Uma estranheza insólita

[dropcap]À[/dropcap]s vezes, sente-se algo de estranho. É uma atmosfera de estranheza. A estranheza mergulha a realidade exterior e a realidade interior num interior atmosférico. É como um nevoeiro que encontramos num troço da estrada. Não vem até nós. Ou vem. Não se consegue determinar bem. Insinua-se lentamente ou fica espesso, de repente. Em que consiste esta estranheza? Não é algo de estranho que esteja a acontecer e a contaminar tudo o resto que não é estranho. É a própria estranheza, como se fosse uma forma. O rosto do local em que nos encontramos é estranho. É estranho, porque podemos encontrar-nos num sítio conhecido. Nada de inusitado acontece, nem fora do normal. O insólito é isto: tudo está rigorosamente na mesma, mas completamente diferente. Tudo é o mesmo e é diferente. A contradição da formulação não deixa, contudo, de expressar o que se passa. Há um sentimento de estranheza. Um dia, até posso datá-lo senti essa estranheza pela primeira vez. Houve outras situações em que caí ou que se abateram sobre mim, antes e depois dessa, mas quero falar da seguinte.

Estava no Estádio Nacional. Havia um ajuntamento de miúdos de várias escolas e externatos de Lisboa. Era um ajuntamento como tantos outros no pós-revolução. Havia equipas de miúdas e miúdas para disputarem jogos diferentes, vários. Portanto, a miudagem era a população maioritária. Estar entre miúdos, quando se é miúdo é estar entre pares. O Estádio Nacional era o Estádio Nacional que eu conhecia por frequentá-lo com o meu pai. Estava, de facto, mais povoado do que era habitual, mas não é o ajuntamento de miúdos que fazia a diferença. Era como se estivesse num recreio mas mais amplo e com mais miúdos do que habitualmente no recreio da escola.

Abateu-se um sentimento de estranheza. Tudo era como tinha estado no início do encontro, mas agora era insólito. Eu sentia o insólito e não conseguia dizer por quê. Algo não estava bem. Nada batia certo. Se a realidade fosse musical, dir-se-ia que a música deixou de se fazer ouvir ou que eu não conseguia ouvir o que estava a ser tocado. Havia uma surdez na realidade ou, então, a batida não era a certa, a melodia era errada, o ritmo incompreensível.

Quis explicar ao meu pai o que sentia. Não me lembro se o fiz. Não conseguiria dizer na altura nada a não ser. Há algo de estranho, insólito, absurdo naquele momento daquela tarde dos meus nove anos de idade. Não era bem um ambiente. Era mais um clima, um micro-clima que metamorfoseara estruturalmente a realidade geográfica do Estádio Nacional, em Oeiras. Tinha-se aberto uma dimensão paralela da realidade e eu tinha ficado impermeabilizado à realidade vivida por todos os outros miúdos e adultos. Ao mesmo tempo eu percebia que os outros, ninguém, nem o meu pai poderia perceber o que me estava a acontecer. Eu tinha acesso à realidade do Estádio Nacional, ao encontro desportivo de equipas de escolas de miúdos, mas também tinha o pé na realidade paralela que me trazia a estranheza, que me alienava dos outros. Havia o Estádio Nacional de toda a gente e de mim inclusive, com o céu azul, àquelas horas da tarde daquele domingo. Havia também o meu Estádio Nacional, exclusivo. Mas não era a sobreposição que fazia estranheza. A estranheza vinha de uma outra verdade, de uma outra descoberta, de uma outra revelação da própria vida. Como se a vida me estivesse a dizer que estava a acontecer algo de absolutamente insólito, estranho, alienador. A estranheza era o horror atenuado, mas eu não o percebia então. Era o horror de uma situação concreta que estava a manifestar-se e a revelar-se a mim, mas sem eu saber de que se tratava, a não ser pela transformação da realidade. Havia duas realidades: a dos outros todos a quem nada acontecia e a minha a quem tudo estava a acontecer.

Nessa noite, apareceu-me em sonho o R., que era o meu melhor amigo, vizinho e coleguinha de colégio. Aparecia-me e queria dizer-me qualquer coisa. A boca mexia como se estivesse a falar e a dizer-me qualquer coisa, mas eu não ouvia o que ele dizia. Era como se um ecrã estivesse entre mim e o R., mas era um filme mudo ou ao qual tivessem tirado o som. Sentia a mesma estranheza insólita que sentira nessa mesma tarde.

Qual era o significado do sonho? Não o terei perguntado deste modo. Terei experimentado apenas estranheza, o insólito. R. aparecia-me nítido no sonho. Eu não percebia era o teor da situação em que ele me aparecia nem tinha nenhuma explicação para o efeito.

Lembro-me de que estava doente, porque não fui ao colégio, e estava em casa, quando um dos miúdos da rua tocou à porta. A avó atendeu. Era o Tó.

Tinha vindo dizer que o R. tinha morrido num desastre de automóvel. Foi o pai e ele.

14 Dez 2018

A lapiseira amarela

[dropcap]L[/dropcap]apiseiras era o que eu mais perdia na infância. Sempre as achei fascinantes. Eram lápis sofisticados. Não requeriam aparo. As minas eram substituídas. Eram mais grossas do que as que eu agora uso. As lapiseiras tinham uma estrutura metálica em forma de garra para prender as minas. Havia de muitas cores.

Lembro-me em particular de uma amarela. Transportava-a dentro do estojo em forma de chuteira de futebol com borracha Rotring, que ia dentro da mochila. Houve alturas que sublinhava a vermelho e a azul, a lápis e depois a tinta, mas prefiro os livros sublinhados de leve. Ainda não consigo fazer como em Oxford. Não sublinhar os livros não é ainda para mim uma opção. Uso, não minto, os PDF’s para buscar palavras e ocorrências e as ler em contexto, mas cada vez mais estou dependente do papel, seja em livro seja em fotocópia. Vejo mal ao longe e ao perto, mas as letras em tamanho máximo no ecrã não são tão cómodas como as palavras no papel.

Lapiseiras era o que mais perdia na infância. Mas perdia muitas outras coisas. Não sei se eram roubadas as coisas ou não. Quero acreditar que não. Desapareciam. Estavam ao pé de mim. Depois, sem me aperceber de como desapareciam completamente. Como é que a única coisa de que damos falta, que está ausente, em paradeiro desconhecido, passa a ser a única coisa em que pensamos, a que damos consistência. Li mais tarde a formulação latina praesentia in absentia. Quando perdemos uma coisa, não sabemos onde ela está. É o advérbio interrogativo que faz a pergunta. Onde está a lapiseira? Onde deixei a lapiseira? Onde está X? Sabemos ou julgamos saber onde estão todas as coisas ou não nos importa saber onde elas estão.

Não é por precisarmos dela necessariamente que perguntamos onde estará a lapiseira. Pode ser só para saber onde está, para sossegarmos, porque não lidamos bem com a perda de objectos que são nossos. Não lidamos bem com a perda. É simbólica esta perda? Ou não será porque damos valor ao que temos. Damos o valor ao dinheiro que resulta do esforço do trabalho para podermos comprar coisas. Damos valor afectivo às coisas. “As nossas coisas” dizemos.

Queremos saber da sua disponibilidade. Queremos saber onde estão as coisas, as nossas coisas.

Mas aquela única coisa que julgamos perdida é interrogada a respeito do seu lugar. Não achamos que evaporou, mas é como se se tivesse evaporado. Abre-se um campo de latência mais ou menos definido dos sítios onde pode estar. Debaixo das peças de mobiliário da sala de aula, das cadeiras e das secretárias. Revolvo a mochila, procuro em todos os cantos e recantos. Lembro-me de ter tido a lapiseira na mão e depois sobre a secretária.

Não pode não estar senão ali. E nada. Em casa, procuro-a por toda a parte. Afinal, posso ter-me confundido. Não não posso ter-me confundido. E a mãe diz que sou desleixado e distraído. A distração sempre foi uma maleita confesso. Depois mais tarde foi objecto de trabalho aturado, mas está sempre à coca. Mal sinta que baixo a guarda, aí vem ela.

Tantas lapiseiras que tive. “Agora, vê lá se a perdes”. “A” é a nova lapiseira. É amarela e preta como alguns lápis antigos.

Mas onde é que raio foi parar a lapiseira amarela? Assaltou-me agora essa memória da infância. A memória da lapiseira, a memória da perda de objectos do passado. Sou transportado para o Santa Maria de Belém, numa rua onde fui há pouco tempo jantar com o João Paulo Cotrim. Uma rua que tem um externato, onde eu andei. Foi há mais de 40 anos. As ruas são engolidas pelos bairros que não frequentamos e desaparecem da vista e do quotidiano.

Onde estará a lapiseira amarela e a minha infância e tudo o que havia?

7 Dez 2018

Um candeeiro

[dropcap]À[/dropcap]s vezes aparecem-me objectos que não via há muito tempo. Tinha um candeeiro dos anos oitenta. Era verde, de metal, para lâmpadas gordas. Estava sempre com a base coberta de pó. Tinha um botão preto. Tenha de ser fazer força para o pressionar, ligar e desligar. Fui tendo candeeiros depois. Não sei o que tinha sido feito dele. Não lhe tinha nenhum apego especial. Mas fora o meu companheiro de muitas madrugadas. Quando de noite, só estudei de inverno. Nunca até muito tarde. Mas de manhã, sim. E é noite durante muito tempo das cinco da manhã até que pudesse ler à luz do dia. O meu candeeiro verde dava-me luz. Continuava sempre na secretária. Quando não dá luz, o candeeiro enfeita a secretária.

Não via há décadas o meu candeeiro verde. Fora um companheiro de jornadas longas, dias e dias, meses e meses e anos. Apareceu numa caixa, onde tinha sido arrumado com outros objectos.

Sei agora onde tinha estado todos estes anos. Estava numa caixa na prateleira de uma marquise de casa pequena, que serve de arrumação. Mas o que lhe aconteceu durante o tempo em que esteve guardado, escondido, com o paradeiro incerto. Não andei à procura dele, mas agora que me aparece, como é possível mergulhar-se no desaparecimento velhos companheiros de jornada. Ele não vem só. É um portal, um médium, faz-me entrar em transe, catapulta-me para um outro espaço, uma outra casa, o meu quarto de jovem, partilhado com o irmão. Não me transporta apenas de uma rua para outra rua próxima de Alcântara. Faz ressuscitar madrugadas de leitura até que nascesse o dia, os serões das vésperas com todos vivinhos. Leva-me ao princípio dos tempos. Não à infância, mas quando ainda havia os primeiros começos do princípio.

Aqui e agora, enfiado e arrumado nesta caixa, o candeeiro dá-me uma outra luz que se projecta para o passado para onde me transporta. Desaparece do sítio onde se encontra. Desmaterializa-se. Desaparece a caixa, a marquise, esta casa, nesta rua, neste tempo. A porta da percepção fecha-se. Abre-se a porta do passado. Materializa-se naquele quarto, daquela casa, naquele tempo. Ressuscitam os vivos daquele tempo que o viram e que ele iluminou na escuridão, os que eram da casa e os que não eram da casa, materializam-se os livros, móveis, cadeira e secretária, a cama da juventude, a guitarra e o amplificador. E eu também encarno o olhar estranho e duplo de mim aqui e agora e de mim lá, naquela altura. Será que este meu olhar fantástico já estava a fazer-se sentir naquele tempo, ainda que com um intervalo de mais de trinta anos.

Contudo, eu não sei bem por que fui buscar aquele candeeiro verde que vi não sei bem onde, em que caixa de que marquise de que casa. Mas aparece-me sempre, vezes sem conta, como se fosse uma lembrança de um símbolo, o portal que nos transporta e faz viajar para outros tempos, já cancelados, para outros já partidos, para nós tubulares e conectados connosco agora, mas perdidos no espaço da ficção.

4 Dez 2018

O poeta e o seu tempo

[dropcap]O[/dropcap] poeta e a poesia não pode ser comparado apenas com as pessoas normais, as suas possibilidades, exigências, precisões, necessidades e precariedades. A poesia como expressão tem de ser comparada com uma expressão que depende de uma possibilidade existencial absolutamente antagónica. Uma tal possibilidade extrema da vida poderia desfazer todos os seus mal entendidos e anular a ambiguidade de que a vida humana está imbuída.

“há pessoas a viver numa atmosfera que está alagada por um espaço infinito e frio como o gelo.” (es Menschen gibt, die zu leben vermögen in einer Luft, die von der Eiseskälte des unendlichen Raumes beleckt wird).”

Ao mesmo tempo, e isso é um enigma,

“há espíritos a conseguir viver continuamente submetidos à pressão monstruosa da totalidade das existências reunidas. Tal como acontece com os poetas (es Geister gibt, die unter dem ungeheueren Druck des ganzen angesammelten Daseins zu leben vermögen – wie ja die Dichter tun.)

Se ser poeta é estar submetido a esta possibilidade ele não deixa de estar no meio da vida.

“A ciência tomada no seu sentido mais puro como exacta, mais do que rigorosa, a existência no horizonte frio como o gelo do rigor da exactidão científicos não reconduzem à vida. (“aus der Wissenschaft, in ihrem reinen, strengen Sinn genommen, führt kein Weg ins Leben zurück. ”)”

Nem nunca o poderiam fazer.

“Mas, então, se a palavra poeta, se a manifestação do poeta, têm ainda algum relevo na atmosfera do nosso tempo, não é de modo algum agradável. (“Wofern das Wort Dichter, die Erscheinung des Dichters in der Atmosphäre unserer Zeit irgendein Relief nimmt, so ist es kein angenehmes.”)

A que corresponde o ponto de vista do poeta nesta atmosfera do nosso tempo sem cotovelo? Hugo von Hofmannsthal diz que o poeta está onde aparentemente não aparece e de resto encontra-se sempre num sítio diferente de onde ele julga estar.

“O poeta habita estranhamente a morada do tempo, a morada do tempo encontra-se no vão de escadas da existência por onde toda a gente passa mas ninguém dá conta dele. (So ist der Dichter da, wo er nicht da zu sein scheint, und ist immer an einer anderen Stelle, als er vermeint wird. Seltsam wohnt er im Haus der Zeit, unter der Stiege, wo alle an ihm vorüber müssen und keiner ihn achtet.)”

Mas não são apenas as pessoas desconhecidas que passam por ele, por cima dele, ao subirem e descerem as escadas do edifício da vida, ao passarem por ele na rua, nas esplanadas, nas casas de espectáculo, na praia e no campo, nos sítios públicos, mas também nos recessos privados.

Os outros que passam por ele não são os desconhecidos, o mar de toda a gente que é toda a gente e ninguém.

Quem passa por ele são os seus, aqueles a quem está ligado por laços indissociáveis mas aparentemente metamorfoseados.

“Onde mora o poeta ele ouve e vê a sua mulher, os seus irmãos, os seus filhos: ele ouve e vê como eles sobem e descem, e ouve como falam dele como se falassem de alguém num paradeiro desconhecido, desaparecido, na verdade falam dele como se fosse um defunto e choram-no como se tivesse morrido. (“Dort haust er und hört und sieht seine Frau und seine Brüder und seine Kinder, wie sie die Treppe auf und nieder steigen, wie sie von ihm als einem Verschwundenen, wohl gar einem Toten sprechen und um ihn trauern.”)

“E contudo é assim que as coisas são e é assim por isso que ele não se dá a conhecer nem a reconhecer e vive como um desconhecido no vão das escadas da sua própria casa” (“Aber ihm ist auferlegt, sich nicht zu erkennen zu geben, und so wohnt er unerkannt unter der Stiege seines eigenen Hauses.”)”

É no vão das escadas do tempo por onde as vidas dos outros passam nas suas vidas. Cada ser humano com as suas próprias atmosferas. E acham que tudo e todos e o próprio existem a céu aberto, às claras, como se o mundo e a vida fossem sempre o mesmo para toda a gente. Apenas o inquilino do vão de escadas do tempo é o portador do abismo dos tempos e do abismo sem apoio nem fundamento nem sequer medida da existência. Só ele se apercebe que cada pessoa é um mundo com uma vida e uma verdade.

O poeta é um desaparecido que olha a partir do ponto de vista de nenhures, impermeável à vida dos outros que por ele passam como rios para o mar. O poeta é esse alguém que é referido como desaparecido, de quem ninguém sabe como é nem onde está. O horizonte da poesia está tão completamente metamorfoseado que é como se tivesse já percorrido toda a vida e a antecipasse do ponto de vista da chegada, do esgotamento do tempo, da asfixia do sentido.

Mas não se trata apenas do pensamento de ninguém que pensa o outro nas suas vidas impermeáveis a si e que reconhece nos outros alguém que dá conta da sua própria perspectiva. A abominação do seu desolamento é o reconhecimento da abominação do desolamento dos outros que não são outros apenas: da mulher, dos pais, dos irmãos, dos filhos, dos amigos, tal como de todos os outros, de cada um dos outros, nas suas atmosferas e no transcurso mudo ou silencioso das suas vidas.

Mas não apenas isto. E esta é a característica mais paradoxal do ser poeta: Também o poeta se assiste a si como um outro. É ele que passa sobre si, sobre o seu si que está no vão de escadas. É o poeta que se assiste a si a descer e a subir escadas, como um outro, não único, mas como todos os outros e ninguém. Sem apego a si, na incompreensão da tarefa de se amar a si próprio como pode amar outro. Os outros que são toda a gente e ninguém sobem as escadas e descem as escadas. Mas o próprio é outro para si, incompreensível, alheio, estranho, estrangeiro, alienado da sua própria existência no horizonte específico em que se metamorfoseia a poesia.

23 Nov 2018

Viagem e deslocação 2

[dropcap]U[/dropcap]ma aula é um acontecimento musical. Deleuze dizia-o. Não é óbvio, mas uma aula não é uma sala de aula. Não são as peças de mobiliário que lá se encontram: várias filas de cadeiras e secretárias paralelas umas às outras, dispostas de tal maneira que o quadro ou o ecrã de projecção possam ser vistos- as cadeiras estão dispostas para quem lá se senta não dar as costas ao docente. Mas o que importa mesmo são as pessoas que lá se encontram: professor e alunos. É de um encontro que se trata, marcado a uma determinada hora, num dia da semana, numa dada sala. Todas estas determinações estão fixas para poderem repetir-se no tempo. Podemos assim perceber que não é o local onde uma aula tem lugar que é verdadeiramente importante. É, antes, o encontro. Ainda assim, o encontro não é compreensível como a presença simultânea de pessoas num mesmo local.

Os estudantes podem estar sentados no mesmo sítio e ao mesmo tempo em que o professor simultaneamente aí está presente, e, ainda assim, não haver nenhum encontro: não estarem uns com outros de modo a poderem encontrar-se. Dar uma aula e ter uma aula depende do ser a encontrar-se. Quem dá a aula deve ir ao encontro de quem tem uma aula e quem está a ter uma aula deve também ir ao encontro de quem está a dar uma aula, ao encontro do que está a ser explicado, explanado, desenvolvido. A possibilidade da aula não está no sítio nem no tempo, na sala, enquanto tal, mas no “evento”, no “processo”, no “acontecimento” dela.

Uma aula não pode pois ser descrita senão verbalmente: ter/dar ou estar a ter/dar, ter tido/ter dado ou vir a ter/vir a dar uma aula. O ser da aula é verbal. Embora digamos “aula”, não nos referimos ao sítio, nem à matéria dada na disciplina em particular ou ao nível do ensino, mas ao ser da própria aula, à sua duração qualitativa, ao que lá se passa, à interacção, simétrica ou não, entre pessoas.

A aula é um acontecimento musical, então. Há ritmos diferentes, para públicos diferentes. Há micro-associações de alunos que se perfilam. Não apenas por haver ritmos diferentes de aprendizagem, estados diferentes, etapas diferenciadas, em que os alunos encontram. Mas porque há interesses completamente diferentes e cada pessoa tem o seu interesse. O mais estranho é que nem sempre as pessoas sabem quais são os seus interesses. É a sessão particular ou os momentos particulares de uma sessão que despertam interesses nas pessoas, que poderão nem saber que podiam ser susceptíveis desses interesses.

O professor não deve apenas travar um solilóquio consigo, deve auscultar ao mesmo tempo que fala os ritmos de captação do que diz, os interesses que são despertos ou não. O que diz pode ser dito de muitas maneiras e pode não ter interesse nenhum, mas também esta falta de interesse tem de ser perseguida até à sua genealogia.
A aula dura no tempo. Começa já com o fim marcado. Começa depois de uma aula anterior, se não for a primeira do dia e antecede outra que se lhe seguirá, se não for a última do dia. Mas é sempre com os olhos postos no fim da aula como no fim de um concerto sem encore, que a aula decorre. Começa a partir do fim em contagem de crescente. É como se formalmente a aula estivesse sempre projectada do seu fim para o princípio, retrospectivamente do futuro para o presente, sempre a queimar etapas.

Uma aula tem um alinhamento, como se fosse um alinhamento de músicas. Tem partes, pode ser esboçada ao princípio no sumário em poucas linhas e em breves instantes. Pode ter assim um tema ou algumas frases que correspondem a refrões que têm de ser repetidos para reforçar a sua presença. A aula admite, talvez mesmo até, força a variações.

A aula tem um elemento de improvisação própria do jazz. As formulações vêm não se sabe de onde nem como, mas fica-se suspenso do que o professor diz, como o professor está em suspenso, na expectativa, do que vai dizer, sem pensar bem nisso. Mas acontece: o sentido abre o horizonte já com as palavras implícitas do que vai ser dito. É onde se chega e como se procura lá chegar o que importa. Não pode ser uma repetição da lição decorada. Mesmo confusa, a aula é o resultado pro-activo do que se quer dizer e explicar, mas sem bem se saber como se abre do futuro imediato ou mais ou menos mediato a dimensão do sentido que é perseguida e não repetida.

Tal como na música é a expectativa que domina a aula, o por onde ir, onde quer chegar, o ritmo, a melodia.

16 Nov 2018

Deslocação e viagem I

[dropcap]D[/dropcap]emora-se muito mais tempo a chegar a um sítio do que se pode pensar. Mesmo que o não pensemos explicitamente, há claramente uma diferença entre deslocação por locomoção e viagem. Não estou a falar necessariamente da diferença que existe entre viagem interior e deslocação no espaço exterior. Não, se decorrerem no mesmo tempo. À chegada, percebemos que estivemos sem prestar atenção à paisagem. Nem há que pensar que estivemos a ouvir música ou a ver filmes, se fôssemos conduzidos e não os próprios condutores. A sensação do tempo da deslocação pode dar a noção de que decorreu depressa, nem demos conta do tempo. Mas também pode arrastar-se, parece que nunca mais chegamos.

Há, em todo o caso, uma diferença entre a deslocação por locomoção e o transcurso temporal da viagem. Se preparamos o que chamamos uma viagem de fim de semana, de férias ou ao estrangeiro, estamos já virados para a possibilidade efectiva do que vai acontecer semanas antes. Não quero dizer que seja uma preparação minuciosa, ou de uma viagem que venha efetivamente a acontecer. Podemos considerar essa hipótese como que a sonhar ou como um desejo ou um voto. Mas consideremos a antecipação das férias, por exemplo. Pode requerer mais ou menos preparação. Podemos ir só com uma mala com artigos indispensáveis. Podemos ir por uma semana ou mês. Contudo, uma semana antes ou nos dias que antecedem a partida, estamos completamente virados para esse dia futuro. Estamos ainda a cumprir calendário, com uma agenda própria, a trabalhar, com as atividades normais que temos, com os nossos hábitos nos sítios a que vamos, com os horários que temos. Ainda assim, estamos já em contagem decrescente para o dia e hora da partida. Estamos na antecipação já na expectativa do que vai acontecer. E ainda faltam dias para a partida. Não começamos a deslocar-nos ainda, não fomos, por assim dizer. Podemos até nem nunca partir. Mas a viagem já começou. Os preparativos mesmo apenas mentais estão já a criar tensão. Podem ser despedidos, podemos não pensar neles, mas estão já a formar-se no espírito, temo-los em mente.

As vésperas de viagem estão já a construir a própria viagem. Viajaremos nós ainda? Podemos correr mundo e apenas deslocar-nos. É tudo velho de mais e o que encontramos tem diferenças mas não são muito acentuadas se viajarmos sob o planeamento de roteiros de viagem feitos para sítios diferentes sempre com uma mesma linha de edição, gizada por alguém que nunca saiu do seu quarto, podendo até viajar mais do que quem de facto viagem. Ou não: alguém que nunca saiu do seu bairro e quer ver em todo o universo à imagem e semelhança do seu sítio.

Talvez possamos viajar e fazer a jornada. A deslocação pode ser não apenas a anulação da distância entre o sítio da partida e o sítio da chegada. Pode ser uma viagem, uma jornada, onde encontramos pessoas e não apenas passageiros, condutores. Podemos encontrar sítios e não localidades com longitude e latitude. Podemos chegar diferentes, como quem entra numa dimensão completamente diferente do que aquela em que se encontrava quando partiu.

Não chegamos também apenas quando o percurso foi feito e o caminho galgado.

Demora tempo a chegar e a esquecer velhos hábitos. É assim: para sítios, para pessoas, para coisas, para nós.

9 Nov 2018

Inshalla

[dropcap]O[/dropcap]s gregos achavam que o passado estava à nossa frente, porque dele nos podíamos lembrar como vida passada. Achavam, pelo contrário, que o futuro estava nas nossas costas. Era como se andássemos de costas para o futuro. O caudal do passado aumenta a cada dia. O Afluxo do tempo futuro é cada vez menor, ténue, até ao estrangulamento e asfixia do sentido. A memória refere-se a uma percepção passada. Platão fez da reconstituição da vida uma anamnese: uma lembrança da representação do que temos sem o vermos. Todos os protagonistas das nossas vidas: mãe, pai, irmão, amigos, amada, a banda sonora das nossas vidas, a nossa cinemateca, os sítios onde vamos e fomos, ginásios, cervejarias, igrejas e hospitais, a casa dos avós, tudo é como se tivesse sido projectado outrora num tempo pré-natal. O passado tem peso. Tem tanto peso que mal nascemos somos já velhos o suficiente para morrermos ou como dizia Santo Agostinho: “começas a morrer quando sais do ventre da tua mãe”. O presente é a actualidade complexa que desactualiza o passado, tempos idos: é o que é, é por onde vamos indo. Estafa. Não temos já o que fomos, nem quem tivemos, meus queridos. Agora, temos de nos reinventar. É sempre difícil. Mas chegam auroras. Chegam.

E o futuro? Como temos uma antevisão, uma previsão do futuro?

Os antigos achavam que a esperança era uma velha vestida de princesa ou então um sonho cheio de promessas. Na verdade, não trazia nada a não ser a morte sem a possibilidade do presente. Quem vive cheio de esperança, mesmo da vida eterna, esquece-se de viver. A vida está cheia de gente que veio à existência, a atravessou, dela saiu e, hoje, está morta para sempre. Mas também não é o desespero nem a desesperança. O horror nasce das paredes da nossa casa vazia de gente. O horror não tem rosto. Não é a gadanha nem a dor. O horror escorre da humidade fria das paredes das nossas casas.

O futuro é outra coisa. Está presente logo na primeira vez de todas as primeiras vezes. Para haver contagem tem de haver as segundas e as terceiras vezes, mas também a última vez. Nós acordamos para a vida com a hora da nossa morte. Tudo o que é o mais antigo nas nossas vidas não passou. Pode ser esquecido mas não passou. Está à nossa espera na hora da nossa morte. O tempo não é do presente para o futuro. Vem sempre do futuro para o presente e depois para o passado e para o esquecimento. Toda a duração tem esta qualidade. É do limite temporal do fim que pensamos o presente sem o pensarmos. O jogo a partir do seu fim onde decorre. A aula, a viagem, o encontro. O encontro total da vida é pensado a partir do seu fim. Tem de ser no limite irreversível do fim que pensamos o presente.

Mesmo que vivêssemos eternamente seria sempre a perder.

Sem a possibilidade radical da perda não poderíamos viver a pensar no céu azul nem na linha do horizonte.

26 Out 2018

Víctor Jara

[dropcap]D[/dropcap]izem-se muitas coisas. Mas ninguém sabe o que aconteceu. Muito menos por que aconteceu. Não. Não. Como poderão saber? Em São João todos apedrejaram a pecadora. E como diz o evangelista: “cada um foi à sua vida”. Era noite, e a polícia política entrou em casa. O castelhano era inevitável: “Vá, levanta-te, onde tens a tua guitarra e os livros imundos que lês?”

Santiago não era já a cidade que comemorava o santo que, dizem, terá morrido no norte da península ibérica. Onde São Paulo morreu também à espera do seu Jesus, para, por fim, se ir embora ter com o Pai.

Não. Santiago era outro. E afinal o teu nome era Santo Inácio, o mesmo que deu origem àquela ordem! Cerrada a perna gangrenada, o santo “colou-a”. O amor vinha da coragem física e moral. Pegaram na tua guitarra e em toda a literatura subversiva.

Tu não aceitavas nunca um não e contrariavas sempre o que te diziam. Só não foste absolutamente ignóbil, porque tinhas um carácter no teu coração que não te deixava perder inteiramente. Cantavas Ho Chi Minh como se fosse um poeta e esse lugar.

“Vamos, anda!” gritava a polícia política. Atirou-te escadas abaixo e contra ti literatura subversiva, a Antígona e o Rei Édipo, do sacerdote maior que era Sófocles. Arremessaram a guitarra como a tua mulher e filhos e os velhos pais. Escarraram-te na cara e deram tantos pontapés que desfiguraram botas na tua cara de índio. E tu, naquela que seria a tua última noite, deixavas que o corpo gemesse mas não a tua alma. Não a tua alma era possuída pelo teu espírito e tu não irias deixar o espírito gemer. Só o corpo.

As tuas mãos delgadas que percorreram Santiago à espera de cada espectáculo! Arrastavas mulher e crianças que te amavam como se fosses um oráculo muito antigo. El derecho de…

E agora era a última noite. Não era uma qualquer. “Segue: tens filhos comigo, mas não te preocupes, amor. Quero-te assim. Tu és o amor”. Arrastavas tudo contigo e não conseguias recuar. A consciência tranquila e a justiça faziam-te inimigo da má consciência e da injustiça. Não conseguias tolerar a injustiça. “Morro e vou-me se a vida for assim”.

A vida é assim.

Despiram-te e disseram-te para tocares a tua guitarra. Deceparam-te a mão esquerda. “Toca, filho da puta.” Tentaste. E cortaram-te a mão direita. “Toca, filho da puta.” E era com os cotos que tentaste fazer música daquela guitarra. “Canta”. E cantaste como nunca.

A dor toma, agora, conta de tudo o que é o teu corpo.

Cantas e cantas.

Cortam-te a língua: “Canta, cão!”.

Há um gemido surdo que soltas.

Vem do fundo dos tempos!

Foste-te.

19 Out 2018

Buzinadela

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo, um amigo juiz disse-me para não apitar, no trânsito a ninguém, nem a alguém que conduza, nem a qualquer transeunte. Acho que lhe devo ter dito que era mais pessoa para fazer sinais de luzes do que propriamente para apitar, que achava bárbaro. A praxis do meu amigo juiz era a base para o seu pedido. Vários casos de homicídio tinham-lhe chegado à barra. Os casos desgraçavam quase sempre duas pessoas: quem morre e quem mata. Nunca se sabe bem quem tem um destino pior, se quem morre ou quem mata. Ponto é que, embora consiga compreender como há muitos casos de homicídio provocados no trânsito, não tinha a percepção de que uma buzinadela pudesse provocar a ira do buzinado a ponto de desferir um tiro sobre o buzinado. Talvez manobras perigosas, ultrapassagens, transgressões várias levassem a uma resposta agressiva por parte de quem se julga exposto. Sobretudo, quando há crianças a serem transportadas, crianças que puderam ter sido postas em perigo. É natural que um pai ou uma mãe, instintivamente reagissem de um modo violento.

Mas buzinadelas? Não!

Ainda assim, dei por mim a pensar, o melhor é mesmo não buzinar em circunstância alguma. As pessoas andam com stress nas suas vidas. A condução de manhã à noite pode deixar alguém com a cabeça em água. E eu, que sou eu, nunca buzino.

Eis que se não quando dou por mim num dia particularmente infeliz, pensei. E buzinei muito. Há um carro que está parado à minha frente sem razão aparente. Buzino. Nada. Não reage. Apito de novo e nada. Depois, percebo que há alguém que procura arrumar o carro e que o carro está parado por esse motivo óbvio. Penso cá para mim que a coisa foi descabida. Mas também não penso que fosse necessário que o condutor gesticulasse ou me dissesse alguma coisa. Era um indivíduo urbano. Lá no fundo, o seu silêncio estaria a enviar-me para qualquer uma parte da sua preferência para que para lá me mandasse.

Uns Km à frente num daqueles cruzamentos de Lisboa em que abre o sinal para seguir em frente, mas não para a esquerda, não percebo também por que razão o cidadão continua sem iniciar a marcha e apito. Com suavidade, mas confiança, braço fora do vidro, aponta o indicador para o semáforo, para que eu perceba, finalmente, que o sinal está fechado para nós, que queremos cortar à esquerda.

Um urbano e outro delicado.

Mas a coisa não fica por aqui. Numa bifurcação em que há espaço para três fachas, pode cortar-se à esquerda ou à direita. Um tipo que podia perfeitamente aproveitar ainda o “verde” permitido pelo laranja, para-me exactamente no meio sem me deixar perceber se quer virar à direita ou à esquerda. Dou-lhe uma buzinadela tremenda. Olha para mim com cara de espanto. Faço os gestos que lhe pretendem explicar que nem andou para a direita nem para a esquerda. Olha para a mulher que lhe diz que tenho razão ou lá o que é que ela lhe disse- podia simplesmente ter sido: deixa-o que é um atrasado mental. E depois aguarda e faz-me aguardar pela abertura do sinal.

O pior foi quando uma criatura estava a tentar arrumar o carro, criando a forçosa fila de carros. Nem para cima nem para baixo. Um cidadão vai mesmo para o meio da estrada dar indicações. O veículo da frente não consegue ultrapassar, por que tem a passagem vedada pela pessoa. Eu apito. O condutor do veículo da frente acha que estou a apitar para ele. Gesticula. Aponta para o carro da frente. Eu grito a dizer-lhe que era para a criatura que estava no meio da estrada.

Entretanto, atrás de mim um veículo apita. Olho pelo retrovisor. Um indivíduo sai do carro. Dirige-se a mim.

Baixo o vidro.

Dou-lhe um tiro.

12 Out 2018

Verões

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]stes dias de calor abrandam o dia. Mesmo o vento nas ruas que lhe estão expostas é quente. Ou então não mexe uma palha. Percebe-se a lentidão dos gestos como uma tentativa de arrefecimento. O mais pequeno gesto convoca uma libertação energia. Apesar da inércia destila-se. O céu azul e as praias lotadas atestam a persistência do verão no outono. Outrora, havia um mundo vivido pelas férias grandes, início de anos lectivos, reencontros. Há quem nunca tivesse saído de anos escolares. Talvez só saia desse ritmo anual quem não tenha contacto com escolas, por não ter filhos.

A pujança do verão impõe-se, ainda. Agora, pelas suas características meteorológicas. Ou alguém nos traz os verões passados. Os verões da infância eram cheios de noites de calor insones, antecipando manhãs de praia e sestas a seguir ao almoço. Os da juventude eram dias e noites sem amanhã, com os ruídos da idade, céu estrelado, romance, feliz ou infeliz, pequenos almoços nas padarias de um qualquer local e dias mal dormidos no parque de campismo ou, pior ainda, na praia.

Também podia haver o resguardo. A antecipação de um ano lectivo particularmente exigente suscitava a leitura. As tardes desses verões passadas no campo ou na praia tinham o ritmo voraz das leituras, variavelmente feitas de pé ou deitados, gramática, poesia, romance. Acompanhada de café com limão e gelo lia-se a Crítica da Razão Pura de Kant a inventar as condições de possibilidade da experiência.

Há os verões da doença de familiares. Há os verões com as mortes de familiares, no princípio, meio ou fim. Há mortes que se antecipam e outras, não. Esses verões são oceanos em que não se mergulha. Atravessa-se a estação sem estar nela. O alívio vem com as primeiras chuvas, os primeiros dias frios, quando se passa a usar a roupa de inverno e se arruma a roupa de verão. Delineia-se, contudo, sempre o mesmo verão, um verão que está inscrito em nós pelo universo, pelos dias grandes, pelo calor, pela luz. Ou talvez seja o próprio princípio, a própria ideia de princípio. O primeiro ano cósmico inculca-se-nos nas nossas cabeças. Não o esquecemos e não podemos lembrar-nos dele, vivido o tempo primordial como o tempo pré-natal, sem verdadeiramente cá estarmos. Mas essa inscrição lança-nos e projecta-nos para um futuro a haver numa outra possibilidade.

E alguém aparece. Não é alguém em abstracto nem é geral. É alguém que tem ainda em si inscrito o verão e põe em prática ainda o da sua infância. É um verão de dias longos de praia, banhos atlânticos, travessias de rios, fins de tarde, jantares à conversa e, quando é noite, abraços e beijos. E se achássemos que tínhamos tido verões, afinal não os tínhamos tido. Foram verões só literários, ficções de possibilidades, atestados pelo que cremos ser os verões dos outros. Mas é possível que, tarde na vida, sem contar verdadeiramente com nada surja como uma brisa ou a leve corrente do rio a encher, um verão partilhado, na verdade, inaugurado por um outro aí comigo.

5 Out 2018

Diário incerto

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]verbo ser. O mais universal poema da língua portuguesa: eu sou, tu és, ela, ele, isso é, nós somos, vós sois, elas, eles, essas coisas são. Solipsismo lírico diz o poeta. Rumo a sul. Há tantas coisas para fazer: máquinas de lavar. Levar a mãe ao médico. Uma palavra desconhecida que se vai ver ao dicionário. Um almoço quotidiano. E mais nada, mais nada. Lembro-me daqueles dias. Onde estão os amigos? Abrir um livro. Ter de escrever vezes sem fim. Quando não há que escrever, copia-se quem escreve. Uma música imitada mal na guitarra. Uma canção ecoa no vento de verão.

Dia 9

Vejo-te descer uma rua. Tenho a certeza de que tenho: solipsismo lírico, sul, máquinas de lavar, médicos, palavras desconhecidas, almoços, dias, amigos, livros, fins, escrever. Há uma música que ecoa. É verão. Uma canção, talvez.

Dia 8

Não ouço música há anos. Os dias passam com um problema linguístico. E, depois, vem a velhice. Vem a doença. Não se sabe o que fazer: ante a velhice nem a doença. “Agora, é que ela me deu”. É um sítio banal. Se calhar, uma porta de elevador. “Agora, é que ela me deu!”. “Ela” era a morte. Vamos ao rio. No rio, vemos Alcântara mergulhar no oceano. Bebemos uma água. Queres conversar. O teu melhor amigo está a ir-se. Choras. Olho para ti.

Dia 7

Não queres comprimidos. “Se aparecer uma miúda que ames, casa com ela”. Não vias nada. Às vezes, uma matrícula.

Dia 6

Aparecias-me atrás de mim. Acordavas três vezes durante a noite. Tomavas banho e escanhoavas-te. Perguntava-te por que razão. Voltavas para a cama. Ia resgatar-te vezes sem conta. E era o banho. Ensaboava-te. E o cabelo branco! Depois, dizias que não querias ir para o Hospital de INEM. Íamos de táxi.

Dia 5

Passou muito tempo. Querias uma cerveja. Dei-te muitas cervejas. Bebias um golo. Querias ir até sul. E fomos. “Quando encontrares um amor, diz para vir”. “Não importa nada. Vais encontrar um amor.” A tortura da gota é tremenda. Não queremos ficar fechados num quarto estreito. Não podemos bater em ninguém nem fugir. “O avô ama-te”.

Dia 4

Queria ser tudo: soviético. Fui alemão. Fui todas as nações. Cantei o nosso hino. Dizia: 10, 9, 8, 7, 6, 5. Onde estás? Pedias o Andy. Era atrás de mim. Vinhas de gravata. Íamos comprar o Público e o Diário de Notícias. Às vezes, Jogo. Se eu te perdia, atravessavas a Junqueira. Acenavas. “Estou aqui”! Dizia-te qualquer coisa como se tu me dissesses a mim. Regressávamos a casa ou o que era a casa.

Dia 3

Já te mijavas todo. Não sabias onde era o Norte da tua cama. De manhã, dizias-me: “vamos, então.” Depois, perdeste-te. Só se perde quem se encontrou. Tinhas pena de não ter nem namorada, muito menos mulher. Os teus filhos adoram-te.

Dia 2

Há uma rapariga que desce uma rua. Anos depois de teres morrido. Era, afinal, da mesma rua onde te prenderam. Tu que perdoaste quem te denunciou. Não foi aí que me declarei. Mas ela ficou tudo para mim. Não te vou explicar como ela é. É por pudor. Ela é linda. Mas sabias que seria assim. Ela tem um carácter indefectível. Ela desce uma rua com o “telefone portátil”, como dizias. Apoia tudo no lado esquerdo. Tem o braço direito livre. Sorri como ninguém. Faz-me lembrar a vida. Tu perdeste a tua. Eu gostava de ter a minha. Ela desce como ninguém. E, parece-me, encanto-me. Não há ninguém como esta miúda. Sabes: sou terno. Mas não importa. Talvez…

Dia 1

Passaram-se muitos anos. Mas não a fome. Não, o amor. Se calhar, chego a tempo. E chego àquela criatura.

Na rua onde vivemos em tempos diferentes, nos anos em que não podíamos ter-nos conhecido, em todo o tempo em que fomos sem sermos um com outro: esperávamos. E esperamos e esperamos. Não há nada que eu possa fazer.

E eu amo-a. E ela ama-me.
Seguimos o melhor que pudermos.
Não morreste nem o pai dela.
No céu, bebem um copo.
Eu amo-a como ninguém.

1 Out 2018

Mensagem (Botschaft)

[dropcap]E[/dropcap]u tinha pensado de mim para mim que dias mais lindos
Só aqueles poderiam ser chamados, quando nós, ao falar,
Transformávamos a paisagem diante dos olhos num domínio
Da nossa alma: quando nós, colina acima,
Subíamos para o bosque na direcção da sombra,
Aí, onde tudo nos envolvia como algo de já vivido,
Pois, aí, nos prados distantes, nós encontrávamos, em sossego,
o sonho das vidas passadas de criaturas jamais supostas.
Encontrávamos aí vestígios do seu terem por lá andado e do seu beber
E sobre o lago: uma conversa a deslizar
Reflectia abóbadas mais fundas do que o céu.
Eu tinha, então, pensado naqueles dias,
E que a seguir a estas três coisas: ter saúde,
Fruir do próprio corpo e da vida,
E de pensamentos, asas de jovens águias,
Apenas uma coisa conta:
Estar na companhia de amigos.
Assim, eu quero que tu venhas e comigo bebas
Daquelas taças que são a minha herança,
Adornado com folhagem e crianças aladas,
E que comigo te sentes no muro do Jardim.
Dois jovens estão de guarda no seu portão.
Nas suas cabeças, com um olhar absorto e
Meio desviado, há um destino monstruoso
Que te olha para te empedernir: quero que te cales
E olhes para a paisagem
Que tu vês estender-se à tua frente;
Pois, talvez, então, um verso teu me aconchegue
Na solidão futura e que, de quando em quando,
Uma lembrança tua se aninhe na sombra
E que, ao cair da noite, a estrada entre as copas escuras role,
E que caminhos sem sombra rolem e rolem para aí
Como relâmpagos do ouro mais fino.

18 Set 2018

É isto

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]isto. Uma caixa fechada. O escândalo. O escândalo. Cheguei tarde. Não te conheci. Caixa fechada. Não há corpo. Toda a filosofia do ocidente o diz. O padre diz que não te conheceu. E conheceu-te. Tiveste filhos. Tiveste aspirações, desejos, amores. É isto. O escândalo. O escândalo. Seguimos em frente, João. Chegamos tarde. Cheguei tarde. Era uma feijoada. Era um jantar. A única a oportunidade.

Era um dia de calor. Ficamos. Foste. É um escândalo. O escândalo. Seguimos em frente. A memória. A fé. A saudade. Seguimos em frente.

Levaste gente sem número como o número dos grãos da areia. Foste ao litoral. Vieste ao interior. Tiveste filhos.

Onde estás tu só com pele?

Seguimos em frente. Numa aldeia próxima de Lisboa, com o cão negro de nome de presidente. Falamos de literatura. É preciso fazer. É preciso fazer. Livros são como hortas. E os teus filhos ficaram meus irmãos. E o teu filho é meu irmão. Cita o Evangelho.

Voltarei. Voltarás. Não chorarei mais. A alegria é a esperança.

Não faz mal. O amor é mesmo assim. Eras o meu pai. És o meu pai.

Já não há nada. Nunca há nada sem ti. E eu entrego o coração. O meu coração é teu.

Tenho mulher e filhos. Tenho-te a ti, meu amor. Tu segues o teu caminho. Eu perdi-te. Sei que o amor existe. E choro por ti.

Tudo passa. Nada fica. Nada ficará.

Eu encontro-te no teu corpo.

Eu encontro-me no teu corpo.

Eu encontro-te no teu corpo.

14 Set 2018

“Salmo”, poema de Georg Trakl

Salmo

dedicado a Karl Kraus de Georg Trakl

[dropcap]H[/dropcap]á uma luz que o vento extinguiu.
Há uma taberna que um bêbado deixa à tarde.
Há uma vinha queimada e negra com buracos cheios de aranhas.
Há um espaço que foi caiado com leite.
O louco morreu. Há uma ilha do mar do sul,
para receber o deus Sol. Rufam os tambores.
Os homens executam danças guerreiras.
As mulheres meneiam as ancas entre trepadeiras e flores de fogo,
quando canta o mar. Oh! o nosso paraíso perdido.
As ninfas abandonaram as florestas douradas.
O estranho vai a enterrar. Depois, cai uma chuva cintilante.
O filho de Pã aparece na figura de um trabalhador da terra,
que dorme ao meio dia sobre o asfalto escaldante.
Há pequenas meninas num pátio com vestidinhos cheios de uma pobreza de partir o coração!
Há quartos cheios de acordes e de sonatas.
Há sombras que se abraçam à frente de um espelho cego. Às janelas do Hospital, aquecem-se convalescentes.
Um barco branco a vapor sobe o canal com pestes sangrentas.
A estranha irmã aparece de novo nos sonhos maus de alguém.
Sossegadamente, no bosque de sabugueiros, ela brinca com as suas estrelas.
O estudante, talvez um sósia, segue-a através da janela até desaparecer.
Atrás dele jaz o seu irmão morto, ou então ele desce a velha escada de caracol.
No escuro, as castanhas empalidecem o rosto de um jovem noviço.
O jardim está ao anoitecer. No cruzamento esvoaçam os morcegos em redor.
Os filhos do caseiro acabam de brincar e procuram o ouro do céu.
Acordes finais de um quarteto.
A pequena cega corre a tremer pela alameda,
e mais tarde toca a sua sombra no muro frio, envolta por contos de fadas e lendas de santos.
Há um barco vazio que desce o canal negro ao anoitecer.
Na obscuridade do velho asilo decaem ruínas humanas.
Os órfãos mortos jazem nos muros do jardim.
De quartos cinzentos surgem anjos com asas sujas de lama.
Vermes saem das suas pálpebras amarelecidas.
A praça em frente da igreja é lúgubre e silenciosa, tal como nos dias da infância.
Sobre pegadas prateadas deslizam vidas passadas
E as sombras dos condenados descem até às águas pestilentas.
Na sua sepultura o mágico branco brinca com as suas cobras.

Silenciosamente sobre o calvário abrem-se os olhos dourados de Deus.

Psalm

Fassung Karl Kraus zugeeignet

Es ist ein Licht, das der Wind ausgelöscht hat.
Es ist ein Heidekrug, den am Nachmittag ein Betrunkener verläßt.
Es ist ein Weinberg, verbrannt und schwarz mit Löchern voll Spinnen.
Es ist ein Raum, den sie mit Milch getüncht haben. Der Wahnsinnige ist gestorben.
Es ist eine Insel der Südsee, Den Sonnengott zu empfangen. Man rührt die Trommeln.
Die Männer führen kriegerische Tänze auf.
Die Frauen wiegen die Hüften in Schlinggewächsen und Feuerblumen, Wenn das Meer singt. O unser verlorenes Paradies.
Die Nymphen haben die goldenen Wälder verlassen. Man begräbt den Fremden.
Dann hebt ein Flimmerregen an.
Der Sohn des Pan erscheint in Gestalt eines Erdarbeiters,
Der den Mittag am glühenden Asphalt verschläft.
Es sind kleine Mädchen in einem Hof in Kleidchen voll herzzerreißender Armut!
Es sind Zimmer, erfüllt von Akkorden und Sonaten.
Es sind Schatten, die sich vor einem erblindeten Spiegel umarmen.
An den Fenstern des Spitals wärmen sich Genesende.
Ein weißer Dampfer am Kanal trägt blutige Seuchen herauf.
Die fremde Schwester erscheint wieder in jemands bösen Träumen.
Ruhend im Haselgebüsch spielt sie mit seinen Sternen.
Der Student, vielleicht ein Doppelgänger, schaut ihr lange vom Fenster nach.
Hinter ihm steht sein toter Bruder, oder er geht die alte Wendeltreppe herab.
Im Dunkel brauner Kastanien verblaßt die Gestalt des jungen Novizen.
Der Garten ist im Abend. Im Kreuzgang flattern die Fledermäuse umher.
Die Kinder des Hausmeisters hören zu spielen auf und suchen das Gold des Himmels. Endakkorde eines Quartetts.
Die kleine Blinde läuft zitternd durch die Allee,
Und später tastet ihr Schatten an kalten Mauern hin, umgeben von Märchen und heiligen Legenden.
Es ist ein leeres Boot, das am Abend den schwarzen Kanal heruntertreibt.
In der Düsternis des alten Asyls verfallen menschliche Ruinen.
Die toten Waisen liegen an der Gartenmauer. Aus grauen Zimmern treten Engel mit kotgefleckten Flügeln.
Würmer tropfen von ihren vergilbten Lidern.
Der Platz vor der Kirche ist finster und schweigsam, wie in den Tagen der Kindheit.
Auf silbernen Sohlen gleiten frühere Leben vorbei Und die Schatten der Verdammten steigen zu den seufzenden Wassern nieder.
In seinem Grab spielt der weiße Magier mit seinen Schlangen.

Schweigsam über der Schädelstätte öffnen sich Gottes goldene Augen.

12 Set 2018

Como quem se olha ao espelho

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo pode dar-se o reconhecimento do outro, como lhe chama a filosofia um “outro si próprio” (self)? Platão formula este problema. Arranca-o à simplicidade de se achar que é fácil ou difícil, possível ou impossível conhecer alguém. Põe no núcleo duro do problema a reciprocidade. Sou eu quem se reconhece como um “si”, como portador da “vida”, do ser universal que escancara todos os tempos havidos e a haver e todas as pessoas de todas as gerações passadas e futuras? Como posso, então, reconhecer o outro como outro, isto é, como portador da vida universal e a fortiori, à escala mundial, em si mesmo como outro e como um “si próprio” para si? Sou eu quem está projectado no outro que eu reconheço? É o outro que existe em mim e quem o outro aí comigo também pode reconhecer-me como um duplo de si próprio? São os amigos uma multiplicação dos mesmos nos outros como diferentes filhos são o mesmo mas multiplicados pelo seu número? Pode “isto” passar-nos despercebido, isto é, que sou quem existe no outro e que é o outro que existe em mim, como diz Platão no Fedro dos enamorados, que cada um está apaixonado por si no outro, mas isso mesmo, a paixão por si no outro lhe passa desapercebidamente?

O reconhecimento da alma (psychê) uma outra palavra para o si próprio é compreendido analogicamente pelo facto do quotidiano de nos vermos ao espelho. Tal como um olho se pode ver a si próprio espelhado no olho do outro para quem estamos a olhar também o próprio de nós poderá ser reconhecido ao olhar-se para o próprio do outro, naquela dimensão em que nós podemos ficar plasmados no olhar do outro, no olhar de preocupação que inspiramos no outro, no olhar de amor de que somos susceptíveis e podemos inspirar no outro. Um olho pode ver-se a si mesmo no seu reflexo na pupila de um outro olho. De modo semelhante, uma alma pode conhecer-se a si mesmo na sua “reflexão” na dimensão mais complexa do si próprio no outro. Além do mais, um olho pode ver-se a si mesmo melhor ainda na sua reflexão num espelho. Uma alma, de modo semelhante, pode conhecer-se a si mesma quando usa o melhor dos espelhos reflexivos, e contempla o modo como se encontra refletida em Deus.

Assim, “O rosto da pessoa que olha nos olhos de outra pessoa é mostrado nos olhos da pessoa que se encontra à sua frente, como num espelho, e chamamos isso pupila, pois de certo modo é uma imagem da pessoa que olha. Um olho ver-se-á, enquanto vê o outro olhos nos olhos, sobretudo quando olha para a parte mais perfeita dele, aquilo mesmo com o qual vê. E assim também se verá a si. Mas não pode olhar para nenhuma outra parte do outro, nenhuma parte do seu corpo, nem do seu rosto. Terá de ver para lá do próprio olhar e enfrentar olhos nos olhos a vida que acontece no outro. Terá de olhar para o que verdadeiramente se assemelha a si, a sua própria vida espelhada na vida do outro diferente de si. Essa diferença é anulada e duas pessoas reconhecem-se como sendo uma da outra: uma e outra projectadas reciprocamente em cada um dos outros.

“E se a alma também vier a conhecer-se a si mesma, certamente deve olhar para uma alma e, especialmente, para aquela região em que ocorre a excelência de uma alma. Porquanto essa parte da existência onde ocorre a sua excelência é assimilada por Deus. Quem olhar para isso e vier a conhecer tudo o que é divino, obterá assim o melhor conhecimento de si mesmo.” (Platão, Alcibíades II)

Conhecer-nos a nós mesmos implica desviar o olhar da imagem da pupila do olho no espelho em frente (e fora) de nós e olhar para aquela região da alma que é mais divina. Então, olhando para Deus e fazendo uso deste mais belo espelho interno e também olhando para a excelência da alma, somos, portanto, muito mais capazes de ver e reconhecer nós mesmos da maneira como realmente somos. Reconhecemos o outro susceptível de Deus. O outro reconhece-nos “capazes de Deus”. Deus é um nome para a possibilidade radical da felicidade no amor de outrem por nós e de nós por outrem.

O outro apresenta-se em si tal como é ao olhar? E nós o que vemos quando olhamos os outros olhos nos olhos? Vemos os outros simplesmente? Os outros o que vêem, quando nos vêem? Vemos nós simplesmente os outros ou vemo-nos lá a olhar os outros sem nos apercebermos de que somos nós próprios lá? E os outros o que vêem de nós? Não se verão também a si mesmos em nós, não percebendo esse facto, achando que nos vêem tal como somos em nós próprios? Não há nenhum acontecimento isolado de si. Ou, antes, cada pessoa percebe-se no seu isolamento apenas, porque percebe a distância a que se encontra de toda a outra pessoa. Mas o milagre acontece e todo o reconhecimento recíproco traz consigo esse maravilhamento de que o outro é o nosso próprio si e nós somos o próprio si do outro. Passar-nos-á despercebido a maior parte do tempo da vida a respeito da esmagadora maioria da humanidade, mas a hipótese filosófica do reconhecimento do outro como outro, da vida a acontecer no outro, implica crescermos à altura em que vemos a vida de que somos portadores, universal, a fortiori à escala mundial e vital.

7 Set 2018

“Outono transfigurado”, um poema de Georg Trakl traduzido

Outono transfigurado

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] terrível como acaba o ano,
com vinho dourado e o fruto dos jardins.
Em redor, silenciam-se maravilhosas as florestas,
Que são as companheiras do solitário.

Diz então o camponês: “que bom!”
E vós, sinos da tarde, longos e suaves,
Dai ainda uma coragem alegre para o fim.
O traço das aves em voo saúda a viagem.

É o tempo terno do amor.
No barco que desce o rio azul,
Com que beleza uma imagem se liga a outra imagem.
Tudo submerge em sossego e silêncio.

Verklärter Herbst

Gewaltig endet so das Jahr
Mit goldnem Wein und Frucht der Gärten.
Rund schweigen Wälder wunderbar
Und sind des Einsamen Gefährten.

Da sagt der Landmann: Es ist gut.
Ihr Abendglocken lang und leise
Gebt noch zum Ende frohen Mut.
Ein Vogelzug grüßt auf der Reise.

Es ist der Liebe milde Zeit.
Im Kahn den blauen Fluß hinunter
Wie schön sich Bild an Bildchen reiht –
Das geht in Ruh und Schweigen unter.

3 Set 2018

Férias grandes

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]dia do nosso aniversário, a véspera de Natal, a passagem do ano, a Páscoa, o começo e o fim do ano lectivo e das férias são momentos de dobra. Não marcam apenas curtos prazos: antes, durante e depois: véspera, o próprio dia, e o dia seguinte, mas gizam estruturas temporais de maior duração, dividem o ano. No limite, marcam as nossas vidas no longo prazo. A primeira véspera de Natal de que temos memória, com a família de lugares precisos atribuídos à mesa. A primeira partida para férias, o primeiro dia de aulas, os aniversários a que íamos e os que não tínhamos por termos o aniversário durante o período de férias. Havia os finais dos anos lectivos da adolescência, que invariavelmente coincidiam com as festas de Santo António. Houve o primeiro dia de aulas inscrito para sempre nas vidas, sobretudo daqueles que nunca iriam sair da escola ou, então, só tarde demais, sem verdadeiramente poderem ter saído de uma vida tonalizada a anos lectivos e não a anos civis.

O tempo destes dias não se circunscreve aos três dias que marcam a véspera, o próprio dia e o dia seguinte. Eles próprios delineiam e projectam um horizonte temporal: o final do ano lectivo está em tensão com o princípio do ano lectivo. Portanto, as férias existem entre um fim e um princípio. A passagem do ano existe em tensão de ano para ano a definir um ano inteiro. O nosso aniversário está numa relação complexa com os anos de vida que vamos tendo: acrescentamos um algarismo que corresponde à obliteração de um ano inteiro às nossas vidas. Existe, assim, uma tensão entre os nossos aniversários e os dias do nosso nascimento e da nossa morte.

Há uma diferença, sem dúvida, entre os momentos que articulam cada um dos dias de dobra: a antecipação, até chegar a véspera, antes do dia, o próprio dia e o dia seguinte são vividos de maneira completamente diferente. Na véspera é tudo antecipação, na expectativa do que vai acontecer no próprio dia, até nos deitarmos. No dia seguinte, há já uma sanduiche temporal feita de dois dias fatias em que houve antecipação e agora já começa a construir-se uma lembrança. Depois, será o que para aí virá. É o momento seguinte com todos os dias que se lhe seguem: os meses de Inverno depois da passagem de ano até ao final do ano lectivo, eventualmente a páscoa. Para trás ficam as férias grandes que ainda duram até Dezembro.

As férias grandes – lembro-me de como eram as férias absolutas de três meses inteiros de praia e sol e nada – fazem sentir-se logo no final do ano lectivo. Há anos em que são antecipadas grandes viagens, cursos de língua no estrangeiro, dias inteiros a ler os livros das estantes lá de casa. Há anos em que nada acontece, ou porque um familiar está doente ou porque o trabalho assim o exigia. Em todo o caso, as férias grandes são incontornáveis. Há sempre alguém a vivê-las e alguém que não as vive. A sua vivência é longa entre Junho e o fim de Agosto ou Setembro. As férias grandes são inaugurais. Têm verdadeiramente de interromper o que tem acontecido até aí. Permitem uma metamorfose do trabalho em descanso ou assim deveria ser. Abrem um horizonte de disponibilidade em que nada se faz ou pode não fazer-se nada, em que estamos entregues a nós e ao que autenticamente somos sem sermos o que fazemos habitualmente. Essa disponibilidade é o vazio oriental que a vida nos proporciona para podermos abrir-nos a nós e ao que pode acontecer. Poder mudar de vida não implica apenas ir para o deserto para sentir o vazio que não é nada subir até nós e constituir uma oportunidade e uma ocasião. Até pode ser um amor de pessoa que se encontre e assim nos permita encontrar-nos a nós nela. Pode ser querer ressuscitar Lázaro, o Lázaro que é cada um de nós e cada um dos outros, quem nos podemos tocar e quem nos pode tocar. Esse toque é o que ressuscita.

O final de Agosto traz, inexorável, o fim das férias. Mas as férias duram até Dezembro, até às férias do Natal. E o Natal deveria celebrar o nascimento. Os nascimentos inauguram a vida. Não podem acabar a 25 do mês de Dezembro. O ano novo é isso mesmo um ano novo que abre possibilidades ou só uma. A páscoa renova a ressurreição, seja a Primavera que mata o Inverno, seja a de uma possibilidade de existência autêntica em que podemos ser como éramos para ter sido. E virá outros finais de anos lectivos e outras férias grandes.

É difícil que a vida seja como as férias grandes, mas a vida toda com todos os aniversários são umas férias à morte e tem de nos deixar resgatar competentemente para nós e uns para os outros.
Oxalá!

 

31 Ago 2018

Amor de mulher

Uma vez mais, o amor desmembra-me o meu corpo, sacode-me, agridoce, inescapável, animal rastejante.
Sappho, fr. 130
Ἔρος δηὖτέ μ’ ὀ λυσιμέλης δόνει, γλυκύπικρον ἀμάχανον ὄρπετον.

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguém pode converter-se numa presença lancinante nas nossas vidas. Quando alguém nos acontece, transfigura o próprio sentido da nossa existência. O seu olhar prende-nos. Faz-nos deflagrar. Converte-nos para si. Transfigura em absoluto tudo. O fragmento de Sappho descreve a perturbante presença de uma rapariga nas existências daqueles que lhes são vulneráveis. Exprime o poder total do sortilégio de um olhar que incendeia.
Como é possível que um rosto se destaque da multidão de rostos que vemos todos os dias ao longo da nossa vida? Como é possível até que um rosto já familiar se destaque um dia das inumeráveis vezes que o vimos. Qual é a natureza desse destaque absoluto que se acende ao mesmo tempo que apaga todos os outros? De certeza que não resulta do apuramento objectivo e possível da beleza de uma rapariga como maior do que a de outra. O fotografo, o realizador, o pintor, o esteta, todos nós o fazemos de uma forma ou de outra.
Quando da profundidade abismal da vida, o rosto de alguém se revela de uma forma absoluta, esse alguém passa a tomar conta da minha vida até se confundir com ela. Tudo inunda. Interpõe-se entre mim e mundo inteiro. Parece impossível, mas o facto é que entre mim e o mundo inteiro impõe-se a sua presença terna e doce. Eu sou esse reino intermédio, esse absoluto “entre” mim e tudo— mas mesmo tudo— o resto. A beleza invade e contamina. Acorda o amor, deixa-me completamente vulnerável, absolutamente exposto, totalmente fragilizado, uma ferida viva, uma fractura exposta. Sappho diz que o amor nos chega com doçura, que é doce. A doçura é aqui uma metáfora do sonho. A minha vida parece que se torna num sonho, num sonho de amor.
Mas o contraditório do amor é que traz consigo também amargura. A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso. O rosto do amor ao olhar-me prende-me a si para sempre. Nunca mais esquecemos o seu olhar filtrante, feiticeiro, a insinuar-se e a impor a sua presença para todo o sempre. Nunca mais esquecemos as feições do amor, o corpo em que encarna, o toque mágico que primeiro dá à luz o meu e depois o ressuscita vezes sem conta de cada vez que o acaricia na noite da vida. Só tem o poder de dar à luz e ressuscitar o que simultaneamente tem o poder de adormecer e de matar. E é possível viver para todo o sempre na saudade lancinante e pungente de um amor. O rosto do amor pode nunca mais voltar a olhar-nos de frente. Não que raparigas e mais raparigas não nos olhem, não nos vejam, não nos digam algo. Mas o amor é um deus. E o seu olhar é absolutamente diferente. Pode acontecer que nos feche os olhos para sempre. Mas pode também acontecer que encarne noutro corpo, noutro rosto, pode ser que volte a incendiar-nos o coração. Apenas o seu abraço nos faz recuperar os sentidos, nos ressuscita à morte, ao degredo, ao exílio.
O amor desmembra o nosso corpo. Estraçalha-o. Mas tal não quer dizer que a comoção violenta da paixão o sacuda e faça estremecer ante a expectativa do prazer, oferecido pelo amor. A dimensão deste corpo não se esgota no espaço do seu tamanho. O corpo de que aqui se fala é a minha vida. É no corpo que toda a minha vida, de algum modo, se unifica. O meu corpo é em certo sentido todas as minhas percepções, todas as minhas memórias, todas as minhas expectativas, todos os meus sentimentos, todas as minhas emoções, todos os outros, todos os meus eus, todo o real, todo o possível e todo o imaginário. É a vida. É precisamente tudo isso que fica desmembrado. A presença de alguém na nossa vida pode provocar o colapso, o caos, deixar-nos na miséria. Mata-nos.
O amor é um animal selvagem que rasteja até nós. Aloja-se em nós e ocupa cada ponto do nosso corpo, toda a nossa vida. O seu poder de contaminação é absoluto. Basta um só olhar. O amor é essa situação de conflito permanente e absoluto: liberta e vincula, é doçura e amargura, refaz e desfaz, ressuscita e adormece, faz-nos sonhar e confronta-nos com a realidade pura e dura, dá à luz. Mas mata. Oscilamos assim entre a possibilidade de tudo poder ser e a possibilidade de nada poder ser, a impossibilidade de tudo.
Mas este meu amor por ti, maravilhoso, por toda tu: sardenta, ginja.
A possibilidade de tudo és tu.

A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso.

24 Ago 2018

Kleines Konzert (um pequeno concerto)

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m vermelho que onírico te abala—
Através das tuas mãos brilha o sol.
Tu sentes o teu coração enlouquecido com delícias
Preparar-se com calma para a acção.

Ao meio dia, fluem campos amarelos.
Dificilmente ouves ainda os grilos cantarem,
O movimento oscilante e duro das foices dos ceifeiros.
calam-se as florestas douradas na sua simplicidade.

No charco verde, a putrefacção abrasa.
Os peixes estão quietos. O hálito de Deus
Desperta a borbulhar suaves sons de corda.
A maré acena a convalescença aos leprosos.

O espírito de Dédalo paira acima de sombras azuis.
Há um aroma a leite nos ramos das aveleiras.
Ouve-se ainda durante muito tempo o violino do professor
E no pátio vazio o chiar das ratazanas.

No púcaro, junto ao papel de parede feíssimo
Florescem ainda mais frescas a cor das violetas.
Em altercação, morreram vozes sombrias,
Narciso morre nos em acordes finais das flautas.

Kleines Konzert

Ein Rot, das traumhaft dich erschüttert –
Durch deine Hände scheint die Sonne.
Du fühlst dein Herz verrückt vor Wonne
Sich still zu einer Tat bereiten.

In Mittag strömen gelbe Felder.
Kaum hörst du noch der Grillen Singen,
Der Mäher hartes Sensenschwingen.
Einfältig schweigen goldene Wälder.

Im grünen Tümpel glüht Verwesung.
Die Fische stehen still. Gottes Odem
Weckt sacht ein Saitenspiel im Brodem.
Aussätzigen winkt die Flut Genesung.

Geist Dädals schwebt in blauen Schatten,
Ein Duft von Milch in Haselzweigen.
Man hört noch lang den Lehrer geigen,
Im leeren Hof den Schrei der Ratten.

Im Krug an scheußlichen Tapeten
Blühn kühlere Violenfarben.
Im Hader dunkle Stimmen starben,
Narziß im Endakkord von Flöten.

20 Ago 2018

Fim do dia II

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que sucede nesse hiato? Eu levo comigo o trabalho, não o deixo fora. Mas já não funciono bem. Por outro lado, embora estando já em casa, eu ainda não cheguei. A situação: ter acabado de chegar a casa ainda não abriu para o seu conteúdo. Essas horas podem custar a passar por causa de uma desocupação de mim, desinvestimento da actividade profissional, ou lá o que estivemos a fazer. Não se inaugura nenhuma outra situação. Não estou disponível para estar em casa. Não consigo estar em mim e não estou fora de mim. Aquilo que me levava nas horas foi interrompido. A minha maneira de estar ao serão é diferente da minha maneira de estar no trabalho, porque formalmente se tratam de duas maneiras de ser completamente diferentes. E nada muda se trabalharmos a partir de casa. Aí até podemos ver o contraste. Não que até essa hora estivéssemos numa divisão do gabinete e depois na sala de estar ou na cozinha. O que muda é a vivência concreta do tempo em duas situações completamente diferentes. A minha maneira de estar quando a trabalhar é diferente da minha maneira de estar quando acabei de trabalhar, quando me deixei ficar por ali, por ter acabado a hora do expediente. Agora, estou presente em salas com peças de mobiliário. Estou com outros conteúdos: estou como quem está na sua sala de estar, mas eu não consigo estar lá. Não há nada que me entusiasme. Eu estou desocupado e não sou eu na minha maneira habitual de trabalhar ou de estar interessado com o que estou a fazer: estou expropriado da maneira como habitualmente me encontro, guiado pelas tarefas, pelo exercício de competências, na situação em que se desenham problemas e programas de resolução e de solução. Na sala de estar eu estou sem fazer nada e nada me interessa. Nada me descansa, não consigo estar em sossego, nem ver nada, nem ouvir nada, procuro inventar tarefas e não consigo ocupar-me. Estou impropriamente em mim.

Mas só aparentemente e primária e o mais das vezes. É justamente o que se percebe pelo contraste entre o dia de trabalho proveitoso e que correu bem e o enclave que o separa do serão, da noite. Podemos interpretar que ao serão somos mais nós, porque não somos definidos por nada que façamos, não somos oficiais de um ofício, profissionais de uma determinada área. Somos como quem está na sala de estar, à espera. Convivemos com maples, sofás, mesas, cadeiras, quadros, televisões, aparelhagens de som, rádio, livros. Mas não fazemos nada disso. A situação em que nos encontramos é de impermeabilização. Não estamos em nós, estamos expropriados da maneira de ser da zona de conforto, a que estamos habituados. Aí pode falar-se de inautenticidade num determinado sentido, expropriação, de um vivermos de um modo inqualificável: quem sou eu enquanto me encontro na sala de estar, mas não estou. Há uma interpretação diferente para este modo de ser que não é o modo como eu me encontro nem o mais das vezes nem primariamente e que pode abrir à dimensão em que a autenticidade constitutiva de mim se faz sentir, pode interpelar-me.

17 Ago 2018

Fim do dia I

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a Interrupção do fim do dia, eu não sou eu por contraste com o modo de me encontrar no exercício das minhas funções.
Entre o fim de cada dia trabalho e o início de outro dia, antes da hora do jantar, há tempo disponível para o que for. Essa hora de fim do dia, antes do jantar, se não houver nenhuma urgência, custa a passar. É um tempo de viragem. Estamos entregues a nós próprios. Temos de ocupar esse tempo. É um tempo de regresso a si, de desinvestimento da tarefa. Não é necessariamente um tempo de descontracção e de relaxamento. Podemos ter uma actividade que nos dê prazer, que preenche o tempo. Mas podemos também estar à espera da hora do jantar, ou das notícias, numa travessia do tempo difícil de fazer-se.
Aí há uma espécie de hiato de tempo. Quando não há nada agendado, temos de fazer tempo como quer que seja. Depois, há como que uma fluidez no caudal do tempo que nos leva nas horas. Já são dez horas. Não se percebe como se mergulhou no tempo e se foi fluindo das sete às dez, passando pelas horas dramáticas das sete às nove. A que é quer corresponde essa dificuldade do tempo que custa a passar? Há uma espécie de reserva do tempo a admitir-nos, uma entrada proibida, uma interdição e impermeabilização do tempo.
Não há nada que se consiga fazer: ouvir música, ver um programa na TV, passear, ler. Ficamos sem recursos para invadir e ocupar o tempo num instante. Não há sentido nem direcção ou orientação, para mergulharmos na corrente do tempo e sermos levados pelos conteúdos distribuídos sequencialmente no tempo, como tinha acontecido ao longo do dia, como acontece por vezes. A partir de determinada altura somos puxados por conteúdos que se organizam sequencialmente a partir da sua própria agenda. Se dávamos conta da impermeabilidade, da vedação do tempo, tal que não conseguíamos mergulhar nele para irmos na corrente, agora percebemos que mergulhamos e somos levados até às dez ou às onze.
Mas não é necessariamente de conteúdos o que aqui se trata. Pode perfeitamente haver uma acomodação da inércia do movimento que continua quando eu já parei, deixando sem conseguir aterrar na situação em que eu agora me encontro. Continuo ainda com os problemas do trabalho, programado para resolver questões que agora não são determinantes, estou ainda na sombra projectada pela situação do trabalho, ainda não desliguei. Levo comigo o dia todo. E por outro lado não consigo constituir outro horizonte de vivência, habituar-me à situação do serão, da saída do trabalho, de o ter largado. Faço tudo e mais alguma coisa e é como se houvesse um campo de forças que me repele.
Quando dou por mim a ser puxado numa sequência de tempo, não posso dizer verdadeiramente que é porque um conteúdo passou a ser interessante, quando os outros não eram. Pode ser o mesmo conteúdo ou os mesmos conteúdos que antes estavam já a actuar e que se tornaram interessantes. O que sucede é que os resquícios do dia útil acabam por ser lavados e há uma disponibilidade para programar o serão, ater-me aos conteúdos que aí estão e que são os que estavam: há o conteúdo Δ x, depois, y e z e constitui-se uma sequência temporal

 

10 Ago 2018

O passeio – poema de Georg Trakl traduzido

O passeio

 

1

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á música a sussurrar no bosque à tardinha.

No milheiral, viram-se espantalhos de semblante sério.

Delicadamente, os sabugueiros espalham-se ao longo do caminho.

Uma casa cintila maravilhosamente e vaga.

 

No dourado, paira um aroma a tomilho.

Numa pedra, está um número sereno.

No prado, as crianças jogam à bola.

Depois, à tua frente, ganha corpo uma árvore para a contornares.

 

Tu sonhas: a irmã penteia o seu cabelo louro.

Um amigo distante escreve-te uma carta.

Um cilindro de feno voa tosco através do verde amarelado,

E, às vezes, tu pairas com leveza em suspenso e maravilhoso.

 

2

O tempo corre. Oh! doce Hélio!

Oh! Imagem doce e clara dos sapos nas poças.

Na areia, um Éden maravilhoso enterra-se.

Escrevedeiras baloiçam no regaço de um arbusto.

 

Um irmão morre-te num país encantado

E o seu olhar de aço contempla-te olhos nos olhos.

E no dourado ali, há uma fragrância de tomilho.

Uma criança inicia um fogo ao pé da aldeia.

 

Os amantes abrasam-se renovados em borboletas.

Oscilam serenamente em redor da pedra e do número.

Corvos esvoaçam à volta de uma refeição repugnante,

E a tua testa ferve por entre o verde suave.

 

No espinheiro, um animal selvagem morre ternamente.

Atrás de ti escorrega um dia claro da infância.

Cinzento é o vento que, volátil e vago,

Lava odores pútridos durante o crepúsculo.

 

3

Uma velha canção de embalar deixa-te angustiado.

À beira da estrada, piedosa, uma mulher amamenta um recém nascido.

Escutas como a sua fonte emana, a transformar os sonhos.

Do ramo de uma macieira, desce um som de consagração.

 

E pão e vinho são a doçura que vem do duro esforço.

As tuas mãos apalpam prateadas frutos.

Raquel morta anda pelos campos arados.

Com gestos de paz acena o verde.

 

Abençoados florescem os regaços das pobres criadas,

Que ali estão de pé junto à velha fonte a sonhar.

Solitárias seguem serenas os seus caminhos, em silêncio,

Na companhia das criaturas de Deus desprovidas de pecado.

 

Der Spaziergang[1]

 

1

Musik summt im Gehölz am Nachmittag.

Im Korn sich ernste Vogelscheuchen drehn.

Hollunderbüsche sacht am Weg verwehn;

Ein Haus zerflimmert wunderlich und vag.

In Goldnem schwebt ein Duft von Thymian,

Auf einem Stein steht eine heitere Zahl.

Auf einer Wiese spielen Kinder Ball,

Dann hebt ein Baum vor dir zu kreisen an.

Du träumst: die Schwester kämmt ihr blondes Haar,

Auch schreibt ein ferner Freund dir einen Brief.

Ein Schober flieht durchs Grau vergilbt und schief

Und manchmal schwebst du leicht und wunderbar.

 

2

Die Zeit verrinnt. O süßer Helios!

O Bild im Krötentümpel süß und klar;

Im Sand versinkt ein Eden wunderbar.

Goldammern wiegt ein Busch in seinem Schoß.

Ein Bruder stirbt dir in verwunschnem Land

Und stählern schaun dich deine Augen an.

In Goldnem dort ein Duft von Thymian.

Ein Knabe legt am Weiler einen Brand.

Die Liebenden in Faltern neu erglühn

Und schaukeln heiter hin um Stein und Zahl.

Aufflattern Krähen um ein ekles Mahl

Und deine Stirne tost durchs sanfte Grün.

Im Dornenstrauch verendet weich ein Wild.

Nachgleitet dir ein heller Kindertag,

Der graue Wind, der flatterhaft und vag

Verfallne Düfte durch die Dämmerung spült.

 

3

Ein altes Wiegenlied macht dich sehr bang.

Am Wegrand fromm ein Weib ihr Kindlein stillt.

Traumwandelnd hörst du wie ihr Bronnen quillt.

Aus Apfelzweigen fällt ein Weiheklang.

Und Brot und Wein sind süß von harten Mühn.

Nach Früchten tastet silbern deine Hand.

Die tote Rahel geht durchs Ackerland.

Mit friedlicher Geberde winkt das Grün.

Gesegnet auch blüht armer Mägde Schoß,

Die träumend dort am alten Brunnen stehn.

Einsame froh auf stillen Pfaden gehn

Mit Gottes Kreaturen sündelos.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 26-27.

9 Ago 2018

Racismo e as raízes do preconceito

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os últimos tempos, há já cinco anos, tenho convivido de perto com os meus jovens colegas de Cabo Verde, no Muay Thai, com a Dina Pedro, na Dinamite Team. Têm me ensinado muito, sobre companheirismo, camaradagem, solidariedade, vidas difíceis, mas sempre mostram orgulho, quando obtêm a cidadania portuguesa e podem exibir o Cartão de Cidadão. Vou dizer já que esta é uma pequena reflexão autobiográfica, não a expressão de qualquer estudo científico ou filosófico sobre as questões ditas “fracturantes” da actualidade, portuguesa ou internacional. Calhou em conversa com amigos queridos, e de posições diferentes, mesmo até antagónicas, a “posição” de Portugal no mundo, a relação inter-racial, até inter-geracional.
Os “outros” são sempre uma abstracção. Podemos classificá-los por raças ou etnias, por sexo, idade, orientação sexual, fé, posição política. Há tantos outros quanto as características à luz das quais os temos em vista. Na antiguidade, já tardia, Hiérocles achava que cada ser humano era portador de círculos, uns mais nucleares, outros, mais periféricos. No núcleo temos o círculo dos outros, que são os nossos, sem os quais não temos identidade alguma: mãe, pai, irmãos, tios, primos, avós, filhos, netos, amigos chegados, etc., etc.. Nos outros temos as pessoas do prédio, os vizinhos, os concidadãos, os compatriotas, os habitantes de países fronteiriços e amigos e os habitantes de países longínquos. Não quero discutir a relação entre estes círculos entre si. A tese de Hiérocles é próxima da cristã. O outro tem de ser amado como nós próprios nos amamos. O amor ao outro não é como o amor próprio. Resulta da descoberta fundamental de que a relação de cada um de nós consigo não é só de apego animal, mas de uma “agapê” de uma relação com o que nos é próprio, com o que somos daqui até à eternidade. O amor não é uma relação de mim para mim, em que me apego a um eu que se vai na espuma dos dias. É antes um projecto em que no limite os outros são fixos aí para sempre connosco na eternidade. O círculo mais periférico reconhece fraternalmente o outro como outro, como amigo, como irmão.
Ora há uma diferença estabelecida entre nós e os outros e que é acentuada. Não esbatemos a diferença. Acentuamos a diferença. Os gregos chamavam a todos os outros que não falavam ático “bárbaros”, acentuando assim linguisticamente a diferença entre a norma e os dialectos ou, por maioria de razão, as outras línguas. Curiosamente, descrevem com curiosidade e espanto a diferença de cor, o tamanho das pessoas, a beleza de homens e mulheres. Não são preconceituosos nesse sentido. A diferença provoca o espanto, a admiração. Não é pejorativa. Se lermos, contudo, a Guerra do Peloponeso de Tucídides, verificamos a crueldade com que atenienses e espartanos se tratam uns aos outros, muitas vezes mergulhados numa orgia de sangue que não poupa velhos, mulheres ou crianças.
Mas nós acentuamos as diferenças. Descobrimos o indivíduo, substituindo o eu pelo “eu” ou pelo “si próprio”. Ego sum, ego existo formula a minha individualidade atomizada em que só eu existo: só há eu. Quer dizer que, à partida, uma das consequências filosóficas da modernidade é a clivagem absoluta provocada pela descoberta do “eu” como forma de acesso ao próprio “eu” e aos outros, num mundo que é só extensão. Se todos os outros “eus” de todas as pessoas se radicalizam, o resultado é uma impermeabilização absoluta entre cada eu e os outros e o mundo de cada um é estritamente individual. Como quebrar esta barreira? Como diluir-me no outro sem o qual a vida é o deserto? Como viver num mundo que não é só extensão, matéria e corpo, mas é o mundo constituído pelo Céu e pela Terra, onde há Deuses, mesmo desaparecidos, e os outros são mortais. A descoberta do “Eu” escamoteia o “SOU”. Eu, enquanto eu, sou eterno e nunca posso morrer, porque há sempre versões de mim próprio para todo o sempre. O sou do eu, o ser do sou, modifica-me completamente, porque me faz ver no encaminhamento da morte. O ser do sou faz de mim moribundo: aquele que tem de morrer. Faz-me também descobrir os outros como aqueles que têm de morrer e estão nesse encaminhamento a fazer corpo comigo.
Quando me descubro moribundo, descubro-me exposto e vulnerável. Mas descubro também o outro como moribundo, exposto, vulnerável: susceptível de amor.
A filosofia é uma forma de destruição sistemática de preconceitos. O Cepticismo é o modo como podemos pôr à prova as nossas opiniões, o palco de guerra de Platão. O cepticismo tem primeiramente de se virar contra nós próprios: no amor e na morte, descobrimo-nos vulneráveis e expostos, de tal forma que a periferia mais afastada pode tornar-se nuclear. Podemos inverter assim a tendência natural para o individualismo, o narcisismo, a cegueira, a opacidade com vemos os outros aí na vida?
O convívio com os outros ensina-me, sobretudo, como estar vivo é “destruir” preconceitos, desarreigar opiniões há muito tempo a fazer crosta numa vida sem olhar o outro como outro. A descoberta dos nossos preconceitos destrói-os no confronto com o concreto. O concreto anula a abstracção dos outros. Eles ganham corpo e um nome próprio, ressuscitamo-los como o que eles são, aí, como alguém da nossa família ou chegado a nós, apertado por elos de ligação. Quem se descobre racista, classista, homofóbico, excluindo doentes e velhos, afirmando-se a si na abstracção de uma juventude e de uma força, no vigor das suas convicções, desfaz-se ante o horror das vidas difíceis votadas ao ostracismo, à exclusão.
Acredito no projecto vital atribuído por Diógenes de Laércio a Sócrates, o ateniense: ser um “cidadão do mundo” (Kosmopolitês). Afinal, somos todos estrangeiros fora das fronteiras do nosso país. Mas não vivemos sem outros, reais ou imaginários, nem vivemos sem a diferença.

7 Ago 2018

Três vistas sobre uma rua

[dropcap style≠‘circle’]U[/dropcap]ma rua absorve o espaço todo de uma cidade. Implode-o em si. A rua vai dar a outras ruas e outras ruas vão dar a ela. Pode fazer-se a pé o caminho que leva a ela ou a partir dela se vai a outras ruas, mesmo contra o sentido da marcha dos automóveis. A rua, onde vivemos, é um cenário que acaba nos seus extremos, nas ruas à esquerda e à direita de que só adivinhamos a existência, mas não temos em percepção. Há prédios de gente que o habita. Há jovens casais e velhos. Há o sapateiro, a mercearia, casas de pasto. Há paragens de autocarro, casas de habitação e agências de viagem, agências bancárias, casas de moda. Carros passam e pessoas caminham pelos passeios: avós e netos, pais e filhos, irmãos e irmãs. Uma rua é um ecossistema complexo. Demora tempo a habitar uma rua. Pode ser a “personalidade” orgânica, onde uma criança brinca com outras crianças desde sempre: joga à bola, corridas de carros nas bermas do passeio. Pode ser a rua, calcorreada a passo lento de quem é decrépito e tem a vida toda vivida e espera pacientemente pelo último suspiro. Todas as ruas são este ecossistema para quem vive nelas. Mas há também as ruas, onde ficam os sítios em que trabalhamos ou o liceu ou o ginásio. Há as ruas onde vivem os nossos amigos que são também por direito próprio as ruas dos outros. Cada rua, excepto a nossa, é a rua dos outros. Podemos até vir a viver nas ruas dos outros, próximos dos outros e das suas ruas. A rua onde vivemos vai ficando esbatida. O seu sentido permanece. O seu significado fica sempre algures a fazer-se sentir. O que se esfuma são os rostos de quem por lá passou. Nem nos apercebemos de que são agora adultos, quando há quarenta anos eram crianças. O parque automóvel mudou. As fachadas dos prédios foram pintadas com cores diferentes. Os velhos morreram. O sapateiro fechou. Não há mercearias, nem agências de viagem, nem agências bancárias. Há prédios novos no lugar de prédios velhos. É uma outra rua.

Mas há tantas ruas, também, quantas as pessoas que as habitam. Num prédio de quatro andares, por exemplo, e quatro apartamentos habitados, há uma multidão de gente. A rua das pessoas do segundo andar esquerdo é diferente da rua das pessoas do segundo andar direito. O que se passa nas suas casas é inacessível, mesmo quando ouvimos falar do que acontece a cada família: um filho que adoece e um pai que morre. Mas, mesmo no habitual habitável, quando tudo é normal, as ruas são influenciadas pelas casas, porque as pessoas habitam uma rua, vivem numa rua, existem nela! Não estão lá postas nem para lá são atiradas, para serem referenciadas por coordenadas. É outra a maneira de ser numa rua. A rua toda entra por olhos adentro. Há os sons omnipresentes dos elétricos que passam, sem nós os vermos. Há o ruído dos carros a passarem na Ponte Sobre o Tejo. Há cães que ladram à noite. Há o som que se silencia ao entardecer, quando as pessoas chegam a casa e preparam o jantar. Há os sons das crianças que gritam de chegar a casa e estarem no serão à espera do sono dos anjos.

E a mesma rua pode ser completamente diferente. Uma rua que é a nossa referência na cidade tem épocas. É uma rua onde podem viver pessoas que nunca se conheceram e um dia percebem que a viveram em dias diferentes da semana. A rua pode ser habitada ao fim de semana sem poder conhecer ninguém que lá viva aos dias de semana. A rua é a da infância, da juventude estridente, dos primeiros anos do envelhecimento dos avós. A rua é diferente, quando nos chega uma notícia boa e quando nos chega uma notícia má. A rua é diferente na solidão do solitário e quando é partilhada na geografia e na biografia de duas pessoas que se encontram. A rua é diferente, quando é habitada e quando é só preenchida pela vida azul da melancolia solitária. A rua congelada no tempo, em que nada acontece, é diferente da rua que se funde e derrete, num dia solarengo de Verão, quando se espera a chegada de alguém, apenas por servir de chegada a alguém por quem faz sentido esperar.

27 Jul 2018