Andreia Sofia Silva EventosLançado em Lisboa livro com poemas traduzidos de Han Shan Acaba de ser editado, com a chancela da Grão-Falar, mais um livro de poesia chinesa traduzida. Trata-se de “Han Shan – Poemas”, com tradução, selecção, notas e prefácio de António Graça Abreu. O lançamento decorreu na última quinta-feira no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). O poeta Han Shan terá vivido no século VIII, mas, segundo o prefácio da obra, é um nome misterioso, provavelmente um pseudónimo, pois “ninguém sabe ao certo quem foi o poeta, quando viveu, ninguém sabe onde o encontrar”. “O seu nome, que significa ‘Montanha Fria’, corresponde por certo a um pseudónimo, e, por detrás destes dois caracteres, esconde-se um letrado estranho, evanescente, quase ignorado pelas muitas e desvairadas gentes que têm vivido debaixo do céu”, lê-se. Tendo em conta que, na China, “pelo menos desde o século II a.c. se acostumou a biografar os seus filósofos, poetas, letrados e mandarins, Han Shan acabou também por ser objecto de uma curiosa nota biográfica”, lê-se ainda no prefácio. “Pobre diabo com juízo” Han Shan foi, assim, uma figura que despertou alguma estranheza. Graça Abreu, ao traduzir palavras de Liu Qiuyin, Governador de Taizhou, um mandarim dos séculos VIII ou IX, revela um “testemunho com múltiplos detalhes sobre a figura excêntrica de Han Shan, um pobre diabo com juízo que habitava as montanhas Tiantai”, que, com referências actuais, “não é longe da actual cidade de Linhai, no nordeste da província de Zhejiang”. O poeta “deve ter tido uma vida longa”, vivido “em datas incertas entre os anos de 650 e 850”. “Se a vida de Han Shan se prolongou até 780, o poeta poderá ter conhecido e convivido com alguns dos maiores poetas da China de sempre, homens como Wang Wei, Li Bai e Du Fu”, descreve-se ainda. Ainda no prefácio, é referido que Han Shan era, até há bem pouco tempo, “completamente desconhecido em Portugal, o que de resto acontecia com quase todos os poetas chineses”, apesar de “Macau e de uma continuada presença portuguesa de quatrocentos e cinquenta anos em terras da China”. O livro, com cerca de 160 páginas, inclui dezenas de poemas de Han Shan, que escreveu versos como “Habito a montanha, / Ninguém me conhece. / Entre nuvens brancas, / O silêncio, sempre o silêncio”.
Hoje Macau Via do MeioApresentando Yu Xuanji, poeta chinesa da dinastia Tang Por Ricardo Primo Portugal Traduzimos a obra completa da poeta chinesa, da Dinastia Tang, Yu Xuanji, nascida em 844 e falecida, provavelmente, em 869. São 50 poemas, mais 5 fragmentos que restaram de uma obra que terá sido mais extensa. A produção poética da Dinastia Tang (618-915), considerada o ápice da poesia clássica chinesa, surpreende pela quantidade e qualidade, com formas fixas altamente codificadas. A popular antologia Poemas completos da Dinastia Tang, compilada posteriormente, no século XVII (Dinastia Qing), por ordem imperial, contém aproximadamente 50 mil poemas, escritos por 2200 autores. Terá havido mais escritores importantes e muitos textos se perderam. Há 190 mulheres entre esses autores, dentre as quais Yu Xuanji é um dos nomes de proeminência. Seus poemas foram publicados em vida em uma coleção chamada Fragmentos de uma Terra de Sonhos ao Norte, que se perdeu. Os 50 poemas que sobreviveram para nossa época foram recompilados na Dinastia Song (960-1279). Há uma extensa linhagem de poetas mulheres na China, a qual percorre as diferentes fases de uma literatura milenar quase sempre como corrente paralela ou específica em relação ao tronco principal. Na Dinastia Tang, período histórico de intensa vida urbana culta, a situação da mulher era bastante mais favorável que em outros momentos da história da China. A elas era atribuída uma posição social mais livre e igualitária em relação aos homens. Ainda que excluídas do sistema dos exames imperiais que selecionavam a elite dominante e impedidas de exercerem funções relevantes, muitas filhas de famílias abastadas podiam adquirir educação e conhecimento literário. As cortesãs e as monjas taoístas, como Yu Xuanji, formavam grupos sociais intercambiáveis (cortesãs tornavam-se monjas e vice-versa), com uma inserção particular nessa sociedade. As mais talentosas eram versadas nas artes clássicas (música, poesia, caligrafia, pintura) e eram tratadas como iguais em discussões e concursos de poesia. A vida, a obra e a lenda Yu Xuanji é uma das poetas mulheres chinesas mais afamadas, inclusive por sua biografia, não obstante pouco se conheça de fidedigno de sua história pessoal, além da obra considerada emblemática de uma consciência feminista precursora em relação à modernidade. De grande beleza, culta e dotada de uma inteligência viva, casou-se como concubina aos 16 anos, com Li Yi – jovem funcionário provincial e, como ocorria aos membros da elite confuciana selecionada pelos exames públicos, também poeta, a quem dedica diversos poemas pelo nome Li Zi’An, com quem teve uma relação intensa, alternando momentos de relativa separação e união. Separou-se definitivamente ou foi abandonada pelo marido, por exigência da “primeira esposa” três anos mais tarde, convertendo-se em monja taoísta e cortesã. A propósito, Yu Xuanji é seu nome de monja, tomado no mosteiro; “Xuanji” significa “mistério profundo”. Seu nome original era Youwei; “Yu” (Peixe) é o sobrenome, que, em chinês, precede o nome atribuído. Desde criança, era conhecida como talento poético precoce em Chang’An (hoje Xi’An), então a capital imperial. Aos 12 anos, foi tomada como discípula por Wen Tingyun (a quem chamava Feiqing), um dos mais importantes poetas da Dinastia Tang, de quem, em algum momento, poderá ter sido também amante. A ele dirigiu e dedicou vários de seus poemas. Morreu cedo, entre os 26 e os 28 anos de idade, executada por assassinato, em um caso polêmico e duvidoso. Ficou não apenas uma obra notável, mas também a lenda de uma mulher rebelde, irridenta, de vida livre para os padrões de sua sociedade e crítica da condição feminina. Por sua história de vida, Yu Xuanji acabou sendo assimilada à literatura, também, como personagem em obras de outros autores chineses e estrangeiros, em romances, contos, teatro e cinema; porém, nem sempre com apreciação valorativa. De fato, a lenda acompanhou os séculos seguintes, através de períodos, muitas vezes, mais conservadores da sociedade chinesa. Dos episódios que se contam de sua vida, há fabricações moralistas e difamatórias, retratando-a, amiúde, como personagem libertina, mesmo em produções mais recentes por exemplo, nos anos 80, foi lançado em Hong Kong um filme sobre sua vida; não o vimos, mas os comentários são de que se trata de um filme erótico ruim. Também há quem a apresente como uma “típica poetisa” da China, que, como todas, falariam sobretudo do amor e da solidão, temas então considerados “femininos por excelência”. Essa visão quanto ao que possa ser uma característica voz feminina na literatura não procede quanto a Yu Xuanji, nem às tantas outras poetas mulheres chinesas ou brasileiras. A leitura de sua obra completa apresenta uma poeta elegante, mas capaz de ousadias e provocações; corajosa e desafiadora das convenções sociais, na afirmação franca da sensualidade e do desejo; que demonstrava consciência da tradição e do público a que dirigia sua poesia; bastante crítica da condição feminina. É certamente uma voz feminina, e fala também, sim, da solidão, do amor e do desejo de um ponto de vista de mulher (como se os homens não falassem também disso). Mas gostaríamos de ressaltar em sua obra, mais simplesmente ou antes de qualquer consideração de gênero, a poeta refinada, que dominava os recursos e modelos requeridos à poesia clássica chinesa, nada devendo a outros poetas de seu tempo em técnica, domínio formal e diálogo com a tradição literária. Yu Xuanji, monja-poeta taoísta Quanto à inserção na tradição, um aspecto importante que ressalta em muitos de seus poemas é a referência à filosofia taoísta. A monja Yu Xuanji tinha, como modelo, os filósofos e poetas dessa confissão religiosa, como Li Bai (Li Tai-Po). Não é nosso objetivo aqui tentar apresentar a filosofia e o modo de vida dos mestres taoístas, nem descrever a enorme influência que exerce no imaginário dos chineses esta que é uma das correntes fundamentais de pensamento daquela civilização e que, na época em que vivia a poeta, era a religião oficial do Estado. Em linhas gerais, assinalemos, apenas para situar uma importante referência da obra da poeta correndo o risco de uma boa dose de simplismo que os mestres taoístas atribuíam ao vinho a inspiração para o exercício da poesia e dedicavam-se a uma vida não necessariamente de reclusão, mas, sobretudo, de meditação, contemplação da natureza e dissolução na experiência do “Tao”, na vivência de uma espiritualidade intensa, panteísta, que se colocava em busca da imortalidade. Relativa a esse objetivo de transcendência, há a busca do “elixir da imortalidade”, em certas histórias associado com o vinho. Na poesia de Yu Xuanji, há, entre outros temas taoístas, a exaltação do vinho e da festa; a ideia recorrente de que “tudo na vida acontece como sucessão de pares opostos” alegria e tristeza, prazer e dor…; a referência à imortalidade. Uma comparação – pouco acurada, mas não desprovida de pertinência – da opção de vida daqueles mestres com a tradição ocidental estaria, por exemplo, na proposta da “dissolução de todos os sentidos para fazer-se vidente”, de Rimbaud, ou na entrega a experiências com drogas, jazz, viagens e uma relação inconvencional com a sociedade “instituída”, da geração beatnik. O monge taoísta fazia uma espécie de “drop-out” à chinesa (a comparação é aproximativa, adequada só até certo ponto: o monge é um “marginal- instituído”; seu lugar social é reconhecido). Há boas traduções do Dao De Jing, de Lao Zi, em português, além de muitos livros sobre a filosofia taoísta em línguas ocidentais. Sobre a relação entre taoísmo, confucionismo, budismo e poesia, vale a leitura do mestre franco-chinês François Cheng.
Hoje Macau Via do MeioAo som de Rumeng Ling 如梦令: Tradução comentada do poema “Como num sonho”, de Li Qingzhao Li Qingzhao 李清照 (1084-1155) é um nome que atrai geral aclamação. Mesmo dentro de um ambiente literário pouco favorável para a prática literária feminina1, ela conseguiu afirmar-se sempre como letrista, além de poeta. Nos nossos dias, Li recebe a reputação de “poeta primeira”; “a maior poeta da China”, “a mais talentosa de todos os tempos”, ou uma das “Quatro Maiores Compositoras da poesia da Dinastia Song”2, justificada por uma recepção crítica que reconhece sua obra poética como uma das mais importantes da poesia chinesa clássica. A poesia foi para ela uma tarefa dotada de alto sentido autobiográfico imanente à identidade feminina; e também um exercício de ontologia sobre a própria poesia lírica chinesa, que se encontrava em forte diálogo com a música, durante a Dinastia Song. O processo desta tradução comentada envolveu pesquisar em profundidade o poema “Como num sonho”, baseando-se em algumas coletâneas em língua chinesa dedicadas exclusivamente a poesia de Li Qingzhao. Ademais, foram consultadas algumas traduções em língua inglesa, que me servem de contraponto para expandir a leitura do poema e melhor sustentar as escolhas de tradução adoptadas. Assim, decidi apresentar o poema original, acompanhado da sua romanização em sistema pinyin e tradução caractere por caractere, com texto no horizontal, lido da esquerda para direita. No original também não é usado os sinais de pontuação. Após a apresentação do poema original, segue a tradução em língua portuguesa e os comentários de tradução, que visam comentar as particularidades estruturais do poema; apresentar a combinação rítmica utilizada; realçar seus aspectos semânticos e sonoros; comentar alguns traços distintivos do poema; fazer uma leitura comparada com outras traduções, revelando, verso por verso, seu conteúdo mais profundo. O poema original: 如梦令 《昨夜雨疏风骤》 昨 夜 雨 疏 风 骤 zuó yè yǔ shū fēng zhòu ontem noite chuva esparsa vento brusco 浓 睡 不 消 残 酒 nóng shuì bù xiāo cán jiǔ denso dormir não eliminar fragmento álcool 试 问 卷 帘 人 shì wèn juǎn lián rén tentar perguntar enrolar cortina pessoa 却 道 海 棠 依 旧 què dào hǎi táng yī jiù mas dizer haitang como antes 知 否 知 否 zhī fǒu zhī fǒu saber não saber não 应 是 绿 肥 红 瘦 yīng shì lǜ féi hóng shòu dever estar verde gordo vermelho magro Na tradução: Ao som de Rumeng ling Como num sonho: chuva e vento na noite passada Ontem à noite: vento bravo e chuva fina leve ebriez após sono profundo se preserva Pergunto à donzela que ergue a cortina disse: a mesma é macieira-brava Sabes? Não, não sabes estão gordas as folhas e magras as flores O poema acima, assim como a maioria escrito por Li Qingzhao, é um poema lírico chinês (词 cí). Esta forma poética caracteriza-se por ter dois títulos: o da melodia (词牌 cí pái), e título do poema (词题 cí tí). O uso de dois títulos na poesia lírica chinesa revela-se uma das principais características deste género, difundido na dinastia Song (960-1279). No original esta particularidade serve para diferenciar o padrão melódico para qual o poema foi escrito do poema em si, dado que podemos encontrar poemas diferentes com o mesmo título melódico. Essa discrepância entre o título da melodia e o título do poema é observada com muita atenção na tradução. Em exemplo, nas traduções em língua inglesa, é, muitas vezes, destacado com “ao som de”, como na de Ronald Egan: “To the tune ‘As If in a Dream”. A tradução em língua inglesa de Xu Yuanchong também se utiliza da palavra “som”: “Tune – ‘Like a dream’”. Em português, o título da melodia aparece em caracteres romanizados, destacado com “ao som de”, como simplesmente “Ao som de Rumeng ling”. O caractere 令lìng sugere a particularidade estrutural desta obra, que se define por ser uma canção curta (小令 xiǎo lìng). Segundo Ronald Egan (2013:327), este poema foi inspirado no último quarteto do poema “懒起” (lanqi)3 (“Lânguido para se levantar”, tradução minha), do poeta do período final da Dinastia Tang, Han Wo (韩偓, 842-923). O mesmo autor aponta adaptar “adapt” ou reescrever “rewrite” versos de poetas anteriores, de acordo com a sua identidade feminina, como uma das práticas preferidas de Li Qingzhao. Contudo, esta forma de escrever poesia não foi apenas usada por Li Qingzhao. Ainda Egan nos informa que poetas como Zhou Bangyan (1056-1121) e Su Shi (1037-1101) também eram conhecidos por adaptar versos de seus antecessores de acordo com seus estilos e identidades. Por outro lado, o poema original abriga-se ao esquema de rimas toantes, identificados no exterior de cada verso, com exceção ao terceiro verso (tendo em vista a apresentação do poema aqui disposta). É visível a repetição do vocábulo “u” no final dos versos: /zhou/, /jiu/, (…) /jiu/, /fou/, /shou/. A tradução portuguesa introduz o esquema de rima ABABCC: /fina/, /preserva/, /cortina/, /brava/, /sabes/, /flores/. Agora, partimos para a leitura dos versos do poema: 昨夜雨疏风骤 Ontem à noite: vento bravo e chuva fina O verso de abertura do poema enuncia os fenómenos naturais que ocorreram na noite de ontem. Nele, há ausência de elementos verbais. A tradução inglesa de Xu Yuanchong adiciona os verbos “soprar” e “ser/estar”: “Last night the wind blew hard and rain was fine”, como forma de explicitar a experiência da chuva e vento. Em português, faz o acréscimo do sinal gráfico (:), de forma a enunciar e descrever os eventos naturais ocorridos na noite anterior. O termo 雨疏 yǔ shū caracteriza uma chuva esparsa, que caiu de forma intermitente, como é entendido na tradução inglesa de Jiaosheng Wang: “Last night there was intermittent rain, a gusty wind”. Ainda, os elementos lexicais em 雨疏风骤 yǔ shū fēng zhòu (literalmente: chuva esparsa vento brusco) criam o efeito de paralelismo que podem ser lidos em horizontal: chuva-vento, esparsa-brusco. Na tradução, foi preservado este efeito semântico, ao incluir a palavra “bravo” em vez de “brusco”, e “fina” em vez de “esparsa”, de forma a criar não só o efeito de rima, mas também um verso mais conciso possível. 浓睡不消残酒 leve ebriez após sono profundo se preserva Li Qingzhao começa o poema caracterizando as forças da natureza para, neste verso, revelar o seu estado de embriaguez, mesmo depois de uma noite de sono profundo. O verso pode ser lido como “embora dormida uma noite de sono, ainda não matei a embriaguez” da noite anterior. A definição da palavra 残 cán, pode ser entendida como equivalente aos adjetivos portugueses “incompleto”, “fragmentado”, ou mesmo “deficiente”, é usada no original para descrever uma embriaguez fraca, ou ainda leve, como é entendida na presente tradução portuguesa. O elemento lexical chinês 酒 jiǔ é, muitas vezes, traduzido por “vinho” nas traduções em língua inglesa, como na de Xu Yuanchong: “Sound sleep did not dispel the after taste of wine”. A tradução de Ronald Egan para o inglês também se utiliza da palavra vinho: “Deep sleep did not dispel the lingering wine”. Como explica o professor, poeta e tradutor Yao Jingming: “para os chineses, jiu indica um álcool feito de trigo, arroz ou sorgo. Para os portugueses, vinho significa álcool feito de uvas. Mesmo que as palavras sejam correspondentes, carregam significados diferentes”. Na tradução para o português, no lugar do termo 残酒 cán jiǔ, lemos “leve ebriez”, procurando reproduzir o estado em que a poetisa se encontra logo ao acordar, assim como no original. Por outro lado, o verbo 消 xiāo, que significa “eliminar”, “matar”, “dissipar”, está acompanhado da partícula negativa 不 bù “não”, juntos podem ser lidos como “não eliminado”, isto é, o efeito do álcool que preservou mesmo depois do sono profundo. Dessa forma, na tradução portuguesa, utilizou-se o verbo “preservar”, de forma a reproduzir este sentido. Foi acrescentado, ainda, o termo “após”, procurando trazer para a tradução o momento a seguir a noite de sono, implícito no verso original. 试问卷帘人 Pergunto à donzela que ergue a cortina Este verso começa com o termo 试问 shì wèn, que pode ser entendido tanto como “tentar perguntar”, quanto “cabe perguntar”, e termina com 卷帘人 juàn lián rén, que, segundo as notas de Hou Jian e Lü Zhiming, “refere-se à criada que enrola a cortina”. A tradução inglesa de Ronald Egan reproduz o termo 试问 como uma ação que estava em andamento no passado: “I tried asking the maid raising the blinds”. A escolha de Jiaosheng Wang, por outro lado, introduz o verbo “perguntar” simplesmente no presente: “I ask the maid rolling up the blinds”, aparenta com a tradução inglesa de Xu Yuanchong: “I ask the maid rolling up the screen” (1982), que está mais de acordo com a presente proposta em português. É evidente que a “pessoa” (人) que ergue a cortina está interpretada nas traduções inglesas como “criada”, concordando com a explicação de Hou Jian e Lü Zhiming. Em português, utilizamos a palavra “donzela”, de forma a criar um efeito mais poético. 却道海棠依旧 disse: a mesma é macieira-brava Aqui é o momento da fala da “donzela”, a personagem do verso anterior. Segundo Li Qingzhao, a “donzela” disse que “haitang (está) como antes”, o que indica que nada mudou depois da chuva e vento. Esta resposta, por um lado, é muito prosaica, reflete a visão comum da “donzela”; por outro lado, reflete a experiência e preferência distinta em relação às coisas do mundo exterior das duas personagens. O elemento da flora chinesa, 海棠 hǎitáng, é entendido como “flor da macieira-brava” ou “árvore da macieira-brava”, nas traduções inglesas de Xu Yuanchong: “The same crab-apple tree,’ she says, ‘is seen’”; de Jiaosheng Wang: “But she replies: ‘The crab-apple is lovely as before”; e de Ronald Egan: “What said the crab-apple blossoms were as before”, o que parece estar de acordo com a tradução portuguesa aqui apresentada. 知否 知否 Sabes? Não, não sabes… Neste penúltimo verso, há uso de reduplicação: 知否 知否 zhī fǒu zhī fǒu, o caractere 否 fǒu “não”, ao final do verso, é usado nos textos literários para indicar pergunta. Embora formulado como uma interrogação, este verso não pretende questionar, mas sim manifestar uma resposta negativa, uma recusa em relação à fala da “donzela”, construída no verso anterior, parecendo não estar sensível ao cenário real, que a autora irá descrever no último verso. O verso é, muitas vezes, interpretado como a fala da “donzela”, por exemplo, na proposta de Xu, ao usar aspas para realçá-la: “‘But don’t you know, / O don’t you know’” (2016). A interpretação está em consonância com a de Ronald Egan (2019): “‘Don’t you know?/ Don’t you know?’”. Em português, é entendido como a fala de Li Qingzhao, o que traduz uma reação contrária à da “donzela”. 应是绿肥红瘦 estão gordas as folhas e magras as flores O último verso é o mais apreciado pela sua capacidade expressiva de linguagem. Aqui, Li Qingzhao dá vida à “macieira-brava”, ao construir a expressão 绿肥红瘦 lǜ féi hóng shòu (literalmente: verde gordo vermelho magro), o que indica, “a macieira está verdejante e de vermelho murcho, fraco”. As cores verde-vermelho, como explicam os comentaristas, simbolizam o par de substantivos folha-flor. É visível o uso da personificação, na medida em que as características de seres animados gordo-magro são atribuídas às folhas e flores de haitang. Há também o uso de paralelismo: verde-vermelho, gordo-magro. Para alguns estudiosos, esta combinação de efeitos semânticos é uma inovação realizada por Li Qingzhao. Ela constrói o verso de acordo com a sua identidade, ao utilizar o caractere 瘦 (magra, frágil, débil), que pode subentender característica feminina. Na tradução inglesa de Xu o adjetivo magro é entendido como “lânguido”, o que não deixa de personificar a cor vermelha (flor): “‘The red should languish and the green must grow?’”. A escolha de Egan: “The green must be plump and the reds spindly”, buscou reproduzir o efeito da personificação com os adjetivos “forte” (plump) e “fininho” (spindly). Em portuguȇs, optamos por incluir “folha” e “flor” em vez de “verde” e “vermelho” e manter os adjectivos “gordo” e “magro”, como forma de reproduzir os efeitos usados no original. Ao que tudo indica, o poema retrata a transição do cenário primaveril. Começa com chuva e vento, o que nos oferece informações meteorológicas da noite anterior. Em seguida, reflete o estado psicológico da autora após o sono profundo, o diálogo com a “donzela”, e a forma diferente de sentir as mudanças do seu mundo exterior. No final do poema, a “macieira-brava” é personificada como “gorda” e “magra, o que reflete a relação entre Li Qingzhao e os seres inanimados. Neste momento, ela manifesta o seu lamento diante do cenário que marca a passagem da primavera, marcada pela chuva esparsa e vento bravo. Referências bibliográficas: Egan, Ronald (2013). The Burden of Female Talent: Li Qingzhao and Her History in China. Cambridge & London: Harvard University Asia Center. Egan, Ronald (2019). The Works of Li Qingzhao. Boston & Berlim: Walter de Gruyter Inc. Freire, Zerbo (2022). Li Qingzhao: Do amor à mais profunda solidão. Hoje Macau, outubro, 24, Via do Meio. Hou, Jian & Lü, Zhiming (1999). 李清照诗词评注 (Poesia de Li Qingzhao: Notas e comentários). Shanxi: Education Press. Wang, Jiaosheng (1989). The Complete Ci-poems of Li Qingzhao: A New English Translation. Philadelphia: Sino-Platonic Papers. Xu, Yuanchong (1982). 谈李清照词英译 (Comentário sobre a tradução inglesa da Poesia Lírica de Li Qingzhao). In Xu Yuanchong (2016), 文学与翻译: Literature and Translation, 399-497. Peking: Peking University Press. Yao, Jingming (2001). A poesia clássica chinesa: uma leitura de traduções portuguesas. Macau: Coleção Estudos de Macau, Centro de Publicação Universidade de Macau. Como nos conta o critico literário Ronald Egan: “Há pouca ou nenhuma evidência da emergência de comunidades de escritoras durante a dinastia Song, como sabemos que aconteceu no final da era Ming e Qing. No período Song, mulheres que eram alfabetizadas e escolheram escrever o fizeram quase inteiramente por conta própria, sem o conforto e encorajamento de outras mulheres e homens simpatizantes, que deram seu suporte à mulheres alfabetizadas nos séculos posteriores. Tudo o que sabemos sobre Li Qingzhao aponta para esse ser o caso dela. Ela não era membro de um grupo de mulheres literatas.” Contudo vale ressaltar: a educação que Li Qingzhao teve no seio familiar e, mais tarde, o suporte do seu primeiro esposo Zhao Mingcheng, as poetas do seu tempo não tiveram. Em chinês: 宋朝四大女词人 sòng cháo sì dà nǚ cí rén. Poema original: “昨夜三更雨,/今朝一阵寒。/海棠花在否?/侧卧卷帘看。” Na tradução: /ontem à noite, três chuvas plenas/ hoje, uma onda de frio/ a flor da macieira-brava está ou não?/ inclina na cortina para ver/.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioPoetas no Jardim da Família Shen Lu You (1125-1210) segundo alguns relatos teria nascido numa manhã chuvosa a bordo de uma embarcação que navegava descendo o rio Wei, o maior afluente do Rio Amarelo (Huanghe) e em cujo vale se foi desenrolando a aurora da civlização do Celeste Império, de que ele se revelaria um apaixonado defensor. Sendo verdade, poderia ser uma premonição da vida do poeta cujo percurso foi sendo marcado por fortes correntes de origens diversas que sempre o impeliram, e que foram incansavelmente registados nos seus escritos e incontáveis poemas. De maneira exemplar o seu olhar atento às pessoas, às paisagens, costumes e monumentos ficou guardado na Memória da viagem para Shu (Ru Shu Ji) que foi escrevendo quando, sendo nomeado vice-prefeito de Kuizhou (act. Fengjie, Sichuan), saiu de Shanyin (act. Shaoxing, Zhejiang), a sua terra natal, e foi subindo o outro grande rio Yangzi, entre três de Julho e seis de Dezembro de 1170. Lu You era já há muito um respeitado poeta quando o seu descendente Lu Wenjie, no final do século dezanove mandou gravar numa pedra a figura do poeta (rolo vertical, esfregaço a tinta, 109 x 72,7 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Aí ele está encostado numa pedra ao lado de uma caixa de livros, dir-se-ia numa breve pausa, prestes a partir. A pedra ficou significativamente no Museu de Tecto de Palha (Du Fu Caotang) em Chengdu (Sichuan) entre doze ilustres poetas, no lugar onde se celebra a memória do grande poeta dos Tang, Du Fu (712-770). Mas a recordação afectiva do poeta, que nos últimos anos de vida, retirado em Shaoxing, adoptou o nome artístico (hao) Fang Weng, «o velho que faz o que lhe apetece», ficaria para sempre ligada às palavras de um poema que escreveu ainda jovem e contrariado, numa parede de um jardim privado dessa mesma cidade. Lu You casara cedo com a primaTang Wan (1128-1156), também poeta com o nome artístico Huixian «a bondade imortal», com quem não teve filhos e por isso e para fazer a vontade da mãe, mostrando o cumprimento da virtude confuciana, apesar das notórias afinidades electivas, logo se separaria. Os dois seguiriam caminhos diversos, casados e ambos com filhos, mas anos depois em 1155 aproveitando a obrigação legal de se abrirem os jardins privados todos os anos entre o primeiro dia do terceiro mês e o oitavo do quarto, os dois reencontram-se no jardim da família Shen. Emocionado, Lu compôs um poema no guia de rimas (cipai) «O gancho de cabelo da fénix», que termina com as palavras: «Ainda temos a nossa promessa sagrada, Mas até uma carta é difícil de enviar, Não temos nada, nada, nada.» No ano seguinte lendo o poema, e na mesma harmonia ela respondeu com um poema cujo final se lê: «Receio que as pessoas se questionem porque estou triste, Finjo estar feliz, sorrindo em vez de chorar, Toda a minha vida agora é esconder, esconder, esconder.»
Hoje Macau Via do Meio薛濤 Xue Tao – Estranha forma de vida Apesar dos costumes “liberais” da dinastia Tang, não era normal que uma mulher fizesse da poesia a sua vida. Xue Tao (768-831) foi uma poetisa chinesa da dinastia Tang, que floresceu do século VII ao século IX. Conhecida por sua habilidade poética e pela sua vida incomum, Xue Tao nasceu numa família pobre e, como mulher, enfrentou muitos desafios para conseguir realizar a sua paixão pela escrita. Contudo, cedo foi reconhecida pela qualidade das suas belas e sensíveis composições poéticas, que abordam uma variedade de temas, incluindo amor, natureza, melancolia e a condição feminina na sociedade de sua época. Xue Tao escreveu muitos poemas que reflectiam as suas próprias experiências e emoções, além de explorar as complexidades das relações humanas e da vida quotidiana. Ainda no seu tempo, as suas obras foram elogiadas pela sua delicadeza, imagens poéticas vívidas e habilidade técnica. Infelizmente, nem todos os seus escritos sobreviveram até os dias atuais, mas aqueles que permaneceram continuam a ser estudados e apreciados por sua beleza e profundidade. Além disso, Xue Tao é uma figura importante na história da literatura chinesa, na medida em que desempenhou um papel fundamental na conquista de reconhecimento como Mulher e Poeta, pois numa sociedade fortemente patriarcal, onde as mulheres enfrentavam muitas restrições sociais e culturais, Xue Tao conseguiu ganhar reconhecimento e respeito como poetisa. A sua habilidade poética e suas contribuições para a literatura chinesa desafiaram as normas de género da sua época. Na sua obra, Xue Tao deu voz às experiências e emoções das mulheres através de sua poesia. Os seus poemas exploraram temas relacionados com a feminilidade, amor, relacionamentos e as complexidades da vida das mulheres na sociedade Tang. Xue Tao é considerada uma figura significativa não apenas na história da literatura chinesa, mas também na luta pela igualdade de género e na valorização da expressão artística das mulheres. Apesar dos séculos que nos separam de sua época, Xue Tao continua a ser estudada e apreciada como uma das grandes vozes da poesia chinesa. A sua influência é evidente em escritores e poetas posteriores, que foram inspirados pelo seu trabalho e pelo exemplo de sua vida. Educada numa dinastia particular É preciso entender que Xue Tao viveu durante a dinastia Tang na China, em meados do século IX, tendo passado a maior parte de sua vida na capital Tang, Chang’an, que é a atual Xi’an, na província de Shaanxi, China. Chang’an era um centro cultural e político vibrante durante a dinastia Tang, onde muitos poetas, escritores e intelectuais se reuniam e interagiam, criando um ambiente propício para o florescimento da poesia e da literatura. Xue Tao fez parte desse cenário cultural e foi influenciada pelo ambiente artístico e intelectual da capital imperial. A educação formal de Xue Tao não é bem documentada, mas é provável que tenha sido limitada, como era comum para muitas mulheres na China durante a dinastia Tang. Naquela época, as oportunidades educacionais para as mulheres eram geralmente restritas, e poucas tinham acesso à educação formal além do básico, principalmente se fossem de famílias menos abastadas. No entanto, Xue Tao demonstrou habilidades literárias excepcionais e uma compreensão profunda da poesia, sugerindo que pode ter recebido alguma forma de instrução em casa ou através de tutoria informal. Além disso, ela provavelmente se beneficiou do ambiente cultural e intelectual vibrante da capital Tang, onde teve a oportunidade de interagir com outros poetas e intelectuais, participando de círculos literários e actividades artísticas. Apesar das limitações educacionais que as mulheres enfrentavam na época, Xue Tao conseguiu desenvolver sua paixão pela escrita e pela poesia, demonstrando talento e habilidade excepcionais que a tornaram uma das poetisas mais renomadas da dinastia Tang. Xue Tao conseguiu subsistir graças à sua produção poética, o que era um caso muito raro entre as mulheres. Durante a dinastia Tang, os poetas muitas vezes ganhavam reconhecimento e apoio financeiro por meio da composição e recitação de poemas para patronos ricos, oficiais do governo e nobres. Xue Tao, como uma poetisa talentosa e reconhecida, recebia pagamento pelos seus serviços literários, incluindo a composição de poemas para ocasiões especiais, como festas, cerimónias e eventos culturais. Além disso, Xue Tao pode ter encontrado outras formas de ganhar dinheiro, como participar de concursos literários, dar aulas particulares de poesia ou escrever para publicações literárias da época. No entanto, dados os limites impostos às mulheres na sociedade chinesa durante a dinastia Tang, suas opções de carreira podem ter sido mais restritas do que as dos homens, e é possível que sua renda tenha sido principalmente derivada de suas habilidades poéticas. Temas e poemas Xue Tao explorou uma variedade de temas na sua poesia, muitos dos quais eram comuns entre os poetas da dinastia Tang. Alguns dos temas principais abordados nos seus escritos incluem: Natureza: Assim como muitos poetas chineses, Xue Tao frequentemente utilizava a natureza como fonte de inspiração. Ela descrevia paisagens naturais, estações do ano, plantas e animais em seus poemas, usando essas imagens para transmitir emoções e reflexões sobre a vida. Amor e Romance: Xue Tao também explorou o tema do amor na sua poesia. Escreveu sobre os sentimentos de amor, desejo, saudade e desgosto amoroso, muitas vezes utilizando metáforas e imagens poéticas para expressar as nuances dos relacionamentos humanos. Melancolia e Solidão: Alguns dos poemas de Xue Tao refletem uma sensação de melancolia e solidão. Expressou sentimentos de tristeza, nostalgia e anseio, capturando a profundidade das emoções humanas e as complexidades da experiência humana. Feminilidade e Identidade Feminina: Como uma das poucas poetisas da dinastia Tang, Xue Tao abordou temas relacionados à feminilidade e à condição das mulheres em sua sociedade. Explorou questões de identidade feminina, papéis de género e as experiências únicas das mulheres na sociedade Tang. Estes são apenas alguns dos temas que Xue Tao explorou na sua poesia, já que a sua obra é rica em variedade e profundidade, reflectindo a sua sensibilidade artística e sua compreensão da condição humana. O volume exacto da obra de Xue Tao não é conhecido, já que muitos dos seus escritos foram perdidos ao longo do tempo. No entanto, sabemos que ela foi uma poetisa prolífica e que seus poemas eram altamente apreciados no seu tempo. Xue Tao é creditada com a autoria de centenas de poemas, embora apenas uma parte deles tenha sobrevivido até aos dias de hoje. A sua poesia foi preservada em antologias e colectâneas literárias, algumas das quais compiladas durante a própria dinastia Tang e outras em períodos posteriores. Ninguém com quem partilhar o abrir de uma flor. Ninguém com quem lamentar a queda de uma flor. E as saudades… apertam mais quando as flores abrem ou quando as flores caem? * Um sol recente dissolve a bruma sobre o monte. Toda a noite ouvi os sábios, mas nada aprendi. Pinheiros eternos surgem sem esforço, vagos e escuros, da névoa esvaída. * Em Fevereiro, flocos de salgueiro brincam nas roupas das gentes, ao sabor das brisas da primavera. São criaturas sem coração: num momento voam para sul, logo voam para norte. * Dizem que viestes das terras devastadas do sul onde deixaste a memória da tua carne, rubra e profunda. Singrando rios claros, de verde trajado, o teu sumo excede o melhor dos vinhos. Tradução de Carlos Morais José/Gong Yuhong
Ana Cristina Alves Via do MeioExercícios de tradução em torno da poesia amorosa chinesa No mês da Primavera falemos de amor, e quem melhor para o fazer do que os poetas? Não quaisquer poetas, mas sim os da idade de ouro da poesia chinesa, aqueles que viveram na dinastia Tang (唐,618-907), grande em tudo, mas sobretudo no encontro de culturas e na poesia. Pela sua capital, Chang´an (长安) passeava-se todo o tipo de gente, nacionais e estrangeiros, incluindo estudantes. Eram tantos os que acorriam à capital chinesa que o governo Tang criou gabinetes especiais para acolher os residentes internacionais. Esta dinastia foi a única tão aberta e liberal, a viabilizar a chegada ao poder de uma imperadora, Wu Zetian (武则天, 624-705), e conheceu grandes imperadores como Xuanzong (玄宗皇帝, 685 762). É a dinastia de Li Bai (李白,701-762), Wang Wei (王维,701-761), Du Fu (杜甫,712-770), Bai Juyi (白居易,772-846) e tantos outros ilustríssimos poetas que entoaram as alegrias e penas do amor como este merecia ser cantado. Nesta idade de ouro literária, há, como em tantas outras manifestações artísticas, um estilo antigo gutishi ou gufeng (古体诗gǔtǐshī ou 古风gǔfēng) e um estilo moderno jintishi ou gelüshi (近体诗 Jìntǐshī ou 格律诗gélǜshī), sendo o mais moderno característico da dinastia Tang, onde abundam quadras de 5 ou 7 caracteres, denominadas jueju (绝句Juéjù), sendo as quadras de cinco caracteres as wujue (五绝wǔjué) e as de sete caracteres as qijue (七绝qījué), há ainda uma outra forma poética popular constituída por poemas de 8 versos, os lüshi( 律诗lǜshī), também eles de 5 caracteres, os wulü (五律Wǔlǜ)ou de 7 caracteres os qilü (七律Qīlǜ ), seguindo esquemas rimados rigorosos, em que normalmente as sílabas finais rimam. Nas estrofes de oito versos, é habitual as 2ª, 4ª, 6ª e 8ª linha rimarem, ao passo que nas quadras são os 2ºs e 4ºs versos, incluindo por vezes o primeiro verso, sem que tal seja um requisito obrigatório. A rima pode ainda incluir jogos tonais, com alternância entre o 1º e o 2º tons, por um lado, e o 3º e o 4º por outro. Nos lüshi é frequente que os 3ºs e 4ºs versos entrem em relação complementar ou antitética com os 5ºs e os 6ºs. Com a utilização destes recursos estilísticos, no fundo o que se pretende, como nos explicam Wang Guozhang e Wang Anlu (1995, 143): “é tornar os poemas musicais, encantadores, fluentes e fáceis de ler em voz alta” Recorda-nos Zerbo Freire na sua tradução das Quadras Chinesas (2022) que a poesia Tang conheceu vários períodos, um inicial (618-713) sob a influência da Dinastia do Sul (420-589) repleto de sensibilidade e leveza, seguido de um período ascendente (713-766), no qual o desenvolvimento económico e cultural da dinastia se repercute em vários estilos poéticos e temáticas, encontrando no mesmo período, poetas “românticos” como Li Bai e realistas como Du Fu, ou de espírito ecológico como Wang Wei. Há ainda um período médio (766-836) onde desabrocham vários estilos individuais e um período de declínio (836-907), no qual a poesia acompanha a instabilidade dos tempos, provocada pelas guerras e crises políticas, que Bai Juyi, por exemplo, pôde experimentar. Certo é que em todos estes períodos foi cantado o amor, correspondido, perdido, achado, distanciado, desaparecido, renovado, abandonado, fatal. Enfim, qualquer expressão amorosa pôde encontrar eco no sentimento fixado na escrita dos poetas, que tão bem souberam apresentar as tonalidades do coração humano. Comecemos por um poema de Wang Wei, poeta do período ascendente, nascido numa família de mandarins, mas que teve alguns reveses na sua carreira oficial pelo que optou por terminar os seus dias em retiro, enquanto meditava sobre o sofrimento e transitoriedade do mundo, apoiando-se nas escrituras budistas e dedicando-se na sua eremitagem à pintura. Como era um bom pintor, conseguiu conjugar com grande mestria poesia e pintura, angariando fama na tradição chinesa de pintar poeticamente e realizar uma poesia pictórica. (Foreign Language Press, 2008: 109) Em muitos casos, pode-se pensar no amor terreno como uma flor, dura pouca, desponta, é belo e murcha, ou pior, desparece deixando os amantes infelizes, muito embora seja uma maravilha enquanto dure, mas Wang Wei nesta quadra de cinco caracteres recorda o quanto faz sofrer, já que nos traz uma mulher que chorou sob uma árvore até morrer, após ter perdido o marido em combate, tendo das suas lágrimas em contacto com a terra despontado a ervilha do rosário, abrus precatorius, que é vermelha e redonda: 相思 红豆生南国, 春来发几枝? 愿君多采撷 此物最相思 (Freire, 2022: 22) Apresento a minha tradução: Saudoso padecer Nas terras do Sul cresce a ervilha do rosário, Quantos ramos despontaram na primavera? Colhe até mais não poder, Eis o meu saudoso padecer. Ainda que não pertença à dinastia Tang, não resisto a apresentar, como complementar a esta quadra, um dos mais belos poemas de amor chineses. Este pertence a Su Dongpo (苏东坡), heterónimo que significa “A Encosta do Leste”, tendo como nome próprio Su Shi (苏轼, 1037-1101). Foi um poeta da dinastia Song (宋朝, 960 – 1279). Este mandarim teve uma carreira oficial muito problemática, porque, como nos recorda Graça de Abreu em Su Dongpo, Poemas (2023: 20) foi honesto e tolo, esquecendo-se de aplicar a si próprio a máxima confucionista de dizer a verdade, mas não toda. Tal imprudência valeu-lhe o epíteto de “Mandarim nómada”, já que passou grande parte da vida a viajar, impelido pelos ventos que sopravam contrafeição da corte. Eis ao poema de 8 versos e sete caracteres, qilü (七律) em memória da sua terceira mulher, 王朝云(1062年—1096年)deixando o poeta cá na terra sempre triste: 《悼朝云》 苗而不秀岂其天,不使童乌与我玄。 驻景恨无千岁药,赠行惟有小乘禅。 伤心一念偿前债,弹指三生断后缘。 归卧竹根无远近,夜灯勤礼塔中仙。 Em Memória de Zhaoyun Se o broto não for excelente como poderá ser digno do Céu? É para mim um mistério tanta virginal pureza. Ofereço-me a pequena via do meditar, Por não encontrar na paisagem remédio para o meu mal. Pago um karma passado com tristeza, Em futuro de terceira vida interrompida, Regresso ao repouso da próxima e distante raiz do bambu, No templo à noite, presto culto diligente à bela imortal. Bai Juyi, que já viveu nos tempos conturbados da dinastia Tang, foi um mandarim, erudito e eremita, dedicado aos estudos do budismo e do taoismo, que sabia amar a vida. Ele, como refere António Graça de Abreu em Poemas de Bai Juyi foi o poeta mais no coração do povo chinês” (1991: 13). Apresenta uma das mais belas canções de amor da dinastia Tang, triste já que relata os amores fatais do imperador Xuanzong pela concubina, Yang Guifei (楊貴妃, 719-756). Esta intitulada 《长恨歌》foi traduzida para português por Graça de Abreu sob o título de “Canto do Remorso Perpétuo” (1991: 78-84). O amor foi fatal a ambos, porque o imperador negligenciou os assuntos do império em benefício da companhia da concubina. Coincidindo o romance com o início das turbulências na dinastia Tang, mais especificamente, com a revolta do general An Lushan (安禄山), entre 755-763. Esta mergulhou o país numa guerra civil e o imperador viu-se obrigado a abandonar a capital, levando com ele Yang Guifei. Porém, as tropas amotinaram-se, pedindo a morte da amada do soberano, à qual atribuíam todos os males da China. Na sequência da morte da beldade, o imperador abdicou em favor do filho, passando o que restavam dos seus dias entre delírios e esperança de reencontrar a amada no reino dos imortais. Há mil e uma formas de amar, positivas e alegres, negativas e dolorosas, imaginadas, reais, mas todas sinalizam a presença do amor. Os versos destes grandes poetas sucedem-se, muitos deles dedicados ao amor triste, saudoso, abandonado, descurado e ressentido. Leia-se esta quadra de cinco versos que nos traz o amor não correspondido e o ressentimento que provoca, tão bem captado na sensibilidade poética, quando alguém gosta de uma outra pessoa, sem o/a excluídos possam entender a razão de tal opção, que nada tem de racional, já que se trata de sentimentos, genuínos na sua espontaneidade. Acompanhemos o eu poético proporcionado por Li Bai: 怨情 美人卷珠帘 深坐颦蛾眉。 但见泪痕显, 不知心恨谁。 (Freire, 2022: 29) Proponho a seguinte tradução: Ressentimento Beldade pregueada, entre cortinas, Alheada, de sobrancelhas franzidas, Embora note os vestígios de suas lágrimas, Desconheço quem lhe provoca as feridas. Ao queixoso não lhe basta amar, gostaria de ser amado, possivelmente para concretizar uma relação amorosa, desejada, que satisfizesse o seu coração, pelo que ao reconhecer a agitação da dama, lastima-se por não ser ele o alvo das atenções da amada. Daqui não se segue que Li Bai possua um eu poético ressentido, pelo contrário, era um espírito livre, cavaleiro errante, que pouco aqueceu o lugar na corte como redator da Academia de Hanlin, por não suportar os jogos de poder, inclinado a uma profunda comunhão com a natureza, à maneira taoista, o seu nome próprio Bai (白), “branco” mereceu-lhe o epíteto de Taibai (太白), que significa “muito branco” ou iluminado, relacionando-o com a Estrela da Manhã, o nome que os chineses encontraram para Vénus, que ele honrou à sua maneira, casando quatro vezes e vivendo com escassos bens materiais mas repleto de aventuras e riqueza espiritual. A Primavera é a estação do despertar de toda a natureza e, por isso, também dos sentimentos amorosos que um outro poeta Tang Liu Fangping (? – 782刘方平) descreve com subtileza associando-os com suavidade e discrição à brisa e ao luar primaveris: 《月夜》 更深月色半人家, 北斗阐干南斗斜, 今夜偏知春气暖, 虫声新透绿窗纱。 (Freire, 2022: 62) Sugiro a seguinte tradução para esta quadra: Noite de luar Noite alta, o luar, quase sem vivalma, As estrelas da Ursa Maior na sua trajetória bela, Noite inclinada à suave brisa de Primavera, Escutando os insetos cantando de novo junto à janela. O poeta Liu Fangping relata a vontade de amar que surge na primavera, nas noites de luar onde insetos e brisa dedilham as cordas sensíveis do eu poético, que encontra na natureza o seu parceiro amoroso, e não precisa de mais para sentir o calor das sensações a despontar tão juvenis como a quadra natural. Todos os poetas chineses aqui trazidos têm um traço comum, a subtileza sensível no canto amoroso, figurando-o com o auxílio de elementos naturais, seja a lua, as flores, os pássaros, particularmente os patos mandarim, que simbolizam a relação amorosa, ou as aves que entram em comunhão de alma com o eu poético, como os papa-figos, mensageiros de um amor distante, ou ainda outros seres mitológicos, as fénix. As declarações, as saudades, alegrias e amarguras nunca são apresentadas de uma forma direta, mas através dos elementos da natureza que melhor se conjugam com o sentir poético. Hoje, tempo de grande exposição de sentimentos, holofotes e espetáculo, poderá ser um bálsamo e um consolo para o mundo termos à disposição este reservatório poético clássico chinês, onde se pode comungar de pequenos gestos criativos que recordam e acompanham, com imenso gáudio, a paisagem primaveril do coração. Termino a partilha do amor de antigos poetas chineses com o homem de estado, poeta e letrado Tang, Zhang Jiuling (张九岭678-740), que expressa a saudade amorosa através de uma amada distante pela força das circunstâncias, comunicando os seus sentimentos em comunhão com a lua: 《望月怀远》 海上生明月,天涯共此时。 情人怨遥夜,竟夕起相思。 灭烛怜光满,披衣觉露滋。 不堪盈手赠,还寝梦佳期。 Pensando no Amado ao Luar A lua brilhante sobre o mar, Distantes, mas a partilhar o mesmo olhar. Sofrem os amantes com a separação, Toda a noite o mesmo penar no coração. Ao apagar a vela, surge a lua cheia apiedada, Envolta em roupa, sinto-a orvalhada, Sem conseguir ofertar uma mão cheia de lua, Regresso ao quarto, sonhando contigo de alma pura. Bibliografia Freire, Zerbo. 2022. Quadras Chinesas. Macau: Livros do Meio. Foreign Language Press. 2008. Quick Access to Chinese History. Beijing: Foreign Language Press. Graça de Abreu, António (Org. Trad. ). 1991. Poemas de Bai Juyi. Macau: Instituto Cultural de Macau. ______________1993. Poemas de Wang Wei. Macau: Instituto Cultural. ______________.2023. Su Dongpo, Poemas. Lisboa: Grão-Falar. Su Shi (苏轼). 2024.《悼朝云》(Em Memória de Zhaoyun). Baike.Baidu.com Wang Guozhang, Wang Anlu. 1995. 《唐诗60首今语浅译》. Sixty Annoted Tang Poems. Beijing: Sinolingua. Zhang Bingxing (Trad.). 2002. 英译中国古典诗词名篇白首 100 Best Chinese Classical Poems.北京:中华书局. Zhang Jiuling. 2024.《望月怀远》(Pensando no Amado ao Luar) Baike.Baidu.com
Hoje Macau Via do MeioWang Wei e a poesia do silêncio Wang Wei (701-761) é um grandes poetas da dinastia Tang e um dos maiores de toda a poesia chinesa. Nasceu em Qixian, província de Shanxi. Com apenas dezoito anos, obteve a aprovação nos difíceis exames imperiais que garantiam a subida ao mandarinato e ao poder. Cumpriu depois, durante quase toda a vida, o labor de funcionário ao serviço da corte. Mas adorava a natureza e, tal como Han Shan, foi um dos primeiros poetas a enveredar e a assumir o budismo chan. Outono no lago A água é pensativa como um céu cinzento e o chilrear das lavadeiras ocultas pelos bambus volteia suavemente sobre a água sem uma ruga os salgueiros despidos miram-se em silêncio no lago O perfume do Estio suspira e esvai-se. Como retê-lo antes que se extinga? tradução António Ramos Rosa O segredo da arte de pintar Na arte de pintar, o trabalho do pincel e da tinta é o mais perfeito porque, tendo embora a sua origem na natureza, só se conclui mediante a habilidade do criador. Assim, um pequeno quadro de algumas polegadas pode conter mil coisas, abarcar o Este e o Oeste, o Norte e o Sul. Basta um leve pincel para fazer nascer a Primavera e o Verão, o Outono e o Inverno, e todas as paisagens do mundo. Para pintar uma paisagem, é preciso concebê–la antes de empunhar o pincel. tradução António Ramos Rosa Na alta torre No alto da torre, para a despedida Rio e planície no crepúsculo se perdem. Voltam as aves: pôr do sol O homem caminha cada vez mais longe. tradução Gil de Carvalho Adeus a Yuan, o segundo, ao partir em missão para Anxi Na cidade de Wei, a chuva matutina Fez assentar a poeira leve do ar. Tudo está verde na estalagem Verde como as folhas novas do salgueiro. Peço-te que esvazies uma vez mais a taça Tu vais para Oeste, além fronteiras, e não tens lá amigos. tradução Gil de Carvalho No pavilhão do lago Numa pequena barca no meio do lago o meu amigo e eu o coração alvoroçado Alcançámos o pavilhão e sentámo-nos a beber enquanto os lótus floresciam por todo o lado. tradução Jorge Sousa Braga No bosque de bambus Sento-me solitário entre os bambus pego no alaúde e começo a cantar Perdido na espessura do bosque ninguém a não ser a lua sabe onde me encontrar tradução Jorge Sousa Braga Despedida Porque não desmontas do cavalo e bebes um copo? Desiludido retiras-te para as montanhas do sul Não tenho mais perguntas. Podes partir Nuvens brancas se arrastam no céu azul. tradução Jorge Sousa Braga Na montanha Nas águas do Ching afloram pedras brancas Debaixo do céu frio raras folhas rubras Trilha da montanha sem gota de chuva O azul do vazio molha as nossas roupas tradução Haroldo de Campos O refúgio dos cervos montanha vazia não se vê ninguém ouvir só se ouve um alguém de ecos raios do poente filtram na espessura um reflexo ainda luz no musgo verde tradução Haroldo de Campos Miscelânea Cavalheiro que vem da minha terra! Deves saber as notícias de lá No dia em que partiste, notaste, em frente à cortina bordada, Se as flores das ameixeiras desabrocharam? tradução Aristein Woo Despedida Aqui desmonta, bebe deste vinho. Amigo, aonde leva teu caminho? Ouço-te a fala em desconcerto ao mundo. Buscas refúgio nas colinas do sul. Sem mais perguntas; vai, não te detenhas. Derivam nuvens brancas para sempre. tradução Ricardo Portugal/Tan Xiao Canção da bela de Luoyang Habita aqui em frente a bela de Luoyang, um rosto puro de menina de quinze anos. O marido usa arreios de jade no cavalo baio, os criados servem pedacinhos de carpa em pratos de ouro. No seu lar, pavilhões vermelhos, antecâmaras pintadas, pessegueiros rosa, salgueiros verdes debruçando-se sobre os telhados. Ao sair, sob um véu de seda, deixa o pavilhão dos sete perfumes, ao regressar, escondem-na leques preciosos, cortinados com nove flores. O marido rico, jovem como a Primavera, ultrapassa Li Jun em esplendor e fausto. Apaixonado pela menina de Jade Verde, ensina-a a dançar, feliz, oferece aos amigos pequenas árvores de coral. Nasce o dia, extinguem-se as nove velas do candelabro, as chamas esvoaçam como pétalas de flor, não cessaram ainda jogos e canções. Dia e noite, a gente importante da cidade vem de visita, em reverência como às beldades de outrora. Quem pensa na menina de Yue, de pele de jade, pobre, ignorada, lavando roupa nas águas do rio? tradução António Graça de Abreu Poema mesclado De manhã, quebrei um ramo de salgueiro, quando vos vi na muralha da cidade. Dizem ser eu a mais bela do reino de Zhou, pertenço ao clã dos Qin, mas sou casada. Minhas pulseiras de esmeralda voltam-se para vós, na penumbra desaperto a minha camisa de seda. Os cavaleiros chegados do leste falam da morte do meu esposo, na guerra. Peço-vos, sede gentil para comigo, trazei canecas de jade, meu amigo. tradução António Graça de Abreu A Lua sobre o rio do Leste A lua sai de dentro da montanha, eleva-se, devagar, sobre o portão da casa. Mil árvores perfuram a humidade do céu, nuvens negras voam no espaço. De súbito, o luar embranquecendo a floresta, a terra respira no orvalho frio. Águas de Outono cantam nas cascatas, uma névoa azul paira sobre as rochas, sombras partidas abraçam cumes vazios. Como num sonho, tudo é transparente, puro. De pé, à janela, diante do rio, de madrugada, sonolento, sem pensar. tradução António Graça de Abreu Merendando com os monges da montanha Fu Avançado nos anos, conheci princípios puros, claros, hoje, cada vez mais afastado da multidão. Espero a vinda dos monges da montanha solitária, já varri a entrada do meu humilde lar. Depois de picos e nuvens, ei-los por fim chegados à pobre casa de colmo, o meu lar. Sentados em esteiras, comemos pinhões, queimamos incenso, lemos os sutras. Extingue-se o dia, acendemos lanternas, anuncia-se a noite, tocamos o qing. Ao compreender que a quietude é fonte de alegria, a vida concede-nos a liberdade serena. Porquê tanta pressa em regressar? No mundo tudo é vazio e nada. tradução António Graça de Abreu Para o magistrado Zhang Gosto da quietude no entardecer dos anos, o coração livre, ausência de mil coisas, a alegria de voltar à velha floresta. A brisa dos pinheiros desenlaça minhas vestes, raios de luar acariciam o som da cítara. Perguntas: “Qual a verdade suprema?” Vamos ouvir, lá longe, entre os canaviais, a canção do pescador. tradução António Graça de Abreu Oferecendo de beber a Pei Ti Vem beber um copo e descansar, os homens mudam sempre, como as ondas do mar. Nós dois temos envelhecido juntos, apesar dos reveses, continuamos vivos. O primeiro a habitar uma casa de portões escarlates pode sorrir, ao olhar os outros de chapéu na mão. Tu sabes, basta um pouco de chuva para reverdecer a erva dos caminhos. O vento da Primavera é ainda frio mas os botões das flores quase desabrocham. Porquê tanta pergunta, tanta luta, os negócios do mundo, as nuvens flutuantes? Descansa, deixa fluir a vida, e vem jantar comigo. tradução António Graça de Abreu Linhas Os anos passam, eu cansado de escrever poesia, por companhia, apenas a velhice. Numa outra vida, o acaso fez de mim poeta, numa outra existência, o destino fez de mim pintor. Incapaz de lançar fora usos esquecidos, o mundo me conhece poeta e pintor, sabe o meu nome, identifica o meu estilo. O meu coração ainda ninguém conhece. tradução António Graça de Abreu
Paulo Maia e Carmo Via do MeioO vento nas ameixieiras de Wang Shishen Shitao (1642-1707), o pintor peripatético, vagueando pela região de Jiangnan, «a Sul do grande rio Changjiang» figurou um poeta erguendo-se num barco, olhando impressionado para uma enorme massa rochosa e escreveu os versos: Enquanto o vento vai soprando na Ravina Ocidental quem permitiu que o poema se completasse sozinho? Tanta pena da ameixieira, a solitária do frio, que não tem companhia. Daqui apenas se avistam os poucos ramos que sobraram, Flores caídas enchem já o chão e a Primavera ainda não terminou. Um coração amargurado, apertado como uma semente, consegue persistir em tais pensamentos constantes (…) A pintura numa folha de álbum (Reminiscências de Qinhuai, tinta e cor sobre papel, 25,5 x 20,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) é exemplar do seu processo como pintor literato individualista para quem o crescente simbolismo da pintura como que pedia o contraste dinâmico com a palavra poética. Essa figura do indivíduo solitário no meio da paisagem está presente em muitas das suas pinturas e até foi assim que ele fez o seu Auto-retrato supevisionando a plantação de pinheiros. Um outro pintor, seu contemporâneo e da mesma região de Jiangnan, habitante da cidade de Yangzhou, também figurou esse sujeito sensível que da natureza recebe sinais de lentas ou delicadas mutações. Wang Shishen (1686-1759) faria uma rara pintura de um homem caminhando ao frio com um jarro de barro, que se presume cheio de neve para ser derretida e feita água, quem sabe se para o chá, aproximando-se da vedação de uma habitação coberta com um telhado de palha, a que chamou Pedindo água de neve (rolo vertical, tinta sobre papel, 91 x 26,8 cm, no Museu de Arte da Universidade de Princeton). Wang Shishen, o pintor de Anhui que escolheu o nome artístico de Chaolin, «aninhado na floresta», ficaria conhecido pelas suas pinturas de ameixieiras. Um álbum de oito pinturas de Paisagens e flores no Metmuseum (tinta e cor sobre papel, 20,3 x 25,1 cm) será um modelo a mostrar a potenciais compradores a sua habilidade de pintor profissional na rica região comercial ao longo do Grande Canal. Mas noutras pinturas, como Flores de ameixieira, no Museu de Arte de Cleveland (rolo vertical, tinta sobre papel, 144,4 x 75,7 cm) descreve uma situação típica das actividades dos literatos: « Em busca de flores de ameixieira com amigos, Aproveitamos a frescura de um dia claro, Sinto leves os meus sapatos pretos e as meias de algodão, Que belos os bosques diante da porta deste antigo templo, Caminho para a frente e para trás, como se habitasse numa pintura. Noutro poema diz: O distinto badalar de um sino rompe o silêncio nas montanhas, Mil anos depois todos os heróis das Seis dinastias estão esquecidos, Sob uma janela budista apreciamos os dias ociosos, Ramos e flores de ameixieira guardam para si todo o vento Leste.
Paulo Maia e Carmo Via do MeioWang Jianzhang e as «Coisas Dos Tang» Feiyin Tongrong (1593-1661), o segundo abade do mosteiro Huangbo em Fuqing (Fujian), preocupado em preservar a sua interpretação e o modo de transmissão da suave alegria do budismo chan, escreveu num poema: Tenho praticado o chan até ao ponto Em que em mim mesmo o compreendo; E agora entendido com clareza A quem o devo passar? Tudo o que vejo é este luar de Outono, Enchendo todo o céu, Uma roda única, refulgente, Iluminando o riacho aqui à frente. O seu discípulo Yinyuan Longqi, (1592-1673) por razões ainda hoje controversas mas que acabaram na fuga a um território em convulsão e ao encontro com monges que em Kyushu desejavam conhecer a exegese do mosteiro Huangbo, partiria em direcção a Nagasaki onde chegou em 1654, com trinta discípulos e uma bagagem cheia. Para além do budismo animado pelo dao, praticado por Feyin Tongrong, nela vinham objectos que depois encheriam o mosteiro Mampukuji em Uji, na prefeitura de Quioto, criando um simulacro do esplendor da dinastia Ming, ao tempo em que no continente se receava o crepúsculo do seu brilho, fulgor de séculos de cultura ininterrupta. Entre essas peças das artes decorativas e do pincel, que os locais designavam karamono, «coisas da China» uma palavra escrita com os caracteres chineses tangwu, nesse caracter tang aludindo a uma outra cintilante dinastia com que no estrangeiro depois se identificariam os seus descendentes; tangrenjie, «pessoas da rua dos Tang», também vinham naturalmente rolos de pinturas. Algumas delas, obras de autores que não constariam das relações dos catálogos que registavam nomes e obras de pintores locais mas revelavam de maneira admirável essa percepção do homem criador, companheiro da natureza. Foi o caso de obras de um pintor de Quanzhou, em Fujian, que terão sido levadas pelos monges budistas que vinham dessa Província para o Japão. Wang Jianzhang (activo c. 1621-50) refez a sua experiência do Mundo entre a memória e a inquietação, em pinturas que reivindicavam a grandeza das actividades vãs ligadas ao daoísmo, como em Regresso a casa vindo de apanhar cogumelos (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 85,4 x 51,2 cm, na Galeria de Arte de Nova Gales do Sul, em Sydney). Aí escreveu o poema: Árvores na falésia enjaulam nuvens meio húmidas, O portão de madeira junto de um rio foi aberto há pouco, Diante do amanhecer, sozinho, busco um poema, Enquanto recolho cogumelos, o sol põe-se e eu regresso. Na pintura, Cores solitárias nas árvores do Outono (rolo vertical, tinta e cor sobre seda, 117,8 x 51,2 cm, no Museu de Arte de Cleveland) aludiu a um célebre diálogo sobre a felicidade dos peixes e os limites do conhecimento humano: Gelo frio cai sobre as cercas, Cores solitárias espalham os áceres Recitando o capítulo das Águas de Outono1 Não consigo acalmar as emoções no meu velho coração. Zhuangzi,17
Hoje Macau Via do MeioTrês ensaios de prosa chinesa Tradução de André Bueno Inscrição de uma humilde morada As montanhas não obtêm fama por sua altura, mas porque nelas vivem algum imortal. Os rios não adquirem seu renome por sua correntes, mas sim porque algum dragão torna mágicas as suas águas. Esta humilde morada só tem o perfume da minha virtude. O musgo esmeralda cobre seus alpendres, e o verdor da erva invade suas cortinas. Mas aqui, são os grandes letrados que conversam e riem, não vem nenhuma pessoa que não tenha alguma importância. Podemos tocar a sensível cítara, podemos estudar os valiosos sutras. Não há orquestra alguma que estrague o ouvido, nem documentos oficiais que importunem a nós. Confúcio disse: que há de mal nisso? Liu Yuxi (772-842) Elogio da virtude do vinho Há um homem superior que considera a eternidade como uma manhã, dez mil anos como um abrir e fechar de olhos; o sol e a lua como suas janelas, os oito confins do mundo como seu pátio e ruas. Caminha sem seguir rotas nem deixa pegadas; vive sem casa e sem abrigo; o céu o serve de tenda, a terra o serve de esteira; onde quer que vá, seu desejo é seu guia. Quando pára, pega um copo e uma garrafa; quando se vai, leva uma jarra e um vaso. Só se ocupa de vinho, não conhece outra coisa. Um jovem nobre e um letrado de renome ouviram falar de sua maneira de viver e o criticaram. Agitaram suas mangas, balançaram suas túnicas, rangeram os dentes e ficaram de olhos injetados. Falaram longamente dos ritos e das leis, e o bem e o mal povoam seus discursos como um enxame de abelhas. Enquanto isso, o mestre dispôs uma bandeja e sustentava um jarro de vinho com as duas mãos. Levou a bandeja para a boca e derramou todo o vinho pela garganta. Despojou-se, e sentou cruzando as pernas. Sua cabeça descansava na terra, seu corpo jazia no pó. Já não tinha mais pensamentos nem sentimentos, sua felicidade era infinita. Assim permaneceu, ébrio e privado de sensações, até que recobrou por si mesmo os sentidos. Por mais que escutasse, não ouvia o fragor da conversa; por mais que buscasse, não via as montanhas. Não sentia nem frio nem calor atacar seu corpo. Não o incomodava nem a alegria nem o desejo. Contemplava o mundo das alturas, como uma tumultuada confusão de seres, como algas boiando ao sabor da correnteza de um rio. Os dois homens que falavam com ele eram como abelhas, ou parasitas de uma amoreira. Liu Ling (século 3 d.C.) Prefácio da Antologia do Pavilhão das Orquídeas Instalamo-nos junto ao um canto do arroio para lavar nossos copos, e todos nos sentamos em ordem. Nos faltava o deleite de uma orquestra, mas um copo de vinho e uma canção eram suficientes para dar rédea solta aos nossos sentimentos poéticos. O céu era luminoso e o ar puro; uma suave brisa soprava leve. Acima contemplávamos a imensidão do céu, abaixo examinávamos a riqueza da natureza. O espetáculo que se abria ante nossos olhos causava sensações bastantes para levar ao extremo a alegria de ver e ouvir. Era, na verdade, prazeroso. Quando os homens debatem acerca do tempo, alguns expressam o que trazem consigo e falam de sua casa; outros seguindo suas peregrinações, discorrem livremente sobre os acontecimentos externos. Mas, ainda que ambas as atitudes sejam opostas, ainda que alguns se agitem e outros permaneçam tranqüilos, todos se alegram em reencontrar-se e durante alguns instantes ficamos em paz, felizes, e esquecemos que a velhice nos acerca. Uma vez que conseguimos o que buscamos, nos cansamos dele; os sentimentos mudam de acordo com os acontecimentos; então vem a decepção. O que nos atraía num instante se converte em vestígio do passado; no entanto, não podemos impedir que nos assalte a emoção de pensar nisso por um momento. O que dura e o que é breve, tudo muda e tudo chega ao fim no nada. Os antigos diziam: a vida e a morte são grandes questões. Isso não é triste? Cada vez que penso nas causas que comoveram os homens de antigamente, encontro exatamente as mesmas que as nossas. Nunca li uma obra antiga sem suspirar com pesar, sem entender esta profunda emoção. No fundo, sei que a igualdade da vida e da morte, da longevidade ou da morte prematura, não são mais do que discursos mentirosos. E a posteridade considerará nosso tempo como nós consideramos os tempos passados! Que desgraça! Por isso ordenei que as obras de meus contemporâneos fossem copiadas. Ainda que variem as épocas e condições, as coisas que suscitam a emoção humana são as mesmas sempre. E sei que os leitores dos séculos que virão sentirão ante estes escritos estas mesmas emoções. Wang Xizhi (312 – 379)
António Graça de Abreu Via do MeioBai Juyi – A Canção do Alaúde Tradução de António Graça de Abreu Esta Canção do Alaúde é um dos mais famosos poemas de toda a vastíssima poesia chinesa. Escrito por 白居易Bai Juyi (772-846), quando seu exílio em Jiujiang, no ano de 816, permanece como uma das obras-primas saída da pena, do entendimento, da sensibilidade e do engenho do grande Bai Juyi. Eis uma possível tradução do poema. 琵琶行并序 元和十年,予左遷九江郡司馬。明年秋,送客 湓浦口,聞船中夜彈琵琶者,聽其音,錚錚然 有京都聲;問其人,本長安倡女,嘗學琵琶於 穆曹二善才。年長色衰,委身為賈人婦。遂命酒,使快彈數曲,曲罷憫然。自敘少小時歡樂事,今漂淪憔悴,轉徙於江湖間。予出官二年恬然自安,感斯人言,是夕,始覺有遷謫意,因為長句歌以贈之,凡六百一十六言,命曰琵琶行。 潯言江頭夜送客 楓葉荻花秋瑟瑟 主人下馬客在船 舉酒欲飲無管絃 醉不成歡慘將別 別時茫茫江浸月 忽聞水上琵琶聲 主人忘歸客不發 尋聲暗問彈者誰 琵琶聲停欲語遲 移船相近邀相見 添酒回燈重開宴 千呼萬喚始出來 猶抱琵琶半遮面 轉軸撥絃三兩聲 未成曲調先有情 絃絃掩抑聲聲思 似訴平生不得志 低眉信手續續彈 說盡心中無限事 輕攏慢撚抹復挑 初為霓裳後六么 大絃嘈嘈如急雨 小絃切切如私語 嘈嘈切切錯雜彈 大珠小珠落玉盤 間官鶯語花底滑 幽咽泉流水下灘 水泉冷澀絃凝絕 凝絕不通聲漸歇 別有幽愁暗恨生 此時無聲勝有聲 銀瓶乍破水漿迸 鐵騎突出刀鎗鳴 曲終收撥當心畫 四絃一聲如裂帛 東船西舫悄無言 唯見江心秋月白 沈吟放撥插絃中 整頓衣裳起斂容 自言本是京城女 家在蝦蟆陵下住 十三學得琵琶成 名屬教坊第一部 曲罷曾教善才服 妝成每被秋娘妒 五陵年少爭纏頭 一曲紅綃不知數 鈿頭銀篦擊節碎 血色羅裙翻酒汙 今年歡笑復明年 秋月春風等閑度 弟走從軍阿姨死 暮去朝來顏色故 門前冷落車馬稀 老大嫁作商人婦 商人重利輕別離 前月浮梁買茶去 去來江口守空船 繞船月明江水寒 夜深忽夢少年事 夢啼妝淚紅闌干 我聞琵琶已嘆息 又聞此語重唧唧 同是天涯淪落人 相逢何必曾相識 我從去年辭帝京 謫居臥病潯陽城 潯陽地僻無音樂 終歲不聞絲竹聲 住近湓江地低濕 黃蘆苦竹繞宅生 其間旦暮聞何物 杜鵑啼血猿哀鳴 春江花朝秋月夜 往往取酒還獨傾 豈無山歌與村笛 嘔啞嘲哳難為聽 今夜聞君琵琶語 如聽仙樂耳暫明 莫辭更坐彈一曲 為君翻作琵琶行 感我此言良久立 卻坐促絃絃轉急 淒淒不似向前聲 滿座重聞皆掩泣 座中泣下誰最多 江州司馬青衫濕 Canção do alaúde1 No décimo ano do período Yuanhe 2 fui despromovido e afastado da corte, com o cargo de intendente militar em Jiujiang. No Outono do ano seguinte, em Penpu, quando me despedia de um amigo, ouvi ao longe o tanger de um alaúde, tocado da maneira utilizada na capital. Procurei a pessoa que descuidadamente dedilhava as cordas e encontrei uma antiga cantora de Chang’an que, esgotada a sua beleza, era agora companheira de um mercador. Mandei vir vinho e pedi à antiga cortesã que tocasse um pouco mais. Depois, ela falou-nos do tempo feliz da sua juventude e de como agora era obrigada a viajar, em terras distantes, por rios e lagos. Desde a minha partida da capital jamais me sentira tão triste e infeliz. Compreendi nessa noite o real significado da palavra exílio. Escrevi então este longo poema, com 616 caracteres3 e ofereci-o a essa mulher. À noite, um adeus ao amigo nas margens do rio, as folhas do ácer, o vento de Outono sussurrando nos juncais. Desmontei do cavalo, meu amigo já na barca, prestes a partir, bebemos taças de vinho, sem música para nos acompanhar. Brindámos tristes, por cada taça, mais próxima a separação, adeus, as águas do rio já humedecendo a lua. Eis, de súbito, o som de um alaúde sobre as águas, esqueço o regresso, meu amigo esquece a partida. Ambos seguimos a música, em busca de quem toca, a melodia extingue-se, diante de nós uma mulher em silêncio. Aproximamos da sua a nossa barca, convidamo-la a mostrar-se, vamos buscar mais vinho, avivamos a luz das lanternas, recomeçamos o banquete. Mil vezes pedimos que venha até nós, aparece por fim, o rosto meio escondido atrás do alaúde. Afina a guitarra, dedilha as cordas ao acaso, não toca ainda, eis-nos mergulhados em enlevo e magia. Um repassar de emoções em cada som, em cada nota, acordes manchados de tristeza e nostalgia. De olhos baixos, os dedos acariciando as cordas de seda transmitem a amargura que lhe vai no coração. Melodias suaves, um canto vibrante, uma súbita paragem, ouvimos o “Vestido de Arco-Íris”, a “Ronda dos Seis Tambores”. As notas altas ressoam como chuva em noite de tempestade, as notas baixas como um ciciar segredado de amantes. Tons graves e agudos entrechocando-se, mesclando-se, como pérolas grandes e pequenas tombando num prato de jade. A música saltitante como um pintassilgo entre as flores, gotejante como água das fontes caindo sobre areia. Depois, acordes como cristais de gelo, as cordas parecem romper, a música fria, sussurrante, extinguindo-se pouco a pouco. Agora um silêncio mais eloquente que todos os arpejos, melancolia, a água correndo após o quebrar do jarro de prata. Outra vez o tinir de espadas e lanças, uma zoada de armaduras, os acordes finais brotando do coração do alaúde, quatro cordas emitindo um único som, o do rasgar da seda. As barcas, a leste, a oeste, mergulhadas em silêncio, apenas a lua de Outono prateando o leito do rio. Suspirando, ela prende a varinha nas cordas do alaúde, alisa o vestido, ajeita o rosto, levanta-se e fala. “Nasci na capital, cresci junto à Colina das Rãs, aos treze anos meus dedos brincavam sabiamente com o alaúde. Era a aluna mais distinta na escola de música, professores, mestres aplaudiam meu engenho e destreza. As mais belas da cidade invejavam meu porte, minha formosura. Os jovens de Wuling disputavam a honra de me ver, depois de uma canção ofereciam-me incontáveis peças de seda. Alfinetes, pentes de prata quebrados descuidadamente, o vinho caindo ao acaso sobre minha saia cor de sangue. Escoavam-se os anos entre festas, risos, alegria, sucediam-se brisas de Primavera, luares de Outono. Um dia meu irmão partiu para a guerra, minha mãe morreu, mês após mês, ano após ano desvanecendo-se minha beleza, diante da porta, carruagens e cavaleiros cada vez mais raros. Para sempre perdida a mocidade, casei com um mercador, que, em busca do lucro e do negócio, me deixa abandonada. Partiu o mês passado para comprar chá em Fuliang, desde então permaneço nesta barca vazia, na foz do rio, vogando ao luar sobre águas geladas. A meio da noite, em sonhos, recordo minha juventude, vejam como as lágrimas avermelham meu rosto pintado.” Ao ouvir esta mulher tocar o alaúde, já os soluços se me prendiam na garganta. Agora, escutando sua história, em mim uma emoção imensa, nós dois, destroços encalhados nas margens do céu, finalmente próximos através de um encontro fortuito. O ano passado fui obrigado a abandonar a capital, a viver exilado nesta cidade de Xunyang. Doente por terras estranhas, sem guitarras nem flautas, minha casa em Penjiang, ao lado do rio pantanoso, rodeada de canaviais amarelecidos, de bambus amargos. Nesse lugar, ao nascer o dia, ao entardecer, à noite ouve-se apenas o guincho dos macacos, o piar triste dos cucos. Em tempo de Primavera e de flores, de Outono e de luar, ergo muitas vezes a minha taça e bebo solitário. Sim, há cânticos camponeses e flautas aldeãs, mas as notas estridentes magoam meus ouvidos. Esta noite chegou até mim o harmonioso tanger de um alaúde, música celestial retocada por mãos de fada. Silenciosa, sentada, a mulher ouve minhas palavras, digo-lhe que vou escrever um poema, a “Canção do Alaúde”. Ela pega, de novo, na guitarra, acaricia tristemente as cordas e vai arrancando notas intensa, saudosamente magoadas. Eu escondo os olhos, o pranto mancha nossas faces. Quem mais chorou? A cabaia azul do intendente de Jiujiang inundada de lágrimas.
António Graça de Abreu Via do MeioSegunda jornada à Falésia Vermelha – Su Dongpo Tradução de António Graça de Abreu No mesmo ano, na lua cheia do décimo mês, na companhia de dois amigos, parti de minha casa, a pé, em direcção ao pavilhão de Lingao. O orvalho já se havia transformado em geada gelada, as árvores tinham perdido todas as folhas. Na terra, distinguiam-se as sombras dos homens e, levantando-se a cabeça, aparecia uma lua brilhante. Olhávamos à nossa volta e contemplávamos a paisagem, caminhávamos cantando, ou íamos conversando uns com os outros. Por fim, eu disse, suspirando: “Tenho amigos comigo, mas não temos vinho. Mesmo se tivéssemos vinho não haveria iguarias para acompanhar. O prateado da lua, a doçura da brisa, que fazer numa noite tão bonita?” Um dos meus amigos respondeu: “Hoje, ao cair da noite recolhi a minha rede e a pesca foram uns tantos peixes de bocas grandes e escamas finas, uma espécie de percas. Mas onde encontrar vinho?” Regressámos a minha casa e falei com a minha esposa. Ela disse: “Tenho uns potes de vinho que ficaram guardados já há algum tempo, esperando que um dia te recordasses deles.” Partimos de novo com o vinho rumo à Falésia Vermelha. Impetuosa a corrente do rio, as escarpas subiam a mil pés de altura. Enormes as montanhas, pequena a lua, baixo o caudal e as ondas, as pedras no leito rompiam as águas. Habitamos estes lugares há já tantos anos e ainda não conhecemos o rio e as montanhas. Saímos da barca, levantei a cabaia comprida, trepei pela margem rochosa, caminhei sobre pedras afiadas, afastando, ao passar, as ervas selvagens. Sentei-me sobre penedos semelhantes a tigres ou leopardos, atravessei matagais, os arbustos pareciam dragões com cornos, no alto, havia ninhos de falcões. Levantando os braços procurei encontrar um poiso entre a ramaria, para passar a noite, baixando a cabeça, tentei descobrir o palácio solitário do deus das águas. Não fui seguido pelos meus dois amigos. Dei então um enorme grito que perfurou o espaço e fez estremecer as ervas e as árvores. Sonoridades na montanha, o eco, o vale respondeu. Levantou-se vento, a água caía nas cascatas. Em mim, alguma inquietação, tristeza, receio. Eu tremia, não queria ficar na margem do rio. Regressei à nossa barca que vogava ao sabor da corrente. Para satisfação de todos, era ela quem decidia por onde devia navegar. Era quase meia-noite. À nossa volta, um imenso silêncio e calmaria. Apenas um grou solitário, vindo de leste, sobrevoava o rio. Asas grandes como as rodas de uma carroça, o corpo, negro em cima, branco, em baixo. Grasnava, longos gritos que rasgavam a escuridão. Passou, rasando, por cima da nossa barca e seguiu para oeste. Os meus amigos partiram e eu adormeci. Sonhei que um monge taoista, vestindo um manto de penas ondulantes, passava junto ao pavilhão de Lingao. Saudou-me e disse: “A vossa viagem à Falésia Vermelha foi ou não foi uma jornada de espantar?” Perguntei-lhe como se chamava. Um leve aceno de cabeça e não me respondeu. Questionei-o, outra vez: “Não foste tu que ontem à noite sobrevoaste o nosso barco?” O monge sorriu. Sobressaltado, despertei por completo. Abri a janela da barca, olhei a paisagem, não se via ninguém.
António Graça de Abreu Via do MeioDa tradução de poemas de Su Dongpo Traduzir poemas de Su Dongpo (1037-1011) para língua portuguesa. Quase nada sei, e contemplo o universo todo na arte abstrusa do tradutor. Uns pingos de clarividência, tentar conhecer umas resmas largas de caracteres, a sequência das palavras, passear pela língua chinesa, espreitar cuidadosamente traduções inglesas e francesas, movimentar-me nas assombrações da vida fantástica de Su Dongpo, o real com toneladas de sofrimento à espreita em cada esquina, mais os caminhos por alamedas plenas de alegria e humor. A estrutura da língua chinesa tão diferente e afastada das línguas ocidentais. Desbravar o infinito. A tradução próxima e distante. Lá do Extremo Oriente, do rendilhado das margens do lago Oeste, em Hangzhou, da ilha de Hainan ou da província de Shandong lançam-me música, um erhu chinês, um violino, uma pipa, o guzheng a enobrecer sentimentos. Acompanho Su Dongpo, com a sorte de tentar conhecê-lo, de ser seu amigo, de ter viajado por parte importante dos lugares do Império do Meio onde o poeta nasceu há mil anos atrás, desempenhou funções de mandarim, cruzou montes e vales, subiu e desceu rios, jornadeou pelos espaços do vazio, foi afastado para o outro lado do mar, para terras do degredo e do exílio.[1] Em prefácios a traduções anteriores de grandes poetas da China, sobretudo Li Bai, de 1990, Han Shan, de 2009 e Du Fu, de 2015, debrucei-me, tanto quanto sabia e era capaz de explicar, sobre o trabalho de tradução. O tradutor assume-se como o feitor de uma tarefa diferente, que se abre a partir de um outro código linguístico, mas no português de chegada têm de estar a raiz original das palavras e um mesmo sentir. Em Su Dongpo, encontrar a delicadeza, a suavidade, o encanto, a frescura da grande poesia clássica chinesa. Depois, difícil de fazer bem feito, mas é por aí que caminho. Yan Fu (1853-1921) um dos primeiros grandes tradutores de obras literárias inglesas e norte-americanas para língua chinesa falava nos três princípios fundamentais de uma tradução譯事三難:信 xin, ou seja fidelidade ao texto original, 達 da ou seja, fluência e legibilidade e 雅ya , ou seja, elegância e beleza, assim se harmonizando a língua de partida com a língua de chegada. Min Xiaohong (1963-), professora na Universidade de Senzhen, especialista em Su Dongpo, diz que “Translation is an art of transforming everything in form while changing nothing in meaning.”[2] Nuno Júdice, num texto brilhante sobre David Mourão Ferreira tradutor, refere George Steiner, no seu Depois de Babel onde o autor fala da tradução como “contrabando” processado a partir da língua e da cultura originárias para a língua e cultura de chegada. [3] No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir do poeta chinês, mais a minha própria leitura poética, em língua portuguesa. Porque se o poema sínico parece intraduzível (por isso eu o traduzo!) tudo o mais é reinvenção, recriação, reimaginação, transcriação, retradução. E o poema contrabandeado já é outro poema. É de Su Dongpo, mas também é meu. Do grande universo da poesia da China clássica passou para o mundo da língua de Camões, Machado de Assis e Fernando Pessoa. Contrabandear, com certeza, considerando um produto poético em busca de qualidade literária também na língua de chegada. E, porque os conhecimentos de língua chinesa serão sempre reduzidos, a necessidade da viagem por traduções noutras línguas mais próximas do português, sobretudo as boas traduções inglesas e norte-americanas. Vamos a um exemplo de um poema de Su Dongpo, conhecidíssimo na China, objecto de múltiplas traduções. É um 绝句 jueju, uma espécie de quadra, com sete caracteres por verso, assim: Eis uma tradução portuguesa possível, caracter a caracter: Meio Outono Lua Anoitecer nuvem juntar excesso límpido frio Via Láctea ausência silêncio tornar-se jade prato Esta vida esta noite não extensa boa Próximo ano brilho lua onde contemplar Minha tradução A lua do Meio Outono Anoitece, novelos de nuvens desaparecem na limpidez fria do céu, em silêncio, a Via Láctea dá a volta na abóbada de jade. Se esta noite, no nosso existir, não fruimos prazeres, no próximo ano estaremos onde, contemplando o luar? Agora a tradução inglesa du professor chinês Xu Yuanzhong, com rimas emparelhadas que não existem no original de Su Dongpo. Recordo que o poema tem outras rimas tonais praticamente intraduzíveis, características dos jueju: Evening clouds dispelled, a jade plate turns on high, Pure, cold flood overwhelms the silent silver sky. We can’t oft in this life have a mid-Autumn night, Where shall we see next year a harvest moon as bright?[4] A tradução do mesmo poema pela chinesa Wang Yun, há muitos anos radicada nos Estados Unidos da América: Dusk clouds vanish as a crystal chill blooms The moon’s jade plate turns against the soundless Milky Way This life this night is a flower about to fade Where will we see this lustrous moon next year[5] Por último, a tradução do norte-americano Bill Porter, aliás Red Pine: As evening clouds withdraw a clear cool air floods in the jade wheel passes silently across the Silver River This life this night has rarely been kind Where will we see this moon next year[6] Tenho tido como mestre no meu labor de tradutor, o velho Arthur Walley (1889-1966). O historiador Jonathan Spence (1936-), talvez hoje um dos mais brilhantes estudiosos e divulgadores da cultura e civilização chinesa no mundo da língua inglesa, e não só, referia-se a Arthur Waley como tendo aprisionado no seu peito o que de melhor existia nas literaturas chinesa e japonesa. Spence diz que nunca ninguém fez nada de parecido, embora “there are now many Westerners whose knowledge of Chinese or Japanese is greater than his, and there are perhaps a few who can handle both languages as well. But they are not poets, and those who are better poets than Waley do not know Chinese or Japanese.” [7]l Waley era um bom poeta e muitas das suas traduções foram incluídas como poemas seus integrados na literatura inglesa, por exemplo no Oxford Book of Modern Verse 1892-1935, ou no Penguin Book of Contemporany Verse (1918-1960). Recebeu, em 1952, a condecoração de Commander of the Order of the British Empire e, no ano seguinte The Queen Medal for Poetry. Su Dongpo é um poeta maior, atravessando os trinta e um séculos de poesia chinesa, amado e lido em toda a China, até hoje, não muito conhecido em Portugal, embora a modernidade da sua mensagem poética contemple o perpassar do tempo. Talvez com alguma surpresa, o leitor de traduções de poesia chinesa para língua portuguesa descubra que Su Dongpo já foi objecto de umas tantas versões, recriações e traduções poéticas em português. Foi António Feijó (1859-1917) quem, em finais do século XIX, no seu Cancioneiro Chinês, traduziu do francês quatro poemas atribuídos a Su Dongbo, que, na realidade, não saíram do pincel e da inteligência do nosso poeta. Feijó traduziu e reinventou setenta e um poemas aparentemente chineses que formam o Livre de Jade, de Judith Gautier e de Tin Tun-ling, de 1867, um sucesso literário na Europa culta da época. Ora os poemas chineses pretensamente traduzidos pela jovem filha de Theóphile Gautier, são, quase todos uma reinvenção absoluta. No que a Su Dongpo diz respeito cito as frases do estudo de Ferdinand Stocès: “Du poème de Su Dongpo Bloqué par le vent sur le lac Ci, qu’elle intitule Un navire à l’abri du vent contraire, sur les cinquante-six caractères de ce poème de huit vers, Judith Gautier et son tuteur — en ont identifié quatre, ce qui ne leur a point permis de saisir le message du poète chinois.” [8] As engenhosas traduções parnasianas de António Feijó são assim, quase todas traduções de não traduções. Camilo Pessanha, em Macau, interessou-se pela poesia chinesa e chegou a traduzir, com a ajuda de um letrado chinês e do seu amigo José Vicente Jorge, pelo menos oito poemas chineses, de poetas menores da dinastia Ming (1368-1644). Pessanha tinha admiração pela língua chinesa que, na sua opinião, era “a mais formosa e a mais sugestiva de todas as línguas literárias vivas ou mortas.” Pena os maiores poetas da China, homens como Li Bai, Du Fu, Bai Juyi, Su Dongpo ou a delicada Li Qingzhao terem passado ao lado da caneta de Camilo Pessanha. Existe a lenda de que na última vinda a Portugal, em 1915, trouxe de Macau sete mil páginas manuscritas com poemas que entretanto desapareceram. Não será de acreditar, dada a desorganização completa com que, nesta fase da sua vida, já afundado em ópio, Pessanha tratava os seus papéis. Gil de Carvalho, no seu trabalho Uma Antolologia de Poesia Chinesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 2ª. Edição, 2010, traduziu sete poemas de Su Dongpo. Na primeira edição, de 1989, havia incluído apenas um poema do nosso poeta. Adelino Ínsua, poeta e editor, publicou no ano 2000, na Pedra Formosa Edições, a primeira antologia de Su Dongpo em língua portuguesa, constituída por apenas 27 poemas e uma apresentação de duas páginas que intitulou A Flor da Ameixieira, Poemas de Su Dongpo. Trata-se de um pequeno trabalho, deveras simpático. Na também pequena antologia de poesia chinesa que Adelino Ínsua publica em 2002, sob o título Pavilhão da Chuva, aparece um poema de Su Dongpo. Em 2013, com o apoio de Carlos Morais José, eu próprio organizei uma grande antologia que intitulámos 500 Poemas Chineses, com uma edição feita em Macau e outra da responsabilidade da Vega Editora, em Lisboa, 2014. Su Dongpo entra com 18 poemas, com traduções António Feijó, Alberto Osório de Castro, Jorge Sousa Braga, Adelino Ínsua, Gil de Carvalho e António Graça de Abreu. Eu tive a ousadia de traduzir cinco poemas de Su Dongpo. No Brasil, tanto quanto sei, Su Dongpo não tem sido muito traduzido. Em 2022, foi defendida na Universidade de São Paulo, uma dissertação de Mestrado, da autoria de César Augusto Matiusso, intitulada “Meditação sobre o passado: tradução comentada da poesia de Su Dongpo.” Bom será que seja colocada na net ou editada em livro. Su Dongpo e os leitores de língua portuguesa merecem tudo. [1] Nos dois volumes de Toda a China, Lisboa, Guerra e Paz, 2013 e 2014, ver os textos sobre as minhas jornadas pelas actuais províncias de Sichuan, Hunan, Hubei, Shaanxi, Shanxi, Henan, Shandong, Jiangsu, Zhejiang, Guangxi, Guangdong e ilha de Hainan, de quando em quando na companhia de grandes poetas da China Clássica, como Su Dongpo. [2]Ambos os textos estão na net, onde é infindável a busca por Su Dongpo, com milhares e milhares de entradas e pistas de trabalho. Ver também o You Tube, tendo a vida e carreira de Su Dongpo sido na China objecto de uns tantos filmes e telenovelas. [3] Nuno Júdice, in Jornal de Letras, nº. 1290, 11.03.2020, pag. 10. [4] Su Dongpo – a NewTranslation,,(bilingue), Xu Yuanzhong (trad.), Hong Kong, The Commercial Press, 1982, pag 98. [5] https://www.amazon.com/Dreaming-Fallen-Blossoms-Poems-Dong Po/dp/194568027X/ref=sr_1_2?crid [6] Poems of the Masters, Red Pine (trad.), Port Townsend, Copper Canyon Press, 2003, pag. 319. [7] https://site.douban.com/106369/widget/notes/134616/note/137774609/ [8] https://www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee-2006-3-page-335.htm. E também de Ferdinand Stocès, O Livro de Jade, de Judith Gautier, características gerais das edições de 1867 e 1902, Revista Oriente, Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pags 3 a 20.
Hoje Macau Via do MeioLi Bai – Poemas da Guerra Tradução e texto* de António Izidro PROVAVELMENTE a pergunta terá sido feita com raiva — quantos nos pudestes devolver com vida? A dinastia Tang havia consolidado o poder e tornara-se militarmente forte, mas as batalhas nas fronteiras não davam sinais de terminar. Na mente de Li Bai perpassam memórias da série de conflitos armados que desgastaram o Estado e sacrificaram o povo. Eram as lutas fratricidas, as revoltas populares, guerras entre reinos e os bárbaros do Norte que cobiçavam terras mais produtivas. O posto de vigia, as montanhas e a Lua, a simbiose que o poeta escolheu para descrever os campos de batalha do Monte Branco e do Lago das Águas Límpidas, palco onde durante largos anos muito sangue correu de pobres soldados que eram obrigados a alistarem-se nas fileiras do exército. Uma sentinela que guarda o posto de vigia, o sentimento de saudade, a família que anseia pelo seu regresso, descritos em versos. A sentinela sob a Lua A Lua brilha sobre a celeste cordilheira,1 num infindo mar de esparsas nuvens, dez mil lis viajaram estes ventos, pela Porta de Jade trespassam a fronteira.2 Marcham os Han pela estrada de Baiteng,3 bárbaros espreitam das margens azuis da baía. De tanta batalha neste palco cumprida, quantos nos pudeste devolver com vida? A sentinela vagamente olha além-fronteira,4 a face crispada de dor, o pensamento no lar e nos que à noite, na solidão das casas, entre suspiros, também não podem descansar. 1. Celeste cordilheira Cordilheira dos Qilian, situada no nordeste da China, junto à Mongólia, cobrindo uma extensão de cerca 800 Km. 2. Porta-de-Jade Posto de vigia construído na dinastia Han, junto à fronteira Norte com a Mongólia. As ruínas desta construção podem ser visitadas na Província de Gansu. 3. Han Nome que geralmente designa a principal etnia chinesa e que deriva da dinastia Han, período durante o qual se travaram inúmeras batalhas com as tribos nómadas mongóis, os Xiongnu, que se aliaram aos Tubós Tibetanos em Baiteng (Monte Branco, na região de Shanxi ) e no Lago das Águas Límpidas (Baía), na província de Qinghai. 4. Fronteira Trata-se do Posto de Fronteira de Tiemenguan, situado no actual Xinjiang. A missão era fazer recuar o inimigo aos Montes Altaicas, na Mongólia, de onde a invasão havia começado. Na Porta-de-Jade trava-se a grande batalha com sérias baixas para o exército real que se viu obrigado a retirar e voltar ao acampamento pelo caminho do Sul. Antecipando-se, os invasores impuseram um apertado cerco. Para poder conduzir as tropas de novo ao acampamento, o comandante apenas tinha uma solução: a cabeça do chefe dos invasores. Ode à Campanha Militar Pela Porta de Jade irrompe o exército, acossando o inimigo na montanha Jinwei,1 a canção das ameixas nas flautas a soar,2 a lua das espadas não cessa de brilhar.3 Rufos de tambores revolvem o Mar,4 bravos soldados as nuvens dominam. Quando a Danyou a cabeça cortar,5 à nossa fronteira iremos voltar. Cem batalhas no deserto, armaduras quebradas, do lado sul, a nossa cidade de hunos cercada. Mas logrando, num só golpe, Huyan eliminar,6 soldados feridos e mil cavalos podem regressar. 1. Montanha Jinwei Hoje chamada montanha Altai, situada nas fronteiras da China, Rússia, Mongólia e Cazaquistão. 2. Canção das Ameixas Canção antiga intitulada “Quando caem as flores da ameixeira”. 3. Lua das espadas O pomo das antigas espadas era redondo, fazendo lembrar a lua-cheia. 4. Mar “Vasto mar deserto”, como era antigamente designado o deserto de Gobi. 5. Danyou Rei dos Xiongnu, um povo huno. 6. Huyan Um dos quatro principais generais dos Xiongnu. Da Ásia Central, Mongólia e do Deserto de Gobi, Tártaros, Uigures e povos turcomanos das línguas altaicas ameaçavam seriamente o império da grande dinastia Han, acabando, gradualmente, por se fixarem nas regiões Norte e Noroeste da China sem grande resistência por parte do exército. Ao cabo de intensas lutas percebeu-se que a estratégia residia na conquista do Monte Yanzhi e obrigar ao recuo dos invasores. No seu poema, composto na corte, o poeta aponta as falhas da estratégia do rei Han, o que pode ser visto como uma advertência ao imperador Tang, quanto à necessidade de reforçar uma zona do Norte que se revelava mais vulnerável aos ataques dos temíveis Xiongnu. Curiosamente, as campanhas militares lançadas por volta do ano 745 culminaram na derrota dos invasores que acabaram por aceitar o estatuto de protectorado da corte, juntando-se ainda ao exército real para fazer frente a outras ameaças. Cântico à fronteira O grande rei Han estratégia não tivera, os hunos da ponte de Wei se apoderaram;1 no condado, tropa e rija cavalaria assentaram, quando sobre Wuyan pairava a Primavera.2 Às fragas d’ Oeste ide como ordenado, marcharam guerreiros para Yishan,3 e quando o monte Yanzhi tomaram,4 as faces das damas alvas se quedaram. Pelo Rio Amarelo muito pelejaram só vitoriosas as armas acalmaram, por mais de mil lis a paz espalharam, as ondas do Mar enfim amainaram.5 1. Rio Wei O maior afluente do Rio Amarelo, com cerca 800 km, banhando diversas províncias como Gansu e Xanshi. 2. Wuyuan O condado foi estabelecido durante o reinado de Hanwudi, depois de uma vitória sobre os bárbaros invasores no ano 129 a.C. 3. Yinshan Trata-se da Cordilheira dos Yinshan, situada na Mongólia Interior. 4. Monte Yanzhi Actualmente é mais conhecido pelo nome “Grande Monte Amarelo”. Famoso pelo seu parque florestal e topografia acidentada, o que tornou num ponto estratégico no período das guerras contra as incursões das Tribos do Norte. O nome Yanzhi tem origem na planta que cresce abundantemente nesse monte e donde se extrai o corante que as mulheres usam para ruborizar as faces; a conquista do monte pelo exército real ditou a retirada dos Xiongnus, cujas damas não mais puderam enfeitar-se com aquela substância. 5. Mar Han Hanhai não é um mar, mas a antiga forma como era designado o Deserto de Gobi, situado na região Sul da Mongólia. Li Bai assiste o embarque de tropas para uma campanha e a voz sai embargada do seu pincel, para contar a tragédia da guerra e o cataclismo que ameaçava o reinado do imperador Tang Xianzong. Expedições, campanhas, incursões, cenários sangrentos de uma luta interminável contra as invasões dos bárbaros do Norte. As Guerras a Sul da Cidade Ontem batiam-se no rio Sang,1 hoje guerreiam nas margens do Hedao.2 Limparam-se armas nas águas do Eufrates3 e as montadas pastaram no Monte Celeste.4 Guerras esforçadas, longínquas incursões a quanto obrigas, exércitos consumidos por anos de arenas, de matanças fazem os bárbaros sustento, ontem como hoje, os seus ossos jazem em areia seca. Dos Tártaros o rei Qin defendeu-se com muralhas, o tempo jamais apagará as chamas do fogo que os arqueiros de Han lançaram. Cruezas mortais, combates sem fim, corpos tombando em pelejas no campo agreste; cavalos choram fitando o céu, corvos famintos arrancam-lhes as entranhas, devoram-nas em ramos de árvores secas. O sangue dos soldados ensopa as ervas silvestres enquanto generais regressam de mãos vazias. Sabeis que o soldado é sempre uma arma? Os virtuosos usam-na só quando dela precisam. (…) Reino de Shu – Os desafios de uma senda No período em que a Europa vivia sob o domínio autocrático do Império Romano, desde Heliogábalo a Floriano (218-276), a China encontrava-se dividida em três reinos. Estandartes com as insígnias Wei, Shi e Wu, desfraldados em campos de batalha, sangue e corpos espalhados em terrenos áridos, peripécias e planos de conspiração nos bastidores das cortes, eram o quadro que perpassava na memória de Li Bai enquanto viajava as terras do antigo reino de Shu, hoje província de Sichuan, cujo terreno acidentado constituía um enorme desafio para as tropas invasoras. Com as batalhas a não poderem ser resolvidas de forma rápida, a guerra arrastava-se por entre incursões intermináveis, empobrecendo cada vez mais os recursos e aumentando o sofrimento do povo. Em “Os árduos caminhos do reino de Shu”, Li Bai imagina os obstáculos que os invasores teriam encontrado devido às características topográficas da região, para descrever como teriam decorrido os acontecimentos e dar um alerta, tardio, ao inimigo. Os árduos caminhos do Reino de Shu1 Eia! Ai! Ei!2 Vede estes caminhos de Shu! Que perigo! Que alturas! Mais árduos que escalar ao céu azul. Can e Yu vagamente são lembrados3 e, desde que este antigo reino fundaram, quarenta e oito mil anos passaram, sem que alguém tenha cruzado a fronteira com Qin. Só um caminho de aves une as duas montanhas,4 de Taibai a oeste até ao cume de Emei. Mas o chão e a montanha tremeram, esmagando os heróis, e só esta estrada celeste une os países separados.5 Lá em cima, o grande marco onde os Seis Dragões dão meia-volta!6 Lá em baixo, um rio agitado de vagas e turbilhões! Por mais alto que voem, os grous não conseguem atravessar, mesmo os macacos desistem da escalada amedrontados. Como dá voltas e mais voltas a vereda! A cada cem passos nove curvas, até aos picos acerados. Ali podes olhar o céu e afagar as Três Estrelas, a respiração ofegante, mão no peito procurando fôlego. Quando voltarás desta viagem ao Oeste, deste terror de penhascos intransponíveis, de aves lúgubres, silvando em árvores antigas, machos voando e fêmeas seguindo-os pelos bosques? Também se ouve o planger dos cucos,7 sob o assustador luar de serras desabitadas. Caminhos árduos de Shu, mais árduos que escalar ao céu azul! Quando deles se fala, as faces rosadas empalidecem. Os cumes sucedem-se a menos de um pé do céu; pinheiros murchos pendurados sobre abismos. Torrentes e cataratas entrechocam com fragor, caem de penhascos, arrastam dez mil pedras por barrancos, em vozes trovejantes ribombando. Tanto perigo… ah, homem que vens de longe, para quê enfrentá-lo? O Passo da Espada, altíssimo e rochoso, imponente, vertiginoso, apenas um homem basta para o guardar, de dez mil nem um conseguirá passar. E se esse guarda for desleal, no seu lugar surgem os lobos e os chacais. Fujai! De manhã, tigres ferozes! Fujai! De noite, enormes serpentes! Afiam os dentes e sugam-vos o sangue; massacram homens como se ceifassem linho. Apesar de dizerem que se é feliz na cidade de Jin,8 é melhor voltar depressa para casa. Caminhos árduos de Shu, mais árduos que escalar ao céu azul! Dou meia-volta, fixo os olhos no Oeste e longamente suspiro. 1. Shu Reino antigo, corresponde à actual Província de Sichuan, com uma área de 48 mil Km2, caracterizada pela sua peculiar geografia, dominada por grandes cadeias montanhosas, planaltos e desfiladeiros e a célebre falha tectónica de Longmengsha, que marca o grande desnivelamento entre as regiões situadas a Leste e a Oeste. 2. Eia! Ai! Ei! Era costume as cantigas populares começarem com interjeições. 3. Can e Yu, os monarcas Can Cong e Yu Fu, a quem a tradição popular atribui a fundação do Reino de Shu. 4. As duas serras Refere-se à Serra de Taibai e o pico da Serra de Ewei; Taibai situa-se na Província de Sanxi, sendo hoje um importante ponto turístico devido às reservas naturais do Parque Nacional de Florestas. Emei é um dos cumes da serra com o mesmo nome, situada na província de Sichuan, com 4000m de altitude. Notável pela sua riquíssima fauna e flora, de espécies únicas. 5. Escada celeste Está associada à história dos cinco oficiais que, em missão ao serviço do monarca de Shu, sucumbiram numa fenda aberta na terra. Deste acidente geográfico terá partido a formação de cinco elevações e aberto uma via, designada por “Escada do Céu”, ligando o Reino de Shu e as regiões vizinhas. 6. Coche-seis-dragões Alusivo aos seis picos da serra, dispostos em série, lembrando uma carruagem com seis dragões a proteger o Reino de Shu. 7. Planger dos cucos Os chineses tradicionalmente acham que o crocitar do cuco reproduz as palavras “²»Èç歸È¥£¡” – “Volta para trás!” 8. Cidade de Jin Actual Chengdu. In Li Bai – António Izidro, A Via do Imortal, Macau: Livros do Meio, 2021
Manuel Afonso Costa Via do MeioTao Yuanming – Três poemas Tradução de Manuel Afonso Costa No 11º mês do ano yi si. Enfim! Regresso, os campos e o quintal já devem estar cobertos de mato porque não regressei mais cedo? porque deixei que o corpo abusasse da alma? é inútil ficar abatido, desiludido com a sorte pois sei que se não há remédio para o passado, é pelo menos possível tentar mudar o futuro enfim, estou certo de que não perdi o rumo ainda escolhi apenas o caminho errado, o barco desliza protegido por uma brisa suave, sinto-a através da roupa interrogo quem passa para não me perder, lamentando a indecisão matutina da luz quando de repente vislumbro sob uma luz crepuscular a cabana, minha humilde morada e logo desato a correr em viva excitação o criado jovem, alegre vem ao meu encontro, os meus filhos esperam-me na soleira da porta os caminhos foram invadidos por ervas daninhas e quase desapareceram mas os pinheiros e os crisântemos estão intactos de mãos dadas com as crianças entro em casa onde me espera um jarro de vinho na sala bebo um copo sozinho ao ver as árvores e os campos alegra-se meu coração apoiado no parapeito da janela que dá para sul mastigo um desdém imenso pelo mundo e deixo correr a felicidade quem com pouco se contenta com pouco se satisfaz ao longo dos dias por puro prazer passeio pelo jardim a cancela continua fechada de bengala na mão ando, passeio e descanso de vez em quando levanto a cabeça e olho para longe as nuvens aparecem e desaparecem, sem tréguas, no cimo das montanhas os pássaros invadidos pelo temor sabem que é a altura de voltar a casa a luz do Sol diminui, o pôr do Sol está breve encosto-me, com melancolia, a um pinheiro solitário agora sei que regressei ao lar que tudo fiz para romper com o mundo, ele e eu nunca nos demos bem para quê alimentar ilusões? Não há nada a procurar agrada-me mais uma boa conversa com a família e os amigos, gozo o qin e os livros, são eles que curam as preocupações quando a Primavera chega, os camponeses dão-me conselhos é preciso trabalhar os campos a Oeste às vezes dou uma volta numa pequena carroça outras, remo um pouco na minha barca solitária seguindo as águas mansas e serenas ou penetrando ravinas profundas, até ao inesperado de fontes silenciosas é uma maravilha o mundo com tanta beleza os ciclos inexoráveis da natureza e comovo-me ao pensar que a minha vida também se aproxima do fim, mas sem drama, É tão pouco o tempo que aos homens é dado sobre a terra, enfim, é a vida! por quanto tempo ainda? então sigamos apenas a voz do coração a gente afadiga-se, a gente agita-se, e onde é que isso nos leva!? não tenho desejos de riqueza e nem quero alcançar o céu não quero mais que aproveitar os dias, fazendo cera, e andar por aí sozinho a caminho dos cimos assobiando alegremente, por margens de ribeiros de águas límpidas ou mesmo fazendo poemas sigo o curso das coisas até ao fim, e se me regozijo com a ordem do céu o que é que pode preocupar-me deveras? Depois do incêndio a meio de Junho do ano wu sheng A minha casinha de campo ficava situada numa alameda afastada foi por minha decisão que renunciei a mordomias um dia em pleno Verão, levantou-se de súbito um vento forte e violento, as casas, rodeadas de árvores, de repente ficaram em chamas nem um só tecto, o fogo poupou só o barco diante da casa ficou para nos abrigar foi tão longa, tão longa essa noite de um Outono inesperado e a lua tão alta, tão alta e quase cheia as árvores de fruto e os legumes mal começavam a desabrochar, assustados os pássaros não regressaram no meio da noite, durante um breve espaço de tempo fiquei de pé a contemplar a distância com um golpe do olhar abracei os nove céus desde criança, com os cabelos ainda em chinó a minha pose já estava toda lá e sem dar por isso já passei os quarenta afinal o meu corpo segue o curso da natureza mas o coração mantém-se livre e íntegro, pois adamantina é a minha vocação mais dura e resistente que uma pedra de jade penso agora na época em que reinou Tung Hu , quando podíamos amontoar grão abundante na borda dos campos as pessoas, de barriga cheia, viviam então sem medo pela aurora, levantavam-se, reentravam em casa para dormir ao anoitecer uma vez que não nasci nesse tempo dourado, não há nada a fazer senão mesmo ir regar a horta. Elogio da pobreza Yuan An, encurralado pela neve, recusou pedir ajuda por orgulho Mestre Chuan, quando uma vez tentaram corrompê-lo, nesse mesmo dia abandonou o emprego, … afinal dorme-se quentinho no feno, e respigar uns grãos silvestres dá para um dia de comida pode parecer duro e penoso, é verdade mas eles não temiam nem fome nem frio pobreza e prosperidade podem ser inimigas, mas como é o tao que decide, nunca se preocuparam a virtude de um reinava no seu país natal a integridade do outro iluminava a Passagem de Oeste
António Graça de Abreu Via do MeioSu Dongpo | O vinho enquanto segunda vida Texto e tradução de António Graça de Abreu O grande poeta Su Dongpo gostava de se reunir com os amigos, comiam, bebiam gloriosamente, diziam ou compunham poemas, pintavam. Um deles, Huang Tingjian黄庭坚 (1045-1105), a seu respeito, escreveu: “Ele adorava viver mas, após três ou cinco copos, já ébrio, parecia meio morto. Deitava-se sem cerimónia num qualquer recanto e ressonava com o ruído de um trovão. Algum tempo depois despertava, sentava-se à mesa e começava a escrever ou a pintar com a velocidade do vento.” Nestes encontros de amigos e em momentos de solidão prevalecia a exaltação das bebidas fortes e encorpadas. O vinho, 酒 jiu em chinês, ou melhor, as vinte mil variedades de bebidas alcoólicas, fazia parte dos quotidianos de quase toda a gente. Nos seus poemas e na sua prosa, Su Dongpo faz referências frequentes ao vinho e aos prazeres do álcool. O que bebiam não era propriamente vinho de uvas, também existente em algumas regiões da China, mas sobretudo baijiu, aguardentes destiladas a partir do sorgo, do painço, do arroz, de uma série de plantas e frutas que, levedadas, produziam néctares de elevada graduação que chegavam aos sessenta graus. Fabricavam-se também os mais variados licores e xaropes com menor teor de álcool e era vulgar uma espécie de cerveja que se obtinha misturando aguardentes e fruta com água, o que resultava numa bebida leve que alegrava o espírito de quem a bebia, mas não embebedava. Todos estes derivados alcoólicos se chamam jiu, normalmente traduzido por “vinho” mas os chineses, tal como acontecia com o chá, sabiam muito bem diferenciar os diversos jiu. Num texto que intitulou “Em louvor do vinho forte” Su Dongpo vai longe na definição e valorização dos supremos néctares, em palavras que por certo grandes beberrões subscreveriam, poetas como Horácio, Ronsard, Baudelaire, Omar Kahyan, Alberti, o nosso Fernando Pessoa: “Nos homens é preferível um temperamento brando, mas no vinho não se devem evitar a potência e a força. É através do vinho que se esquecem os sonhos de uma noite e com ele se chega a entender as verdades do universo. O vinho é para os homens como uma segunda vida e frequentemente é só no estado de abençoado conforto e maravilhosa tranquilidade criada pelo vinho que alguém pode ter a sensação de encontrar a própria alma.” E escrevia assim, em sublimes poemas: Fraco, o vinho O pior de todos os vinhos, melhor do que água quente. Trapos, melhores que nada ter para vestir. Uma mulher feia, uma concubina conflituosa, melhores do que ter a casa vazia. Quanto mais fraco o vinho, mais fácil emborcar dois copos, quanto mais fino o tecido da cabaia, mais fácil vesti-la, a dobrar. Existe a contradição entre o feio e o belo, mas, quando embriagado, uma coisa tão boa como a outra. Esposas mal-parecidas, concubinas briguentas, quanto mais velhas, mais se assemelham. Impossível saber como será o final dos nossos anos, toma apenas por conselho o teu bom senso. Evita audiências imperiais, os grandes governantes do reino, o salão Florido do Leste, a poeira do tempo, o vento na Passagem do Norte. Cem anos, parece uma eternidade, mas, célere, tudo chega ao fim, nós acabamos por cumprir tão pouco. Vale tanto o cadáver de um rico como o cadáver de um pobre, no rico, para conservar o corpo, pedras de jade, pérolas colocadas na boca do ilustre defunto. Não são grande ajuda, mil anos depois enriquecem ladrões de túmulos, por recompensa, apenas uma ou outra referência literária. Felizmente gente tonta pouca importância dá a tudo isto, enganam meio mundo, enrubescem de contentamento, homens justos são seus inimigos. Para o mérito, um bom vinho por recompensa, em toda a parte, o bem, a alegria, a tristeza, simples manifestações de um mesmo todo, o Vazio. O mau vinho é como os maus homens Bebendo com Liu Ziyu, no templo da Montanha Dourada. Ébrio, adormeci no terraço da meditação. Despertei a meio da noite e escrevi este poema nas paredes do terraço. O mau vinho é como os maus homens, ataca, é mais mortífero que flechas ou facas. Alquebrado, desmaiei no terraço, foi necessário decretar tréguas. O velho poeta é um homem de coragem, gentis, profundas, as palavras do mestre budista. Demasiado ébrio para tudo entender, esbatida a mente em vermelhão e verde, horas depois, acordei, já a lua se afundava no rio. Diferente o bramido do vento, num altar do templo, ainda o leve fulgor de uma lamparina. Os meus dois heróis, desapareceram. [1] Imagens perfeitas Os vapores húmidos do vinho revolteiam-me as entranhas. Dos pulmões, do fígado, numa torrente, como numa avalanche, saltam rochas e bambus. Pinto-as na parede côr de neve, imagens perfeitas. [1] Lin Ziyu, amigo do poeta e Pao Xue, o superior do templo budista.
Rui Cascais Via do MeioDias melancólicos se encontram no Outono NASCIDO EM 1963, em Zigong na província de Sichuan, Zhen Danyi, vive actualmente em Hong Kong, onde publica na Sixthfingerpress, uma editora-oásis, digamos assim, no ténue contexto cultural de Hong Kong. A sua mãe era actriz, uma intelectual que a Revolução Cultural poupou lançando-a para uma fábrica de açúcar para o resto da vida. Algumas das primeiras palavras que Danyi disse quando nos encontrámos foram: “odeio açúcar”.Os poemas aqui apresentados são de “Wings of Summer”, uma colectânea que reúne poesia de 1984 a 1997 em tradução inglesa de Luo Hui. É curioso encontrar um poeta que, ao contrário do cinismo em moda na Europa, não aposta em desdenhar do seu ofício. Em Portugal, por exemplo, tornou-se fino entre poetas dizer que “a poesia não interessa” (um famoso dictum de T.S. Eliot). Até faz sentido, para quem escreve nos subúrbios da vida, por tédio. Não no caso de Zheng Danyi, onde a escrita e a vida não são separáveis. Na sua poesia, como em muita da arte contemporânea chinesa, há uma crueza e um desassombro por vezes quase brutais que têm obtido uma recensão fora da China que as considera como violência gratuita ou como estranheza deliberada. Mas que outra coisa esperar de uma crítica e de uma sociedade que se habituaram a ver a arte como mero exercício? Como posso fazer-te acreditar que isto é o /Outono Quando tudo aqui Prova o oposto! Quando a mais fria água pega fogo Quem sabe – colo o meu ouvido A um sino. Quem sabe – Encomendei uma rajada de vento! Num mês As folhas caíram O sino esgotou o seu repique Como pode ter sido vinho A privar-me do meu desgosto! Como podes tu, caminhando sozinho Ter-te tornado escravo da tua alma Como podem os pássaros, mortos há muito Subitamente reaparecer no céu? Outono. Dias indescritíveis Dias em que o fogo extingue fogo Não, como posso fazer-te acreditar Que estes são dias em que electricidade se / dobra em metal! Estes são dias de apocalipse! Quando eu, / para ti Escancaro a porta da morte… Agora entra. Perplexas faces, gloriosas faces Dias melancólicos se encontram no Outono! QUANTOS OUVIDOS DA ALMA OUVEM Quantos ouvidos da alma ouvem idade Ou solidão? A última, a única liberdade Está desfeita. Quando intoxicada No cume da felicidade Nas profundezas de enormes plantas Quantos ouvidos da alma ouvem Rodas de pequenos dentes, girando Infinitamente girando Violentas línguas enredadas sob água Prodigalizando flores e interminável / bom vinho Porém cada nascer é um salvamento Como banquetes, uns a seguir doutros Pois o terror é bastante. Pois a terra Rouba antes de dar de novo Demasiado obsoleto! Por favor – Quantos ouvidos da alma ouvem O seu próprio arquejar, ou as batidas / do coração De crianças cantando Em punido ar A derradeira canção de inocência PRIMAVERA Como uma palavra de veias cortadas Isto é Primavera Após numerosas Primaveras Certos inimigos acordam Como um suave jardim Ervas, chuva, ou uma aguda vedação Tais coisas, no passado poderiam ter sido Espadas e adagas Amor, solidão… deixa estar Entre sonhos e fantasias Estão essas flamejantes pétalas Línguas traindo o amor Ou veias Secretamente quebradas? O vidro faz progressos Carregado com órgãos internos…Árvores / palácios Fazem progressos Em direção a gentileza, ou a cristal ou sal? Olha, vermiculares dedos, rostos Como Terreiros de execução – Meras folhas de papel branco Como poderemos suportar assaltos de sangue Olha, o que faz Este planeta de valas comuns entontecer, / cansar Não! Certamente não Costumes, morte, nascimento…ou um jardim Nas margens da carne destinadas a rebentar A terra está preparar, a devorar Outra Primavera CONHEÇO OS SONHOS DESTA REGIÃO Conheço os sonhos desta região Ao lado de uma ave fugitiva e de um sino / que toca Em Nanjing. Rochas para rochas se retiraram De Edifício graves Deixando muito espaço para árvores Flor de primavera, lua de Outono, ano sim, / ano não Paisagem e beleza desfilam, ar púrpura Fugindo de templo e igreja Buscando um cheiro, um bando de corvos Paira sobre o quarteirão…Um bando / de corvos Relutantes na partida, até Turistas serem trazidos ao alto do monte A mais bela Capital que já vi – a invernosa Najing Na margem da morte Mostrando paisagem. Secreta, serena…Até Carnudos remoinhos São trazidos de labirintos subterrâneos Abrupto ar de entardecer espalha ansiedade / e medo Uma ave fugitiva Sonhos de um sino que toca A capital foi para norte, as pessoas / ergueram-se E eu sei segredos mais profundos Para além da vista. Em delapidados Palácios, uma pérola única Ou uma cabeça tombada Causaram enorme incêndio Em Nanjing, metade do fogo penetrou / a poesia. A outra metade Contida por montes e lagos Imagens rectificadas por paisagem Torre subidas para ver – Nunca curta semana, a frente fria cruzou / o Yangtze Vestido em roupa almofadada Eu regressei À outra margem da morte…Oh Os meus passos apressados me envolveram Em sonhos desta região. Buscando um cheiro Repetindo faces fictícias A última noite trouxe grande neve Um par de sapatos de algodão me acenou Adeus às portas da cidade… A ave fugitiva, de novo, sonhou com um sino tocando Janeiro de 1989 OITO POEMAS CHAMADOS ESTILHAÇOS 1. O VENTO BATE COM SUAVES CASCOS O vento bate com suaves cascos nos vidros / da minha janela Eu balanço como água num copo No corredor branco do tempo Como um copo de água não me posso / inclinar O vento, depois dos bosques, varre agora / as ruas…. O vento, saindo da cidade…a um distante / vale Abre: castanha felicidade engarrafada Olho para dentro de mim…O vento Fica no copo, por isso só posso tremer Tremer. Ecoar O som das rochas despejadas nos tímpanos / do vale 2. POESIA O horário marcado, papel preparado, sangue / grita em calma Um som inclina-se para a frente Uma sombra varrendo diz: Agora A escrita começa Quando o vale mistura a sinfonia das canções / de amanhã Rasgo as ligaduras Rasgo a pele da dor para veres – Olha, aqui Poesia – este pássaro a ficar cor-de-rosa Penas cheias, músculos fortes, ossos / embrulhados Cordas vocais prateadas e finas como asas / de cigarra Todo completo…E aqui O crescimento no céu E fundos arranhões que deixou no papel… 3. RECUSA Toneladas de gelo flutuando no céu Chamamos-lhe nuvem Toneladas de raiva agitando-se no céu Chamamos-lhe trovão No cálice do universo Relâmpago gelado junta-se de novo a carne Toneladas de carne Chamamos-lhe amor Chamamos-lhe: qualquer coisa – Até que finalmente lhe chamamos; ódio Flutuando no coração Um pedaço de rugoso osso Entre estas linhas Nuvens de diferentes designações recusam-se / a fundir 4. VOCABULÁRIO BRANCO Então, deve ser assim que se cospe gravilha “Sobe rochas, esmaga…” Então, deve ser assim que se limpam / feridas mortas “Luvas, rochas, serra eléctrica…” Já não sonhamos para além de amanhã Nas rochas, vocabulário branco Paciente aguarda que a ordem esguiche, / em massa 5. MAS UM POETA É SÓ Mas um poeta é só um rádio amador No coração de sal e cristal, rápido nevoeiro / prevalece Cristal, olhos translúcidos, fixa blocos / de cimento Organizados como caixões ao longo / do céu Mais alto, num inferno de cimento, é salve-se / quem puder Mas um poeta pode voar – no sonho De um objeto voador feito de gralhas e papel / encharcado Mas um poeta é só alguém que fala no / nevoeiro Só um falante Em espesso nevoeiro Um archaeopteryx, exalando quentes / baforadas 6. COM POESIA Escuridão. Escuridão continua Um brilho branco no crânio Nunca pode ser esmagado Começo a limpar sangue em cadáveres Com poesia, começo a rezar Deixo sair calor aprisionado nos membros / de vocabulário Com poesia – o radiador inquebrado Quando no meu vas deferens algo se agita… 7. VIDA Vida, o que podes espremer agora A parte perecível pereceu A parte que abana foi abanada O que pode ser perdido, perdido O que pode ser sobreviver, sobrevive… Oh, Vida, a que me espreme Mas já não podes espremer mais, nem sequer Uma lágrima forçada 8. APARTAMENTOS DE CIMENTO Recuas perante ti mesmo, recebes O lençol branco com clavículas As portas estão sendo instaladas, uma a uma A cama, amarando as suas oito pernas, / não está disposta a suportar – Um frio Desejo de se erguer ocupa o leito de morte Desnecessariamente largo Com expressões presas e câmara lenta Novos inquilinos estão-se a mudar Erguendo-se, caindo, em fila As portas estão numeradas por dentro, / com endereços… Como pedras tumulares erigidas na mente “Não mais escrita – não mais!” Um cheiro ardente penetra as narinas Ela jaz na cama como suave fio Queimado por um sonho de alta voltagem… Maio de 1985 De Dezasseis Poemas, 1988 Introdução e Tradução de Rui Cascais
Hoje Macau Via do MeioPoesia chinesa e psicanálise Por M. Ângela Andrade O que há de peculiar na forma na poesia chinesa,1 que leva Demiéville2 a comparar a sua tessitura com a arte de “fritar peixinhos sem destroçá-los”? Há uma alusão à sua leveza e subtileza. Mas esse savoir-faire implica ainda exercitar-se pela repetição, pois os chineses imitam e repetem sempre os códigos poéticos, os mitos e os ritos ancestrais. Para além do saber fazer, da habilidade, o que confere à poesia charme irresistível é o estilo e a singularidade, tal como o demonstra a caligrafia chinesa. O que se apreende é que a repetição chama o novo. Na tessitura de uma poesia provisória, a apreensão do ser sempre escapa. Daí ser “poesia ténue, sempre prestes a se desfazer na via do apagamento, sempre capaz de evitar o desaparecimento, ameaçada de extinção e, no entanto, sempre renascendo. Afinal inextinguível, por tocar nos contrastes da língua em si, da qual se desprende a linguagem.” 3 Antes de prosseguir lendo como Albert Nguyen articula as relações entre poesia chinesa e psicanálise, cumpre notar dados historiográficos da relação de Lacan com a China, sua língua e pensamento: Jacques Lacan sempre fora atraído pelo Extremo Oriente e sabe-se que, durante a Ocupação, havia aprendido o chinês na Escola de Línguas Orientais. Em 1969, quando elaborava sua teoria do discurso a partir da divisão wittgensteiniana do dizer e do mostrar, voltou a mergulhar com paixão no estudo da língua e da filosofia chinesa.† Em outra ocasião procurei tratar aqui das referências sobre a língua chinesa nos seminários de Lacan, principalmente as do seminário XVIII. No presente trabalho busco apresentar aspectos das indicações de Lacan a respeito de poesia chinesa: “Se vocês são psicanalistas, vocês verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outras coisas, outra coisa que o sentido. (….) O sentido, isto tampona; mas com a ajuda daquilo que se chama escritura poética vocês podem ter uma dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. É absolutamente certo que a escritura não é aquilo pelo que a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. É aliás completamente surpreendente que os poetas chineses se exprimam pela escritura e que para nós o que é preciso é que tomemos na escritura chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia… seja tal que a possamos imaginar pela escritura, pela escrita poética chinesa, mas talvez vocês sintam aí alguma coisa que seja outra, outra que aquilo que faz que os poetas chineses não possam fazer de outra forma senão escrever…”4 A poesia chinesa, porém, só pode ser lida conhecendo o contexto em que brota, ou seja, os fundamentos filosóficos, particularmente taoístas em que está alicerçada. Ainda sobre o contexto: o solo em que florescem essas tradições gerou uma combinação particular de vertentes filosóficas heterogéneas que, no entanto, se revelam bastante assimiladas na cultura chinesa. Nguyen indica ainda os trabalhos de Isabelle Robinet e François Julien que demonstram indiscutivelmente a incidência e força destas doutrinas, tanto na poesia como na estratégia e política da China. O artigo em questão destaca três grandes poetas chineses para ilustrar cada tradição: Wang Wei (budista), Li Po (taoísta) e Du Fu (confucionista). Escolhi para ilustrar a presente exposição, a poesia de Wang Wei. Atalho pela velha floresta; nenhum vestígio No coração do monte, um som de sino; vindo de onde? À tarde, sobre o lago deserto, meditando, Alguém aprisiona o dragão venenoso. Em Televisão, Lacan fala do estatuto provisório da poesia, fazendo dela uma arte do desprendimento, como aquela que o poeta Wang Wei pratica. No encontro de poesia chinesa e psicanálise surgem interferências e diferenças. Nguyen destaca a ressonância, termo que equivale à interferência, como o alvo da interpretação psicanalítica. As interferências ou ressonâncias são: 1. A natureza, que na poesia chinesa indica o lugar do vazio, o furo. “Lugar de ressonância, lugar de interferência: nada pode ressoar sem um furo: aquilo que no saber constitui o sintoma analítico, aquilo que deixa o poema e o livro inacabados, aquilo da ruptura da tradição que provoca a rã de Bashô, que se lança no poço, plof! e tantas outras indicações desta interferência da ressonância.” 2. A relação com o real. Essa segunda interferência assenta-se no lugar concedido ao real. A relação ao real é distinta na psicanálise. Na poesia chinesa, o real surge como realidade derradeira, sinónimo de Tao. Já a psicanálise confere ao sujeito o estatuto de separado, cortado definitivamente de todo o mundo e de toda cosmologia. Assim, separação, exclusão do sujeito, em oposição à integração taoísta. Poderíamos, talvez, aproximar essa relação ao real no taoísmo com a música tonal, enquanto que a relação ao real na psicanálise com a música atonal. Ou ainda com Badiou: “O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender bem, é que ausência de sentido para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido, uma subtracção ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).”§ 3. A mistura, mestiçagem (métis) da linguagem ou do real com a linguagem do simbólico. É a que se contrapõe à linguagem unívoca do Um fálico; a mestiçagem favorece a maleabilidade de espírito. Efeito de sujeito, afânise, ou o estatuto provisório, evanescente do ser? O sentido de “poesia provisória” diz respeito ao caminho no qual a apreensão do ser sempre escapa. O analisante e o poeta seriam, nesta perspectiva, um efeito poético. Nguyen conclui seu trabalho com o que nomeia de Lacan chinês. Diz ele: “Como situar esta possibilidade do passo suplementar que Lacan realiza sobre o taoísmo e a poesia? A resposta é dupla. Por um lado, Lacan, ao formular a estrutura, não deixa de examinar o registo da consequência (desenvolvida nesse mesmo seminário). A causa não porta somente efeito, mas consequências. E por outro lado, esse passo suplementar é autorizado pelo que nomeio de “Lacan chinês” para designar o lugar sempre marcado de referências chinesas em seu ensino, do início ao fim. Lacan começa seu ensino com o Zen e todos conhecem a referência à Índia de Prajapati e o Deus Trovão dos Escritos, mas é principalmente a partir do seminário “A Angústia”, seminário sobre o afecto certeiro da angústia, central em sua elaboração da teoria da causa, que Lacan, a partir do vazio e do feminino – pois é também este um seminário sobre a abordagem do feminino juntamente a uma tentativa de visualizar um para além da rocha freudiana da castração para o final de análise – com Kuan Yin, a fêmea misteriosa da qual ele extrai o olhar como causa, olhar faltante, olhar vazio, começa a marcar aquilo que será uma insistência sobre as referências chinesas.” Notas 1 “La métis des mots: le poète et le Saint”- Albert Nguyen. BARCA! N. 8. 1997 2 Os interlocutores de Lacan foram inicialmente o sinólogo e tradutor Paul Demiéville, que durante anos dirigiu a École Pratique des Hautes Études, e mais tarde, o escritor e chefe dos trabalhos no Centro de Linguística Chinesa da mesma École, François Cheng, com quem leu textos clássicos em chinês. 3 Ibid. pg 122 4 Lacan. L’insu. pg 129
António Graça de Abreu Via do MeioCarta ao poeta 白居易 Bai Juyi (774-842), em Hangzhou Escrevo-te, meu querido e reverenciado amigo Bai Juyi, para te agradecer o acolhimento fraterno, de grande irmão mais velho que me proporcionaste nos cinco dias em que, no início da Primavera de 2011, estive a teu lado em Hangzhou, nas longas deambulações em redor do Lago Oeste, na visita aos tempos de Lingyin e de Yongfu, no passeio pelos diques e pela perfeição das ilhas do Lago. Encontrei-te logo à chegada a Hangzhou. Estavas igual ao que sempre foste, agora moldado no bronze dos séculos, ali na margem norte do Lago despedindo-te da gente boa da cidade, em 824, após três anos como governador de Hangzhou. Nos olhos, na memória de todos, a figura do digno mandarim e letrado defensor de pobres e humildes. Um forte abraço na tua estátua de bronze, e fomos retratados os dois, para testemunho da minha velha admiração. Imortal da Poesia, foi cumprida nos séculos VIII e IX a tua excelente missão de funcionário imperial, mandarim, poeta e homem de bem. Hoje continuas sereno a assistir ao perpassar dos anos, junto ao Lago Oeste, admirado por multidões de chineses que, tal como eu, não resistem ao apelo da fotografia a teu lado. Aproveitei para te segredar que havia traduzido a tua poesia para português, a quinta língua mais falada do mundo e publicado em 1991, em Macau uma antologia, os Poemas de Bai Juyi[1], com parte representativa da tua obra, 202 poemas no total. Um finíssimo sorriso teu, de bronze, cumplicidade e amizade. Chegaste a Hangzhou no Verão de 822, com 50 anos de idade e pouca vontade de exercer as funções de governador. Escreveste então: “Há muitos homens sábios na corte, eles dirigem os destinos do império. Eu prefiro voltar o meu rosto para o Lago Oeste e durante dois ou três anos ter como única ocupação o vinho e a poesia”. No entanto, o teu nome ficou ligado a uma obra ainda hoje existente e emblemática para as gentes da cidade, a construção do Bai Di, um extenso dique no lado oeste do Lago capaz de conter e regularizar o fluxo das águas, o que facilitou a irrigação e os trabalhos agrícolas. Uma das tarefas de um governador de cidade era endereçar preces aos deuses, pedindo auxílio e protecção. Deixaste-nos, Bai Juyi, bons exemplos do teu pragmatismo e utilitarismo, tão comum no homem chinês. Ao Dragão Negro do Norte, um dos espíritos que comanda as chuvas, escreveste: “Dirigimo-nos a ti na esperança de um favor, mas não te esqueças que a tua divindade depende de nós. As criaturas não são divinas por conta própria, são os crentes que as fazem divinas. Se dentro de três dias as chuvas começarem a cair, a água será uma bênção para os camponeses e nós reconheceremos os teus poderes sagrados. Mas se permaneceres quieto, olhando calmamente o estiolar das colheitas por falta de chuva, isso não será apenas desastroso para o povo, será também mau para ti. A ti compete decidir.” Os quotidianos em Hangzhou, segundo as tuas próprias palavras, eram “festas, passeios, comer e dormir”. Em 824, no regresso a Chang’an, a actual Xi’an, capital do império, estavas triste, a vida na cidade do Lago Oeste fora agradável, pacífica e enriquecedora. Num adeus às gentes de Hangzhou, escreveste: Não governei a cidade como os sábios do passado, Porque vejo então lágrimas em vossos olhos? Foram pesados os impostos, o povo é muito pobre, Tempos difíceis para os camponeses, a seca assolando os campos. Tudo o que fiz foi levantar um dique nas águas do Lago, Ajudar um pouco a irrigar a terra. Fizeste-me companhia nestes dias em Hangzhou, também nas caminhadas pelos arredores da cidade. Subimos ambos os montes até ao famoso e antiquíssimo templo budista de Lingyin construído no ano 326 onde os muitos romeiros chineses, em sucessivas genuflexões sentidas, pediam ao velho Buda de madeira de cânfora com 20 metros de altura, benesses e protecção, a eliminação do sofrimento, uma vida melhor e mais rica. Avançámos depois para o pouco conhecido templo de Yongfu, ou seja da Felicidade Completa. Longe dos homens, no vazio da floresta, havia pavilhões suspensos no verde das encostas, portões de madeira lavrada, a pequena névoa azul dos fumos de incenso, sorrisos dos budas, o rosa suave e denso das ameixieiras em flor, a água chilreando nas cascatas embalada pelo cantar dos pássaros. Regressámos em paz ao Lago. Diante do pagode de Leifeng sentámo-nos num pequeno varandim sobre as águas, bebemos uns cálices de aguardente de sorgo. Caía a tarde, ouvimos cânticos do céu. Ofereceste-me então este teu poema, escrito aqui no ano de 824. A norte, o mosteiro, a ocidente, o grande pavilhão, cheio o lago Oeste, transbordando para as margens, As nuvens dançam, parecem suspensas nas águas. É Primavera, rouxinóis procuram árvores ao sol, andorinhas ziguezagueiam sobre pequenas ondas, a erva começa a cobrir os cascos dos cavalos, meus olhos fascinados pela profusão das flores. Gosto muito de passear na margem leste do lago, poderia passar aqui todos os meus dias na restinga de areia branca sombreada por salgueiros verdes.
António Graça de Abreu Via do MeioYuan Mei – Palavras Poéticas Tradução e textos de António Graça de Abreu Yuan Mei 袁枚 nasceu em Hangzhou em 1716. A cidade, na margem do lago Oeste, em Zhejiang, com mil e quinhentos anos de história, será talvez a mais bonita capital de província de todo o império chinês, rodeada de montes e florestas, polvilhada de templos e pavilhões, com um lago enorme que nas margens se desdobra em recantos onde são possíveis quase todos os encantamentos do mundo. Hangzhou está embebida no lastro do passado, recordando mil vilanias e todos os prazeres. Yuan Mei, talvez o maior poeta da dinastia Qing (1644-1911), provinha de uma família de modestos letrados da cidade. Seria ele o primeiro mandarim da família, grau que obtém nos exames imperiais aos 23 anos. Exerceria as funções de funcionário estatal apenas durante nove anos. Voltou ainda aos afazeres de mandarim, mas tinha pouco ou nenhum gosto pelas malhas do poder, um dos seus maiores prazeres era nada ter que fazer e dedicar-se apenas à escrita e à leitura. Os seus poemas começavam a ser conhecidos e tinham venda. Ele próprio acabaria por montar na sua casa uma espécie de tipografia, com painéis de impressão com pranchas de caracteres móveis em madeira. Editava assim os seus próprios livros e obtinha avultados rendimentos. Com menos de quarenta anos, Yuan Mei retirou-se para uma grande mansão que comprou em Suiyuan, nos arredores da também bonita cidade de Nanquim, e, com muitas viagens de permeio, aí viveu até ao fim da sua longa vida. Fechou os olhos, para sempre, em Dezembro de 1798, aos 82 anos de idade. Três poemas de Yuan Mei 袁枚 (1716-1797) , Contemplando um amigo que toca flauta ao luar Noite de Outono, visito um ermita meu amigo. Vem até mim a música, acordes perfeitos debaixo do céu, ondeando na superfície do lago, à luz fria do luar. O trinar de uma flauta, o coração do amigo, a melodia agarra nuvens azuis que descem sobre as águas. Encontramo-nos no meio de perfumes coloridos pelo rosa das flores de lótus, cobertas de gotas de orvalho cristalino. Na claridade prateada humedecidas nossas vestes. Na estrada para Baling[1] A oeste do lago Dongting, um templo, uma deusa no altar, jovens de sobrancelhas pintadas confortam viajantes cansados. A região montanhosa, vazia de gentes, as tendas fechadas, distantes os faróis na margem, a minha barca ao entardecer. Não entendo o dialecto do lugar, preciso de alguém para traduzir, pássaros estranhos, de nomes desconhecidos, envergonham o poeta. Raros barqueiros conhecem a minha vontade, o meu sentir, levanto a janela do barco, por toda a parte, ramos em flor. [1]Baling, ao lado da actual cidade de Yueyang, famosa pelo torreão junto ao lago Dongting, na província de Hunan. Aceitando a minha sorte Fechado em casa assumo os dias como um pobre poeta. Acumularam-se os anos, entrei agora no carreiro dos velhos. Fascinado por montanhas rodeadas de nuvens esqueço a minha própria terra, por vizinhos, tenho macacos e pássaros. Abandonei todos os meus cargos, dedico-me a fruir o prazer de existir. Porque não tenho um filho varão. vou casando, vez após vez.1 Esqueci o grande talento que julgava ter para mandar e governar, e aceito ser um simples poeta, minha sorte, meu destino. [1] Só aos 62 anos, Yuan Mei conseguiu ter um filho rapaz da sua quarta concubina. Nas últimas duas décadas da sua vida, Yuan Mei entreteve-se a redigir um vasto conjunto de Shi Hua 詩話, Palavras Poéticas, utilizando sobretudo a prosa. Com esta denominação apareciam desde o século XI inúmeras recolhas de textos breves da autoria dos mais diversos letrados. Yuan Mei não inovou no título dos seus escritos. Tratava-se fundamentalmente de pequenos excertos autobiográficos, meditações sobre a essência da poesia, vidas de poetas, anedotas, etc. Por exemplo: “Wang Chizi foi meu colega nos exames de 1744. À entrada na sala das provas, recitou um poema da sua autoria com o título Junto de túmulos antigos. Assim: Sombrio, triste, minúsculo o antigo templo, um mocho descansa nas gravuras do arco de pedra. Ainda é dia quando quem perdeu entes queridos se reúne e prepara as cerimónias fúnebres. Enorme confusão de cavalos e carruagens. Eu ousei perguntar-lhe porque é que ele parecia tão satisfeito por ter escrito este poema,. Wang Chizi sorriu e disse: “Fecha os olhos e pensa.” Outro exemplo: Os taoistas para ascender ao céu precisam de fabricar nove vezes os seus pozinhos da imortalidade. Os confucionistas apreciam sobremaneira a rectidão e o meio justo. Um cozinheiro conhece bem a sua arte, sabe como controlar o fogo, como manter o lume. Yuan Mei continua questionando o leitor. Alguém me perguntou qual o nome do melhor poema escrito durante esta dinastia. Eu argumentei, perguntando: qual é o melhor poema do Shi Jing, (o Livro das Odes.)[1] Não obtive resposta. Então disse: A poesia é como as flores, uma orquídea na Primavera, um crisântemo no Outono, não podemos dizer que uma é melhor do que a outra. Quando a música das palavras e a ideia na concepção do poema emocionam um coração, estamos diante de um bom poema. E continua Yuan Mei: O poeta Yang Wanli (1124-1206) terá escrito “Porque é que as pessoas com pouco talento literário sempre falam sobre métrica e a utilização dos tons em poesia? A métrica e os tons são apenas a armação e não é difícil levantá-los. Mas é na concepção do poema que se expressa o génio do poeta, é aqui que se mostra a sua qualidade. Outro exemplo da prosa breve de Yuan Mei, citando Bu Xian um amigo presidente de uma academia em Guilin onde o nosso amigo o encontrou em visita que fez à cidade, em 1784: Bu Xian disse: “A poesia nasce do coração e depois faz-se com as mãos. Se o coração controla a mão, está tudo bem, mas se a mão faz o trabalho do coração, está tudo errado. Hoje em dia, muitos imitam as bases da poesia, copiam um pouco daqui e de acolá, usam tudo o que está amontoado em pilhas de papel velho em vez de contarem com o que brota dos seus próprios sentimentos. É o que eu chamo ‘A mão fazendo o trabalho do coração.’” Na China do século XVIII aconteciam ainda acaloradas discussões sobre a poesia do passado. Yuan Mei explica: A divisão da poesia entre estilo Tang e estilo Song continua hoje a manifestar-se. Isto corresponde ao facto de muitos ignorarem que a poesia é o produto dos sentimentos dos homens, enquanto que Tang e Song são simplesmente nomes de duas dinastias. Os sentimentos das gentes não mudam com o renovar das dinastias. Para terminar, uma referência a um incerto poeta chamado Tai Yuyang: Este senhor escreveu o seguinte verso: “O ar da noite envolve os montes/ apequena-se a terra e o céu.” A beleza reside na margem existente entre o inteligível e o não inteligível, trata-se de dois versos primorosos. Mas quem foi Tai Yuyang, o autor? Não faço a mínima ideia.
Hoje Macau Via do MeioBreve introdução à vida e obra do poeta Tao Yuanming Tradução e texto de Manuel Afonso Costa A. Vida Alguns sinólogos europeus chegam a falar de Idade Média para caracterizar o período da História da China que fica situado entre o fim da Dinastia dos Han (220 d. C.) e a breve dinastia dos Sui (589 d.C.). Esse período que, como disse, chega a ser classificado de uma verdadeira Idade Média da história chinesa é mais vulgarmente designado por Época das Seis Dinastias; Liu chao, se as entendermos como sendo as Seis Dinastias puramente chinesas (han) do Sul ou Nan bei chao, se as considerarmos as Dinastias do Sul e do Norte. Bem a meio desta época, de intensa divisão nacional e por isso também muito conturbada, viveu o poeta Tao Yuanming, mais concretamente entre 365 e 427. Tao Yuanming nasceu em Chai-sang, no sopé Noroeste da montanha Lu. Se bem que Tao Yuanming seja muito mais um poeta do Tempo do que do Espaço, tudo leva a crer que o fascínio do lugar terá desempenhado um papel importante tanto na formação da sua sensibilidade como nas oscilações permanentes do seu modo de vida. Assim, se Tao Yuanming acedeu ao mandarinato com a idade de 28 anos, a verdade é que interrompeu esta actividade muitas vezes. Em todas elas é possível estabelecer uma relação entre essas interrupções e profícuos regressos ao campo. E estes regressos ao campo são mesmo escolhidos pelos estudiosos da sua obra como marcos referenciais da sua evolução poética. Durante o primeiro regresso ao campo (400-401) ele escreveu Voltando à minha antiga morada, poderoso poema onde a alegria se mistura com a angústia. O segundo regresso ao campo (402 a 404), por ocasião do luto por sua mãe, corresponde, sabe-se, ao período provavelmente mais tranquilo da vida do poeta, período durante o qual escreveu os vinte poemas subordinados ao tema do vinho. Se alguma vez Tao Yuanming foi feliz terá sido durante este segundo regresso ao campo e pelo menos por três motivos. Antes do mais porque o evento do luto, permitindo-lhe um prolongado retiro o poupou aos acontecimentos sangrentos desencadeados pela rebelião de Huan Xuan contra o poder imperial, que só acabou quando Liu Yu, que se manteve fiel ao imperador, debelou a rebelião e restaurou a dinastia Jin. Em segundo lugar porque ao longo destes anos o poeta se exercitou nas práticas agrícolas, tão do seu agrado. Finalmente, porque embora hesitando ainda entre o mandarinato e a agricultura, ele adquiriu, durante este retiro, a consciência inequívoca da sua condição de poeta, tal foi o volume da sua escrita nesta época. Segue-se o ano de 405, tão terrível, que no ano seguinte começará o retiro definitivo do poeta, cuja primeira parte vai de 406 a 412 e cuja segunda parte culminará na sua morte em 427. O Grande Retiro que vai afinal de 406 a 427 será poeticamente inaugurado pelo célebre poema longo precedido de uma introdução não menos longa e intitulado Finalmente regresso a casa. Este é provavelmente o mais emblemático poema da obra de Tao Yuanming, pois nele o poeta explana de forma sistemática a sua ideologia de retiro, culto pela humildade e modéstia. Qual a natureza da motivação destes retiros, tão decisivos tanto na vida quanto na obra do poeta. Tradicionalmente enfatizam-se duas formas de aproximação: A hipótese do princípio moral e a hipótese da inclinação. Recusa da corrupção do regime ou eremitismo confuciano por um lado ou vocação campesina por outro. Por mim, como se verá, inclinar-me-ei mais no sentido de uma espécie de Pastoral on the Self, de grande modernidade e onde o retiro é colocado ao serviço de desígnios literários, embora estes desígnios literários sejam inseparáveis de uma posição moral onde a vida simples é promovida em detrimento da vida palaciana. 1 No terceiro mês do ano yi si, em missão à capital na minha qualidade de conselheiro do general encarregado de restaurar o brasão do exército, ao passar por Qian xi … desde que abandonei estes lugares, os anos passaram depressa e agora tenho de novo todo o dia para olhar as montanhas e o rio tudo é como sempre foi, uma chuva ligeira lavou os picos mais altos do bosque o vento está fresco, contudo agreste, os pássaros surgem das nuvens de repente ah! como eu admiro este mundo tão variado, esta harmonia o modo como circula o vento, natural e benigno por que terei eu de fazer o que faço! os desejos mais antigos não se alteraram nada e todos os dias sonho com o campo e com a casa é difícil ficar longe tanto tempo por isso ao longo do dia o meu pensamento tem a forma do junco que me há-de levar de volta; a minha tenacidade é igual à dos ciprestes também eles desafiam a geada. 2 Finalmente regresso a casa A minha família era muito pobre e os trabalhos campestres não eram suficientes para sustentar a família. A casa estava cheia de crianças e de arcas vazias. E a verdade é que eu não vislumbrava nenhum caminho para assegurar os proventos necessários à sobrevivência de todos. Por estes motivos, as pessoas mais próximas aconselhavam-me insistentemente para que retomasse um lugar na administração distrital. Mas como consegui-lo? O meu tio, ao ver-me em tal estado de penúria, conseguiu que me fosse entregue um lugar num pequeno distrito. O que mais temia era um lugar demasiado afastado, mas felizmente Peng tse não ficava a mais do que cem lis da minha aldeia. Como o pedaço de terra associada à função garantia também uma boa ração de vinho, decidi aceitar. Alguns dias depois de tomar posse já eu estava morto por regressar. E porquê? Porque sou assim, e recuso o conformismo por instinto. Ainda que a fome e o frio apertassem, viver contrariado punha-me doente. Não era a primeira vez que estava mergulhado em obrigações mundanas, dominado pela necessidade da sobrevivência. Desmoralizado, abatido e revoltado, sentia uma vergonha infinita por estar a trair o grande sonho da minha vida. Esperei, portanto, apenas o tempo de uma colheita para voltar a fazer as malas e durante a calada da noite escapulir-me. Pouco tempo depois desta decisão, a minha irmã mais jovem, esposa de Cheng, faleceu em Wu Chang. As minhas emoções entraram em galope acelerado. E demiti-me logo que pude. Não foram mais do que oitenta dias, desde o meio do Outono até ao princípio do Inverno, os dias em que estive em funções. E como o desenvolvimento dos factos coincidiu finalmente com o meu desejo, eu intitulei esta composição “finalmente regresso a casa”. No 11º mês do ano yi si Enfim! Regresso, os campos e o quintal já devem estar cobertos de mato porque não regressei mais cedo? porque deixei que o corpo abusasse da alma? é inútil ficar abatido, desiludido com a sorte pois sei que se não há remédio para o passado, é pelo menos possível tentar mudar o futuro enfim, estou certo de que não perdi o rumo ainda escolhi apenas o caminho errado, o barco desliza protegido por uma brisa suave, sinto-a através da roupa interrogo quem passa para não me perder, lamentando a indecisão matutina da luz quando de repente vislumbro sob uma luz crepuscular a cabana, minha humilde morada e logo desato a correr em viva excitação o criado jovem, alegre vem ao meu encontro, os meus filhos esperam-me na soleira da porta os caminhos foram invadidos por ervas daninhas e quase desapareceram mas os pinheiros e os crisântemos estão intactos de mãos dadas com as crianças entro em casa onde me espera um jarro de vinho na sala bebo um copo sozinho ao ver as árvores e os campos alegra-se meu coração apoiado no parapeito da janela que dá para sul mastigo um desdém imenso pelo mundo e deixo correr a felicidade quem com pouco se contenta com pouco se satisfaz ao longo dos dias por puro prazer passeio pelo jardim a cancela continua fechada de bengala na mão ando, passeio e descanso de vez em quando levanto a cabeça e olho para longe as nuvens aparecem e desaparecem, sem tréguas, no cimo das montanhas os pássaros invadidos pelo temor sabem que é a altura de voltar a casa a luz do Sol diminui, o pôr do Sol está breve encosto-me, com melancolia, a um pinheiro solitário agora sei que regressei ao lar que tudo fiz para romper com o mundo, ele e eu nunca nos demos bem para quê alimentar ilusões? Não há nada a procurar agrada-me mais uma boa conversa com a família e os amigos, gozo o qin e os livros, são eles que curam as preocupações quando a Primavera chega, os camponeses dão-me conselhos é preciso trabalhar os campos a Oeste às vezes dou uma volta numa pequena carroça outras, remo um pouco na minha barca solitária seguindo as águas mansas e serenas ou penetrando ravinas profundas, até ao inesperado de fontes silenciosas é uma maravilha o mundo com tanta beleza os ciclos inexoráveis da natureza e comovo-me ao pensar que a minha vida também se aproxima do fim, mas sem drama, É tão pouco o tempo que aos homens é dado sobre a terra, enfim, é a vida! por quanto tempo ainda? então sigamos apenas a voz do coração a gente afadiga-se, a gente agita-se, e onde é que isso nos leva!? não tenho desejos de riqueza e nem quero alcançar o céu não quero mais que aproveitar os dias, fazendo cera, e andar por aí sozinho a caminho dos cimos assobiando alegremente, por margens de ribeiros de águas límpidas ou mesmo fazendo poemas sigo o curso das coisas até ao fim, e se me regozijo com a ordem do céu o que é que pode preocupar-me deveras?
António Graça de Abreu Via do MeioDo Silêncio e do Vazio na poesia de Su Dongpo O grande 蘇東坡Su Dongpo (1037-1101) não pára de nos surpreender. A sua vasta poesia, multifacetada nos temas, na abordagem ao real e ao fantástico, desdobra-se diante dos nossos olhos e sensibilidades, num painel distante e próximo de encantamentos e maravilhas. O vazio e o silêncio são temas caros à grande poesia chinesa. Eis quarenta caracteres de poemas de Su Dongbo, recriando o tema: Vazio e silêncio (dois excertos) 欲令诗语妙 无厌空且静 静故了群动 空故纳万境 Para a maravilha do poema, o melhor é o vazio e o silêncio. Em silêncio, floresce tudo o que se move, o vazio alberga dez mil imagens. 我心空无物 斯文定何间 君看古井水 万象自往还 O meu coração vazio, suportando coisa nenhuma, não importam as comezinhas coisas do mundo. Olhem a água de um velho poço, dez mil imagens aparecem, desaparecem. A propósito destes versos, do silêncio e da água no velho poço, escreveu He Qing, letrado chinês nosso contemporâneo: “O vazio e o silêncio são considerados como o princípio primevo da poesia. Quanto mais vazio e silencioso um poema soa, mais valor estético ele ganha. “(…) Pode-se imaginar esse silêncio, essa imobilidade, essa limpidez, essa frescura, essa profundidade temporal da água de um antigo poço, e imaginar que esta água silenciosa reflecte, serenamente, os vôos das aves, as viagens das nuvens, as vibrações da luz do sol, as oscilações das relvas e dos ramos das árvores, as mil cores da natureza. Nesta imagem poética reside não só a maior sabedoria chinesa, mas também o estado ideal da estética chinesa: permanecer ancorado no silêncio mais profundo e contemplar os movimentos mais íntimos do universo…” (He Ding, Images du Silence, Pensée et Art Chinois, Paris, L’Harmattan, 1999, pag. 79/80.)
António Graça de Abreu Via do MeioPoemas de Su Dongpo 苏轼 Su Shi, ou 苏东坡 Su Dongpo, é considerado o maior poeta da dinastia Song (960-1279) e um dos maiores de toda a poesia chinesa, ao lado de Li Bai e de Du Fu. Nasceu em Meishan, em 1037, na província de Sichuan. A sua figura corresponde ao ideal do letrado/mandarim da velha China, poeta e prosador, calígrafo e pintor, homem político e criador de jardins. Crítico dos poderosos do império, conheceu mais de uma dezena de despromoções e exílios. A sua poesia, imaginativa, rica de cores e tonalidades, influenciada pelo budismo禅 chan (o zen japonês) desdobra-se por excelentes descrições da natureza e também pelos temas da amizade e do amor. A lua, no meio do Outono Ao entardecer, nuvens dispersas desaparecem, não se vêem mais montanhas, silenciosa, a Via Láctea dá a volta, na abóbada de jade. Se nesta noite, neste nosso existir, não fruirmos prazer, mil alegrias, no próximo mês, no próximo ano, quem sabe por onde se desdobrarão as nossas vidas? 鹧鸪天·林断山明竹隐墙 林断山明竹隐墙。 乱蝉衰草小池塘。 翻空白鸟时时见, 照水红蕖细细香。 村舍外,古城旁。 杖藜徐步转斜阳。 殷勤昨夜三更雨, 又得浮生一日凉。 Fim da floresta, resplandece a montanha Acaba a floresta, resplandece a montanha, os bambus escondem um muro feito pelos homens. O canto das cigarras na erva murcha, junto ao lago, pássaros brancos em círculos no céu aparecem, desaparecem. Lótus vermelhos reflectem-se na água, soltam perfumes, uma muralha antiga rodeia um velho lar. Lentamente, apoiado no bastão, caminho para o sol poente, de súbito, uma chuva cai, ilumina o céu, Sempre a incerteza no avançar do tempo, o final do dia envolto em espasmos de frescura. Ainda, o último poema de Su Dongpo, escrito em 1101, numa das mais fantásticas montanhas da China, Lushan, na província de Jiangxi. 庐山烟雨浙江潮 庐山烟雨浙江潮, 未至千般恨不消。 到得还来别无事, 庐山烟雨浙江潮。 Névoas de Lushan, marés de Zhejiang Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Antes da viagem, nostalgias mil, depois da viagem, o crescer dos dias. Névoas de Lushan, marés de Zhejiang. Tradução e texto de António Graça de Abreu
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasO Poeta da Montanha Fria – Liu Qiuyin Porquê questionar as gotas de orvalho, o sol nasce, elas transformam-se em névoa. O corpo não é um palácio, mas uma simples estalagem. Por isso tu, hóspede de passagem, liberta-te da paixão, da ignorância, do ódio. O que resta depois? A mágoa, a iluminação, uma gota de orvalho, rigorosamente nada. O homem que um dia se chamou Han Shan, ninguém sabe quem foi. Quando alguém o via, considerava-o um doido, um pobre diabo. Vivia retirado na montanha Tiantai, sete léguas a oeste do distrito de Tangxing, num lugar chamado Han Shan (Montanha Fria), entre rochas e falésias. Daí descia frequentemente para o templo de Guoqing, ao encontro do seu amigo Shi De, encarregado da limpeza da cozinha do mosteiro que lhe guardava restos de comida em malgas feitas com cana de bambu. Han Shan costumava passear-se pelos terraços do templo, gritava de alegria, falava e ria sozinho. Os monges corriam atrás dele, tentavam agarrá-lo, insultavam-no, às vezes queriam bater-lhe. Então Han Shan assumia outra vez um comportamento normal, esfregava as mãos, sorria e partia. Parecia um verdadeiro mendigo. O corpo e o rosto estavam gastos, consumidos pelos anos, no entanto havia coerência nas suas palavras e bastava pensar no discurso de Han Shan para adivinhar ideias profundas. Tudo o que dizia tinha a ver com os segredos do passado, com o subtil princípio das coisas. O seu chapéu era uma casca de bétula, as suas roupas estavam cheias de buracos e usava tamancos de madeira muito gastos. Assim vivia este homem extraordinário, afável, isolado, diluído na natureza, espalhando bom gosto. Nos terraços do mosteiro murmurava palavras surpreendentes como “a transmigração e os três mundos”. Nas aldeias e herdades próximas, Han Shan cantava e brincava com as crianças que pastoreavam os búfalos de água. Quer as coisas lhe corressem bem, quer as coisas lhe corressem mal, mostrava-se sempre satisfeito. Se não estávamos na presença de um sábio, então como reconhecer um sábio?… Há tempos atrás, quando ainda não ouvira falar em Han Shan, fui nomeado para um posto pouco importante na prefeitura de Tanqiu. Na altura da partida apareceram-me umas terríveis enxaquecas. Chamei um curandeiro que me tratou, mas os padecimentos agravaram-se. Atendendo à minha solicitação, veio então um mestre chan 禅 de nome Feng Gan que me disse habitar no templo de Guoqing, na montanha Tiantai. O monge Feng Gan cantava hinos e costumava cavalgar um tigre, o que assustava os outros monges. Quando lhe perguntavam qual era a essência dos ensinamentos de Buda, o mestre respondia: “Seguir o tempo.” Pedi-lhe então que tratasse da minha enfermidade. Feng Gan sorriu e disse: “Os quatro elementos estão no seu corpo, a doença provém da ilusão. Se vos quereis libertar da moléstia é preciso simplesmente água pura.” Trouxeram água e o mestre despejou-a sobre mim. Pouco tempo depois as enxaquecas desapareceram. Feng Gan acrescentou: “A prefeitura de Tanqiu fica junto ao mar, perto das ilhas no meio do oceano, o clima é muito húmido. Ao chegar, cuidai bem de vós.” Perguntei-lhe: “Gostava de saber se existem alguns sábios na região, pessoas que eu possa considerar como meus mestres”. Feng Gan respondeu: “Os sábios são fáceis de encontrar, difíceis de reconhecer. Quando a gente os vê, não os reconhece, quando a gente os reconhece, não os vê. Se quereis mesmo vê-los, não confiai nas aparências. Podereis então olhar para eles. Han Shan é como Manjusri,[1] escondido no templo de Guoqing, por sua vez, Shi De é como Samatabhadra.[2] Ambos parecem uns pobres diabos, uns doidos. Chegam e desaparecem, trabalham no templo de Guoqing, cuidam dos fogões, da cozinha.” O mestre acabou de falar, pediu licença para se retirar e partiu. Chegou a altura de ser eu a meter pés ao caminho, rumo ao meu posto em Tanqiu. Não esqueci o assunto e, três dias depois de entrar em funções, dirigi-me a um templo próximo e interroguei respeitosamente um velho monge. O que me respondeu, correspondia exactamente às palavras do mestre Feng Gan. Dei então ordens para que, em todo o distrito de Tangxing, se tentasse encontrar Han Shan e Shi De. O mandarim distrital disse-me: “Quinze léguas a oeste da nossa prefeitura encontra-se uma falésia enorme onde existe uma gruta habitada por um vagabundo que visita frequentemente o templo de Guoqing. Às vezes passa lá a noite. Na cozinha do mosteiro trabalha um monge parecido com ele, de nome Shi De.” Decidi então dirigir-me para Guoqing. Ao chegar perguntei: “Este templo é habitado por um mestre chan chamado Feng Gan. Onde se encontra o seu quarto? Vivem também aqui os monges Han Shan e Shi De, como é que eu os posso encontrar?” Um religioso de nome Tao Jiao respondeu: “O quarto do mestre Feng Gan fica por detrás da biblioteca, mas neste momento ninguém habita lá e de vez em quando ouvimos os rugidos de um tigre. Han Shan e Shi De estão agora na cozinha.” Em seguida, o mestre conduziu-me ao quarto de Feng Gan. Abriu a porta e não havia ninguém, viam-se apenas as pegadas de um tigre. Perguntei aos monges Tao Jiao e Pao De: “Quando o mestre se encontra aqui, o que faz?” Deram-me a seguinte resposta: “Durante o dia, Feng Gan anda por aí, recolhendo e descascando arroz, à noite canta para se distrair.” Dirigi-me depois para a cozinha. Diante do fogão dois indivíduos aqueciam-se e riam às gargalhadas, os rostos iluminados pelo fogo. Saudei-os respeitosamente. Deram um grito, apertaram as mãos e começaram outra vez a rir. Um deles disse: “Ah, o Feng Gan, esse grande coscuvilheiro! Se o senhor não é capaz de reconhecer um Amithaba[3] porque nos veio cumprimentar?” Aproximaram-se outros monges surpreendidos com a estranha situação de um mandarim saudar e conversar com aqueles pobres diabos. Han Shan e Shi De aproveitaram para fugir. Ainda pedi que alguém fosse no seu encalço, mas os dois homens já tinham desaparecido a caminho da Montanha Fria. Perguntei depois aos monges se eles estariam dispostos a alojar as duas criaturas permanentemente no mosteiro. Foram preparados dois quartos para eles e pedi que alguém lhes fosse comunicar o meu desejo de se instalarem de vez no templo de Guoqing. De regresso à prefeitura, dei ordens para que fossem feitas roupas novas para Han Shan e Shi De e que as mesmas lhes fossem entregues, junto com pauzinhos de incenso. Os dois homens não haviam regressado mais ao templo e os meus criados levaram as vestes e o incenso para a Montanha Fria. Quando lá chegaram, Han Shan gritou: “Ladrões, ladrões!” E entrou numa gruta. Antes de desaparecer, pronunciou estas últimas palavras: “Digo-vos, segui os ensinamentos de Buda.” Depois foi impossível acompanhar os seus passos. O rasto de Han Shan tinha desaparecido. Por fim, solicitei ao monge Tao Jiao que tentasse saber algo mais sobre os dois homens e que recolhesse os poemas de Han Shan. O homem da Montanha Fria escrevera pouco mais de trezentos poemas que gravara em lâminas de bambu, na casca das árvores, nas rochas, em muros de aldeias. Shi De escrevera os seus poemas nas paredes do templo. Tudo foi então compilado e organizado em livro. O meu coração procurou o refúgio de Buda. Tive a sorte de encontrar os homens do Tao. *Governador de Taizhou Pilar superior do Império Portador da insígnia do peixe, dom do Imperador, guardado num estojo vermelho (Séc. IX) Tradução e notas de António Graça de Abreu