antecipação da impressão que será deixada e dos estados em que ficaremos depois de termos passado pelo futuro que nós dará a viver em actualidade o que é meramente virtual. O futuro e o passado são o horizonte que servem de fundo às fases de tempo entre o passado todo e o presente ou o futuro todo e o presente. Está mais próximo de nós o dia de ontem do que a semana passada, os últimos vinte anos do que os últimos quarente. Está também mais próximo de nós o dia de amanhã do que depois de amanhã, os próximos anos do que mais tarde. Mas o passado tende a atrair e absorver tudo o que é passado para um fundo idêntico ao céu por onde se distribuem as estrelas, lá ao fundo e num mesmo plano indistinto. Também o futuro dos futuros é esse céu que mantém em si todos os momentos de tempo. Não só os momentos futuros de todas as pessoas que estão aí comigo e das que ainda nascerão. Esse céu que tem espalhado por si todos os tempos no seu fim. É lá que se encontra também a primeira vez de todas as primeiras vezes. A primeira vez não está atrás de mim, nas minhas costas, tão pouco como o futuro está à minha frente à minha espera. Todo o meu passado está à espera de mim na hora da minha morte. E pode também acontecer que não tenha já futuro. O que quer dizer que o meu olhar se perde nele como se perde no céu azul, deixando-me sem distância para a proximidade e o que está à mão.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasSobre o pecado [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]eter Sloterdijk descreve o discurso apostólico uma telecomunicação. E é telepática. “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” Tal como Paulo, Agostinho é constituído mensageiro de um conteúdo que não é humano. É embaixador de um reino que não está disponível. O conteúdo é apresentado de diversas modos: a graça e a paz, aspectos fundamentais do que é designado por evangelho: a boa nova, a promessa. Mas este possibilitante não é um conteúdo do mundo nem da vida humana. Não é de todo em todo um conteúdo: é uma outra forma radicalmente diferente de vida. Implica uma metamorfose e uma transfiguração do horizonte tal que fôssemos metamorfoseados e transfigurados nesse e por esse horizonte. No renascer, está a vibração da morte. A morte constitui a possibilidade radical para a sermos. Sermos no encaminhamento da morte e compreender ser esse encaminhamento é o que diz a teologia da Cruz. A glória consiste em fazer esse caminho, não em nascer como se nada fosse, como se tudo fosse possível. “Eu estou a morrer em cada hora”. O que me configura é a expressão máxima da condição de escravidão e servidão em que desde sempre já me encontrei: a hamartia, o que na tradução latina se traduz por pecado, de pecco, as, aui, are, peccatum que tem em sânscrito a raiz pik– ficar furioso. A raiz grega significa falhar o, e atirar além do, alvo, passar das marcas. O que o desejo, a aspiração, o apetite devorador, a vontade irresistível, a ambição, a cobiça e a ganância fazem ao substituírem-se a nós não é o que queremos mas confundem-nos ao ponto de nos fazerem pensar que é isso mesmo que queremos. Assim a esfera do que peca, do que erra e falha, é vastíssima e não se circunscreve ao que habitualmente pensamos que é. Não se trata apenas dos pecados capitais nem daqueles que se prendem especificamente com a sensualidade ou a irascibilidade. Na verdade o pecado entendido como o que nos obriga a concentrar-nos em nós. Faz-nos esquecer de tudo o que não tenha que ver com o conteúdo em que estamos num dado momento única e exclusivamente interessados. E esse interesse é total. Estende-se, portanto, a todos os momentos da nossa vida. A nossa condição é tal que eu nos servimos a nós desde sempre, já à nascença. A fome é a minha fome no preciso instante em que se faz sentir e só penso em comer, isto é, quando ela me submerge na ditadura do seu instante e me isola na sua cápsula. A sede é a minha sede no preciso instante em que se faz sentir e só penso em beber, isolando-me consigo no conteúdo preocupante e necessário do que preciso. E até o sono é o meu no momento em que me adormece. O cansaço em geral é o meu cansaço, quando me cansa. O mesmo com a minha sexualidade, a minha auto-afirmação, o meu feitio e temperamento, a minha peculiaridade, a avidez incontrolável da vontade de saber, a minha afectação pelo sublime na arte ou na natureza, a precipitação cega da força da minha vontade, mas também a minha mais profunda necessidade religiosa: todas estas tendências mais ou menos acentuadas e que vincam as dobras do tecido de que a minha vida se encontra revestida encontram-se enraizadas na condição aparentemente não anulável, inexpugnável, irresistível, incontrolável da minha servidão e da minha escravidão de nascimento: A MIM. Eu sou esta fúria que me dá, este tiro que erra o alvo, falha objectivos, se excede, passa das marcas, sai para fora dos eixos, transgride, ultrapassa os limites. Sou por outro, ou por outros, e até no momento da submersão e do naufrágio no isolamento absoluto em que sou a fome, a sede, o apetite sexual, a curiosidade científica, a auto-afirmação, o temperamento, humor e feitio, a cegueira da vontade, o toque do sublime, a necessidade religiosa: eu sou isso tudo para que me deu, sem margem de manobra, totalmente absolvido dos outros, só eu e o meu mundo. (Karl Barth, Römerbrief). E até no simples adormecer de cansaço tão compreensivelmente humano, posso converter-me em traidor. Cf. Lc, 22. 45-46: “Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos, encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: ‘Porque dormis? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação’”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasSinais II [dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á uma ideologia na nossa relação com o futuro. O facto de estarmos desde sempre já lançados na direcção de um futuro não está sempre presente. Essa consciencialização ocorre de diversos modos. Podemos reflectir activa e teoricamente sobre a relação entre espera e futuro. Mas é desprevenidos, contudo, que o futuro nos chega. Quando temos uma decepção e também quando dizemos que a “expectativa foi excedida”. A decepção e o “excesso” de satisfação transformam o modo como temos estados depostos na realidade. Fazem-nos perceber que estávamos a viver uma ilusão que foi desiludida ou então, mesmo numa determinada expectativa percebemos que a realidade nos ultrapassou e excedeu. Em ambos os casos na superação das expectativas ou na sua decepção percebemos que de algum modo estamos numa relação com o futuro. Não é, obviamente, apenas nestas circunstâncias que estamos numa antecipação de futuro. Estes casos são picos altos ou baixos que permitem compreender por contraste que fazemos experiência de vida orientados pelo futuro. O mais das vezes e primordialmente estamos precisamente à espera, à espera de que não haja novidades, de que as coisas sejam como até aqui. Há uma projecção do futuro que de algum modo prevê as coisas sem surpresas. A homogeneidade sem surpresas nem novidades nivela o quotidiano sem grandes expectativas ou esperanças mas também sem ânsia ou desespero. O “stress” vem da repetição contínua de tudo ser igual ao mesmo, sem a alteração que traga variedade ao que tem sido. Mas há uma ideologia na nossa relação com o futuro. A ideologia frisa uma possibilidade e tende a neutralizar a outra. Podemos estar sempre à espera de uma única coisa boa ou de coisas boas que estão por acontecer. Podemos estar à espera de uma coisa péssima ou de várias coisas más por acontecer. Há pessoas que esperam o pior, para se prepararem para o embate e o impacto que as coisas más têm nelas. Há pessoas que esperam sempre o lado positivo das coisas, mesmo que não sejam optimistas que esperem sempre o melhor de tudo. Há quem não espere nada. Há quem espere tudo. A acentuação de uma possibilidade em detrimento de outra define possibilidades existenciais ou cosmovisões. Há pessimistas e optimistas como há pessoas com sentido crítico nem pessimistas nem optimistas, mas realistas ou pragmáticas. Há quem prepare a guerra para viver em paz. Há quem viva continuamente na possibilidade iminente do conflito para poder ter sossego. Há quem viva a antecipar apenas o curto prazo de um dia de cada vez ou quem tenha visões de futuro a longo prazo. A nossa relação com o futuro é uma relação com conteúdos de futuro. A nossa agenda mental, virtual ou física tem a nossa realidade preenchida com o que fazemos, com quem nos encontramos, mais ou menos a curto prazo. A nossa agenda está mais cheia para as próximas semanas e meses do que daqui a uns anos. A relação com a forma do nosso futuro é diferente da nossa relação com os eventos futuros que estão por vir. Não é possível viver sem uma relação com o nosso futuro. As possibilidades de interpretação da relação com o nosso futuro são as que foram consideradas. Esperar tudo ou não esperar nada, esperar tudo o que mau ou esperar tudo o que bom, ser optimista ou pessimista, estar preparado para o que aí vem: a bonança ou tempos difíceis. A antecipação em que nos encontramos na nossa relação com o futuro é a da espera, da boa esperança ou da expectativa de um mal iminente e, por isso, é do futuro que vem a promessa e a ameaça. A promessa e a ameaça são sentidas já no presente e agem sobre o passado há pouco e há muito. E podemos perguntar como é o futuro sem nós o presenciarmos. Como será o futuro de quem conhecemos sem nós cá e o futuro dos outros que não conheceremos nunca e nunca teriam nada que ver connosco? Como será o futuro do crente que põe o seu coração da possibilidade intrínseca da fé em Deus e na vida eterna? O que é uma antecipação da vida eterna diferente da finita? É possível antecipar uma vida que não terá nunca fim como um grande domingo à tarde ensanduichado entre um sábado e uma segunda-feira que vai repetir sempre a vida que temos, em que nada se passa porque, embora não tenhamos medo, também já não esperamos nada? É possível uma antecipação baseada num futuro eterno que não é vago e vão de nós mas que terá um outro registo, onde não há assassinos nem criminosos, onde a vida é como a sonhamos, em que todos estarão como estiveram? Do sonho em vigília sou acordado. Nada nunca muda, embora estejamos sempre à espera que alguma coisa aconteça que nos livre desta morte. presença deste facto ocorre por contraste. Estamos habituados à passagem das horas nos dias a passar está Os sinais dos tempos Ocorre ocasionalmente uma lembrança de qualquer coisa a fazer no futuro. Um “lembrete” do TM. Ler a agenda Saber o que se tem num dia Antecipação do bom tempo e do calor dos dias e de como vai estar Vêm aí dias mais duros O pensamento de que as coisas são negras no meio como se antecipam Aquilo por que ainda vamos passar A espera do pior de tudo para aliviar o que temos A compreensão de que nada é como achamos que vai ser A espera pelo melhor de tudo Tudo à nossa maneira, como queremos, a possibilidade de fazermos tudo o que nos apetece. De onde vem a ideia de que tudo vai ficar mal ou de que tudo vai ficar bem O que os outros nos dizem Antecipação, antevisão, prognóstico.
António de Castro Caeiro PolíticaSintomas I [dropcap style≠‘circle’]T[/dropcap]odo o conteúdo apresentado pode ser interpretado de diversas maneiras. Um dos modos é literal. “Verde” é verde. “Vermelho” é vermelho. “Amarelo” é amarelo. Outro dos modos é figurado. Como sinal, verde permite avançar, amarelo concentra a atenção e vermelho obriga a parar. A relação com os conteúdos apresentados não é apenas literal, portanto. Neste caso é uma relação simbólica. Para compreendermos todas as possibilidades simbólicas teríamos de perceber a sua génese e a sua fixação. Sem dúvida que há convenções, produtos do acaso. Alterações simbólicas para melhor compreensão. A notação aritmética e lógica sofreu alterações. Basta comparar o “peso” da proposta de Frege com a “elegância” das tabelas de verdade de Wittgenstein. O ponto que importa frisar é este. O conteúdo apresentado não se esgota no que efectivamente aparece. A forma da apresentação não é a que estrutura literalmente a apresentação. De qualquer modo, há sempre uma relação entre a forma normal com que estruturamos conteúdos e o conteúdo efectivamente apresentado. Se pusermos em comparação, por exemplo, o verde com a sua apresentação nas folhas das árvores na primavera, num semáforo ou com na bandeira portuguesa, podemos perceber que o que está apresentado excede o que é visto e que a própria forma de apresentação é maleável, flexível, susceptível de interpretação. Assim: verde como cor no espectro cromático, verde como permissão para andar, verde como esperança tem sentidos completamente diferentes, formas de conotação diferentes. A relação entre símbolo como significante: o verde e o simbolizado como o significado pode ser convencional, mas uma vez estabelecida parece que os sentidos possíveis explodem. O verde “literal” na sua forma de apresentação a cobrir a extensão dos objectos coloridos por verde parece ser uma entre muitas formas de apresentação. Símbolo e simbolizado estão numa relação intencional. Somos capazes de interpretar relações simbólicas, porque o olhar humano excede o visto. Nunca vemos apenas o que está apresentado. Na relação simbólica há uma heterogeneidade clara entre cor, cor verde, e “poder arrancar”, “haver esperança”, etc., etc.. Mas alarguemos o âmbito da significação. É certo que a interpretação simbólica não é meramente perceptiva. Isto é, não é o presente sincrónico com o seu conteúdo apenas o que está em jogo quando vemos o jogo das cores nos semáforos. É a antecipação de parar, continuar, arrancar, acelerar ou abrandar. Compreendemos claramente o perigo que há em avançar com o vermelho e em ficar parado com o verde. A dimensão do futuro está a criar pressão de antecipação de conteúdos. Quando vemos um bilhete de um espectáculo a que fomos ou uma fotografia de tempos idos, o que vemos não são apenas os conteúdos que estão presentes: um bilhete e uma foto. Somos remetidos para aquele dia em que fomos com A, B e C assistir a um concerto, numa época determinada da nossa vida, passaram-se décadas, era o tempo da nossa juventude. A disposição que se sente não é apenas a sentida no passado. Agora, percebemos que o tempo passou e que houve tempo em que era tempo. O mesmo se passa quando vejo uma fotografia minha da infância em família e com amigos. Os rostos eram jovens, as pessoas todas estavam vivas, os tempos tinham futuro. A disposição invade com nostalgia o presente, sentimos saudades e tristeza. O horizonte do presente fica inundado. A fotografia alastra para lá dos seus conteúdos fotografados para a percepção com os seus conteúdos percepcionados. A disposição alaga todo o meu presente e não dou atenção ao que está presente perceptivelmente. Há conteúdos que são dados a ver no presente que têm o condão de nos transportar para o passado. Não há aqui nenhuma relação simbólica. Há uma remissão retrospectiva e retroactiva que nos faz retroceder para um passado que foi presente. Sentimos o presente como foi vivido. A conotação não é aqui simbólica. Resulta também porém de uma capacidade excessiva de nos relacionarmos com conteúdos. Qualquer conteúdo perceptivo pode remeter-nos para o passado, lembrar-nos de momentos passados, por associação directa ou à distância. A invasão do olhar como que traz até nós sentimento que determinada o espírito da época. Mas um bilhete para um espectáculo ou para um meio de transporte colectivo pode também ser dado a ver numa percepção e indicar um futuro. O conteúdo presente é um prospecto para um conteúdo futuro. Dizem que todas as viagens têm um elemento predominante e preponderante de antecipação. A preparação dos itens para fazermos malas, a antecipação de pessoas que vamos conhecer, aventuras que vamos ter ou só o que estamos à espera que aconteça está dado implicitamente a ver num bilhete ou só na lembrança futura de que vai acontecer a viagem. Mas também todas as formas de registar marcações futuras: profissionais, exames, aulas, horas de atendimento, conferências; médicas: consultas, análises; desportivas: treinos e provas. Os próprios calendários com números para os meses com nomes e os dias com números da semana. Os horários que nos dividem os dias conforme as tarefas. Um olhar breve a dada altura no dia permite perceber o que vamos fazer em antecipação, uma antevisão, um prognóstico, como um boletim meteorológico. Estamos depostos num futuro que não sabemos se irá ser como achamos tendencialmente que vai ser. Não sabemos sequer se irá ser, se chegamos ao fim do dia, se quem está connosco chega ao fim do dia. Nenhuma forma de apresentação se esgota do presente em que se apresente. A sua forma de eficácia é retroactiva e “pro-activa”, retrospectiva e “prospectiva”. E cada um de nós? Não é verdade que cada um de nós está presente a sincronizar e a coexistir na coincidência ou simultaneidade de todos os conteúdos simultâneos? Ou estamos esticados na direcção do passado e do futuro, a antecipar em previsão explícita ou implicitamente o que vai acontecer na escuridão do vasto espaço, como se a nossa cabeça fosse a cabeça de um cometa? E não é verdade que o nosso passado é a cauda da cabeleira de um cometa, também ele a estabelecer a fronteira entre o aquém da luminosidade e o além da escuridão?
António de Castro Caeiro PolíticaDiagnósticos II [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] presente, a eficácia da actualidade, a sua forma acesso positiva: a sensação ou a percepção e negativa: imperceptibilidade foram, por isso, desde sempre, privilegiadas. O passado e a forma específica do seu acesso: lembrança ou esquecimento, e o futuro na sua antecipação, previsão e predição ou imprevisibilidade, incapacidade de predição, ausência de antecipação são realidades e formas de acesso consideradas degenerativas por comparação com o presente e a percepção. O passado não é já realidade. O futuro não é ainda realidade. Lembrança e antecipação são formas de acesso que dão para horizontes sem realidade. A realidade é classicamente expressa pelo indicativo. O modo do passado e do futuro é diferente. Não estamos a falar gramaticalmente. Um dos paradoxos do acesso, contudo, é que a lembrança que ressuscita o passado havido ou imaginado ocorre num dado presente. É “agora” que me lembro da situação A, B e C. É “agora” que eu estou lá a assistir e até mesmo a intervir nesse passado. É também “agora” que tenho acesso directo ao futuro, numa antecipação que nem o põe em causa. “Agora” que marco na agenda um encontro, uma consulta médica, uma ida a um sítio. Eu estou já lá “agora” nesse futuro X, Y ou Z e, contudo, não saio do regime não anulável do presente. Podemos perceber que é assim com fantasias, ficções, imaginações, com as mais diversas formas de acesso. Abrem-se mundos a partir de um acesso que se constitui num momento presente e que se estende numa duração. Enquanto se vive essa extensão temporal, somos catapultados para o passado, para o presente, para um outro tempo, um outro mundo, um outro horizonte erigido pelas nossas fantasias, imaginações, encenações e ficções. Não são apenas mundos abertos, paisagens em tudo absolutamente semelhantes à do mundo real. Lembro-me de estar em Schauinsland e ver a paisagem da montanha alemã estender-se por encostas e vales “pintadas” de branco de neve, tudo a perder de vista. Lembro-me “agora” neste dia de Março, como se apagasse a realidade do quarto, o tampo da mesa, tudo na proximidade da redondeza onde estou inserido. Deixo de estar sentado e passo a estar de pé, abandono o presente e recuo no tempo décadas, mudo de roupa, de companhia. De facto, a complexidade dos conteúdos da percepção não é completamente apagada. Ouço os carros na ponte 25 de Abril, sinto o cheiro do pão torrado, a TV está ligada numa outra sala. Mas tenho presente as mãos na estrutura metálica gelada da torre de onde vejo estender-se a paisagem até ao fundo lá longe do horizonte. É agora que antecipo deslizante a tarde do dia de hoje, os aniversários de amigos que se aproximam com as respectivas comemorações, o fim de Março e o início de Abril. O futuro é um plano de fundo volumoso, de onde se perfilam como vultos as realidades a haver das marcações efectivamente feitas nas agendas virtuais ou mentais da nossa existência. Equaciono já sem me deter nessa possibilidade nas futuras férias grandes, onde irei, se irei. Nesse lapso de tempo estou todo eu em Agosto, numa realidade temporal que galgou muitos meses. E regresso ao presente, sem regressar necessariamente aos conteúdos reais do presente. O cursor do acesso abre mundos com paisagens mais ou menos extensas, mais ou menos fechadas, no interior ou no exterior, para sítios onde estive ou para sítios onde poderei estar. Pode invocar também sentimentos, estados de espírito que hão-de estruturar o modo como estarei, estive e estou. A fantasia encena possibilidades sem tempo específico. Podem ser compreendidas a acontecer já no presente e são o conteúdo específico do “agora” que me faz evadir do conteúdo específico do soalho do meu quarto, da luminosidade da manhã crua das 11h34 minutos do dia de hoje. Pode ser uma retrospectiva do passado vivido ou uma antecipação que “vê” em prospecto o futuro sem saber se terá lugar ou não. Mas é a possibilidade que compreende o passado. Como tudo poderia ter sido e não foi. O que nunca poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O sentido do passado é possibilidade na sua versão positiva e negativa. É a possibilidade que constitui o nosso presente. O que fizemos acontecer o que fomos, o que nos tornamos, o que somos tudo está lá traz, não só no que fizemos acontecer mas no que esquecemos. O que ficou para traz não nos assola apenas no presente. Está à nossa espera na hora da nossa morte. É a estranheza do passado na vida humana o não ter passado. O passado é ter sido. O ter sido é também não ter sido. Quer tivéssemos sido que não, o que foi está a actuar sobre nós a partir futuro. Cada instante vivido é projectado em lançamento temporal para o fim do tempo. O futuro é pura possibilidade em aberto, com probabilidades e improváveis. É de onde vem o tempo. Desde sempre o futuro se abriu e começou a contar em modo decrescente o tempo que já não temos para viver, as possibilidades que são obliteradas, a compreensão do maciço que se aproxima com o seu fim. O afluxo de tempo diminui com as suas possibilidades e o caudal do tempo passado aumenta com as suas possibilidades perdidas. O futuro é também a possibilidade do impossível, a possibilidade simples da impossibilidade. O presente afinal está ensanduichado entre duas realidades que não são já e não são ainda mas enquanto realidades. O humano existe num horizonte em que o que o afecta são as possibilidades. Como gostaria de ser-se, o que gostaríamos que tivesse acontecido. O presente é apenas testemunha do impossível porque a sua estrutura é de todo em todo realidade. O que é não é compatível com o que pode ser. Estranhamento a realidade confronta-nos com o que é e o que é é isso mesmo: a possibilidade de conviver sem possibilidades, pelo menos durante algum tempo. E assim resistir.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDiagnóstico I Tucídides convida quem quer que o leia a percorrer tudo o que descreveu a partir dos testemunhos a que aludiu. E não ficará enganado. O sentido das suas formulações é diferente do dos poetas e do dos repórteres. Os poetas “cantaram” estes assuntos para lhes darmos crédito. Os repórteres da escrita não os compuseram em vista da verdade, mas para os tornarem mais agradáveis ao ouvido. Se os poetas embelezam o passado e os repórteres o romantizam, deve-se a uma única razão. O acesso ao passado apresenta factos que não podem ser refutados. Não podem, por isso, ser credíveis (Cf. H. I, 21.). A passagem do tempo cria um distanciamento inultrapassável. Dilui os factos no reino da pura mitologia. Como é possível desconstruir toda a camada lírica e mítica da narrativa? Como podemos reconstruir a situação para vermos a realidade olhos nos olhos? Será o processo de trazer o passado ao presente? Ou viajar no tempo e ficar deposto no passado? Percebemos que muitos dos que estiveram presentes contam de modo diverso o que aconteceu com uma identidade de sentido. De resto, estar no presente em que uma situação se dá pode não querer dizer senão criar um facto avulso. O método alternativo é o de tentar descobrir a partir dos sinais (sêmeia) mais evidentes o que aconteceu no passado. Há uma enorme dificuldade em emitir um juízo sobre o que se passa num presente, sobretudo quando esse alguém está completamente envolvido nesse presente. Depois, quando o tempo passa, o vigor eficaz do presente perde-se, e é o passado que assume a importância. Não obstante, é inevitável partir de tekmêria para construir uma diêgêsis, um percurso narrativo, um diarchomai, um passar tudo em revista pormenorizadamente. Organizar. Seleccionar. Os tekmêria dão um conteúdo a entender. Uns são relevantes para a construção da verdade e dignos de crédito. O modo de proceder é completamente diferentemente do dos poetas e dos que compõem escritos. A organização do “material” tem em vista agradar à audiência. Não é o resultado de uma investigação da verdade, zêtêsis alêtheias. Um dos problemas fundamentais que se põe resulta do relevo e acentuação que se dá ao que acontece. O nosso envolvimento directo com uma determinada situação presente cria um parti pris. O passado pode, portanto, ofuscar o presente. As situações por que passamos quando “o tempo era tempo” criam uma marca indelével. É relativamente a esse passado que podemos desvalorizar a importância do presente, do agora. Mas é possível perceber que a guerra que Tucídides descreve não é apenas importante porque ele está envolvido nela; o que importa então é isolar e reconhecer os elementos que caracterizam esta guerra como decisivos para o futuro das partes envolvidas. As notas metodológicas visam neutralizar o perspectivismo na “leitura” dos acontecimentos. Foi necessário compreender tudo o que foi dito em discurso pelos intervenientes directos na guerra. Mas foi difícil reter com rigor as palavras que foram proferidas pelos outros, mesmo quando o próprio as escutou. Também os outros experimentavam a mesma dificuldade, mesmo tendo estado presente a escutar os discursos. Havia o risco de filtro e distorção. Assim, o método foi o da reconstituição ou reconstrução. O acesso tinha de resultar de uma interpretação das intenções, da mentalidade, de cada orador, dadas as circunstâncias. É daqui que se pôs na boca dos oradores o que terá sido dito, de forma apropriada às circunstâncias presentes. A descoberta da intenção global abre para o que terá sido dito. “Conservar na memória” (διαμνημονεῦσαι) o que o próprio escutou em carne e osso (αὐτὸς ἤκουσα) contrasta com a aparente interpretação subjectiva do que “deverão ter dito” a respeito de cada situação que se constituiu. A análise radica na interpretação da gnômê. Sobre as acções postas em prática na guerra, o julgamento não devia basear-se numa impressão ocasional de uma qualquer informação obtida ao acaso. De resto, nem tal parece o caso quando alguém recebe uma informação. Cada pessoa poderá ter ficado com uma impressão diferente. Por isso, é extraordinariamente difícil descobrir a verdade. Os que estiveram presentes a assistir ou a agir ao vivo em cada acção não disseram as mesmas coisas sobre os mesmos acontecimentos. Cada pessoa expõem-nos consoante a sua compreensão. E é assim que os terá retido na memória. A análise deve descrever aqueles acontecimentos que o próprio terá presenciado e sobre os quais pode discorrer individualmente. A informação tem sempre de dar garantias de rigor suficiente. O apuramento da verdade dos factos implica uma tentativa de objectivação. Não anula o carácter subjectivo. Alguém pode ter estado lá, ter feito a experiência em “carne e osso” pelo contacto directo com os acontecimentos. E mesmo assim é necessária a compreensão de que também no testemunho há alterações de perspectiva, mudanças na avaliação. Há uma diferença entre “estar metido numa situação” e “estar já fora dela”. O “fora” indica não ter estado no horizonte situacional. O apuramento complexo do que se terá passado é levado ao extremo quando se procura fixar o sentido do que aconteceu. Como constituir um cursor temporal que nos catapulte para a situação datada do passado? É no elemento construtivo, de seguida, na ordenação de uma sequência de acontecimentos, no hecsês que se pode constituir uma narrativa explicativa de episódios que só aparentemente são avulsos. A ideia é a de estabelecer um quadro clínico em que se descreve o impacto, os factos relevantes que precederam esse acometimento, o desenvolvimento da situação crítica, a identificação para onde tende o curso da história e que reversos terá. E fundamentalmente qual é a nossa capacidade de antecipação do desfecho de uma situação crítica, qual o sentido do “em aberto” da vida? O pressuposto filosófico é o de uma genealogia da história e do sentido do tempo.
António de Castro Caeiro PolíticaMedicina e pensamento arcaico [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] principal característica do pensamento arcaico é ser da totalidade, da natureza no seu todo, da totalidade da natureza, numa das suas formulações. Com os atomistas, há uma tendência analítica para resolver “todos analíticos” e “todos compostos” nos seus elementos. A própria noção de elemento é formalizada em átomo, aquilo que é indivisível e nas suas agregações mínimas resultantes de operações elementares. O que se passa com a oposição irresolúvel da ligação de um pensamento a uma extensão ou na pergunta kantiana “como são possíveis os juízos sintéticos a priori” em causa não está a ligação de um presente de mim a um passado há pouco de mim e um futuro daqui a nada de mim tal como não está apenas em causa a ligação de um presente agora do que eu tenho à minha frente com esse mesmo conteúdo há pouco e daqui a nada, mas a ligação entre um ver e um visto, o problema da sincronização não analítica de mim a dar conta de que estou a ver um horizonte que se estende à minha frente. As operações em causa têm de ser cognitivas, a de uma percepção que dá conta de um perceptível, a de uma lembrança que se recorda de um conteúdo passado, a de uma expectativa que põe de pé uma antecipação que prevê ou tentar fazer previsões de conteúdos ainda por ser. O pensamento arcaico tenta ver a totalidade da natureza aberta no seu todo. Na formulação estoica cada ser humano é uma partícula do perfeito, do todo acabado ao qual nada falta para ser. O presente não é o resultado de uma percepção. Antes, há percepção, porque temos continuamente acesso ao presente. O presente apresenta-se e torna-nos a nós e às coisas todas bem como aos outros presentes. O passado não é o resultado de uma memória. Há memória, porque o passado se faz sentir de alguma maneira, não nos deixa esquecer dele ou então caiu para um esquecimento irrecuperável. O futuro não é o resultado da nossa capacidade de previsão e antecipação. Antes, é por haver futuro que há expectativa ou ausência dela, que nos antecipamos ou chegamos tarde demais, que temos esperança ou falta dela. O tempo abre-se na sua totalidade. Por isso, também não está restrito ao tempo da expectativa de vida ou ao tempo em que a existência humana permanece em vida. Como com santo Agostinho no livro do Tempo, em mim estão todas as gerações de pessoas passadas e todas as gerações futuras de uma descendência. Entre a primeira geração e a última geração há este manto de tempo sempre a desenvolver-se ou então a implicar-se no seu próprio interior. Mas é sempre do todo para as partes que o tempo existe, tal como um poema é a sua totalidade e não é compreensível da primeira letra da primeira sílaba da primeira palavra adicionada à última sílaba da última palavra do poema. Na primeira sílaba está a totalidade finda do poema, como no primeiro instante está a totalidade do tempo a haver completamente acabado. O acesso que os antigos pensaram como o autêntico não é por isso o teórico, embora a relação teórica com as coisas fosse pensada de um modo muito pouco intelectual se assim se pode dizer. As grandes categorias, diz Sloterdjik, são eróticas e polémicas. Mas não só. Os seus operadores são dietéticos: assimilação, dissimulação, ingestão, digestão, congestão. São também as formas complexas da respiração: inspiração e expiração, o ritmo do fluxo sanguíneo e do batimento cardíaco, a atmosfera disposicional que vibra nas coisas e a atmosfera com o seu clima que nos faz arrefecer ou aquecer, suar ou enxugar, etc., etc.. É na análise da doença que percebemos desde sempre encontrar-nos numa situação vulnerável e expostos ao mundo envolvente. Há tantas doenças quantos órgãos, aparelhos, partes de membros e membros. A afecção vem de dentro para fora, do interior para o exterior e do exterior para o interior: um banho, o ar, a exposição a outros elementos, alergias obtidas por contacto com substâncias. “As diferentes doenças dependem do nutriente, da respiração, do calor, do sangue, da fleuma, bílis, humores, na carne, gordura, na veia, na artéria, na articulação, no músculo, na membrana, osso, cérebro, espinal medula, boca, língua, estômago, ventre, intestinos, diafragma, peritónio, fígado, baço, rins, bexiga, útero, pele, tudo isto é pensado ora como um todo numa unidade ou como uma parte de um todo, a sua grandeza é óptima ou não.” (Hp. Alim. 25.) É no contacto com o mundo e os seus elementos, o ar que respiramos, os líquidos que bebemos, os sólidos que ingerimos, como nos encontramos de pé, a correr, sentados ou deitados, a forma particular como pisamos o solo consoante as funções que estamos a desempenhar, é no contacto com as coisas numa situação pragmática, numa resolução técnica, no desempenho de uma função, na execução de uma tarefa que remove impedimentos, resolve problemas, tem um programa de acção que encontramos, no interior da relação intrínseca com o mundo o sentido do nosso envolvimento e da nossa implicação no mundo. A disciplina a haver chamava-se tanthrôpeia: as coisas que dizem respeito ao ser humano. E o que não lhe dirá respeito?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDa medicina antiga II [dropcap style =’circle’] E [/dropcap] m “Sobre os ares, as águas e os lugares”, texto do corpo hipocrático, lemos a complexidade dos elementos que intervêm no diagnóstico médico. O conjunto de elementos que formam o alfabeto dos médicos: temperatura, alta e baixa, quente, frio, húmido, seco, as diversas fases do dia e do mês, as diversas estações do ano, as idades da vida, sexo, localidade de habitação, naturalidade, mas também as operações que alteram um extremo no outro: aquecimento, arrefecimento, deslocação, alteração da localidade de habitação, mudança da dieta, regime alimentar e actividade física, permite perceber que os factores de análise, diagnóstico e prognóstico de uma determinada doença não se circunscreve a um indivíduo, mas o indivíduo é “visto” num contexto absolutamente complexo e, ainda assim, claro. O interior côncavo do corpo humano, para suar a formulação do médico, contem um sistema “hidráulico” complexo de quatro líquidos fundamentais: a bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Há uma mistura que pode ser desequilibrada destes líquidos e não tem que ver com a diferente quantidade com que um líquido está presente no sistema. As quantidades são qualitativas. Mas todos os fluídos, humores ou líquidos do corpo estão sujeitos a condições estruturais que os alteram: aquecem ou arrefecem, fazem-nos deslocar para zonas diferentes do corpo com consequências determinadas. Um dos pontos fundamentais é que depende da “alteração da estação” (“ek metabolês tôn horôn”). A hora em grego não corresponde a 60 minutos. Nem necessariamente ao conceito de estação do ano. É uma qualificação temporal que integra em si dois estados, um de partida que é o que se tem verificado, e outro de chegada, que é o estado no qual o primeiro se transforma. A alteração no interior do corpo humano depende desses factores mais e mais abarcantes e que transformam campos que lhes estão subordinados e nós estamos subordinados ao equilíbrio complexo de tudo o que está envolvido na manutenção e conservação da vida. “Sobre as estações do ano, temos de poder determinar, como é que vai ser o ano, pouco saudável ou saudável. Os sinais são dados pelo ocaso e nascimento das estrelas, se o outono traz chuva, o inverno moderado, se cai uma quantidade moderada de chuva na primavera tal como no verão”. Assim, as próprias regiões do globo que são afectadas diferentemente pelo céu estrelado na sua mudança sazonal produzem seres humanos de compleições diferentes. Mas este não é oponho mais interessante. Se há falta de força de vontade ou de coragem num ser humano, há um elemento atmosférico, fluvial e local a contribuir para que tal aconteça. Se não houver grandes mudanças climatéricas, as pessoas tendem a ser suaves e gentis. Só a exposição a grandes alterações climáticas abala o espírito e estimula a paixão nos seres humanos. São as alterações que sobretudo despertam o espírito no ser humano. Se percebemos a influência exterior do meio ambiente que nos envolve, do clima, atmosfera e meteorologia e geografia particulares que nos acontecem, percebemos também a dinâmica complexa destes factores transformadores num processo temporal ao longo da vida admitindo alterações ao longo do dia, mês, estações do ano, idades da vida. Mas mais interessante e absolutamente contemporâneo é pensar que a disposição do espírito, a compleição do carácter, o modo de ser, a vida que levamos resulta ou é concomitante a essas mesmas pressões climatéricas. A análise final seria a de procurar perceber se a partir do interior do ser humano, também não haverá uma contaminação estrutural e intrínseca que altere o sítio em que vivemos, invertendo assim a lógica de subordinação do humano às forças cósmicas.