Melancholia revisitada

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]correm-me imagens de cenas da vida familiar. Era miúdo. Viajávamos de carro. O Atlântico olhava-nos de sul. Era verão. Lembro-me perfeitamente de ver, deitado no banco de trás, as cópulas das árvores a passarem rapidamente no ecrã da janela lateral do carro. Tinham a abóbada de um azul crepuscular em fundo. Ao anoitecer, no outro dia, o sono trouxe-me ao convívio o avô e o pai. As avós não têm vindo. Não tenho justificação. Vem-me depois à lembrança estar estendido numa cama de rede, a olhar o céu azul de Agosto. Ramos de árvores e a sua parte superior destacam-se, salientando-se do azul do plano de fundo azul. Assaltava-me o espírito que não havia nenhum conteúdo “real” que me revelasse a diferença entre essa apresentação, por altura da minha adolescência e uma qualquer outra apresentação do passado, que alguém pudesse ter tido em séculos anteriores. A única diferença é haver passado tempo, uma diferença reconhecida por uma consciência. Aquela percepção era a primeira antes de começar o quotidiano das férias grandes, quando havia mundo.

Agora, não há quotidiano de férias. Não sinto já “aquele” primeiro mergulho atlântico, como outrora. Nem estou em lado nenhum sem trabalhar, nem espero fazer qualquer experiência de encantamento, de fascinação, ou do maravilhamento de estar vivo, uma experiência que apenas existe invariavelmente sob dependência de grandes expectativas, grandes esperanças, que inauguram antecipações a projectar o haver por acontecer, a alegria efusiva, um exaltação eufórica, sem perdas ou então minimizáveis.

É neste contexto que me surge, irradiando, centrífuga, excêntrica uma disposição melancólica. Vibra. É uma onda. Como atmosfera, envolve tudo. Não está circunscrita à percepção da cena onírica nem à percepção da lembrança do passado, com as suas geografias delimitadas. E só agora me acomete, exportando-se para mim agora, volvidos tantos dias já. Está aqui. Mergulha-me no seu clima, arrasta-me na corrente do seu próprio elemento. Dá-me a compreender como o tempo passou. Atira-me para a verdadeira dimensão em que existo no meu presente e não apenas na actualidade. Como o tempo passou! É a desolação que põe de pé vidas passadas e futuros a haver? Voltarei a existir em voo rápido? E depois é sempre a cair rapidamente, num voo em precipício. Por quem esperas? Por quem dos teus si-mesmos esperavas? Quem te salvará de ti da loucura de teres de conviver com a vida? A vida é a protagonista da tua vida? Essa figura complexa que tudo tinge, o tempo e o espaço da ciência que seriam sem a vida que faz deles tempo vital e espaço vital e me leva nas horas, horizonte a correr para o mar, em fluxo, a fugir. Tudo está dentro desse oceano, dessa correnteza? Que verdade encerra em si o piscar de olhos da melancolia? Deixa-me fora de mim ou vê-me num ápice e perpassa-me?

Talvez que se quisesse a morte, a morte era a última amiga a quem dirás sim, sem querer, mas desistindo. Sem quereres ir com ela, mas tu és eu, oh! morte. Eras tu por quem eu tinha esperado toda a vida e davas a entender que a vida era possível, todas as expectativas com preenchimento ou então com o mínimo de dor possível que não era possível. Todas as minhas esperas não eram em vão, tudo por que tinha lutado era obtido e conseguido, a minha vida não se perdia na permanência do que era suficiente, mas quando vinha um sonho era logo desfeito como se não fosse para mim.

O desconsolo vem da solidão em que sou eu a sós com o resto de mim, a seguir não há nada a não ser o vazio. Tudo sem mim cá, sem memória e, por isso, sem futuro. E continua-se-nos mais um dia.

Acordamos e mais um dia na convalescença, mas sem esperança de sair um dia, de rejuvenescer. Vou para onde decrépito, demente, em sofrimento, desolado: o desconsolo de não conseguir engolir nem líquido nem sólido, de os meus dentes não servirem para nada e não ouço e não vejo. De quando em vez, a mão é tocada, mas dói-me tudo quando me lavam e vestem. Não era como a minha avó me vestia ainda a dormir, para ir para a escola, como se de repente estivesse pronto, vindo de um sonho.

Os outros continuam cá mas eu não tenho inveja deles.

Eu vou e fico. Sei que fico durante algum tempo, depois o tempo passa, um ano ou dois. E o tempo passará até quando já nada nem ninguém remeterá para mim. Terei acabado. Só a morte trará consolação? A noite obscura da ausência.

 

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