Manuel de Almeida h | Artes, Letras e Ideias“A Memória da Cidade II” – José Silveira Machado (1918/2018) “A tempo entrei no tempo, Sem tempo dele sairei: Homem moderno, Antigo serei. Evito o inferno Contra tempo, eterno À paz que visei. Com mais tempo Terei tempo: No fim dos tempos serei Como quem te salva a tempo. E, entretanto, durei.” Vitorino Nemésio [dropcap]F[/dropcap]ilho das dificuldades, onde os dias nasciam carregados de deveres, José Silveira Machado veio ao mundo a 24 de Outubro de 1918, em Velas, S. Jorge, Açores, a freguesia das freguesias de sentido único, a partida. Direcção, Oriente, destino, Macau. Foi este o «caminho» de José Silveira Machado o «Professor». Aportou a Macau numa época difícil de transição e contradição – 1933 -, para estudar, “indisciplinado aluno” (?), no Seminário de S. José – «um exílio é um refúgio com uma biblioteca», na opinião de Zia Haider Rahmam -, entre a idílica adolescência e a indesejada vida adulta. A realização pessoal exige escolhas, sensibilidade e bom senso Concluído o curso do Seminário – um período de possibilidades ilimitadas -, optou pela vida civil , onde acontece viver -, em detrimento da vida eclesiástica. “Cresceu sem ver o Mundo mas com os olhos postos na vida.” Homem de pensamento rigoroso, honesto, dinâmico e crítico, criador e bondoso, olhar suave, rosto comprido e magro, boca tensa, era um romântico. Tinha sempre mais dúvidas que certezas, percebia a diferença entre a realidade dos factos e os factos alternativos. As suas palavras tinham polivalência, ganhavam autonomia, tinha o hábito de apelar em vez de exigir, explicar em vez de ditar. Não se fechava ao Mundo. Abria-se ao conhecimento. Era uma pessoa capaz de admirar a vanguarda, sem nunca esquecer as tradições. Era uma alma desocupada que não precisava de alinhar em conspirações de ordem estética – era consequente, corajoso -, não como o Dâmaso Salcede d´ “Os Maias”, «balofo e vazio que segue a maioria…, da mais recente tendência». Tinha um modo próprio de andar – calcorreava a «Cidade» de lés a lés, de maneira a fugir de fantasmas e a perseguir sombras. Fazia parte da sua geografia sentimental. A alegria de viver estava em descobrir, receber, transmitir, dar – ser autor e actor – e, espectador lúcido e atento. A sua mundividência «crescia» de um aspecto crucial – pouco ou nada valorizado nos dias de hoje -, o diálogo, aberto, franco, sincero. Os Livros, a Amizade – «é um dos mistérios da vida», e a «Cidade» eram sempre tema para dois dedos de conversa. Na conjugação do exercício das palavras «mais os conceitos», na boémia nocturna das ideias, jorravam discussões, sempre retrabalhadas pela memória. Lutava ansiosamente contra o pessimismo colectivo, conjugado sempre com um optimismo subjectivo, apesar de alguns dissabores. A fragmentação da identidade de Macau, a perda do ideário da língua e cultura portuguesa e, no abandono que é dado aos seus cidadãos, aos pobres, fracos, exaustos e aos desprotegidos – uma sociedade que apesar de rica se torna pobre (de espírito). Poesia, prosa e crónica, são marcos na obra de Silveira Machado. Há dois importantes livros – na opinião de simples leitor -, que são uma referência obrigatória na bibliografia macaense. São os casos de «Macau, Mitos & Lendas» (1998) e «O Outro lado da Vida» (2005). Na opinião de Luís Sá Cunha “Na sua obra, ele fez a síntese de dois universos, de duas vivências, das duas metades de Macau”. São livros em que encontramos experiências vividas, “soprava nele um irresistível vento de poesia”. «Macau, Mitos & Lendas», são as notas ao programa do Prelúdio da sua Oratória «Amor a Macau» -, para quando a reedição (?). O livro está esgotado há anos e faz falta nos escaparates das livrarias – e, «O Outro Lado da Vida», é o poslúdio da sua obra – é o olhar crítico, contestatário de Silveira Machado, sobre a sociedade de consumo, de extravagâncias, de mercado de dissimulação, “aos que vivem do lado positivo da vida, os abastados, os ricos, os poderosos”. O autor mostra o seu lado generoso, tolerante, humanista, idealista, pensa que “a sua leitura seja motivo para o rebate de consciências e mudança de mentalidade e leve muitos ricos e poderosos a praticar a verdadeira e necessária solidariedade (…) para que, num futuro breve, não sejam tantas as crianças e jovens, tantos os homens e mulheres, a viver do «outro lado da vida» -, a pobreza e a marginalização como o maior défice social da sociedade”. Foi co-fundador e jornalista do semanário católico «O Clarim». Colaborou ainda na «Voz de Macau», na «Comunidade» – onde assinou vários artigos de grande valor, sobre as indústrias de Macau – e, no «Renascimento» (jornal e revista). Foi correspondente do «Diário da Manhã» e da revista de cinema «Plateia», outra grande paixão. Paixão que se viria a traduzir no guião que escreveu para o 1º filme realizado em Macau – «Caminhos Longos» (1956). Quanto mais pobre teria sido a literatura macaense, e Macau mais triste e menos Macau, sem José Silveira Machado, um nome incontornável na história recente na «nossa» Cidade. A sua escrita celebra, relembra e revisita Macau «sonhos, desejos, êxitos». A maturidade ensina a aceitar a dor com menos sofrimento e a viver com mais tranquilidade. Finou-se, como sempre viveu – discretamente -, recolheu-se ao fim da tarde do dia 18 de Novembro de 2007. A melhor homenagem que se lhe poderia prestar – no meio de tantas outras que se prestaram, seria fastidioso estar a enumerar –, seria editar e reeditar, ler e reler, a sua obra (é preciso saber mostrar que sabemos preservar a memória e a identidade da «Cidade») –, o Homem parte a Obra fica…! Bibliografia: «Macau, Sentinela do Passado» (1956); «Rio das Pérolas» (1993); «Macau, Mitos & Lendas» (1998); «Duas Instituições Macaenses (1998) – em co-autoria com João Guedes -; «Macau na Memória do Tempo» (2002); « O Outro Lado da Vida» (2005). Coordenou ainda no âmbito da Fundação Macau, a reedição (1996) da obra completa de José dos Santos Ferreira, o «nosso» Adé. “Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos; E para mais me espantar Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos” Luís de Camões
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO diabo [dropcap]C[/dropcap]om os anos devemos à memória mais, muito mais do que a toda a informação obtida, dado que a informação não cultiva, e a memória cultivada regista outros parâmetros onde aquela com sede de novidade já não pode inovar. O alarido “diabólico” das mentes ofegantes que geram no éter as nossas informações parece montagem de maus demos no exercício das suas funcionalidades. Barricamo-nos na deriva de tanta presunção diabólica, coisas que na memória, tal como disse, não parecem funcionar assim. Recuar até Giovanni Papini, converso cristão, que de forma ilusionista lhe vestiu o manto e quase se santificou até ao mais improvável alibi, ao seu «Diabo» que em nada se parece com esta dimensão desconcertada de um mal aleatório. Que grandes páginas a ele dedicadas o mundo não padece «O Dicionário Infernal» de Collin de Plancy, que veio a ser, e muito justamente, designado por «género frenético» até a «Hora do Diabo» de um Fernando Pessoa. Há matéria para tais deletérios e, pasme-se, que podem ser louvados enquanto exercício de uma esfera fecunda, que o é. Mas qual o efeito deste Demo, senhor das coisas impensáveis, que cavalgou as nossas vidas antes da lava larval dos novos conteúdos? Nenhum. O Diabo, a haver, já se foi, da mesma forma que Deus morreu. Só nós, no centro do labirinto da teomania, nos avantajamos para mostrar obra feita que reponha tais princípios, podendo bem dar-se o caso de ser agora uma lenda bem menos amarga que as nossas tão humanas interpretações. — Que Pessoa afirmou na sua Hora que ele era um cavalheiro e que deveria, por isso, uma senhora mostrar-se confortável na sua presença — o que não deixa de ser uma grande reabilitação face ao homúnculo que por este mundo anda, até ao seu Beijo, com a carga que selou um improvável encontro. Foi Deus que desceu à condição e teve como resolução final a Paixão, ela, não se encontra pendurada sangrando de humana barbárie – não – a isso chama-se assassinato. Um beijo assim tem mistérios tais que milénios de cânones não conseguem descortinar. Afinal, não se deve tocar em ninguém e, sobretudo, como bem viu um jovem professor, obrigar crianças a beijar avós ou quem quer que seja contra as suas vontades. Tocar é um mistério, ser tocado, também. A venda não tapa os olhos dos vendidos, vender é fazer negócio, e que se saiba ninguém negociou beijos ou vendeu a resgate o ponto imóvel de um deles, que desse origem a esta arrasadora frase de Papini: «que resta a fazer quando nada mais é possível? Volver-se pois contra si mesmo…abocanhar-se, fazer-se em pedaços…e um dia? Um dia, abrasar. Mas nos seus membros lassos por entre os coágulos acres de sangue, há um pouco de carne intacta, onde ele com Judas beijou», o que pode bem responder à questão do Evangelho segundo Mateus – Amigo, que vieste aqui fazer? Sem mácula, a carne beijada. Mantivemos a luxúria como um elo da malignidade e, de certa forma assim é, mas o Beijo não tem escala percorrida na antecâmara das profanações, nem estas carnes que se tocam são de natureza profana a produzir simples desejos. Estamos na intimidade de uma grandeza. Há muitos sortilégios em forma de códigos morais nas ideias alternativas e nas mentalidades modeladoras. São bocados de encantamento que lutam contra o desgoverno mundial mas, mal feitas e dirigidas a não se sabe quem, coisas de arrepiar se multiplicam sem que tenhamos capacidade de as reconduzir a uma forma de combate leal. Atravessamos a loucura como um estado de coisas naturais, gostamos da bruxa má, do inferno porque é giro, da resiliência soez, e andando nisto até parece que Satã nos fica a matar. Não. Não está aqui. Nada disto tem sentido infernal nenhum. A vacuidade produziu uma estranha importância cuja cauda não chega à de um crocodilo e bizarramente altiva-se de perfeccionismo serôdio para alinhar no esconderijo do pormenor. Regra de Demo, sem que se lhes reconheça sagacidade para juntar todas as peças de um acorde: o que ele gosta de violino!!! Cada época recorrerá, criará a sua noção de malignidade, mas não creio que se possa recorrer já em todas as culturas aos arquétipos: as advertências são grandes e o próprio mal uma consequência e, na medida em que nos falta elementos valorizadores da natureza humana para que as tabelas oníricas se mantenham como suportes, é mais fácil um desventrar sem causa do que uma perseguição por culpa. Quem não entendeu um Beijo não pode querer saber mais do muito que ainda tem para lhe acontecer – e aconteça o que acontecer – já não há beijos que nos ressuscitem ou nos condenem. As nossas bocas fazem dieta e o nosso corpo deseja-se magro. «Encontrei-os cegos – ensinei-lhes a ver. Agora não me reconhecem nem me vêem» Blake, este Lúcifer tem mais potência que toda a industria energética que não deve ser cortada por subalternos de um deus menor, uma fonte que por cá, não raro, até prodigaliza incêndios ficando a terra um inferno sem brilho. O físico Stephen Hawking acaba de deixar estranhos prognósticos dizendo mesmo que nos podemos extinguir em face de uma espécie melhorada… mas o pior é darmos de caras com o Demónio do Apocalipse, aquele que virá para julgar os vivos e os mortos, sendo os vivos horrorosamente nós: «Nesses tempos os homens procurarão a morte e não a encontrarão; desejarão morrer e a morte fugirá para longe deles» Não, não é contra a eutanásia. É a vingança do retorno do Diabo. As almas estarão num tubo de ensaio para não mais ser vendidas. E dos beijos que der, mais ninguém terá conhecimento.
Andreia Sofia Silva EventosBlogue Macau Antigo faz dez anos e oferece aos leitores 100 livros sobre o território [dropcap]C[/dropcap]riado em 2008 pelo jornalista João Botas, o blogue Macau Antigo comemora este ano dez anos de existência. Para celebrar a efeméride, o também autor de vários livros sobre a história de Macau vai oferecer uma centena de livros sobre o território, em parceria com a Fundação Casa de Macau. Para que os leitores possam participar nesta iniciativa, basta enviarem uma frase sobre o blogue, juntamente com o nome e morada, entre os dias 1 e 30 de Novembro, para o email do autor do blogue:macauantigo@gmail.com. Os primeiros 100 leitores a enviar uma frase vão receber um livro. “Dez anos são iguais a 120 meses, qualquer coisa como 520 semanas ou 3650 dias… praticamente o mesmo número de posts publicados até agora (quase 4 mil), incluindo diverso material inédito, consolidando cada vez mais este projecto como o maior acervo documental online sobre a história de Macau, disponível 24 por dia em várias línguas e em todo o mundo”, defendeu João Botas. Neste período de tempo o Macau Antigo teve cerca de milhão e meio de visitantes, “a maioria oriundos de Portugal, Macau, Estados Unidos, Brasil, Hong Kong, Canadá e Austrália”. Nas redes sociais, o blogue é seguido por mais de três mil pessoas.
Andreia Sofia Silva EntrevistaMaria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda: “Não podemos estar com medo” A iniciativa “uma faixa, uma rota” ainda é um mistério sem contornos de definidos. Algo que Maria Fernanda Ilhéu, académica e presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda, encara como uma oportunidade económica e cultural e uma visão alternativa à globalização. No final do mês, Maria Fernanda Ilhéu apresenta o livro “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial” [dropcap]A[/dropcap] Associação Amigos da Nova Rota da Seda faz dois anos em Dezembro. Que balanço faz deste dois anos de actividade? Temos dois objectivos essenciais, que são promover a iniciativa “uma faixa, uma rota” em Portugal e ao mesmo tempo encontrar projectos de cooperação entre Portugal e a China e entre Portugal a China e países terceiros, nomeadamente os de língua portuguesa. Começámos do início, através da promoção da iniciativa. Muita pouca gente em Portugal tem uma ideia do que se pretende com esta iniciativa, quer na vertente de desenvolvimento estratégico da China, quer na vertente do novo modelo de globalização que a China tem, a visão que propõe ao mundo. Esta fase ainda está em continuação, mas estamos também a identificar áreas de cooperação. Nessa fase de identificação de áreas de cooperação temos, por exemplo, a construção de infra-estruturas, quer em Portugal, quer nos países de língua portuguesa. Temos a parte de formação e educação em várias áreas de conhecimento, também ao nível linguístico, português e chinês, mas que são muito mais vastas que isso. Podem ser, na área tecnológica, nos negócios, ou na área cultural, ou da medicina. A medicina e o bem-estar é um grande campo de diálogo e de construção que podemos prever no encontro da medicina tradicional chinesa com a medicina ocidental. Em Portugal estamos avançadíssimos em algumas áreas da medicina. Um dos aspectos que vamos lançar, com o apoio da associação, é um curso de formação em várias áreas da medicina tradicional chinesa. Temos, obviamente, como objectivo o mercado português, mas também os mercados de língua portuguesa, como Moçambique, onde estamos já com uma prospecção avançada de como podemos colaborar com eles. HM O facto da Organização Mundial de Saúde ainda não ter reconhecido a medicina tradicional chinesa e de ter existido algum debate sobre isso não faz com que esta cooperação caia um pouco por terra? As próprias entidades chinesas compreendem que existem obstáculos para a medicina tradicional chinesa. Portanto, também fazem um esforço de compreensão, de como é que essa medicina e a ocidental podem cooperar, porque há valências e avanços significativos em ambas que são complementares. Em termos de Europa, Portugal está na vanguarda desse reconhecimento, faseadamente, para algumas áreas. É isso que estamos a trabalhar em conjunto com a China, de forma a que a China se aproxime também dos nossos conceitos e perceba como é que algumas coisas devem ser feitas para irem de encontro aos padrões europeus. Estamos a preparar um curso com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, com o Instituto de Medicina Tradicional e com ISEG na parte do marketing, para conseguirmos uma aproximação a potenciais alunos que estejam interessados em saber como evoluir, como têm de se preparar para a Europa os reconhecer. Mas temos outras áreas. Pode exemplificar com outros domínios? No sector cultural, por exemplo, temos um livro que vamos agora lançar em Macau, penso que será no dia 30, no Clube Militar ou no dia 29 no Instituto Internacional de Macau. “A China e a Revitalização das Antigas Rotas da Seda – Novo Vector do Comércio Mundial”. É um livro que coordeno, juntamente com a arquitecta Leonor Janeiro. Tem nove capítulos, escrito por 10 pessoas. Há um capítulo em co-autoria, o da música, mas os outros têm um autor por capítulo e várias áreas. Como é que as antigas rotas da seda contribuíram para o avanço civilizacional em várias áreas e para a ligação entre os povos. Como a nova rota da seda, que a China nos propõe, vai contribuir no futuro. No fundo, este grupo de trabalho na associação tem um foco muito grande na ligação entre os povos. Fizemos este livro e uma viagem antiga à rota da seda chinesa. Ao fim de dois anos, as várias áreas de trabalho vão produzindo os seus efeitos. Estamos muito atentos a tudo o que se faça na iniciativa “uma faixa, uma rota”, não só na China como em países europeus. No dia 12 de Novembro temos uma conferência, em Lisboa na Fundação Casa de Macau, sobre a relação da União Europeia com a China nesta iniciativa, e como é que outros países da Europa estão a progredir em termos de memorandos de entendimento. Na expectativa de, em breve, Portugal assinar um memorando de entendimento com a China sobre esta iniciativa. No fundo, estruturará e marcará algo que já é evidente, que é Portugal e China a colaborar nesta iniciativa. O Presidente da República já manifestou, por mais de uma vez, que é uma iniciativa que Portugal apoia e que tem muito interesse em integrar. O Primeiro-Ministro também, assim como o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Agora, esperamos que formalmente seja assinado um protocolo que definitivamente estruture essa colaboração. Mas a nossa associação tem tido um empenho muito grande em dar a conhecer na China aquilo que Portugal tem, o que vai fazer, e por outro lado dar a conhecer em Portugal o que esta iniciativa pode trazer em termos de cooperação com a China e com os países de língua portuguesa. Considera que ainda existe falta de clarificação relativamente aos objectivos da iniciativa “uma faixa, uma rota”, apesar dos discursos oficiais? Acho que há muita coisa a construir. A política de abertura da China, que se iniciou em 1979, foi toda ela feita passo a passo, sentindo as pedras debaixo dos pés. Vamos avançando, sabemos para onde queremos ir, mas devagar. Ainda não sabemos como vamos, então vamos experimentando. Se corre bem continuamos, se não corre bem damos um passo atrás e vamos por outro caminho para lá chegar. O que está a acontecer nesta iniciativa é precisamente isto. A China lançou a visão e perguntou quem estava interessado em colaborar. Não é um roteiro do que vai acontecer. Há uma decisão de querer fazer algo diferente, isto é muito importante porque é um modelo de globalização diferente. Queremos proporcionar a cooperação entre os países mais desenvolvidos para ajudar os países menos desenvolvidos. Portugal tem um papel muito importante neste projecto, que é colaborar com a China e com os países de língua portuguesa. Todos temos a ganhar com esta cooperação. Como vamos fazer? Vamos construindo. Não há uma direcção que diga “as políticas são estas”. À medida que vamos avançando, vemos o que é necessário, qual a fase seguinte e como nos vamos estruturar. Nós, à maneira ocidental, estamos à espera que haja uma política logo definida e não há. Há um conjunto de visões e vamos acertar como lá chegamos. Há muitas áreas mal definidas. Por exemplo, a governação destes projectos. São projectos que podem ser tripartidos, ou mais que isso. Em termos de financiamento, como se podem desenvolver projectos com este nível de cooperação? Fizemos em Março, em Lisboa, uma grande conferência sobre o financiamento da “faixa e rota”, com entidade chinesas mas também com o Banco Mundial e com instituições como, por exemplo, o Banco Europeu de Investimentos. Há uma linha, sabemos que tipo de problemas vamos encontrar. Temos de entender que não são “grants”, não são ofertas. O dinheiro tem de ser justificado. O dinheiro vai ser posto à disposição dos projectos, por financiamentos vários, mas tem de ter rentabilidade. Estes projectos têm de ser auto-sustentáveis e rentáveis, temos de justificar economicamente a sua existência. Tudo isto são aspectos muito profissionais, que levam tempo a analisar, a preparar e a colocar as pessoas de acordo, porque estamos a falar de um encontro de pessoas com culturas diferentes, que têm registos de trabalhos passados diferentes, temos experiências diferentes. Temos de nos acertar para em conjunto evoluir. Por exemplo, os ocidentais são “rule oriented”, são orientados por regras. Os chineses são orientados por projectos e estratégias. Estamos a falar de um projecto dos próximos 30 anos, estamos agora a começar. Esta nova visão pode ser, efectivamente, uma visão muito motivadora de novos encontros civilizacionais e de novas áreas de desenvolvimento do mundo, nomeadamente o centro europeu, África e América Latina. Alguns analistas defendem que a política “uma faixa, uma rota” pode representar uma tentativa de domínio económico da China perante os outros países. Concorda com essa visão? Acho que tudo pode acontecer, porque a geopolítica e a geoeconomia estão a mudar, é visível o que se está a passar na Europa neste momento, com o Brexit, o que se está a passar nos Estados Unidos com o proteccionismo. São ideias correntes que, para nós, há uns anos eram impensáveis. Há novas potências ascendentes. A China é uma delas, mas também vamos ter a Índia. Há países a crescerem muito, alguns pela sua dimensão poderão ter uma pujança económica que lhes permite posicionarem-se na liderança da economia mundial. A pergunta é se a China está a fazer isso deliberadamente. Eu penso que não. Penso que a China está a fazer isto porque tem problemas internos para resolver. Na vertente interna de “uma faixa, uma rota” vai trazer áreas de novo desenvolvimento dentro da própria China. Como por exemplo… Uma delas é toda a zona do oeste que está muito mais atrasada em relação a outras províncias da China. Estou a falar do corredor de Gansu e da província de Xinjiang, essa zona ligando-se ao centro eurasiático vai reconstruir uma zona de grande poder económico, que existiu há milhares de anos. Tem muitos recursos naturais e um enorme potencial de desenvolvimento. Por outro lado, a China tem de se equilibrar, tem de passar a chamada armadilha do rendimento médio. Tem de dar um salto qualitativo muito grande, nomeadamente na área da ciência e investigação. Tem um grande investimento e um plano para a educação. Se daí vai resultar, ou não, uma liderança óbvia da China no mundo económico, no mundo científico, não sabemos. Não me parece que a prioridade da China seja dominar toda a gente. A China nunca teve essa ideia. Quando no séc. XV, Zheng He fez uma expedição marítima e chegou à costa de Moçambique, o que fizeram? Trocaram tributos, deram ofertas, estabeleceram políticas de relacionamento, aumentaram o comércio. A China é já uma potência emergente que vai ter um papel enorme no mundo. Mas os Estados Unidos também existem, a Europa também. Como é que estas forças todas vão conjugar as vantagens competitivas? O que é que se vai passar? É futurologia. Não podemos estar com medo, com medo não nos levantamos todos os dias. Portanto, o melhor é continuar, caminhar e ter projectos de colaboração. Cada país tem de ver o que é que lhe interessa e como pode colaborar com esta iniciativa, se é que lhe interessa. Mas é um campo que está aberto.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs fins últimos e a pasta medicinal Couto [dropcap]N[/dropcap]os últimos anos do século XX, colaborei com uma universidade de Montréal num projecto sobre o ‘imaginário do fim’. Naquele ambiente de fim de século, emoldurado pelos ecos do ‘mundo pós’ e pelas predições (e perdições) do bug do milénio, aliás antecipadas com o crash da Nasdaq de Março de 2000, o tema era aliciante. Mas nunca desarmou, pois é coisa já com barbas. Falar sobre o “fim” como uma coisa definitiva e absoluta é lembrar um antigo anúncio da pasta medicinal Couto. O homem mordia a cadeira e ela transladava sem parar. Aquilo nunca mais acabava: era pura arte cinética a puxar para o lado da gengiva pós-moderna, como quem diz: fim? Isso é vernáculo medieval. Talvez fosse e com raízes nos grandes desertos. De facto, em certas tribos da Arábia pré-islâmica havia a crença generalizada numa divindade de nome Dahr que fazia da morte a própria razão de ser do humano. Estávamos tramados. Qual elixir, qual Couto, qual quê! Aliás, a revelação do Corão (não é por acaso que significa o “Recitado”) trouxe a estas pobres comunidades um compreensível sentido de libertação de tipo escatológico (afinal havia paraíso e tal e tal…) e combateu ferozmente esse passado. Leia-se, a título de exemplo, a surata XLV/22-23 que é dedicada aos “adoradores” do Dahr: “Eles dizem: Não há qualquer outra vida senão a vida actual”. Curiosamente, Dahr quer dizer, hoje em dia, em Árabe ‘Tempo’ e a forma substantivada da mesma raíz, ad-dahriyyah, quer dizer ‘Ateísmo’. As palavras fazem por vezes de pasta medicinal das culturas, já se vê. Nada mais esclarecedor do que a condenação perpetrada por uma língua natural à memória daquilo que, um dia, ousou ver-se ao espelho como uma espécie de fim consumado. Pondo de lado os anúncios televisivos com meio século de idade e as mini-saias que deambulavam pelas passadeiras da Abbey Road, o facto é que o senhor fim prefere deixar de lado a sua casaca de tecido definido (e absoluto) e adora apresentar-se em palco sob a forma de um tornar-se em qualquer coisa. Adora metamorfoses, transformismos, transgenders, espelhos recurvados e o diabo. As últimas etapas das escatologias e das ideologias, relíquias em massa folhada de outros tempos, cantavam o fado da perfeição como uma espécie de relato de outra vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero do presente. Com um Gitanes a queimar-lhe a ponta dos dedos, Jean-Claude Carrière caracterizou a gravidade do fim dos tempos como “la fin de l´insupportable contradiction entre le temps divin (suprême, absolu) et le temps humain (limité, relatif)”[1]. Este esbater de persianas entre o que S. Eisenstadt designou por ordem “transcendente” e por ordem “mundana”[2], uma e outra fabricadas em série durante milénios pelas chamadas civilizações axiais, nunca foi suficiente para que a ideia de fim deixasse de ser representada como uma metamorfose. Algumas formas clássicas de compreender o tempo sempre apostaram nesta estratégia de manutenção do fim, sob a forma de algo, ao mesmo tempo, afastado, controlável e sobretudo durável. Como se a cintura de Kuiper, no extremo do sistema solar, fosse, por isso mesmo, uma coisa sexy: uma esplanada elegante (do género das de Carcavelos) muito lá ao longe, onde, com uma coca-cola light a descer pelo esófago, pudéssemos todos olhar para o cosmos sem que ninguém nos chateasse. Esta congénita dificuldade em clarificar o fim (o fim dos fins… no fim dos tempos) é, porventura, mais um jogo do que uma tentação soft para gáudio do homem que mordia a cadeira com o objectivo de elucidar a eficácia da pasta medicinal Couto. Pessoas respeitáveis (apesar de tudo, caray!) como Heidegger e Borges responderam um ao outro, sentados na esplanada do mano Kuiper e exploraram o assunto laconicamente: o primeiro, ao afirmar que a “finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo à finitude”[3]; o segundo, ao afirmar, de modo complementar, que “ninguna de las eternidades que planearon los hombres” (…) “es una agregación mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos”[4]. Conclusão? Bom, a coisa parece estar de feição: a eternidade – material inflamável tipo BD que o nosso cérebro, coitado, processa – não passa de uma espécie de negativo fotográfico à Talbot repleto de iodeto de prata, razão pela qual o senhor fim não pode nunca ser entendido como uma ruptura, uma falha ou um deslizar a pique na direcção da falésia, mas antes como um espaço onde se aprende a conter o tempo (não há nada que não se aprenda). Há, pois, meus amigos, que saber conter o mundo antes de nos virmos, antes de nos deslumbrarmos, antes de voltarmos a tomar o elixir azulinho. Até porque o ‘depois do fim’ (essa fuga para a frente no pardieiro do ‘pós-qualquer coisa’) faz ainda parte daquela esplanada de onde se observa a continuação sine die do relato que está – e estará – sempre em vez do fim. A famosa “semiose ilimitada” proposta por C. Peirce – do que me fui eu lembrar agora! – corresponde a uma teoria em que os fins se convertem sempre noutros fins, prolongando-se indefinidamente na sua própria viagem, que é a viagem do sentido. Não tivesse sido o obscuro exemplo do Dahr pré-islâmico e a própria ideia de fim teria aparecido nesta doce crónica ao sabor de um autêntico “mise en abyme” cultivado pelos humanos, desde que o ‘cagar de pé’ fez a sua solene estreia no planeta Terra. Em última análise, teríamos sempre a pasta medicinal Couto para usar depois (de depois) dos finais do grande e derradeiro flirt. [1] Les questions du sphinx em Entretiens sur la fin des temps, Fayard, Paris, 1998, p. 63. [2] Fundamentalismo e modermidade, Celta, Oeiras, 1997, p. 183. [3] Ser e tempo, Vozes, Petrópolis, 1997, Vol. II, p.125. [4] Historia de la eternidad em Prosa completa, Bruguera, Buenos Aires, 1979, Vol.1, p. 223.
Hoje Macau EventosAntónio Borges Coelho defende museu da Expansão Portuguesa dos séculos XV e XVI [dropcap]O[/dropcap] historiador português António Borges Coelho, numa entrevista à agência Lusa, defendeu a criação de um museu dedicado à Expansão Portuguesa, por ter sido “foi um período fantástico na História da Humanidade”, de que “não temos de ter vergonha”. Sobre o projeto de um museu dedicado à Expansão Portuguesa nos séculos XV e XVI, António Borges Coelho disse: “É um absurdo esta polémica. O passado é o passado. A primeira grande globalização é uma coisa fantástica para qualquer povo. Não temos que ter vergonha, e mesmo os povos que foram oprimidos, não foram só oprimidos. [Afonso de] Albuquerque [1453-1515] dizia que não podia tirar a cabeça do navio, pois corria risco de ficar sem ela”. “Houve uma guerra comercial na Índia pelo domínio do comércio das especiarias, designadamente a pimenta. E foram os portugueses que ganharam essa guerra”, esclareceu. Borges Coelho enfatizou: “É preciso uma coragem brutal para [fazer] uma viagem de navio, de mais de meio ano, nas condições técnicas [da época], [enfrentar] as tempestades, as doenças no mar – quase metade das pessoas ficava no caminho. Não brinquem comigo!” “Na verdade, foi um período fantástico na História da Humanidade, exatamente como ela é. Não podemos dizer que não houve bandidos – houve montanhas [deles]. O Albuquerque foi um homem terrível, mas foi também um homem de génio, que abriu uma rota efetiva na História da Humanidade, ele o [Vasco da] Gama e companhia”. O historiador, autor da obra “Questionar a História” (1983), defendeu “um museu com tudo lá e não só o retrato do herói com as flores em baixo, mas que refira os vários povos”. “Se lermos as ‘Décadas da Ásia’, não estão lá só os feitos dos portugueses, estão também os dos outros povos, e estão os costumes e a geografia. Os próprios povos aprenderam algumas coisas com aquilo que os portugueses fizeram naquela época”. Neste processo de expansão, Borges Coelho aponta o infante D. Henrique como “uma personagem importantíssima”, com um “papel que ninguém lhe pode tirar”, tendo sido o obreiro da bula que permitiu a expansão portuguesa, e quem equipou os barcos e congregou os homens.
Hoje Macau PolíticaGrande Baía | Agnes Lam participa em palestra organizada pela Associação de Ciência Política de Hong Kong [dropcap]A[/dropcap]gnes Lam, deputada à Assembleia Legislativa, participa, no próximo dia 3 de Novembro, numa palestra sobre a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau organizada pela Associação de Ciência Política de Hong Kong. Além de Agnes Lam, participam Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau (IIM), o jornalista José Carlos Matias e os académicos Sonny Lo e Ming K. Chan. De acordo com o programa do fórum, os quatro participantes vão “delinear as ligações humanas, as vantagens sócio-culturais e as fortes raízes históricas que vão levar à fundação do soft-power que irá facilitar a integração regional na zona do Delta do Rio das Pérolas através de diversos projectos transfronteiriços no contexto da Grande Baía”. Será também estabelecido um quadro comparativo quanto à cooperação entre Macau, China e os países lusófonos e a baía de São Francisco, nos Estados Unidos, tendo em conta o investimento que aqui se fez na área da alta tecnologia. Destaque local A conferência organizada pela Associação de Ciência Política de Hong Kong irá também abordar vários ângulos da política local. Albert Wong, que se apresenta como académico independente, vai falar da temática “Um País, Dois Sistemas na prática de Macau: alguns casos de estudo”. De acordo com o programa, Albert Wong vai referir alguns casos ocorridos após a transição de soberania de Macau que revelam uma mudança de paradigma. “Macau, um território que depende em larga medida dos turistas do continente, vivenciou recentemente reacções inesperadas no que diz respeito às políticas ligadas ao continente”, lê-se no comunicado que apresenta o evento. O autor dá como exemplo, entre outros, a aposta que o Governo quer fazer na implementação da educação patriótica nas escolas. Jean A. Berlie, da Universidade de Educação de Hong Kong, vai falar da questão “Macau e Timor-Leste: Local e Global”, enquanto Bruce Kwong, professor da Universidade de Macau (UM), apresenta um estudo sobre “Legislação bilingue no sistema trilingue da RAEM”. Brian Ho, também professor universitário na UM, vai abordar a “Gestão de crises e melhoria da governação: os casos dos tufões Hato e Mangkhut em Hong Kong e Macau”.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFestejos em Shanghai e as estampilhas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dias em que a comunidade portuguesa de Shanghai festeja o IV Centenário da Viagem Marítima para a Índia, a chuva fustiga a cidade. No artigo anterior demos nota das celebrações do dia 17 de Maio de 1898, onde na Igreja de S. José, na concessão francesa, se realizou um Te Deum e no Club de Recreio foram recebidos todos os cidadãos que desejaram por telegrama transmitir saudações a El-Rei e à família real, à nação e à comissão central executiva de Lisboa. “No dia 18 a chuva continuou a incomodar-nos; não obstante, a subcomissão encarregada dos festejos no Jardim Chang-su-wo foi continuando com os seus arranjos e conseguiu fazer uma esplêndida festa”, n’ O Porvir. Para esse arraial festivo, o programa prevê danças e outros divertimentos, fogo de vista e iluminações, no Jardim Chang-Su-ho, segundo o Echo. “Às 9 horas [da noite] começaram a vir os convidados. Eram mil e quinhentas pessoas, pouco mais ou menos, entre nacionais e estrangeiros, incluindo crianças. O salão de baile estava bem ornado, sobressaindo uma pintura alegórica de Vasco da Gama com o estandarte real e bandeiras nacionais nos lados. O salão de baile era bem vasto, pois estando 95 pares a valsar, ainda restava grande espaço para os espectadores e passeantes. Houve bonitos fogos de vistas no imenso jardim; e por não se poderem fazer outros divertimentos fora das portas por causa das lamaceiras, os da comissão arranjaram uma companhia de actores chineses que foram representar numa casa contígua, o que divertiu muita gente. Às nove da manhã, depois de uma lauta ceia, os convidados começaram a chamar pelas suas carruagens e foram deixando o jardim com mostras de saudade. Na noite de 19, apesar de chover bastante realizou-se no Astor Hall o sarau literário e musical” e segundo o Echo, “se a parte musical é desempenhado por amadores portugueses, os trabalhos literários de nacionais e estrangeiros são avaliados pela comissão executiva, sendo os aceites reunidos num livro.” Continuando n’ O Porvir, “O Hall estava ornado com o maior brilhantismo e bom gosto. Tanto a parte literária como musical agradou à grande multidão que se achava presente. A banda dos nossos amadores achava-se também presente e tocou hinos da Carta e Vasco da Gama com maior entusiasmo, antes de começar a festa e na conclusão da mesma.” “As iluminações atingiram, porém, todo o seu brilhantismo só na noite do dia 20, em que o vento, prestando talvez também a sua homenagem a Vasco da Gama, houve por bem respeitá-las”. Já o Echo Macaense diz, “Além das residências dos portugueses, os consulados de Inglaterra e Alemanha e vários outros estrangeiros e alfândega e o Mixed Court tomaram parte. Os bunds da concessão francesa e do foreign settlement estavam ambos embandeirados e iluminados, apresentando uma iluminaria de duas milhas de comprimento. A banda dos nossos amadores percorreu as ruas tocando várias marchas”. “Grande era o número de chineses na Bund, notando-se em todos os rostos grande e geral entusiasmo. Congratulando-nos com os nossos estimados compatriotas pela brilhante prova que mais uma vez souberam dar do seu acrisolado patriotismo, daqui os saudamos e lhes significamos e nosso júbilo pela forma com que se estão honrando a si e estão estremecendo a pátria”, O Porvir. Conclui o Echo Macaense, “Enfim, saiu tudo o mais esplêndido possível, devido à força de vontade dos nacionais e à boa táctica de andar em boa camaradagem entre os cosmopolitas. Houve mais uma coisa que não estava incluída no programa e que no meu entender [C.C.C.] veio coroar a nossa festa. Devido à muita amizade que os bons padres desta missão têm para com a gente portuguesa, espontaneamente anunciaram no dia da Ascensão de N.S.J.C. que a missa de dia no Domingo, às 10 horas, havia de ser em honra e memória de Vasco da Gama, e em acção de Graças e para pedir pelo reino de Portugal, e convidou a comissão executiva a assistir a ela oficialmente. Escusado é dizer que o amável convite foi aceite com grande entusiasmo. A nossa igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde se disse a missa, estava bem ornamentada, sobressaindo muitas nossas bandeiras. O reverendo padre Paris, superior geral da missão que tinha chegado da missão no dia antecedente, foi celebrante e ao Evangelho o reverendo padre Alves fez, com muita eloquência e entusiasmo, o panegírico de Vasco da Gama. Sua Reverência mostrou ser um bom orador, e como vai para Macau daqui a algum tempo, o meu amigo e toda a gente lá terão o gosto de o ouvir.” Estas comemorações deram um novo ânimo à comunidade portuguesa, maioritariamente residente no Model Setllement. Estampilhas para o Centenário Um leitor, no Echo Macaense de 13 de Setembro de 1896, dá como sugestão mandar-se fazer selos especiais para o Correio de Macau a comemorar o IV Centenário e a ideia de uma série de imagens para os selos. Ideia usada em Lisboa para serem distribuídos por Portugal Continental e Ultramarino e assim, em Macau começaram a ser vendidas as estampilhas a 15 de Abril de 1898, referindo O Independente de 6 de Março terem já sido recebidas na Repartição da Fazenda Provincial e terão curso desde 1 de Abril a 30 de Junho. A 24 de Abril o Echo Macaense dá conta, “Vieram novamente do reino em grande quantidade estampilhas do centenário e por ordem superior foi determinado que não se vendessem a cada indivíduo mais do que seis estampilhas por cada vez, sendo elas de 1/2 avo até 8 avos, isto com o fim de evitar que os grandes coleccionadores as absorvam rapidamente e o público fique privado delas para as suas colecçõezinhas e para o uso ordinário. Não há limites para venda de estampilhas cujo valor suba acima de oito avos, e também podem comprar-se quantas colecções completas se queiram. Já não há para venda bilhetes-postais impressos em Macau com a resposta paga, e também já se esgotaram as duas qualidades de bilhetes que vieram desta última vez”. O mesmo jornal, a 1 de Maio, com o título ‘Mais valores postais expedidos para as nossas colónias – Nova encomenda feita à casa fabricadora dos mesmos valores em Londres’ refere, “Foram reclamadas por algumas das nossas colónias novas remessas de valores postais da comemoração indiana e a prova disto é que há poucos dias foram enviados para o ultramar mais os seguintes valores: Para a Índia 24 mil bilhetes da taxa de ¼ de tanga no valor de 150$ réis. Para Macau 212.500 estampilhas das taxas de ½, 1, 2, 4, 8, 12, 16 e 24 avos e dois mil bilhetes da taxa de 2 avos, tudo no valor de 6185$000 réis; e para Timor, três mil bilhetes da taxa de 2 avos, no valor de 30$000 réis. O valor total de todos os valores, acima especificados, 6465$000 réis da metrópole. Foi já expedida ordem competente para se aprontarem na casa londrina mais 5000$00 dos aludidos papelinhos de posta”. O Correio, então situado no edifício do Leal Senado, tem desde Dezembro de 1897 como Director de nomeação definitiva Francisco Maria Xavier de Souza, filho de Ricardo de Souza, o anterior Director.
Andreia Sofia Silva Entrevista MancheteAniversário da RPC | Moisés Silva Fernandes, historiador: “Em Macau os maoístas saíram vencedores” Moisés Silva Fernandes, historiador do Instituto Confúcio da Universidade de Lisboa, lança no próximo ano um livro sobre o bispo de Macau D. Paulo José Tavares, o homem que evitou que o pensamento de Mao Zedong fosse ensinado nas escolas católicas do território. A dias de se celebrar os 69 anos da República Popular da China, o historiador fala do papel de Macau nos anos do Maoísmo [dropcap]E[/dropcap]stá a trabalhar no livro “D. Paulo José Tavares, Bispo de Macau, e a Revolução Cultural chinesa, 1966-1973: Uma vitória onde todos sucumbiram”. Como surgiu este projecto? Penso que em 2019 o livro deverá ser impresso. Quando investiguei a Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP) detectei que toda a Administração portuguesa, começando pelo Governador de Macau, Nobre de Carvalho, e as entidades portuguesas e estrangeiras acreditadas perante a Administração portuguesa se tinham prostrado perante a elite político-comercial chinesa que estava alinhada com Pequim e Guangzhou. Falo de O Cheng-peng, da Companhia Comercial Nam Kwong; Ho Yin, presidente da Associação Comercial Chinesa de Macau e ligado a muitos negócios lícitos e ilícitos; Roque Choi, que foi tradutor-intérprete de Ho Yin; Chui Tak-kei, que foi vice-presidente da Associação Comercial Chinesa de Macau e que esteve ligado a vários empreendimentos lícitos e outros de natureza mais duvidosa. Todos eles foram os intermediários entre a China Continental e a Administração portuguesa de Macau. Porém, havia uma pessoa que conseguiu destacar-se pela sua atitude diferenciada, que foi D. Paulo José Tavares e a Igreja Católica. Em que sentido? D. Paulo José Tavares era um eclesiástico muito sensível à situação política, religiosa, económica e militar da China Continental, Macau, Hong Kong e da Formosa/Taiwan. Só obedecia ao Estado da Santa Sé, onde, aliás, tinha exercido os cargos de adido, secretário, auditor e conselheiro da nunciatura apostólica da secretaria de Estado do Vaticano. Era um bispo treinado nas questões diplomáticas e por isso foi eleito prelado de Macau. Terceiro, prestava muita atenção ao que os padres chineses e ocidentais diziam sobre a conjuntura em Macau, Hong Kong e na Formosa/Taiwan. Quarto, não assinou nada com a Associação Geral de Estudantes Chineses de Macau, que pretendia, a todo o custo, que a Igreja Católica fosse recrutar um corpo de docentes para ensinar o pensamento de Mao Zedong e as demais funções políticas no sistema de ensino católico. Quinto, o prelado e a Igreja tornaram-se nos actores mais críticos e contundentes da Administração portuguesa de Macau. Porque é que esta foi uma vitória “onde todos sucumbiram”, tal como se lê no título do livro? Todos os actores abandonaram as três comunidades, a chinesa, a portuguesa e a macaense, com a excepção do bispo e da sua Igreja Católica. Esteve em todas as sessões do concílio Vaticano II, abrindo uma nova fase da vida católica universal. Pela primeira vez, os padres chineses passaram a ganhar o mesmo que os sacerdotes portugueses, pondo fim a uma discriminação de vários séculos. Além disso, nomeou um vigário-geral e governador do bispado, o monsenhor António André Ngan Im-ieoc, nascido em Macau, criando muitas inimizades com o clero português, que era ultraconservador. Por outro lado, as missas, que eram rezadas em latim, passaram a ser realizadas em português, cantonense e inglês. Por essas razões se impôs uma investigação duradoura acerca deste sacerdote que esteve à frente da diocese de Macau entre 1961 e 1973. FOTO: Paulo Dias Qual o papel que Macau teve no período da Revolução Cultural, sobretudo no que diz respeito às figuras da comunidade chinesa que faziam a ponte com os portugueses? Os que faziam “a ponte com os portugueses” foram os monopolistas que tinham o ouro, o jogo e as corridas de galgos. O Y.C. Liang e Ho Yin controlavam o ouro e as corridas dos galgos. Durante a GRCP o ouro passou para o Roque Choi, que era o secretário particular do Ho Yin. O jogo de azar e fortuna era controlado por Henry Fok Ying Tung, que era o sócio maioritário, e Stanley Ho, que era administrador-delegado e sócio minoritário. Acima destes todos ficava O Cheng-peng, que foi durante a GRCP o intermediário entre as autoridades militares em Guangzhou e a Administração portuguesa de Macau, para além de ser o “governo sombra de Macau”, através da Companhia Comercial Nam Kwong e o primeiro secretário regional do Partido Comunista Chinês de Macau. Todos estes monopolistas foram intransigentes e rígidos com as comunidades portuguesa, macaenses e chinesas. Só há um que não é monopolista, Leong Pui, que era o presidente da Associação Geral de Operários de Macau, a central sindical comunista, e durante a GRCP tornou-se o presidente da “Comissão de Luta contra a Perseguição Portuguesa” conhecida por Comissão dos Treze e mais tarde por Comissão dos Dezanove. Como é que Mao Zedong encarava o papel de Macau e Hong Kong no contexto do desenvolvimento do país? Com o início da Grande Revolução Cultural Proletária pelo primeiro-ministro Zhou Enlai, em 16 de Maio de 1966, Mao Zedong queria manter o status quo em Macau e Hong Kong. Todavia, em Macau os maoístas saíram vencedores, enquanto em Hong Kong a polícia e o governador não cederam em absolutamente nada. O brigadeiro Nobre de Carvalho, governador da administração portuguesa de Macau, sofreu ao longo de 1966, 1967 e 1968 imensas injúrias das organizações maoístas, o que levou a República Popular da China, através de Kei Fung, vice-director da Agência Noticiosa Nova China de Hong Kong, a trazer consigo instruções bem específicas de Zhou Enlai, primeiro-ministro da China, em Agosto de 1968, a tecer as seguintes afirmações: “não deve haver oposição às receitas do Governo de Macau. As taxas, as contribuições, etc., devem continuar a ser pagas”. Caso discordassem destas, “podem e devem expor as suas razões. Mas devem sempre pagar”. Para reforçar este ponto recordou que “[em] Macau existe o sistema capitalista, como é óbvio, e é esta situação que se tem de aceitar”. Devemos olhar para o motim “1,2,3” como uma extensão da Revolução Cultural? Sim, sem dúvida. Em 1966 começou na China Continental a GRCP entre os maoístas e os contra-revolucionários, nomeadamente Liu Shaoqi e o Deng Xiaoping. Rapidamente veio para Macau. Assim o “1-2-3” (três de Dezembro), e não o 1,2,3, que é uma deturpação, foi muito mais que um motim; foi a prostração da Administração portuguesa de Macau, que nunca mais se ergueu, apesar de se ter mantido até 19 Dezembro de 1999. Quem mandava, efectivamente, em Macau era o “governo sombra de Macau”, isto é, a Companhia Comercial Nam Kwong. Em segundo lugar, no dia 4 de Dezembro de 1966, que se chamou “12,4” (4 de Dezembro), houve um confronto geral entre comunistas e nacionalistas do qual saiu totalmente derrotada a comunidade chinesa nacionalista. Assim, a Administração portuguesa teve que entregar os sete nacionalistas presos em Macau à Guarda Fronteiriça do Exército Popular de Libertação, isto é, às Forças Armadas Chinesas, junto à fronteira das Portas do Cerco, à 1 hora da manhã do dia 20 de Dezembro de 1966; e as associações nacionalistas e de refugiados da China Continental foram encerradas e os dirigentes nacionalistas tiveram de ir para a Formosa/Taiwan, no dia 27 e 28 de Janeiro de 1967. No dia seguinte, dia 29, foram assinadas pelo governador da Administração portuguesa, brigadeiro Nobre de Carvalho, duas minutas: uma com a Repartição dos Assuntos Exteriores de Guangdong e outra com a elite político-comercial chinesa afecta a Pequim. Podemos falar de Macau como um lugar de fuga de cidadãos da China com diferentes períodos históricos (guerra civil e revolução cultural), e também de diferentes classes sociais, por comparação a Hong Kong? Sim, corroboro esta realidade. Enquanto Hong Kong tinha uma superfície de 2,600 Km2, Macau tinha 15.5 Km2. Em termos demográficos, Hong Kong tinha mais de 3,7 milhões de seres humanos, enquanto em Macau 300 mil pessoas, entre 1966-1967. Em Hong Kong tínhamos uma economia laissez-faire, onde basicamente o mercado era livre, enquanto em Macau tínhamos uma economia centralizada, através dos monopólios do ouro, jogo e corridas de galgos, e marcadamente fechada. As famílias que tinham posses em Xangai transportaram, literalmente, as fábricas que possuíam para Hong Kong, enquanto em Macau não se deu nada disto. Isto levou a que a GRCP em Hong Kong fosse fortemente reprimida pela polícia e que nunca se colocasse a hipótese das forças armadas britânicas entrarem no conflito, enquanto que em Macau foram humilhados pelos maoístas, tanto a polícia, como as forças armadas portuguesas. Considera que a Administração portuguesa lidou da melhor forma com os ilegais oriundos da China, ou trataram do processo de legalização tarde de mais? Convém distinguir entre dois processos diferentes. Os refugiados chineses entre 1949 e 1967 tiveram muito apoio da Igreja católica de Macau, nomeadamente da Casa Ricci e do seu padre espanhol Luís Ruiz, de muitas agências católicas internacionais, e, indirectamente, através da Administração portuguesa do território. A GRCP parou porque o acordo estabelecido entre a Administração portuguesa, que foi assinado pelo governador de Macau, brigadeiro Nobre de Carvalho, e a Repartição do Assuntos Exteriores da província de Guangdong, assim o previa. A partir de 1978, começaram a vir muitos refugiados da China Continental, apesar de constituir uma infracção ao acordo que Macau tinha assinado com a Repartição dos Assuntos Exteriores de Guangdong. A maioria das pessoas ia para Hong Kong, os menos hábeis ficavam por Macau. Entretanto, houve uma série de processos de legalizações dos refugiados da China Continental durante a Administração portuguesa. Mas temos de ter sempre em atenção que isto dependia totalmente das directrizes da China Continental e muito pouco de Macau. Estes cidadãos em fuga acabaram por definir a sociedade de Macau tal como ela é hoje, e explicam, inclusivamente, a fraca participação das pessoas no sistema político local? Isso é natural. Nunca se estudaram e investigaram em termos de ciências sociais os graves constrangimentos que se fizeram repercutir muitos anos mais tarde em Macau. Seja no tempo da administração portuguesa de Macau, seja no período chinês.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasConcessões estrangeiras em Shanghai [dropcap style≠‘circle’]X[/dropcap]angai, como os portugueses escrevem o nome da cidade de Shanghai, é atravessada pelo Rio Huangpu e situa-se a meio da costa chinesa, banhada pelo Mar Leste da China (Oceano Pacífico), entre as baías do Yangtzé e de Hangzhou, na foz do Rio Qiantang. Porto que substituiu Yangzhou após a destruição do Grande Canal, durante a guerra entre o exército imperial Qing e os revoltosos Taiping, passando o transporte do arroz e sal a ser feito via marítima e ferroviária por Shanghai. Conquistavam assim os britânicos nesse porto a importância estratégica e comercial, que até então ainda não tinham conseguido fazer dele. “Nos tempos da dinastia Yuan (1276-1368) começou como centro de comércio com o exterior” e “em meados do século XVII, Xangai afirmou-se como uma cidade portuária e comercial, desenvolvendo algumas indústrias locais como, por exemplo, os têxteis de algodão”, segundo Alfredo Gomes Dias, “Em 1842, Xangai era já uma cidade comercialmente relevante, com uma população que rondava as 270 mil pessoas.” Ano em que Marques Pereira dá como a tomada de Shanghai pelas forças inglesas, a 19 de Junho. Com a assinatura do Tratado de Nanquim a 29 de Agosto de 1842, o Capitão de artilharia George Balfour a 8 de Novembro de 1843 estacionou um pequeno vapor britânico na margem do Rio Huangpu, com o objectivo de abrir a cidade e o seu porto ao mercado internacional. Em 1845 foi cedida uma pequena área de 56 hectares, expandida para 199 hectares em 1848, onde se instalou a comunidade britânica. Já em 1847, Charles de Montigny criara o primeiro consulado francês na zona onde viria a ser a Concessão Francesa. Governação de Xangai Sobre as concessões estrangeiras e o sistema de governação de Xangai recorremos às informações de Alfredo Gomes Dias, no seu livro Diáspora Macaense – Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Lisboa 2014, de onde retiro passagens e informações. “Até 1864, esta cidade conheceu a chegada dos representantes ocidentais e a ocupação das primeiras áreas do que passaram a ser as concessões estrangeiras britânica, americana e francesa. No domínio comercial, logo nestes primeiros anos, Xangai passou a liderar o comércio externo da China, ultrapassando [em 1850] a cidade de Cantão. Depois, na segunda fase que se prolongou até 1894, a cidade deu continuidade a este processo de afirmação no mundo urbano chinês, construindo uma intensa rede comercial que ligava as relações comerciais externas aos canais de comunicação com o mercado interno”. Ainda segundo Alfredo Gomes Dias, estava-se agora na terceira fase, com a cidade e o seu porto a constituírem-se como o verdadeiro centro económico da Ásia Oriental. Após 1895, devido à mão-de-obra barata os estrangeiros tornam-na num grande centro industrial. “Xangai, cidade governada por três poderes com características diferentes em três territórios dentro de uma só cidade”. A Concessão Internacional (CI) entregue a um poder autónomo, o Shanghai Municipal Council eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros, com um Doyen a presidir. A Concessão Francesa (CF), a ocupar o maior espaço da cidade, fora transformado numa “área residencial por excelência, encheu-se de restaurantes, cafés boutiques da moda, com a Avenue Joffre a apresentar-se como a mais elegante da Cidade, era um verdadeiro enclave colonial” entregue à administração do cônsul francês. A Cidade Chinesa, cuja origem remonta ao terceiro século a.n.E., no local murado do primitivo povoado de Shanghai, era gerida pelo poder mandarínico, segundo Alfredo Gomes Dias que diz, “Até 1900, a comunidade dos portugueses de Xangai manteve-se como a segunda comunidade mais numerosa da cidade, depois da britânica.” Novo porto de Woosung O olhar pelo que se passa na China é feito no Echo Macaense de 6 de Março de 1898 onde se refere o empréstimo de 16 milhões de libras, contraído pela China ao Hong Kong and Shanghai Bank e ao banco asiático alemão, garantido pela parte do rendimento das alfândegas chinesas que não está onerada e por uma parte do rendimento da taxa likin (lijin, imposto comercial cobrado nos meios de transporte). Um dos efeitos deste empréstimo foi fazer subir o preço das acções do Banco Hongkong and Shanghai, que estava a 173 por cento de prémio; deu um pulo para 183 a 186 por cento, e, sendo a prazo, chegou a 188 por cento. Um telegrama de Londres diz que a parte inglesa do empréstimo já foi coberta a 90%”. Refere este jornal que, “O empréstimo nacional que a China tentou levantar, na importância de 100 milhões de taéis, foi um verdadeiro fiasco. Diz o Daily News de Shanghai, que os príncipes e ministros de Tsung li-yamen só subscreveram 20 mil taéis. O povo chinês por enquanto não mostra nenhum entusiasmo. Há muitos capitais na China, mas os chineses não têm confiança no seu governo; não querem subscrever para empréstimo, nem para caminhos-de-ferro, porém se os ingleses se puserem à testa, ver-se-á a soma imensa de capitais e que há-de concorrer para tudo isto.” O mesmo jornal refere ter sido nomeado Governador de Kiaochao (Qingdao) o capitão alemão Truppel e ter este hospedado na sua residência o artista do Illustrated London News, Mr. Melton. Para se perceber tal cuidado das autoridades alemãs, basta ler ainda na mesma página que, “A Rússia, segundo diz Mr. Curzon, Ministro inglês, assegurou à Inglaterra que qualquer porto da China que ela ocupasse continuaria aberto para o comércio do mundo, com o que se procura acalmar a apreensão da Inglaterra que não quer que os seus interesses comerciais fiquem lesados e por isso, só há-de intervir quando houver perigo de se fecharem ao seu comércio os portos chineses ocupados por outras nações”. Em Abril de 1898, o porto de Woosung na entrada de Shanghai foi declarado aberto ao comércio, o que dispensará os grandes vapores de navegar no rio de Shanghai. As fortalezas que havia em Woosung vão ser desmanteladas e arrasadas para dar lugar à construção de concessões estrangeiras e os oficiais alemães que aí instruíam as tropas aquarteladas foram despedidas e as tropas licenciadas. A primeira linha-férrea a existir na China, fora construída por capital estrangeiro entre Shanghai e Woosung, sendo inaugurada a 30 de Junho de 1876. Logo desde o início sofreu muita contestação, acabando por encerrar em 1878, com todo o material deitado ao mar. Só vinte anos depois, em 1 de Setembro de 1898 abriu de novo o caminho-de-ferro entre Woosung e Xangai, fazendo o comboio quatro viagens, duas de manhã e duas à tarde, não circulando à noite. Para uma distância de 18 km o bilhete custava em primeira classe 80 avos, 60 em segunda e 30 avos em terceira classe e na volta outro tanto. Está planeada a sua extensão até Soochow (Suzhou) e Hangchou (Hangzhou). Fala-se já do desassossego que reina nas aldeias e cidades do vale de Yangtzé (Rio Longo, Changjiang); os habitantes vão-se armando preocupados de que alguma eventualidade grave está iminente. A China está a passar uma crise, não se sabe o que virá!”
João Luz SociedadeHistória | Viagem ao passado dos piores tufões que assolaram Macau Em altura de rescaldo da passagem do tufão Mangkhut, olhamos para trás e regressamos mais de um século às tempestades que devastaram Macau e a região. Um dos mais fatais tufões de que há memória ocorreu há quase 144 anos e provocou cerca de 5000 mortos no território [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o dia 22 de Setembro de 1874, Macau acordou para uma manhã radiosa banhada a sol, a convidar a um passeio. Ao largo da baía da Praia Grande, as lorchas de pesca dedicavam-se afincadamente à labuta do mar, enquanto que em terra a vida prosseguia no seu ritmo normal. Ao começo da tarde, os pescadores regressaram a terra firme com o terror espantado nos rostos gritando “tai-fong!”, que pode ser traduzido como “grande vento” e que foneticamente se assemelha à palavra que usamos em português. O que se seguiria ficou marcado na história de Macau como um dos mais negros episódios nascidos de uma catástrofe natural. Em 2014, do Arquivo Histórico saiu o material para a mostra “Em Tempo de Tufões – Exposição de Documentos Históricos de Macau”. No catálogo da exposição, pode-se ler que durante a tempestade de 1874 “os ventos violentos, as ondas enormes e os incêndios danificaram um número incalculável de prédios e de infra-estruturas, duas mil embarcações de pesca e mercantis naufragaram. Cerca de 5000 pessoas morreram: 3600 na península, 1000 na Taipa e 400 em Coloane. Perderam-se bens, cujo valor atingiu dois milhões de moedas de prata”. Um dos registos mais fidedignos e elegantes em termos linguísticos foi redigido por um secretário do Governador, que passou para escrito o terror que havia testemunhado. Um artigo dos anos 90 da Revista Macau, transcreveu o relato de Pedro Gastão Mesnier, publicado no Boletim Oficial da Província de Macau e Timor que passamos a transcrever: “Durante toda a semana anterior, não tinha havido tão formosa madrugada. Centenas de lorchas de pesca, aproveitando o bom tempo, velejavam à vista da Praia Grande, na larga bacia de mar, que se estende até à ilha de Lantau, e todos estavam entregues à mais tranquila confiança, enganados pelo aspecto risonho da atmosfera. Eram três horas da tarde, e os marinheiros chineses, assustados pela transformação súbita da atmosfera, corriam a abrigar as embarcações em lugar seguro. Impelidas pela brisa cada vez mais fresca, debaixo do firmamento, que de momento a momento se tornava mais medonho, e fazendo espumar sob as rápidas quilhas as águas esverdeadas do nosso porto, milhares de juncos se precipitavam, em confuso tropel, fugindo perante as ameaças que todos aqui sabem compreender. Ao pôr do Sol, os seus raios quase horizontais, refractos pelo raro véu de vapores que cobria o ocidente, derramaram subitamente pelo firmamento uma cor vermelha intensa, que envolvia tudo nos seus ardentes reflexos. Parecia que se abria subitamente a boca de enorme fornalha. Durou poucos instantes o fenómeno luminoso.” A chegada do tufão O relato de Pedro Gastão Mesnier prossegue com a descrição do ponto mais feroz da tempestade. “À meia noite, eram já violentíssimas as rajadas. No Porto Interior, desabrigado do lado Norte, as águas estavam mais desinquietas. Sacudidas pelo ímpeto do temporal, algumas lorchas principiaram a perder a amarração, e apenas se desligavam das âncoras, eram arrastadas em vertiginosa carreira, sobre as vagas espumantes, pelo esforço combinado do mar e do vento. Os nossos navios de guerra, a escuna Príncipe D. Carlos, navio de vela de 150 toneladas, a canhoneira Tejo a vapor de 300 toneladas, e a canhoneira Camões de 80 toneladas, ancoradas entre a Alfândega e a Fortaleza da Barra, viam estas moles passando desordenadamente em todas as direcções, acrescentando mais os perigos com que já se encontravam a braços. A escuna Príncipe D. Carlos, abalroada pela massa de juncos, que se despegara como as neves nos mares árticos durante um debacle foi envolvida, arrancada da sua posição, e seguiu a mesma desesperada carreira, indo-se perder por fim, no interior das terras da ilha da Lapa; a Tejo, depois de receber terríveis choques, escapou milagrosamente de perder os seus ferros; a Camões foi parar pelo rio acima, numa várzea de arroz. Estes acontecimentos haviam principiado quando ainda a parte da cidade exposta a Leste pouco sofrera. Eram duas da manhã, e o barómetro descia com maior rapidez do que antes, quando de repente o vento mudou de Norte para Leste. Essa mudança foi súbita, quase instantânea; houve um segundo de calma, e logo, com indescritível violência, uma rajada ululante varreu toda a extensão do Mar de Lantau. Foi o sinal. Encapelando-se em montes sobrepostos, o mar levantou-se numa vaga medonha, e sopesando-se um instante, precipitou-se de chofre sobre toda a parte oriental da cidade, desde o forte de S. Francisco até à Barra. As portas das casas da Praia Grande foram arrancadas, e a água inundou os andares inferiores, as árvores arrancadas, as cantarias dos parapeitos desmoronadas vinham ferir as casas de envolta com as vagas. Entrava o temporal numa fase, em que mal se pode descrever o excesso de furor, com que o vento e o mar se precipitavam sobre esta cidade como se a quisessem eliminar da superfície da terra. Um estrondo constante, furioso, e rugidor, composto das vozes mais temerosas que a natureza pode soltar na sua ira, estrugiam pelos ares: mal se podiam ouvir duas pessoas vizinhas, e de vez em quando, as vibrações mais fortes da tempestade, acompanhando o esforço aumentado dos elementos, infundiam espanto e terror nos infelizes que viam os seus abrigos ameaçando sepultá-los sob as ruínas. Com o ímpeto das rajadas, dos escarcéus e os choques do mar, o solo estremecia como se estivesse sofrendo um terramoto.” Na altura, ainda não havia o actual sistema de aviso por código de sinais numerado, que viria a ser adoptado pela Capitania dos Portos de Macau apenas em 1912, de acordo com os sistemas usados nas zonas costeiras da China e Hong Kong. O nome das coisas A tempestade que marcou o final do século XIX não é a primeira registada pelas autoridades de Macau. Para encontrarmos o primeiro registo temos de regressar a 5 de Setembro de 1738. À altura, o tufão foi considerado como o pior no território e que mais estragos causou até à data. Obviamente, esta medição não tem qualquer suporte científico, sem registos de velocidade. Estávamos ainda longe de dar nome às tempestades. O baptismo das tempestades viria a acontecer depois da 2ª Guerra Mundial, pelo contingente norte-americano do Centro de Alerta Contra Tufões de Guam. Neste aspecto, importa salientar que até 1979 todas as tempestades tiveram nomes femininos. Já no século XX, Macau foi fustigado por um conjunto de tufões que ainda estão bem presentes na memória dos mais velhos. De acordo com os relatórios anuais dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) sobre tempestades tropicais, entre 1953 e 1983 morreram quatro pessoas na sequência de três tufões. Em 1957, o tufão Gloria ceifou duas vidas. Em 1964, morreu uma pessoa depois da passagem do Ruby, igualando o registo do tufão Lynn de 1981. Antes do Hato, Macau não registou perda de vida desde o tufão Hellen, que em 1983 provocou “mais de uma dezena de mortos, especialmente devido ao afundamento de juncos”, de acordo com o relatório anual dos SMG. O número de fatalidades provocado pelo Hellen não chegou a ter uma contagem oficial. Porém, a imprensa local noticiou, à altura, o falecimento de 18 pessoas, a maioria na sequência de naufrágios no Porto Interior. Desde então, só o Hato teve um balanço mortal em Macau. A braços com as consequências das alterações climáticas e da subida da temperatura dos oceanos, os registos dos SMG mostram uma tendência alarmante para o futuro. De 1956, ano em que começa a recolha de dados pelos serviços, até antes do Hato, apenas cinco tufões levaram ao hastear do sinal máximo de tufão. Em pouco mais de um ano, Macau já passou por duas tempestades passíveis de levar ao alerta de maior severidade. Um rumo que coloca as vidas dos residentes de Macau à mercê do mortal capricho dos ventos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Tratado de Shimonoseki [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia em que Camilo Pessanha preside à primeira mesa do júri examinador da instrução primária para a entrada no curso geral do Liceu de Macau, a 17 de Abril 1895 assina-se o Tratado de Shimonoseki entre o Japão e a dinastia Qing, referente à Guerra na Coreia. A dinastia Qing é obrigada a pagar 75,6 mil toneladas de prata, ceder o território chinês de Taiwan e a península de Liaodong aos japoneses, e abrir ao comércio estrangeiro Shashi, Chongqing, Suzhou e Hangzhou. No entanto, a Rússia, apoiada pela França e Alemanha, força o Japão a entregar a Península de Liaodong (no Nordeste da China, de onde provem a dinastia reinante manchu) ao Governo Qing, mas terá de pagar mais 11 mil toneladas de prata. Em Taiwan, os habitantes reagem mal à chegada das tropas japonesas à ilha em Maio de 1895, começando ferozes combates que em cinco meses fazem 30 mil baixas no exército inimigo, mas de nada vale e a resistência continuará até 1945. A construção pelo Japão de um império na Ásia fora encorajado pelos americanos, que cobiçavam Taiwan e em 1867 tinham sido expulsos pelos nativos Gaoshan após invadirem pelo Sudoeste a ilha, com o pretexto de a tripulação de um dos seus barcos ter sido atacada e morta. Em 1874, os americanos apoiaram a invasão japonesa de Taiwan, que com três mil soldados pouco conseguiu avançar devido à resistência das populações locais. No entanto, sobre a mediação dos EUA e dos britânicos, a dinastia Qing foi obrigada a pagar 18,9 toneladas em prata aos japoneses para estes daí saírem. Em 1884, foi a vez da França tentar invadir a ilha mas, também sofreu uma derrota às mãos dos locais. Um ano depois, Taiwan tornou-se uma província chinesa e agora, em 1895 passa para as mãos dos japoneses até ao fim da II Guerra Mundial. Os britânicos aproveitam e a 9 de Junho de 1898 arrendam território à China, tal o sufoco económico para pagar as indemnizações de guerra. A 1 de Julho começa “a concessão dos Novos Territórios por 99 anos de uma área dez vezes maior às anteriores juntas, Hong Kong e Kowloon, incluindo o resto da península e cerca de duzentas ilhotas”. O Tratado de Shimonoseki dá início a um novo estado de agressão à China pelas oito potências invasoras estrangeiras, Inglaterra, França, EUA, Rússia, Japão, Alemanha, Áustria e Itália, que esperam novas oportunidades para ganhar mais concessões na China, levando à completa miséria os chineses, que sem meios, têm de se entregar às mãos dos que os espoliam até nada haver e assim, partem para ir trabalhar nos projectos coloniais dos agressores. Muitos desses chineses são apanhados por redes e transformados em escravos. Encontros na Casa do Mandarim Tal como acontecera em 1856 em Xangai, os estrangeiros criaram concessões que foram aumentando à medida que chegavam outros países e assim entre 1895 a 1900 em Tianjin estabeleceram-se as zonas dos japoneses, belgas, italianos, austro-húngaros e alemães e num pulo a cidade cresceu imenso. Zheng Guan Ying (1842-1921), nascido no distrito de Xiangshan, fora agente nas companhias comerciais inglesas, mas após o golpe da crise económica em Xangai e a sua detenção e litígio em Hong Kong, vai residir para Macau em 1886. Na Casa do Mandarim dedicou-se a redigir Advertências em Tempos de Prosperidade (Sheng shi wei yan), marco na história da filosofia chinesa contemporânea, onde combina as suas vivências e as ideias de um fortalecer nacional. O pensador reformista do Movimento de Ocidentalização recebe Sun Yat Sen, a estudar Medicina em Hong Kong, nas viagens de e para a sua terra natal, Cuiheng, também em Xiangshan. Segundo Choi San diz: “vinha por Macau para trocar com Zheng Guan Ying ideias sobre a situação política e a aprendizagem do Ocidente. Desenvolver a produção agrícola transformando a agricultura com a avançada tecnologia científica do Ocidente e com os métodos administrativos capitalistas constituiu também uma questão que chamou a atenção de Sun Yat Sen. Por volta de 1891, o Dr. Sun Yat Sen escreveu um artigo comentando exclusivamente a agricultura. Após algumas alterações feitas por Zheng Guan Ying, este artigo foi incluído, sob o título de Nong gong (Sobre a Agricultura), no livro Advertências severas na época próspera. Nele, o Dr. Sun Yat Sen diz: “Após o Dr. Sun Yat Sen se formar pela Universidade de Hong Kong, vem para Macau como médico e em 1893 ajudou o amigo português Francisco Fernandes a criar a edição chinesa do jornal Echo Macaense (JingHaiCongbao). Segundo Segredos da Sobrevivência de Wu Zhiliang. Em 1894 Zheng Guan Ying escreveu “uma carta a Sheng Xuan Huai, mandarim pertencente à escola promotora do comércio exterior e negócios estrangeiros, pedindo-lhe que apresentasse Sun Yat Sen a Li Hong Zheng, chefe da escola promotora de comércio exterior e assuntos estrangeiros.” Na carta faz referência à aspiração e ambição de Sun Yat Sen no sentido de revigorar a agricultura chinesa. Do artigo Influência de Zheng Guan Ying Sobre Sun Yat Sen e Mao Tse Tung’ escrito por Choi San e publicado na Revista Cultura. Opiniões da situação Pela ajuda dos russos aos chineses e para garantirem a protecção do território contra as agressões estrangeiras é dado aos russos a concessão do caminho-de-ferro Transmanchúria, a partir de Harbin, Manchúria do Norte, linha aberta a 3 de Junho de 1896 entre a China e a Rússia. A 26 de Janeiro de 1897 é aprovado pelo Rei D. Carlos para ser rectificado, o Tratado de Comércio e Navegação assinados em Lisboa entre Portugal e o Japão. Já O Porvir de Maio de 1898 refere ser “curiosa e não deixa de ser algum tanto verdadeira a opinião que os franceses formam sobre a situação política no Extremo Oriente e, para amostra, aí vai isso, que eles dizem: Entretanto, ela recua visivelmente e circunscreve de mais em mais o terreno que proclama intangível. Comentando o caso, diz o nosso colega inglês: . É escusado esperar, porque a Inglaterra já apanhou também um óptimo quinhão da China, e não tem, portanto, necessidade de mostrar já a dentuça arreganhada, além do que, se a arreganhasse com a bondosa intenção de morder na China, seria requintada tolice, porque ela, a miséria, está-se assemelhando ao leão velho da fábula. Podem todos escoiceá-la que ela não reagirá. Quanto a arreganhar os dentes à Rússia, França e Alemanha, não seria a Inglaterra tola em tal fazer, porque quando pensasse em dar uma dentada em tais meninas, decerto apanharia em troco duas ou mais para o seu tabaco.” Será?
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA Coreia na Guerra do Japão à China [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todos os consulados de Portugal na China, o de Shanghai é indubitavelmente o que tem mais elevado grau de importância, e quer porque revista os seus titulares de carácter e funções de juízes, quer pela numerosa comunidade que está sob a sua jurisdição e pelos magnos interesses que naquele tribunal se debatem e ventilam, exige que só seja confiado a um cônsul de carreira, ou a um homem suficientemente habilitado e que dê todas as garantias do bom desempenho de tão transcendente missão”, segundo O Independente de 1 de Agosto de 1891. De 1891 a 1893 os capitalistas europeus e sobretudo os de Londres retiraram uma imensa quantia de dinheiro do giro comercial da China por eles empregado em Hong Kong, pois estava em curso a desvalorização do preço da prata. Regressado a Shanghai vindo da Metrópole, o cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, Joaquim Maria Travassos Valdez, de 1893 a 1895 como Doyen (decano do corpo consular) geriu as questões de Shanghai, “muitas, importantes como, a proibição da importação de máquinas, a de medidas preventivas por ocasião da peste bubónica, a do jubileu de Shanghae, a da dragagem de Vonsung, a da supressão da loteria e outros jogos, a queima e destruição de pagodes, e finalmente a da neutralidade de Shanghae por ocasião da guerra entre a China e o Japão.” No início o Daily Press de Shanghae mostrara-se contra o Sr. Valdez para decano do corpo consular, mas escolhido pelos seus colegas, o facto desmentia as asserções desse jornal. Como Doyen da Concessão Internacional, o Sr. Valdez presidia ao Shanghai Municipal Council, eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros e nesse cargo conviveu com três tao-taes e com esses governadores da cidade chinesa manteve cordiais relações de amizade. Quando rebenta a guerra entre a China e o Japão, o tao-tae de Shanghae procura amiudadas vezes o Sr. Valdez para ouvir a sua autorizada opinião sobre várias questões, algumas delas estranhas ao seu cargo, mostrando não só confiança no Sr. Valdez, como lhe reconhece competência. Informações do jornal O Provir de Hong Kong. Parecer do Doyen Camilo Pessanha ainda viaja para Macau quando a 28 de Março de 1894 em Shanghai ocorre o assassinato de um refugiado político da Coreia, Kim Ok Kiun, a residir no Japão, morto por Hung, também coreano. “Como a Coreia não é uma potência que tivesse tratado com a China, pois considerada como um seu Estado tributário, é difícil decidir qual deve ser a lei, e qual o juiz para julgar o caso” e aqui entra o Sr. Travassos Valdez, cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, na sua qualidade de Doyen do corpo consular em Shanghae. “Mostra que os cônsules e o conselho municipal reunidos possuem os poderes legislativo, executivo e judicial – tudo quanto constitui uma verdadeira soberania. Prova que o pagamento de um pequeno foro ao imperador da China, (que, pela lei chinesa, é proprietário de todo o terreno no Império e só o afora aos seus súbditos) não afecta a questão de soberania dentro dos Estabelecimentos, do mesmo modo como o pagamento de um tributo, feito por um Estado tributário, não diminui os seus direitos de soberania dentro das suas fronteiras. Demonstra ser a autoridade do magistrado chinês pelos regulamentos do tribunal misto quem tem a menor alçada e é limitada pela presença de um assessor estrangeiro. Conclui que o caso deve ser julgado por um membro do corpo consular, e conforme as leis de seu país. A oposição que houve no corpo consular impediu a adopção dessa conclusão e Hung foi entregue às autoridades chinesas e libertado na Coreia. Para o Sr. Valdez um ultraje às bandeiras estrangeiras que defendiam os Estabelecimentos, como uma violação dos sagrados direitos de asilo, e com um perigoso precedente que poderia conduzir a crimes sem fim. Guerra da Coreia Quatro meses em Macau e Camilo Pessanha toma conhecimento ter o Japão, incitado pelos britânicos e com ajuda americana, a 1 de Agosto de 1894 invadido a Coreia, país ainda tributário da China e por isso sobre sua protecção. “Tudo começa na Primavera de 1894 com uma revolta de camponeses, tendo os senhores feudais coreanos pedido ajuda ao Governo Qing para enviar tropas. Quando em Junho chegam as 1500 tropas chinesas a Asan, está já a revolta controlada, encontrando-se quase toda a força naval e dez mil soldados da infantaria japonesa em Seul e ao redor de Inchun. A China propõe ao Japão deixarem ambos os países de ter tropas na Península da Coreia. O Japão recusa, dizendo ser para ajudar a Coreia nas suas internas reformas”, segundo Bai Shouyi, em Outline History of China. E nesse livro em tradução livre continuamos, “Nos finais de Julho, os vasos de guerra chineses encontram-se em Asan, quando de repente uma frota japonesa os ataca, causando a morte a mais de 700 soldados, levando a armada chinesa a retirar para Pyongyang, onde a 15 de Setembro ocorre a batalha, que as tropas chinesas ajudadas pelos coreanos conseguem repelir. Dois dias depois da Batalha de Pyongyang, a armada chinesa Beiyang comandada pelo Almirante Ding Ruchang, inexperiente em batalhas navais, encontra-se no Mar Amarelo quando é cercada pela japonesa. A batalha dura cinco horas e os chineses perdem cinco navios. Em finais de Outubro, as tropas japonesas invadem o Nordeste da China, capturando a Península de Liaodong e no Rio Yalu, Jiulian e Andong (hoje Dandong, Liaoning). Em meados de Janeiro de 1895, os japoneses vão à Província de Shandong e assaltam o porto Weihaiwei, onde o que restara da frota Beiyang é completamente destruída em Fevereiro. Passam as tropas japonesas à península coreana e rapidamente ocupam muito território, levando o Governo Qing a pedir a paz. A astuciosa inteligência comercial estimula atritos que sabe levarem à guerra e assim mais uma vez resulta. A Inglaterra apoia o Japão e não a Rússia, sua oponente em Xinjiang, no Oeste da China, onde os britânicos para Norte e os russos para Sul tentam expandir os seus impérios, levando entre ambos à assinatura de um tratado em 1895. A Guerra da Coreia (1894-95) dá ao Japão asas no sonho de construir um império na Ásia. Guerra que marca um novo estado de agressão estrangeira à China, a ter de permitir aos poderes ocidentais investir aí em fábricas a satisfazer as suas necessidades urgentes para exportar capital. O status da China como semi-colónia fica confirmadíssimo, segundo Bai Shouyi. Ainda em 1893 começara um movimento reformista de chineses ricos ligados aos Qing a investirem largas somas de dinheiro na modernização tecnológica das suas fábricas. A maioria dos negócios desses milionários acaba em bancarrota devido à competição dos comerciantes estrangeiros, já na Era do capitalismo industrial. Controlam os transportes, as matérias-primas e a produção, e sem rivais no comércio entram por todos os países. O mercado tem que ser livre, nem que seja pela força. Ou ocorre como com a planta do chá. A Rainha Vitória impera no mundo, cujo jubileu de diamante será em 1897.
Andreia Sofia Silva Manchete PolíticaPolítica | História dos deputados nomeados na Assembleia Legislativa Esta semana Sulu Sou pediu o fim dos deputados nomeados por considerar que representam uma “sequela nociva” da Administração portuguesa. As primeiras nomeações aconteceram em 1977, durante a Administração de Garcia Leandro. Analistas lembram que a continuação destes deputados, após 1999, teve o consentimento da comunidade chinesa e que a possibilidade de os eliminar nem sequer foi abordada nas negociações para a transferência [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]composição da Assembleia Legislativa (AL), como a conhecemos hoje, com deputados eleitos pela via directa e indirecta, e nomeados pelo chefe de Governo, teve início com a adopção do Estatuto Orgânico de Macau (EOM) em 1976. Na altura, o general Garcia Leandro era Governador do território. A possibilidade de eliminar a figura do deputado nomeado após a transferência de soberania de Macau para a China não foi sequer discutida nas reuniões do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês, conforme recorda o académico Arnaldo Gonçalves, que foi assessor do lado português. “Estive no Grupo de Ligação até 1997 e penso que uma vez foi sugerida a hipótese [de acabar com os deputados nomeados após 1999], mas os chineses disseram que não era um ponto importante entre a China e Portugal e nem aceitaram que fosse discutido. Na estratégia portuguesa isso não tinha muito interesse”, explicou ao HM. “Macau não tem partidos políticos, tem associações políticas que, ou já estão constituídas, ou se constituem para efeitos das eleições. No caso de Macau, aquando da assinatura da Declaração Conjunta, a questão da evolução democrática não foi considerada uma prioridade”, acrescentou Arnaldo Gonçalves. O tema da redução, ou mesmo eliminação, dos deputados nomeados não é nova, mas voltou a ser frisada esta semana em plenário da AL pelo deputado Sulu Sou. Este argumentou que, o facto de alguns deputados continuarem a ser nomeados pelo Chefe do Executivo após 1999 é uma “sequela nociva” dos tempos da Administração portuguesa. O pró-democrata defendeu que “a injustiça destas sequelas da colonização persiste” e que a “Administração portuguesa deixou alguns sistemas políticos ‘nocivos’ e injustos”. “Um dos meios para evitar que a comunidade chinesa fiscalizasse e controlasse o Governo colonial era o regime de nomeação dos deputados à AL pelo Governador, protegendo assim os interesses instalados da metrópole”, adiantou o deputado no plenário. Para Jorge Fão, que foi deputado eleito pela via directa, não se deve apontar o dedo aos portugueses. “Não acredito que o sistema criado pela Administração portuguesa não tenha sido resultado da consulta aos representantes da comunidade chinesa em Macau.” Defensor convicto do trabalho de Garcia Leandro, que administrou Macau entre 1974 e 1979, Jorge Fão recorda que chegaram mesmo a ser criados incentivos para que, no pós-25 de Abril, a comunidade chinesa pudesse ser mais activa politicamente. “Foi nos anos 80 que os chineses se começaram a recensear e a mostrar interesse nos assuntos políticos de Macau. Houve vários incentivos. Essa reformulação teve, naturalmente, a aprovação da China através dos seus representantes, tal como o senhor Ho Yin e Ma Man Kei.” À época, o pai do ex-Chefe do Executivo, Edmund Ho, e o empresário Ma Man Kei, avô do actual deputado nomeado Ma Chi Seng, eram dois dos mais importantes representantes da comunidade chinesa junto dos portugueses. Para Jorge Fão, “poderia haver quem não concordasse com a existência de deputados nomeados, mas aquilo foi criado para haver um certo equilíbrio. Isto foi feito, e até bem feito, naqueles tempos. Talvez agora esteja um pouco ultrapassado”, apontou. Negociações difíceis No livro “Macau nos anos da revolução portuguesa: 1974-1979”, Garcia Leandro explica que, aquando da elaboração do EOM, a ideia era que todo o hemiciclo fosse eleito pela via directa. Mas depressa chegou à conclusão de que seria “um grave erro, que denotava falta de conhecimento local”. Isto porque, no território, “não existiam hábitos de participação política”, pelo que era necessário “negociar a composição da AL”. E houve, de facto, diálogos com a comunidade chinesa em prol de uma maior participação. “Não foram simples as negociações com os representantes da comunidade chinesa, com vista ao modo de representação na futura Assembleia. Os nossos interlocutores não previam uma participação muito numerosa no sufrágio directo, além de não desejarem que a comunidade chinesa pudesse vir a ter a maioria dos deputados”, recorda Garcia Leandro no livro. Houve, nesse sentido, “necessidade de congregar esforços dos residentes mais conhecedores da comunidade chinesa para encontrar a solução mais adequada à sua inserção na futura Assembleia”. Depressa se percebeu que “a solução possível seria a opção por um determinado número de lugares eleitos por sufrágio directo (essencialmente destinados aos portugueses), enquanto que por sufrágio indirecto ou orgânico as diferentes associações de interesses existentes se fariam representar na Assembleia (maioritariamente por deputados chineses)”. A nomeação de deputados acabou por ser uma medida adoptada para permitir a “participação de mulheres, de cidadãos mais novos, de determinadas profissões, de gente colocada mais ao centro ou mesmo independentes de qualquer força política ou económica”. “Tornava-se necessário definir um terceiro bloco de deputados que preenchesse estas lacunas de representação. Concluiu-se que a solução passaria por este bloco de deputados ser nomeado pelo Governador, depois de conhecidos os resultados dos sufrágios directo e indirecto”, escreveu Garcia Leandro no livro. Jorge Neto Valente, presidente da Associação dos Advogados de Macau, no livro “Carlos D’Assumpção – o homem, o jurista e o político”, também denotou que a comunidade chinesa não estava habituada a participar activamente na vida política. “A queda do regime em 25 de Abril de 1974 trouxe preocupações a muita gente em Macau, sendo que nem o regime anterior fomentava a participação da generalidade dos cidadãos na vida política, nem – verdade se diga – a maior parte das pessoas estivesse interessada em trocar a pacatez dos seus hábitos pelos custos e riscos de uma actividade política interventora.” Na mesma obra, o já falecido advogado Francisco Gonçalves Pereira recorda que o jurista macaense encontrou na “composição tripartida da AL” o “‘quantum’ de flexibilidade que as particularidades do estatuto político de Macau impunham”. Nas palavras do causídico, Carlos D’Assumpção encontrou, através do sufrágio directo, “a legitimação, por via democrática, de uma liderança incontestável e assumida da comunidade macaense, fonte primeira de inspiração da tradição senatorial”. No que diz respeito ao sufrágio indirecto, o ex-presidente da AL “procurou encontrar, pela via neocorporativa, um mecanismo e um espaço para acomodar os interesses próprios da comunidade chinesa e dos seus líderes históricos, à boa maneira dos que, em Macau e por vezes com prejuízo dos pruridos da corte, lançaram as bases do tão proclamado relacionamento plurissecular entre as duas comunidades”. Promessa não cumprida No mesmo livro biográfico sobre Carlos D’Assumpção, é recordada uma entrevista dada pelo próprio em 1987, quando o EOM foi revisto, em que defende uma alternativa ao actual modelo de composição da AL. “Mas há outra forma, sem ser a nomeação pelo Governador. É a chamada cooptação: os deputados eleitos pelas vias directa e indirecta juntam-se e escolhem os restantes… É uma fórmula que eu poderia defender.” Lembrando que “a China disse [nos anos 80] que a Assembleia será, no futuro, maioritariamente eleita”, D’Assumpção acabaria por admitir na mesma entrevista que o modelo que hoje conhecemos da AL seria o mais ajustável a Macau. “Sempre pensei que uma das fórmulas possíveis é a actual: deputados eleitos por sufrágio directo, outros por sufrágio indirecto e outros nomeados pelo Governador.” Essa promessa da China consta na Lei Básica, quando se afirma que “a AL é constituída por uma maioria de membros eleitos”. Arnaldo Gonçalves afirmou, no entanto, que uma alteração do número de deputados eleitos pela população não deverá acontecer nos próximos tempos. “É desejável, no sentido da evolução do sistema de representação, e se tudo corresse sobre os carris, o que não está a acontecer, que houvesse uma alteração da proporção dos deputados. Isto é, promover um significativo aumento dos deputados directos, uma redução dos deputados indirectos e, com o tempo, o desaparecimento dos deputados nomeados. Verificamos que isso não é verdade e que a China não quer fazer essa alteração. É preciso que venha outra geração, e mesmo assim eu tenho dúvidas.” António Félix Pontes, que foi deputado nomeado por Vasco Rocha Vieira entre 1991 e 1997, não tem dúvidas de que, o ideal, seria esse redução ao longo dos tempos. “Em termos de uma democracia plena, eventualmente os deputados nomeados tenderão a diminuir, mas acho que ainda fazem falta, independentemente de quem lá estiver, para equilibrar e dar mais conhecimento à AL.” O economista e ex-administrador da Autoridade Monetária e Cambial de Macau assume ser “um democrata”. Contudo, “devido à cultura das pessoas” e “às circunstâncias de cada país ou região”, defende a continuação dos nomeados. Ainda assim, “em termos de uma evolução da democracia é lógico que o número de deputados nomeados tende a diminuir ou a desaparecer, mais do que isto não posso dizer”. Félix Pontes não quis comentar o actual trabalho dos deputados nomeados, por já se encontrar afastado da política, mas recorda que, no seu tempo, “os nomeados trouxeram sempre uma mais valia nos trabalhos da AL”. “Toda a gente reconhecia isso. Penso que o deputado Sulu Sou deve estar enganado. Antes de fazer essas afirmações deveria ver os trabalhos que foram feitos no passado pelos deputados nomeados e verificar que nós representamos sempre uma mais valia e um equilíbrio em relação ao que se fazia na AL.” “Os deputados eleitos apreciavam sempre os deputados nomeados, fossem portugueses ou chineses. Penso que os deputados nomeados foram quase sempre portugueses mas também os restantes tinham a nacionalidade portuguesa”, recordou Félix Pontes. A primeira vez que a AL teve na sua composição deputados nomeados foi em 1977, após as eleições desse ano. Na altura, eram nomeados apenas cinco legisladores, hoje nomeiam-se sete. “Dentro da filosofia e da lógica que nortearam este processo, seriam nomeados dois deputados chineses e três portugueses.” Ho Yin, por ter prestado “grandes serviços em Macau” e por ser um “bom amigo dos portugueses” foi um dos chineses dos escolhidos, tal como Kwong Bin-Yun, “director de uma grande escola chinesa e pessoa muito respeitada e sem ligações ao poder económico”. Os portugueses escolhidos foram Anabela Ritchie, Ana Perez e Mário Figueira Isaac.
Andreia Sofia Silva EventosInês Rodrigues acaba de publicar livro sobre investigação acerca do massacre de 1953, em São Tomé e Principe A obra da professora Inocência Mata, da Universidade de Macau, foi fundamental para Inês Rodrigues quando decidiu fazer o seu doutoramento sobre o Massacre de 1953 ocorrido em São Tomé e Príncipe. Doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Inês Rodrigues fala sobre a sua investigação transformada agora em livro, intitulado “Espectros de Batepá. Memórias e narrativas do ‘Massacre de 1953’ [dropcap]N[/dropcap]um dos seus artigos afirma que o “massacre de Batepá” é um acontecimento praticamente desconhecido em Portugal. Como teve o primeiro contacto com este acontecimento e porque decidiu investigar este assunto? O primeiro contacto foi fortuito e deu-se quando li, pela primeira vez, a poesia da Conceição Lima, onde as referências ao massacre são recorrentes. A obra pioneira da académica são-tomense Inocência Mata [docente da Universidade de Macau], a quem devo muito intelectualmente e que tem três livros sobre a literatura são-tomense que são importantíssimos. Lendo estes textos, que são incontornáveis, apercebi-me que havia dimensões menos problematizadas deste evento histórico que poderiam ser iluminadas por uma pesquisa sistemática e global, a partir do campo dos estudos culturais, focada no «Massacre de 1953» ou «Massacre de Batepá», como também é conhecido. Diz também que em Portugal “se recusa a discussão de um evento perturbador”. Fala da comunidade académica, dos media? Neste sentido, ainda há muitos pudores em Portugal relacionados com o passado colonial? Em anos recentes, têm emergido muito mais espaços onde discutir e problematizar estes temas, sobretudo promovidos por associações de afro-descendentes e pela academia, mas também por alguns meios de comunicação social e jornalistas. Todavia, julgo que ainda há um longo caminho a percorrer. Considero que existe uma narrativa mestra, muito perceptível em certos discursos políticos e comemorações nacionais, por exemplo, que persiste em considerar o colonialismo português como tendo sido mais harmonioso e pacífico do que outros colonialismos europeus. Continua a não se aceitar muito do que aconteceu? Creio que ainda subsiste uma dificuldade em lidar criticamente com o passado colonial em certos núcleos nacionais e sectores da população, nomeadamente, no reconhecimento de que o colonialismo português compreendia dimensões de violência física e simbólica estruturais na administração, manutenção e gestão dos territórios e populações colonizados. No caso específico do «Massacre de Batepá», temos o facto de apenas em 2018 um Presidente da República português ter visitado um dos seus dos lugares emblemáticos (Fernão Dias), em visita oficial ao arquipélago, tendo aí reconhecido, a faceta ‘menos boa’, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, da história de Portugal. Recordo, ainda, a actual proposta de construção de um eventual ‘Museu das Descobertas’ em Lisboa, que, felizmente, tem gerado uma profícua discussão. Estes ‘lugares de memória’ (estátuas, museu, toponímia, etc.) transportam significados simbólicos, transportam um passado de silenciamentos, exclusões e opressões várias que não podem ser ignorados. Daí que o manifesto publicado no jornal Público, e assinado por cem afro-descendentes portugueses, contra a edificação deste museu, nos moldes como foi apresentado e contra o que ele representa, seja um movimento importante para se perceber que estes processos de materialização da memória a partir do Estado têm que envolver a sociedade civil e não podem ser projectados desgarrados dos sujeitos. Estabelece uma ligação ao relato literário deste massacre, feito pelos poetas Alda Espírito Santo e Conceição Lima. Até que ponto a literatura foi importante para preservar a memória deste acontecimento? O corpus literário do massacre é muito heterogéneo e, por isso, é importante ter em conta os contextos de produção desses textos uma vez que a partir deles emergem valores estéticos e ideológicos diferenciados. Nesse sentido, na minha pesquisa, defini três períodos histórico-sociais e políticos específicos a partir do qual analisei as representações de Batepá. A dita ‘literatura colonial’ em que, na maioria das obras, são reproduzidos vários estereótipos associados às populações colonizadas. A literatura de testemunho, produzida sobretudo durante a luta de libertação no arquipélago e nos anos imediatamente posteriores à conquista da independência, a 12 de Julho de 1975, que constrói o ‘herói da liberdade da Pátria’. Por fim, a literatura da ‘pós-memória’ (seguindo o conceito proposto por Marianne Hirsch), isto é, as obras de escritores e escritoras que não viveram o massacre, mas que dele se apropriam criativamente como se de um passado vivido se tratasse – os herdeiros e as herdeiras de 1953. É esta literatura mais recente, sobretudo, mas em particular a poesia de Conceição Lima, que mais tem contribuído para complexificar as narrativas históricas do massacre, demonstrando que quadros teóricos e causais simplistas e categorias estanques como vítimas e perpetradores não são suficientes para se pensar este episódio, os seus actores ou para perceber como ele se desenrolou. De qualquer modo, e agora respondendo à questão mais directamente, a literatura, sobretudo a de testemunho, foi muito importante, à época, principalmente em certos segmentos da população são-tomense, para resgatar este acontecimento do passado, para construir uma comunidade próxima a partir dele e para fixar o sucedido numa narrativa que fosse passível de transmitir a ‘gerações’ vindouras. Faz também uma ligação com o termo “fantasmagorias”. Quer isso dizer que este massacre existe, sobretudo, no imaginário dos são-tomenses, existindo várias versões do mesmo? O fantasma, neste livro, é uma figura a que recorro de modos distintos: por um lado, enquanto elemento de imaginação e representação de um passado que continua muito presente na sociedade são-tomense e cujos legados ainda se fazem sentir no arquipélago e, por outro, enquanto elemento material e sujeito que produz conhecimentos. Isto significa que o massacre é um ‘fantasma’, no sentido da dialéctica visibilidade/invisibilidade, de que pouco se quer falar em Portugal; um ‘fantasma’ metafórico que, de modo marcante, paira no imaginário dos são-tomenses. Mas significa também que o massacre é reencenado de modo performativo por acção de espectros no sentido literal da palavra, como, por exemplo, no caso do Senhor Nove Nove, espírito de um sobrevivente de Batepá que ‘monta’ (para usar uma das expressões empregues localmente) o curandeiro Nijo e age como testemunha da violência persistente do colonialismo. Sobre Nijo e o Senhor Nove Nove há um documentário muito interessante e que recomendo vivamente, de Inês Gonçalves – ‘Na Terra como no Céu’. Estes fantasmas e seus significados simbólicos vão, por sua vez, contar diferentes versões dos acontecimentos de 1953. Este massacre foi muito importante do ponto de vista político, pois fundou o nacionalismo são-tomense. Acredita que foi fundamental para formar a sociedade actual de São Tomé e Príncipe? Não há evidências concretas ou factuais da relação entre o massacre e a criação do CLSTP (Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe) ou, mais tarde, do MLSTP (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe). Contudo, há uma narrativa nacionalista que, durante os anos 1960 e 1970, resgata este evento como fundador do nacionalismo são-tomense. Como o momento do despertar político dos são-tomenses para a necessidade da independência. Na ausência de luta armada no território (como sucedia em Angola, Guiné e Moçambique) ou de lugares de violência carcerária como o Tarrafal, São Nicolau ou Ilha das Galinhas, é o massacre de 1953 que congrega em si a resistência dos são-tomenses ao colonialismo, a heroicidade e o sofrimento destes homens e mulheres, a vontade da população em não mais se subjugar às arbitrariedades e brutalidade do sistema colonial, etc. Legitimou também o “Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe”, que afirma que institucionalizou a memória de uma forma não consensual. Pode especificar? Como conta detalhadamente Gerhard Seibert numa obra notável sobre o percurso político e social do país desde o colonialismo até à independência – Camaradas, Clientes e Compadres. Colonialismo, Socialismo e Democratização em São Tomé e Príncipe (2002, ed. revista e aumentada) –, nos anos 1960 e 1970, quando a narrativa nacionalista são-tomense se ancorou simbolicamente no massacre para as suas reivindicações de autodeterminação, optou por destacar alguns forros – grupo etno-cultural dominante no arquipélago e que designa os descendentes de ‘filhos-da-terra’ e de escravos alforriados – como os ‘heróis e mártires’ da resistência no arquipélago ao domínio colonial. Excluindo, por conseguinte, as acções e desejos dos trabalhadores contratados ou de forros de segmentos socioeconómicos vulneráveis do processo de imaginação e construção da nação. Esta narrativa, mobilizada, como disse, com maior ênfase, durante a luta de libertação e nos primeiros anos da independência ainda vai tendo algum lastro nos dias de hoje e falha em reconhecer adequadamente as muitas tensões e nivelações de estatuto presentes na sociedade colonial de São Tomé e Príncipe, constituídas não apenas com base em signos como a cor da pele, mas também em factores como classe social, diferença sexual, geografia, entre outros. Para se compreender o massacre é preciso, então, perceber primeiro os modos como o colonialismo português desempenhou um papel preponderante na categorização da sociedade do arquipélago, profundamente hierarquizada, instituindo, especialmente através do trabalho, relações de poder muito complexas entre portugueses, colonizadores de outras origens europeias, forros, angolares e trabalhadores contratados de várias geografias. Publicado este livro, que é o resultado do seu doutoramento, que projectos pretende desenvolver no futuro? É inevitável sentir que fica sempre imenso por dizer e explicar numa pesquisa deste género, acima de tudo porque se refere a um massacre colonial repleto de nuances e porque o meu lugar de enunciação é, inevitavelmente, Portugal… Elenco algumas das interrogações em aberto que avanço na conclusão do livro: por exemplo, serão a fantasmagoria e a figura do ‘espectro’ elementos profícuos de análise se ampliados às representações literárias de outros massacres fundadores, como, entre outros, Mueda, Wiriamu ou Pidjiguiti? Quais são as possibilidades de se construir uma memória pública crítica do massacre em Portugal? O que espero, na verdade, é que este arquivo da ‘imaginação do massacre’ possa permanecer um processo em aberto e que seja discutido e retrabalhado, suscitando novas interpretações críticas individuais e colectivas sobre o passado comum de Portugal e São Tomé e Príncipe.
Sofia Margarida Mota Entrevista MancheteSilvestre de Almeida Lacerda, director-geral da Torre do Tombo: “Se não se conhece, não se ama” O director-geral do Arquivo Nacional da Torre do Tombo está em Macau para participar hoje na inauguração da exposição no Museu das Ofertas sobre a Transferência de Soberania de Macau. A mostra intitulada “Chapas Sínicas – Histórias de Macau na Torre do Tombo” conta a história do território ao longo de cerca de 400 anos. De Portugal, Silvestre de Almeida Lacerda trouxe como presente um conjunto de imagens de Macau dos anos 30 [dropcap]O[/dropcap] que nos contam as Chapas Sínicas? Contam-nos muitas histórias principalmente associadas a questões da administração desde o séc. XVI até aos finais do séc. XIX. Contam-nos as histórias sobre a jurisdição do trabalho desenvolvido pelas autoridades quer chinesas quer portuguesas, portanto de comunicação diplomática. Mas, sobretudo, trazem-nos o quotidiano local da altura, a criminalidade, com todos os aspectos da jurisdição e da fixação dos estrangeiros, com pirataria, naufrágios, etc. Como eram as relações diplomáticas nos momentos iniciais da presença portuguesa em Macau? No início do séc. XVI as relações passavam muito pela instalação da câmara de Macau, sobretudo ao nível do procurador ou ouvidor, e pela permanência de autoridades no território. Portugal podia ter o exército aqui e isso dava uma possibilidade significativa de permanência. Diria que, desde muito cedo, eram relações entre iguais em que há uma preocupação de quem administra os portugueses serem as autoridades portuguesas, e quem administra a comunidade chinesa serem as autoridades chinesas. Como é organizar uma exposição com este tipo de peças? Estamos a falar de tesouros. Acho que há aqui um factor particularmente feliz da colaboração entre o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e o Arquivo de Macau. Este foi o primeiro passo. Ao longo dos últimos três anos, temos vindo a desenvolver o trabalho de recuperação e de conservação dos documentos que estão na Torre do Tombo. Foi necessário preparar todo um trabalho de intervenção sobre o estado em que a documentação se encontrava, que era bastante frágil. Estamos a falar de documentos com 400 anos. Uma coisa muito interessante que aconteceu tem que ver com o suporte destas obras. Inicialmente todos os indícios apontavam para que fosse papel de arroz, mas não é. Entretanto, com esta colaboração foi possível descobrir que a base essencial é o bambu. Descobrimos isto com a colaboração de um dos técnicos aqui do Arquivo de Macau que esteve a estagiar na Torre do Tombo e trouxe com ele conhecimento acerca dos vários tipos de papéis. Estes documentos foram primeiro classificados pela UNESCO como Memória da Ásia, em 2016, e só depois é que avançámos para a classificação como registo da Memória do Mundo da UNESCO. Dos 3700 documentos que fazem parte das Chapas Sínicas, estão cá apenas alguns. Originais trouxemos seis. São poucos mas são em grande formato, alguns têm quase três metros. São organizados tipo harmónio o que nos permite trazer uma caixa relativamente pequena em boas condições. Vêm todos associados a um aparelho, um datalogger, que nos permite monitorizar a humidade, a temperatura e mandar esses dados para Lisboa. O transporte foi feito à mão. Só não trazia as algemas agarrada a elas (risos). Foi um processo de exportação temporária destes documentos classificados como tesouros. FOTO: Sofia Mota Está à frente da Torre do Tombo, muitas vezes considerada como um espaço pouco acessível. Tem feito um trabalho que visa a desmistificação do secretismo do arquivo. A Torre do Tombo tem 100 km de documentos. Muitos destes documentos já estão acessíveis através da internet. Neste momento, temos cerca de 30 milhões de imagens disponíveis que as pessoas podem fazer download gratuito. Estamos a falar da democratização da história? Sim, é preciso fazer com que as pessoas possam conhecer. Se não se conhece não há capacidade de amar. O amador é aquele que ama e não aquele que tem menos competências. E ama porque conhece. Esta forma de desmistificar as coisas é possível só através do conhecimento. Por exemplo, muitas das Chapas Sínicas já estão em boa resolução no nosso site e até se pode fazer reutilização da informação. Estas obras apresentam um aspecto muito curioso: temos a representação de desenhos que estão associados ao conteúdo dos documentos. São desenhos de artífices e com esta possibilidade de reutilização e quase de reinterpretação podemos ter uma ponte para arte. As artes plásticas e gráficas podem reutilizar este tipo de materiais. Esta é outra forma para tentar que as pessoas olhem para os documentos de arquivo. Não só como preciosidades, mas como objectos dos quais se podem apropriar. Alguns deles têm mesmo que ser apropriados. Como por exemplo? Estamos a falar, por exemplo, nos casos que pretendem obter uma dupla nacionalidade e em que o interessado tem ascendentes portugueses há três gerações. A Torre do Tombo tem um registo da população portuguesa desde 1543, depois do registo sistemático a partir do Concílio de Trento. Atendendo que a população portuguesa é 99 por cento católica, temos os registos de baptismo, casamento e óbito. A partir daí somos capazes de construir a nossa genealogia e justificar direitos. Temos também registos judiciais. Alguns mais emblemáticos como o caso do Alves dos Reis, do Zé do Telhado e de outros criminosos mais ou menos célebres. Também temos documentação dos notariados, ou seja, o registo de escrituras desde o séc. XVI. Os arquivos são vivos. Não há arquivo morto. Têm vida quer para a investigação, quer enquanto provas para as necessidades dos cidadãos Quais são os temas mais procurados na Torre do Tombo? Neste momento, em termos estatísticos, a documentação mais procurada nestes quilómetros de documentos é a documentação sobre a Inquisição. A Torre do Tombo tem os processos da Inquisição desde a sua constituição no séc. VI até à sua extinção no séc. XIX. Estamos a falar da Inquisição de Lisboa mas que também da que abrangia o Brasil e a Ásia. Um caso muito curioso: temos panos da Índia associados a estes processos da Inquisição porque um familiar do Garcia da Horta foi preso e tentou passar essa informação. Para isso, ele utilizou como suporte um pano e com fumo negro escreveu que estava preso. Tentou passar essa informação que acabou por ser apanhada e ir junto ao processo como prova. Recentemente, e isto é uma novidade, foi-nos entregue o processo associado ao acidente de Sá Carneiro. Não está o avião (risos). Temos, noutros processos suportes musicais, poucos mas temos. Estou-me a lembrar do caso do Adriano Correia de Oliveira e do Zeca Afonso em que temos alguns vinis associados a isso. Ao contrário e na área da fotografia, temos milhões de imagens. Dos últimos números que apurámos estamos com cerca de 10 milhões de negativos de vidro, acetato, poliéster e alguns nitratos. Trouxemos para oferecer ao Arquivo de Macau um conjunto de 52 imagens de Macau que não estavam disponíveis, mas que digitalizámos para oferecer. São da antiga Agência Geral do Ultramar nos anos 30. Um conjunto interessante que acho que não era conhecido e que vai ficar cá para poder ser consultado e disponibilizado. Sobre o arquivo da PIDE, temos os processos individuais mas também temos a documentação da escola de polícia. Aqui uma das peças é um conjunto de mapas com o corpo humano. Isto significa que, cientificamente, era estudada a forma de torturar e de bater em pontos particularmente sensíveis e para que, nas visitas, não se verificassem nódoas ou marcas exteriores desta mesma tortura. Também temos, os artigos relacionados com a polícia política. Trata-se de documentação desde 1919, ainda da Primeira República em que os serviços de informação são criados a partir da reorganização de Sidónio Pais. É com ele que se estrutura um serviço que depois leva à prisão de quem canta o fado, nomeadamente fado subversivo. É a definição que nos aparece e que nós temos ao longo dos anos 20 e 30. Uma das características do fado em Lisboa era o chamado fado operário que era uma forma de expressão de sentimentos que não estavam de acordo com o exercício do poder. O próprio Rui Vieira Nery faz referências na história do fado a esta realidade e nós, na altura, fornecemos-lhe vários exemplos concretos de processos políticos de quem tinha sido preso por cantar fado subversivo. Quais são os seu documentos preferidos? Há um pelo qual tenho particular apreço. É o Apocalipse de Lorvão. Um manuscrito com os comentários dos beatos de Liébana que fica na zona das Astúrias. São um bocadinho heterodoxos em relação à igreja católica e estamos a falar do séc. XII, 1189. Há comentários ao Apocalipse, o livro da Bíblia, que são ligeiramente heterodoxos relativamente à forma como era olhada a religião católica. É um manual digamos, uma matriz, que depois se vai desenvolver na Península Ibérica. Candidatamos o Apocalipse do Lorvão a registo da memória do mundo conjuntamente com os nossos colegas espanhóis e fizemos um estudo sobre a circulação de manuscritos nesta altura, ou seja, sobre a circulação de conhecimento na Península Ibérica no séc. XII. É uma história particularmente significativa. Depois não posso deixar de falar da carta de Pedro Vaz de Caminha, ou seja do achamento do Brasil, mas para mim não é possível falar desta carta sem falar de uma outra, a do Mestre João que é um astrónomo e que desenha pela primeira vez o cruzeiro do Sul. A importância do cruzeiro do sul tem a ver com a orientação daquele hemisfério. No hemisfério norte fazemos a orientação pela estrela polar e no sul pelo cruzeiro do sul. Esta é a primeira vez que aparece um desenho feito por alguém que faz parte da mesma armada de Pedro Álvares Cabral. Na carta de Vaz de Caminha temos o contacto entre civilizações, que é a versão mais oficial e há também uma menos oficial que nos diz que esta carta é uma cunha, um pedido que ele faz ao rei para a libertação de um familiar preso em São Tomé. E no que respeita a documentos mais contemporâneos? O diário de Salazar. Está disponível online mas tem uma dificuldade, a letra não é fácil. Está a ser preparada a transcrição do diário com muitas notas de contextualização. Ele tomava nota da hora, e muitas vezes dos conteúdos das conversas que mantinha. É uma peça fundamental no estudo da história contemporânea. Além disso, há uma outra peça que é o processo da Casa do Luso da prisão de Álvaro Cunhal em 1949. Temos o processo judicial que está com abundante documentação do próprio arquivo comunista. Como vê o papel da tecnologia digital quando falamos de arquivos nos tempos que correm? Acho que o digital é uma oportunidade. A questão fundamental é esta: mudámos do pergaminho para o papel e já mudámos muitas vezes de suporte, mas enquanto no papel, pergaminho ou papiro eu tinha uma leitura directa e os nosso olhos são capazes de interpretar o medium utilizado, aqui tenho que ter um instrumento intermediário que me permita ter o acesso ao tal medium e esta intermediação tem que ser devidamente garantida Uma das questões essenciais que se coloca do ponto de vista do digital é a sua autenticidade, fidedignidade e confiança naquilo que tenho acesso. Naturalmente, que sempre houve falsificações, mas já há meios de identificar a sua maioria em suportes que conhecemos bem e não no digital que é relativamente recente. Neste momento há uma discussão a propósito do regulamento geral da protecção de dados. Acho que têm que ser realmente ponderados estes valores de privacidade mas acho que há questões que têm que ser devidamente estudadas e são essenciais do ponto de vista daquilo que é o acesso à informação. Temos de encontrar os mecanismos necessários para que a ideia não seja apagar conteúdos. Esta ideia do chamado direito ao esquecimento tem que ser enquadrada devidamente e temporalmente. Não posso apagar os meus registos pura e simplesmente porque a protecção e dados o prevê. O direito ao esquecimento é uma coisa que está no Tratado de Lisboa, que está na Base do Regulamento Geral da Protecção de Dados. Uma das discussões surgiu a propósito das Brigadas Vermelhas em Itália, que depois de se poderem eliminar dados surgiu um conjunto de dirigentes destas brigadas em posições de destaque. Do ponto de vista histórico isto é grave e esta foi uma das questões levantadas pelos directores dos arquivos de toda a União Europeia. Depois, na segunda versão do mesmo regulamento, já vem prevista, neste direito ao esquecimento, a excepção dos arquivos, dos fins de investigação e dos fins estatísticos para que não sejam apagados os registos, sendo que podem ser anonimizados durante um determinado período de tempo. Mas a ideia inicial seria apagar os registos. Não é uma discussão simples e tem que se ter algum cuidado. O que é isto de ser o “guardião” da história ? Além de ser uma responsabilidade muito significativa tem uma coisa fantástica: Temos uma equipa de gente que trabalha bastante bem e que gosta daquilo que faz. Temos duas componentes: um balcão aberto a toda a gente, a única restrição é o limite mínimo de 18 anos e o estado de conservação dos documentos. A manipulação permanente dos documentos é também um facto de degradação. Portanto, gerir estas necessidades de, por um lado dar acesso e por outro ter em conta as questões de conservação, é um equilíbrio que se tem que manter. Mas também não faz sentido conservar se não tivermos acesso. Este é, provavelmente, o aspecto mais interessante do ponto de vista de quem tem a responsabilidade de gestão. Nós não fazemos história, nós damos acesso.
Hoje Macau EventosHistoriador Fernando Rosas alerta para perigo do conhecimento sem cultura [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] historiador português Fernando Rosas alerta para a “desculturalização do conhecimento”, promovida pelas novas tecnologias, e considera que “a substituição do Homem pela máquina só se resolve no quadro de uma sociedade socialista”. Fernando Rosas, autor, entre outras obras, de “Portugal Século XX: Pensamento e Ação Política” (2004), faz estas declarações a encerrar o novo volume, a si dedicado, da série “Fio da Memória”, de autoria de José Jorge Letria, editada pela Guerra e Paz. Esta série publica entrevistas a personalidades da cultura, contando com títulos dedicados à escritora Lídia Jorge, ao maestro Álvaro Cassuto, ao cineasta António-Pedro Vasconcelos, ao catedrático de filosofia Manuel Maria Carrilho, ou o ensaísta Eduardo Lourenço. No último capítulo do novo volume, intitulado “Nas Minhas Velhas Convicções de Militante Socialista”, o historiador comenta que quando alguém quer saber quem foi Vladimir Lenine (1870-1924), político que liderou os sucessivos Governos russos desde o derrube da monarquia, em 1917, até 1924, resolve o problema de “telemóvel em punho”. Rosas afirma que “há uma ‘desculturalização’ do conhecimento” e, noutro capítulo da obra, numa resposta a Letria, argumenta que “nada substitui o livro e o papel”, referindo que, no atual contexto, “há é uma desistência da leitura, da reflexão crítica e da controvérsia”. O historiador Fernando Rosas, de 72 anos, é apontado pelo escritor José Jorge Letria como um exemplo de como o combate político se tornou “numa intensa e apaixonada carreira académica” na historiografia. Licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa, Rosas “constitui um exemplo de como o combate político, que implicou detenções nas prisões da ditadura, mas também a experiência da clandestinidade, acabou por se converter numa intensa e apaixonada carreira académica que lhe permite falar da História como uma paixão e do pensamento político como uma porta aberta para o que há de vir e que ninguém sabe ao certo o que será e como irá ser”. Nesta conversa, colocada em letra de forma, Fernando Rosas dá conta de como o seu avô materno, Filipe Mendes, um republicano, o influenciou, tendo-se tornado militante do Partido Comunista Português (PCP) aos 15 anos e, mais tarde, depois da Revolução de Abril, militante do MRPP e diretor do seu órgão oficial, o jornal Luta Popular, “num tempo turbulento e violento”, escreve Letria. Sobre si, afirma Fernando Rosas: “Nasci com a política à mesa”. E recorda os brindes de natal, em que o avô finalizava com “Viva a República, viva a liberdade”, ou como a casa da sua tia Cândida Ventura, funcionava como apoio aos militantes clandestinos do PCP. No texto sobre as suas “velhas convicções de militante socialista”, o autor regressa às teorias de Karl Marx, filósofo sobre qual nota assistir-se “uma pujança editorial” de trabalhos sobre o pensador. Considerando “muito importante”, no contexto social atual, “a substituição do Homem pela máquina”, Rosa afirma que esta questão “só se resolve no quadro duma sociedade socialista, ou seja, só se resolve “no quadro da coletivização dos meios de produção”, e quando se puder “planear os meios de produção para que o inevitável e necessário progresso da máquina traga ao Homem mais tempo de lazer e de bem-estar e não o desemprego e a miséria”. Uma questão, argumenta, que “tem tudo a ver com o capitalismo e com a superação do capitalismo”. “A coletivização tem de ter poder sobre os meios de produção, para que possa programar em seu proveito o progresso da técnica”, defende.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs sobreviventes do Passaleão [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada afloramos a governação de Macau pelo Capitão-de-mar-e-guerra João Ferreira do Amaral e o seu assassinato em 22 de Agosto de 1849, história interrompida na altura em que três dias depois, sem ordem superior o macaense 2.º Tenente Vicente Nicolau Mesquita convida os soldados que o quiserem acompanhar para ir tomar o forte do Passaleão (Pac-Sa-Leong) a meia milha das Portas do Cerco e vingar assim a memória do Governador. A 25 de Agosto, às 4 da tarde (complementa Armando Cação), “Trinta e seis bravos voluntariamente responderam ao seu brado, e avançaram para o forte debaixo do mais aturado fogo de artilharia e fuzil deste e das iminências, através de difícil terreno, caminhando apenas os soldados um a um, sobre os estreitos valados que em frente do forte cortam o terreno, todo alagado com plantações de arroz; apesar de tudo, dentro de uma hora aquela força se assenhoreou do forte Passaleão, que estava guarnecido com vinte grossos canhões e 400 homens, coadjuvados por mais 2000 nas alturas vizinhas; todos fugiram abandonando a artilharia, armas, e muitas munições. Este arrojo, que antes do êxito feliz que teve era por alguns reputado louca temeridade, desassombrou Macau, e transtornou completamente os projectos dos chineses, que no interior da cidade já se dispunham para o massacre dos europeus. [Esse temor leva a perceber quanto pesada estava a consciência dos portugueses pela quebra do trato com a China e ser essa ameaça uma desculpabilização à invasão.] Alguma força britânica e americana tinha desembarcado para proteger os seus compatriotas; mas o conselho do Governo prudentemente não anuiu a que fossem guarnecer as fortalezas, como solicitavam. Cumpre declarar que os ministros e cônsules estrangeiros geralmente manifestaram o maior interesse pela conservação do estabelecimento nesta melindrosa crise; mas ainda desta vez permitiu a providência que se salvasse só pelo esforço e valentia de um punhado de portugueses”, segundo Carlos José Caldeira (1811-1882) em Apontamentos de uma viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa. Beatriz Basto da Silva refere ser este “o único confronto significativo entre a China do Sul e Macau, durante os mais de quatro séculos de vizinhança”. Mesquita suicida-se O Vice-Rei de Cantão a 16 de Setembro de 1849 mandou “um ofício ao Conselho do Governo de Macau participando ter preso, processado e executado, o verdadeiro assassino do Governador João Maria Ferreira do Amaral, Sen-Chi-Leong”, segundo Beatriz Basto da Silva. Quatro meses depois, a 16 de Janeiro as autoridades de Cantão enviam para Macau a cabeça e a mão de Ferreira do Amaral. Após a tomada do Passaleão, o 2.º Tenente Mesquita a 12 de Janeiro de 1850 foi promovido a Tenente, atingindo mais tarde o posto de Coronel e encontrando-se já na reforma, Mesquita suicidou-se a 19 de Março de 1880, notícia referida no B.O., “Num acto de loucura e desespero, Vicente Nicolau Mesquita tira a vida à esposa, Carolina Maria Josefa da Silveira e à filha mais nova, Iluminda Maria, feriu dois dos filhos e, seguidamente, suicidou-se atirando-se ao poço da sua residência no n.º 1 da Rua do Lilau”. O Coronel António Joaquim Garcia, Comandante geral da Guarda Policial, por ter incorrido na falta de confiança, em virtude de ter comparecido no funeral do Coronel Mesquita, deixou de exercer as suas funções e passou a ser Comandante da Fortaleza de S. Paulo e do Depósito do Monte. Segundo Beatriz Basto da Silva, “Protestou e foi reabilitado”. O Coronel Vicente Nicolau Mesquita só muito mais tarde, a 25 de Junho de 1910 será reabilitado pelo Bispo de Macau, João Paulino e puderam assim os restos mortais seguir para o Cemitério de S. Miguel. Nesse mês, Camilo Pessanha contribui com cinco patacas para ser edificado um mausoléu e a 25 de Agosto colabora com o texto “As duas datas”, na edição do jornal A Verdade integralmente dedicado ao Coronel Mesquita, como chama a atenção Daniel Pires. Os bravos do Passaleão Do grupo de homens que acompanharam Mesquita até ao Forte do Passaleão, passados cinquenta anos, segundo consta, apenas resta Luiz Maria do Rosário. Personagem que O Independente de 13 de Março de 1898 noticia, “Existe com vida, apenas um dos bravos que acompanharam o valente Vicente Nicolau de Mesquita, na tomada de Passaleão”. É filho desta terra e ainda aqui residente. “Alistou-se em 1847 no extinto Batalhão de Artilharia de Macau, onde serviu até 1858, passando a fazer parte do Batalhão Nacional. Foi admitido na Câmara como polícia em 1857, passando em 1860 a exercer o cargo de Alcaide, sendo reformado em 1897 para se poder dar esse lugar ao serventuário actual. Para o convencerem a reformar-se, o que ele não desejava, prometeu a câmara dar-lhe mensalmente, além do seu ordenado, mais cinco patacas para renda de casa, o que apenas se cumpriu durante cinco meses, sendo-lhe depois retirado esse subsídio, apesar de naquela ocasião lhe ter sido certificado que o receberia enquanto vivesse! Nesta ocasião, em que se procura prestar um preito de homenagem ao valente Mesquita, é de inteira justiça que este bravo, o único que existe dos 36 homens a quem Macau tanto deve, seja de qualquer forma lembrado, parecendo-nos mesmo de inteira justiça que o Leal Senado lhe alvitre, como recompensa do seu feito glorioso e dos seus longos serviços ao município, uma pensão que, por pequena que seja, concorrerá para melhorar, no pouco tempo de vida que lhe pode restar [no entanto, Luiz Maria do Rosário falecerá apenas em Fevereiro de 1913], as circunstâncias em que vive, representando tal benefício ao mesmo tempo um tributo de gratidão”, O Independente. Por iniciativa do Sr. Genuino A. da Silva foi aberta, entre a pequena comunidade portuguesa de Cantão, uma subscrição que rendeu $50 a favor de Luiz Maria do Rosário, o bravo do Passaleão. Tal serve para colocar de novo achas no conflito entre O Independente e o Leal Senado, no qual o jornal se queixa da diferença de tratamento preferencial dado ao outro jornal, o Echo Macaense. Já neste último semanário, a 24 de Abril, uma carta do IMPARCIAL ao redactor refere conhecer “um outro desse punhado a residir em Hong Kong. É o Sr. José Francisco Campos da Rosa. Era então rapaz, e estava como voluntário no Batalhão Provisório, guardando um dos principais pontos da cidade. Viu passar Mesquita, que lhe disse que ia tomar de assalto o forte. Ofereceu-se para acompanhá-lo, e logo foi aceite. Mesquita certificou ser este incidente verídico. Este documento estava em poder do contra-almirante Scarnichia, que representava Macau no Parlamento. Queria ele mostrá-lo ao ministro, para conceder uma distinção ao nosso bravo compatriota. Faleceu Scarnichia, e não se sabe para onde foi parar o documento. Existe uma cópia registada no Cartório Judicial”. Em Hong Kong ninguém se terá lembrado do Sr. José Francisco Campos da Rosa, mas em Macau os alunos do Liceu foram a casa de Luiz do Rosário homenageá-lo durante os festejos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFerreira do Amaral e o Passaleão [dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara a comemoração do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia fora proposto erigir estátuas a homenagear o ex-governador Ferreira do Amaral, assassinado em 1849, e o Coronel Mesquita, cuja memória precisava ainda de ser reabilitada, pois caíra em desgraça em 1880, após em estado de loucura ter assassinado a família, suicidando-se de seguida. Camilo Pessanha ofereceu-se no início do ano de 1898 “para conduzir o processo de reabilitação do Coronel Mesquita”, segundo Daniel Pires, que refere, nos finais de Abril “realizou-se uma audiência no Paço Episcopal, para serem ouvidas as testemunhas do processo canónico de reabilitação do Coronel Mesquita. Camilo Pessanha era o advogado que representava a comissão organizadora daquela iniciativa”. Para compreender o que se passara, convém referir estar Macau em território da China (cuja terra era inalienável) e para os portugueses aí se estabelecerem foi encontrada a solução criada já na dinastia Tang, quando os estrangeiros dentro das cidades tinham o seu quarteirão para viver e governarem-se com as suas leis, desde que não atentassem contra os princípios de soberania chinesa. Ao contrário de Macau, que desde 1573 era um fanfang cristão português, Hong Kong foi ocupada a partir de 1841 pelos ingleses, após a sua vitória sobre os chineses na I Guerra do Ópio (1839-41). A China, destroçada, foi obrigada a abrir os seus portos ao comércio com os estrangeiros, levando a uma época de humilhação, em que se promoviam guerras para demonstrar a superior tecnologia ocidental e assim conseguir chorudas indemnizações, esvaindo os cofres chineses. Mudança de sistema O porto de Hong Kong levantou receio aos portugueses de perderem Macau para uma potência ocidental e assim tiveram que tomar soberania da península e desligar-se do governo chinês, quebrando o antigo Trato. “Julgou-se necessário alterar o sistema de administração daquele estabelecimento e ao mesmo tempo se aproveitou a ocasião de reivindicarmos, na parte em que havia sido lesada, a plenitude dos direitos de soberania no território de Macau. Coube ao distinto Capitão-de-mar-e-guerra João Maria Ferreira do Amaral, levar a efeito esta espinhosa tarefa, pondo em execução o Decreto de 20 de Novembro de 1845, que tornou franco o porto de Macau; estabelecendo um novo sistema de impostos, como tornava necessário a supressão da alfândega, única fonte até ali de receita pública; reformando em vários pontos outros ramos da administração, e reduzindo as despesas dela a dois terços do que antes consumia”, segundo Carlos José Caldeira, que continua: “Aumentou porém extraordinariamente esta indisposição das autoridades chinesas quando o mesmo governador, desempenhando a segunda parte da sua missão, deu começo à reivindicação da independência política de Macau. A posse do porto da Taipa, como ponto dependente do território de Macau; construção ali de um forte, onde foi arvorada a bandeira portuguesa; a recuperação do território ocupado pelos chineses, entre a Porta do Campo e a Porta do Cerco, que marca os limites da possessão portuguesa; a supressão dos direitos de tonelagem, chamados medição, que abusivamente se cobrava para o imperador, sobre os navios portugueses que entravam no porto português de Macau; a expulsão desta cidade dos hopus ou alfândegas chinesas, que parece também abusivamente ali tinham sido introduzidos, e que depois da declaração de porto franco se julgaram intoleráveis…” Pelas actividades chinesas em Macau, percebe-se considerar a China como seu este território e tal é confirmado pelo foro anual pago pelos portugueses desde 1573. O Governador Ferreira do Amaral assumindo o controlo da terra, dava por findo o fanfang de Macau e deixava de pagar em 1849 o arrendamento, quebrando assim o antigo trato com os chineses. Manifestando uma posição de poder, tomou posse das terras para além das muralhas a envolver a cidade cristã portuguesa, o que logo se fez sentir com a vida do Governador. Ainda em 1847, o Senado queixou-se e reclamou para Lisboa contra a obra governativa de Ferreira do Amaral. Assassinato do Governador “Na tarde de 22 de Agosto de 1849, o Governador Amaral saíra a cavalo a passear no campo, como de costume, e neste dia só ia acompanhado pelo ajudante de ordens Leite; a menos de duzentos passos antes de chegar à Porta do Cerco, um chinês se aproximou apresentando um papel como de requerimento, e outros saíram de repente detrás de uns pequenos combros de areia que os escondiam, e ao todo sete o atacaram com taifós (espadas curtas e rectas que os chineses usam aos pares, manejando uma em cada mão), e foi-lhes fácil fazer sucumbir um homem, ainda que bastante valente e corajoso, que estava desarmado e só tinha o braço esquerdo. Derrubaram-no do cavalo, e bem assim ao ajudante Leite. Cortaram-lhe a cabeça e a mão, e sem medo ou precipitação as levaram, passando pela porta do Cerco, onde então havia um posto de guarda chinesa, que a duzentos passos observou pacificamente tudo isto, e deixou passar em sossego os assassinos! Existe ainda hoje uma tosca e delgada coluna de pedra no sítio do assassinato…”, escreve Carlos José Caldeira, que chegara a Macau um ano depois deste episódio e aqui esteve de Setembro de 1850 a Janeiro de 1852. “Este inaudito acontecimento lançou o terror e a consternação na cidade; organizou-se logo o conselho de guerra do governo, e para corresponder à atitude hostil dos chineses (que de antemão haviam guarnecido o Passaleão e vários pontos vizinhos com numerosas forças, ameaçando uma invasão a Macau), [creio, um pressuposto dos portugueses], foi postar-se na Porta do Cerco na manhã de 25 (de Agosto de 1849) uma força portuguesa, [de 24 homens sob o comando do Capitão Fidelis da Costas] sobre a qual os chineses [do fortim] romperam primeiro o fogo, que foi sustentado com calor desde as 10 da manhã às 4 da tarde. O desejo e a indicação geral era ir atacar os chineses; porém os escrúpulos e observações dos diplomatas estrangeiros residentes em Macao, sobre as consequências do que eles chamavam uma violação do território chinês, e alguns ânimos timoratos conservaram o conselho do Governo em indecisão, a qual foi quebrada pela heróica resolução do tenente Mesquita, que sem ordem superior convidou os soldados que o quisessem seguir a irem acometer o Passaleão”, segundo C. Caldeira. O Fortim do Passaleão, nome dado pelos portugueses a Pac-Sa-Leong, que após ser ocupado foi logo abandonado, mas desde então, e por 30 anos, o terreno entre o pequeno forte e as Portas do Cerco, numa meia milha de distância, passou a zona neutra. Vicente Nicolau de Mesquita, nascido em Macau a 9 de Julho de 1818, era filho de Frederico Alves de Mesquita, advogado dos auditórios desta comarca. Assentara praça a 9 de Julho de 1835, frequentou com aprovação a aula de Matemática e prosseguiu pelos postos inferiores até 1.º sargento e por decreto de 15 de Julho de 1847 foi despachado 2.º tenente de artilharia.
Diana do Mar EventosLivro | Ivo Carneiro de Sousa lança “História de Timor-Leste” na próxima segunda-feira [dropcap style=’circle’] I [/dropcap] vo Carneiro de Sousa lança na próxima segunda-feira “History of East-Timor”, esperando contribuir para que a história e a antropologia de Timor-Leste não caiam no esquecimento e despertar o interesse de jovens investigadores. Seis de mais de 30 artigos que escreveu sobre Timor-Leste desde 1983 foram o ponto de partida para o livro que o investigador Ivo Carneiro de Sousa espera que ajude a compreender, de uma perspectiva antropológica, a história do pequeno país asiático. O lançamento tem lugar na próxima segunda-feira, pelas 18h30, no Clube Militar. Embora, ao longo dos anos, tenha recebido pedidos, incluindo de um ministro da Educação timorense, para compilar alguns dos artigos que foi escrevendo sobre a terra à qual tem relações familiares, a “oportunidade” para finalmente o fazer – como descreve – só surgiu em Fevereiro do ano passado, quando foi submetido a uma operação e, ainda no hospital, começou a dar forma a “History of East-Timor” (“História de Timor-Leste”). “A ideia foi compilar, reorganizar, reescrever os textos que permitissem compreender, de uma perspectiva antropológica a história de Timor-Leste”, explica o autor que tentou “perceber as estruturas sociais, culturais, a dispersão etnográfica e como tudo isso é tão importante hoje em dia na construção de um país independente”. A obra não ficou, porém, reduzida a uma colectânea, dado que Ivo Carneiro de Sousa acabou por introduzir conteúdos novos, sobre os quais nunca havia escrito, e mergulhar em nova pesquisa, adicionando fontes novas. O autor destaca nomeadamente as leituras sobre as campanhas arqueológicas feitas pelos australianos em Timor: “Eu não fazia ideia que tinham recuado a presença humana de Timor de 30 mil para 42 mil anos, o que é uma descoberta científica muito importante, porque significa que são essas populações que depois vão ser os aborígenes da Austrália”. Na feitura do livro, uma das “grandes preocupações” foi sobretudo “perceber aquilo que se designa como a história pré-colonial anterior à extensão da administração portuguesa em Timor. Isto é, as estruturas sociais e políticas”, salienta Ivo Carneiro de Sousa, apontando que o objectivo foi “trabalhar a memória e perceber como é que ela se actualiza hoje em dia”. Assim, o livro, com o subtítulo “entre mitos, reinos da memória, Macau e os desafios da antropologia cultural”, tem um corte não tanto cronológico, mas antes mais temático. As relações com Macau Macau também “entra” na História de Timor-Leste. “Quis mostrar a ligação muito estreita que existia, que não era apenas a económica, mas também os aspectos relacionados com o próprio conhecimento cultural e etnográfico que se faz a partir de Macau”, sublinha. É que “além do comércio de sândalo desconhece-se significativamente que parte importante da escravatura que vinha para Macau era timorense, sobretudo feminina”, observa. “Macau era um mercado importante de venda regional de escravatura”, realça Ivo Carneiro de Sousa, contextualizando: “Filipe II proibiu a escravatura nas Filipinas e não era possível escravizar as populações locais, pelo que o que acabou por acontecer é que Macau se torna numa plataforma de venda de escravos para as Filipinas e para outros locais”. Depois, no século XVIII, embora “seja proibida a escravatura nas colónias portuguesas de África, “continua a fazer-se em Timor e através de Macau”, salienta o investigador, dando conta da presença no território de descendentes de chineses casados com antigas escravas timorenses. Em paralelo, há “uma comunidade chinesa-timorense, fruto da emigração de chineses de Macau para Timor que também continua a existir”. Ivo Carneiro de Sousa também procurou perceber quem em Macau estudou e se interessou por Timor-Leste, recuperando designadamente Wenceslau de Moraes (1854-1929), Bento da França (1859-1906) ou Jaime do Inso (1880-1967) que passaram por Macau e por Timor. Este último reveste-se de particular importância na perspectiva do investigador. “Ele esteve na chamada guerra de Manufahi, que é a guerra colonial de Timor e escreveu ‘Timor-1912’ que é um livro importante, mas muito menos conhecido que as célebres ‘Visões da China’ que escreveu em Macau”. Com “History of East-Timor”, Ivo Carneiro de Sousa espera contribuir para que a história e a antropologia de Timor-Leste não caia no esquecimento e despertar ao mesmo tempo o interesse de jovens investigadores. “É para que possam existir alunos de mestrado e doutoramento que se interessem por investigar Timor que não é propriamente fácil”, afirmou, referindo-se ao facto de “existir muito pouca informação documental, porque parte dos arquivos desapareceram durante a ocupação indonésia e a invasão japonesa”. O livro tem a chancela da Este-Oeste Instituto de Estudos Avançados, criada em 2012. A apresentação da obra, na próxima segunda-feira, vai ser feita em português, inglês e chinês.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasSubcomissões para os festejos [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Macau, a 2 de Fevereiro de 1898 no Palácio do Governo reúne-se a comissão executiva dos festejos do centenário da Índia para aprovar o programa preparado desde a reunião de 18 de Janeiro e nomear, como aí ficara estipulado, as subcomissões especiais. Relata O Independente, “Presidiu o Sr. Conselheiro Governador, tendo como secretário o Sr. Bandeira de Lima. Aberta a sessão, foi lida a acta da primeira reunião, sobre a qual falaram os srs. Dr. Alpoim, Dr. Alvellos, Pedro Nolasco, Conceição Borges e Conselheiro Galhardo. O esqueleto do relatório da subcomissão apresentado pelo Sr. Presidente é aprovado na generalidade”. O Echo Macaense data a reunião no dia 1.º do corrente e desenvolve-a com detalhes. “Houve uma prolongada e variada discussão e o monumento dedicado à memória dos beneméritos Ferreira do Amaral e Mesquita foi o que prendeu mais a atenção. Dois cavalheiros manifestaram-se contra a inserção da cerimónia do lançamento da pedra fundamental deste monumento no programa dos festejos, mas a maioria votou a favor. Ficou também assente que se trataria sem demora da reabilitação da memória de Mesquita, visto haver todos os elementos necessários para provar que ele foi vítima da alienação mental e por tanto era um irresponsável quando praticou os últimos actos trágicos da sua vida”. “Pedro Nolasco da Silva e António Joaquim Basto apoiavam a ideia da homenagem e do monumento a Amaral e a Mesquita, mas o Dr. Ovídio d’Alpoim, juiz de direito, e o Dr. Francisco de Lemos e Alvellos, procurador da Coroa e Fazenda, rejeitavam-nos liminarmente”, complementa Amadeu Gomes de Araújo, que segue, “Ovídio d’Alpoim, aludindo ao trágico fim do coronel Mesquita, presume e assevera que nem oficial nem publicamente se lhe pode prestar qualquer homenagem. Também recusava a ideia de se construir uma biblioteca Vasco da Gama, por falta de tempo, sugerindo que se desse aquele nome à biblioteca do liceu. O governador manifestou estranheza perante a discussão, acabando todos por chegar a acordo que não haveria monumento sem prévia reabilitação de Mesquita. Foi aprovada uma carta a enviar às comunidades portuguesas vizinhas, para solicitar apoio: Está aberta a subscrição para custear as despesas desse monumento – lia-se no Apelo patriótico aos portugueses residentes nos países do Extremo Oriente. E o programa das celebrações foi aprovado na generalidade”, após algumas modificações e transposição de alguns números. Após três horas de sessão, finalmente se procede à nomeação de oito subcomissões especiais a saber: 1.º – Uma, para tratar de promover a subscrição para o monumento de Ferreira do Amaral e Mesquita. 2.º – Uma, para tratar da organização, instalação e inauguração da Biblioteca Vasco da Gama. 3.º – Uma, para tratar da organização do cortejo cívico e da coroa de bronze. 4.º – Uma, para tratar da inauguração da avenida Vasco da Gama, do lançamento da pedra fundamental do pedestal em que será colocado o busto do grande navegador, da iluminação da Praia Grande e avenida Vasco da Gama e das diversões populares. 5.º – Uma, para tratar dos festejos chineses e fogos de vista. 6.º – Uma, para ornamentar a igreja da Sé para o Te Deum solene. 7.º – Uma, para tratar da publicação de um número único de um jornal comemorativo, e para redigir um apelo às comunidades portuguesas de Hong Kong, portos da China, Japão, Sião e Indochina, solicitando as suas adesões à comemoração do centenário, e outro apelo aos habitantes de Macau, portugueses e chineses, solicitando a iluminação das suas casas. 8.º- Uma, para promover o sarau dramático-musical.” Os trabalhos das Subcomissão O Independente de 20 de Março refere que “a comissão e as diferentes subcomissões eleitas para levarem a efeito os festejos projectados para a comemoração em Macau do 4.º centenário estão desenvolvendo a maior actividade. (…) A coroa de bronze, que será colocada no pedestal onde assenta o busto de Luís de Camões, foi desenhada pelo professor do liceu, Sr. Matheus António de Lima, que dirigirá também os trabalhos da fundição da mesma coroa. Está-se já tratando de mandar tirar várias fotografias de vistas de Macau para serem mandadas gravar e servirem para ornar o número único do jornal, que por essa ocasião será publicado. A subcomissão encarregada de receber os donativos é composta dos seguintes cavalheiros: presidente, o General António Joaquim Garcia; tesoureiro, Carlos Rocha d’ Assumpção; vogais, Augusto César d’ Abreu Nunes, Pedro Nolasco da Silva, Deão Conceição Borges, Dr. Lourenço Pereira Marques, Fernando de Menezes e secretário, José Vicente Jorge. Esta subcomissão fez já distribuir profusamente um impresso pedindo o auxílio de qualquer donativo para custear as despesas a fazer com a erecção do monumento a Ferreira do Amaral e Vicente Nicolau de Mesquita.” O apelo patriótico aos portugueses residentes nos países do Extremo Oriente, transcrito nessa segunda página do jornal, é estimulado pelos já avultados contributos feitos, pois <crê-se que ninguém se esquivará a contribuir, por pouco que seja>”. Semanalmente, os jornais trazem notícias sobre os activos trabalhos para os festejos e O Independente de 27 de Março refere a autorização do governo central para o aumento da verba destinada a custear os festejos e ter o redactor já visto algumas fotografias de diversos pontos da cidade feitas por Carlos Cabral, <que mais parecem obra de um artista consumado do que de um novel mas distinto amador>. Na reunião de 26 de Março, a subcomissão encarregada de tratar da reabilitação, perante a igreja, do oficial Vicente Nicolau Mesquita refere, <Parece que o Sr. Bispo D. José, que se acha animado dos melhores desejos de poder decretar essa reabilitação, só o fará depois de cumpridas certas formalidades canónicas, o que terá lugar brevemente>. A 21 de Abril realiza-se uma audiência no Paço Episcopal para inquirição das testemunhas no processo canónico de reabilitação do coronel Mesquita. Preside o Bispo da Diocese, servindo de promotor o Dr. Horácio Poiares e de advogado da parte da comissão executiva dos festejos, o Dr. Camilo Pessanha. Depõem como testemunhas o tenente-coronel Porphyrio Zeferino de Souza, Câncio Jorge, Albino António Pacheco e o pároco de S. Lourenço, padre Almeida. O Independente, a 24 de Março dá a primeira relação de subscritores e refere a quantia de $66, oferecida pelos portugueses residentes em Cantão e entregue ao seu cônsul Sr. Callado Crespo, assim como os $115 angariados pelo Sr. António Vicente Cortela Maher entre os portugueses de Amoy (actual Xiamen, em Fujian), que José Maria Braga refere serem trinta no ano de 1900. O arroz é desde os inícios de 1897 o assunto a afligir a cidade. Problema que se vai avolumando devido ao aumento fabuloso do preço que dia a dia vai tendo esse género de primeira necessidade, levando em Março de 1898 o Governador, numa inadiável resolução, a novamente proibir a exportação do arroz pelo porto de Macau.
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasA Nova Rota da Seda (II) [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China é o maior credor da Ásia Central e Oriental e as instituições políticas da China encaminharam para as principais “empresas estatais (SOE na sigla em língua inglesa)”, para começarem a fazer negócios com as empresas dos países que participam no projecto, pois parece existir uma pressão política, para que este tenha sucesso. É de considerar que grandes empresas públicas com recursos enormes acumulavam aproximadamente 1 trilião de dólares nos últimos anos e representam entre 25 a 30 por cento da produção industrial da China. É crucial que as empresas públicas adoptem projectos para a Iniciativa, para sobreviverem. O plano “Uma Faixa, Uma Rota” irá enfrentar muitos desafios no futuro. O equilíbrio de poder instável em muitas áreas do mundo e a incerteza política em países considerados fulcrais e que receberão os investimentos da Iniciativa, aumentou para níveis críticos e muitos países por onde passará a “Nova Rota da Seda”, enfrentarão políticas internas instáveis e desafios de segurança. O Paquistão, Afeganistão, Síria e Turquia, estão entre os países que têm de reavaliar as suas políticas e áreas de actuação internas para fornecer a credibilidade necessária à China para os investimentos em curso. O governo chinês deve ter em consideração a frágil situação em uma infinidade de países euro-asiáticos, na perspectiva das relações internacionais. Existem também, desafios a nível económico e mais especificamente, interrogações sobre se a liderança chinesa na Iniciativa terá em conta o crescimento da economia chinesa. É de acreditar que a economia chinesa está no bom caminho, e o presidente chinês defende que a economia deve ser menos dependente das exportações e da construção de infra-estruturas públicas. Parece que não existe uma estratégia clara, nem prioridades concretas, sobre quais os tipos de projectos que devem ser realizados. Quanto a corrupção, vários relatórios chegaram à conclusão de que muitos fundos não podem ter sido descaminhados no suborno a funcionários e, em olear as rodas, para que o projecto avance. É de esperar que a China perca 80 por cento dos seus investimentos no Paquistão, 50 por cento no Myanmar, e 30 por cento na Ásia Central. Existe a possibilidade de um aumento do terrorismo e outras ameaças à segurança. O movimento radical islâmico terá mais oportunidades de se mover através de toda a região e maiores formas de financiamento do terrorismo podem ocorrer, e ainda se desconhece como a União Europeia (UE) retribuirá aos movimentos chineses no sistema económico internacional. A Comissão da UE aceitou muitos investimentos chineses, mas declarou que examinará estritamente todos os outros investimentos, que deveriam ser implementados sob os valores de transparência empresarial, com respeito ao meio ambiente e aos direitos laborais. É de esperar que a Rússia tente suavizar o plano chinês fazendo que China respeite as leis e os direitos acima mencionados dos países com quem irá cooperar. Por outro lado, os Estados Unidos parecem incapazes de reagir à iniciativa chinesa. Há quem acredite que, através dos efeitos colaterais de capital para investimentos, a China também possa transmitir alguns problemas internos, de natureza militarista e nacionalista, aos países vizinhos, e muitos países da região temem essa ideia, sendo que tal suspeita que parece de todo infundada, cresce em torno das razões do projecto. O interesse pela área de Caxemira aumentou, especialmente no Paquistão e Índia. A Índia preocupa-se com os movimentos da China, e expressou a sua oposição ao projecto que se realizará em Caxemira e no Myanmar, uma linha de caminho-de-ferro planeada no valor de vinte mil milhões de dólares que ligará as cidades de Kyaukpyu e de Kunming, irritou os habitantes locais que enfrentam o interesse chinês como recordação do “Império do Meio”. É de realçar que na Ásia Central, existe uma geral desconfiança sobre os chineses devido ao facto de que ainda não passaram muitos anos desde que reinaram a região, e existe uma falta de compreensão cultural das populações locais e como resultado, há muitas fricções entre as empresas locais e as chinesas. A Grécia, devido à sua posição geográfica e geopolítica única, parece ser a principal entrada da China para a Europa, através da “Rota Marítima da Seda”. A localização ideal do porto de Pireu, na encruzilhada da África, Ásia e Europa, e uma capacidade de acomodação grande, o suficiente, mesmo para grandes e modernos navios porta-contentores, converte o porto em um bem valioso da Iniciativa, pelo que dá a entender que muitas e boas oportunidades surgirão no futuro próximo, com origem na realização de negócios de investimentos em transportes, sector da energia, telecomunicações e na área do turismo. A distância do porto de Pireu de outras significativas cidades costeiras e movimentados portos, destacam a importância estratégica do porto por economizar tempo e dinheiro, se for explorado pela “Rota Marítima da Seda”. O primeiro passo para a presença chinesa no país ocorreu em 2009, quando a “China Ocean Shipping (Group) Company (COSCO na sigla em língua inglesa)”, uma empresa estatal da China, que é uma das maiores empresas de transporte marítimo do mundo, começou a operar a parte do terminal de porta-contentores por um período de trinta e cinco anos e nos termos do acordo, um montante inicial de cinquenta milhões de euros seriam pagos à Grécia, e durante todo o período de actividade, estima-se que em um total de quatro mil milhões e trezentos milhões de euros seja pago pela COSCO. A privatização do terminal de contentores da “Autoridade do Porto de Atenas (OLP)”, foi outro marco importante para o envolvimento chinês no porto de Pireu. Os próximos passos incluíram a assinatura de um acordo entre a empresa chinesa de telecomunicações, ZTE Corporation e a empresa grega Forthnet, e a aquisição da empresa grega “Independent Power Transmission Operator S.A. (IPTO sigla em língua inglesa ou ADMIE na sigla em língua grega)”, que é a empresa operadora do sistema de transmissão de electricidade helénica, pela empresa chinesa “State Grid Corporation of China (SGCC na sigla em língua inglesa)”, por um montante de trezentos e vinte milhões de euros. É de notar que qualquer aquisição por parte das empresas chinesas está sob o olhar microscópico da Comissão Europeia, que, aparentemente, leva em conta os interesses geopolíticos da UE. Além disso, espera-se que a Iniciativa OBOR aumente o comércio chinês e influencie a região e mudança do modelo económico do país, baseado em exportações e infra-estruturas para um mais consumidor. A Iniciativa OBOR pode enfrentar algumas dificuldades sérias em relação ao seu planeamento e implementação, devido à natureza altamente ambiciosa da Iniciativa. O envolvimento de vários países no projecto também pode desacelerar o processo de tomada de decisão e, aumentar o tempo necessário para a construção de infra-estruturas e, em geral, o desenvolvimento de projectos que são vitais para a sustentabilidade da Iniciativa. Quanto mais países participarem no projecto, mais provável é ter interesses nacionais opostos e um aumento de risco económico e político a ser regulado pelo principal investidor de todo o projecto que é a China. Todos esses factores devem ser levados em consideração pela China durante a implementação da Iniciativa OBOR. A China deve decidir sobre o dilema de como prosseguir com a Iniciativa, apoiando as empresas estatais chinesas, ou por regiões com desempenho menor. As empresas públicas desempenham um papel importante na economia chinesa e essas empresas poderiam arrastar a economia chinesa e, consequentemente, poderiam causar desvantagens também no desenvolvimento de todo o projecto. O sinal precoce com imediato impacto foi o facto de a Moody’s ter anunciado a 24 de Maio de 2017, a redução da nota atribuída à dívida pública da China de “Aa3” para “A1”, devido à queda das reservas cambiais e prevendo que as autoridades aprovem mais estímulos económicos. A baixa do “rating” da China pela primeira vez desde 1989, faz questionar se as instituições têm a capacidade de proceder com reformas (especialmente na área de SOEs). A verdadeira questão que fica em aberto é o de saber se a China apoia as suas empresas, ou conseguirá mudar o seu modelo económico e respeitar os seus vizinhos? [primeira parte]
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Nova Rota da Seda (I) “President Xi’s Belt and Road initiative (BRI), aimed to promote economic development and exchanges with China for over 60 countries, necessitates a wide range of security procedures. While the threats to Chinese enterprises and Chinese workers based on foreign soil are poised to increase, there is an urgent need to develop new guidelines for risk assessment, special insurance and crisis management.” “Securing the Belt and Road Initiative: Risk Assessment, Private Security and Special Insurances Along the New Wave of Chinese Outbound Investments” – Alessandro Arduino and Xue Gong [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] “Nova Rota da Seda”, também conhecida como a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota (OBOR na sigla em língua inglesa)” ou “Iniciativa Faixa e Rota (BRI na sigla em língua inglesa)” abreviadamente designada por “Iniciativa”, é uma estratégia de desenvolvimento proposta pela China, que visa promover a cooperação económica e a ligação, principalmente, entre países euro-asiáticos. A Iniciativa é denominada, por comparação com a “Rota da Seda”, que era um caminho antigo de seis mil e quatrocentos e trinta e sete quilómetros de comprimento, que remonta à Dinastia Han Ocidental (206 aC – 220 dC) e costumava ligar as regiões da Ásia Oriental com o Médio Oriente e a Europa, tendo feito prosperar numerosas civilizações euro-asiáticas durante séculos. Assim, com a implementação da estratégia “Nova Rota da Seda”, a China pretende reavivar a rota de dois mil anos, investindo em alguns projectos de infra-estrutura sérios em todo o percurso, que se assemelha em grande parte à lendária “Rota da Seda”. A promoção do desenvolvimento e dos benefícios económicos para os países envolvidos e o estreitar dos laços culturais dos participantes são os principais objectivos da Iniciativa OBOR , ou seja, baseia-se em uma estratégia de desenvolvimento de ganhos para os países que estão localizados ao longo do percurso da “Nova Rota da Seda”. Os primeiros indícios da ideia da OBOR foram vieram à superfície durante as Olimpíadas de 2008, mas o plano ambicioso da China foi declarado pela primeira vez no segundo semestre de 2013, pelo presidente chinês Xi Jinping. O projecto OBOR consiste em duas rotas diferentes, sendo uma terrestre e outra marítima, começando e terminando ambas na China. A primeira rota denominada de “Faixa Económica da Rota da Seda” começa na cidade de Xian, onde se encontra localizado o exército de terracota, na China Central, e leva ao norte da Europa, até Roterdão, como o mais movimentado porto europeu, percorrendo todo o caminho da Ásia Central, Médio Oriente, Europa Oriental, Rússia e o centro da Europa. A “Rota Marítima da Seda”, por outro lado, liga o Mar Mediterrâneo com o Mar da China Meridional, em um longo caminho que vem através do Canal de Suez, Oceano Índico e Estreito de Malaca. É de prever que cerca de sessenta e cinco a setenta países e um total de quatro mil milhões e quatrocentos milhões de pessoas que representam 60 por cento da população global, beneficiarão da participação no projecto OBOR, que levará no mínimo entre trinta a trinta e cinco anos a ser realizado. Tendo em vista implementar com êxito este plano ambicioso, a China está a planear a construção de seis corredores económicos, a fim de unir a “Faixa Económica da Rota da Seda”, com a “Rota Marítima”, enquanto em alguns corredores a infra-estrutura existente será explorada, em outras áreas e será construída, de acordo com o projecto OBOR. Os corredores parecem ter uma orientação para oeste e sul, o que significa que as regiões do Japão e Coreia do Norte e do Sul são excluídas do projecto, pelo menos por enquanto. Os seis corredores económicos que diferem em tamanho e comprimento, são a Península da China-Indochina, o “Fórum Bangladesh-China-Índia-Myanmar para a Cooperação Regional (BCIMEC na sigla em língua inglesa)”, o “Corredor Económico China-Paquistão (CPEC na sigla em língua inglesa)”, a Nova Ponte Continental da Eurásia, a China-Ásia Central-Ásia Ocidental e a China-Mongólia-Rússia. É de ressaltar que o planeamento e a construção desses corredores estão actualmente em vários estádios quanto à sua implementação, aparentemente, devido à natureza multilateral dos acordos mencionados. Quanto ao projecto, os primeiros esforços da China ocorreram com a assinatura de acordos de negócios no valor de trinta mil milhões de dólares com o Cazaquistão, a melhoria das infra-estruturas no Sri Lanka e mais especificamente, a reconstrução do porto de Colombo, em um acordo no valor de mil milhões e quatrocentos milhões de dólares. A China prosseguiu a um ritmo acelerado para o estabelecimento do “Banco Asiático de Investimento em Infra-estrutura (AIIB na sigla em língua inglesa) ” (Portugal é membro desde 15 de Abril de 2015), com um capital inicial de cem mil milhões de dólares. Aparentemente, o objectivo principal do banco é financiar todos os projectos relacionados com a “Rota da Seda”. É de realçar que muitos países desenvolvidos adquiriram o estatuto de membros no AIIB, ainda que a maioria seja aliada dos Estados Unidos, como a Alemanha, França, Reino Unido e outros. Existe uma grande apreensão entre os países ocidentais de que a “Rota da Seda”, conjuntamente com o AIIB tentará substituir o sistema financeiro actual estabelecido pelo Banco Mundial. A China estabeleceu o ambicioso objectivo de alcançar um investimento de um trilião de dólares em projectos de infra-estruturas. O plano abrangerá um número considerável de países que acumulam 30 por cento do PIB mundial. Existem, actualmente, sessenta e oito países que participam na Iniciativa e mais de novecentos acordos estão a ser preparados, que representam um total de oitocentos e noventa mil milhões de dólares, enquanto a China declarou que está disposta a investir o total de quatro triliões de dólares em todo o projecto. É notável que o AIIB tenha apenas fornecido crédito no valor de mil milhões e setecentos e trinta milhões de dólares para o projecto. A Iniciativa tem quatro objectivos chave, que são melhorar as infra-estruturas regionais, aumentar a coordenação da política económica regional, integração de mercados e incentivar os laços culturais para construir apoios para o projecto mais alargado. O plano baseia-se em um conjunto de infra-estruturas de transporte, energia e projectos de telecomunicações, juntamente com planos para aumentar a cooperação diplomática regional, redução de custos financeiros, provisão de mais crédito e integração cultural. Apresenta três propostas básicas, sendo a primeira relativa às telecomunicações e satélites, com o estabelecimento de uma rede de cabos ópticos para melhorar a conectividade internacional e ter uma transmissão de dados mais rápida, reduzindo assim os custos para os países participantes. As multinacionais de telecomunicações chinesas como “Zhong Xing Telecommunication Equipment Company Limited (ZTE Corporation na sigla em língua inglesa) ” e a “Huawei Technologies Co., Ltd. (Huawei)”, assinaram grandes acordos para a construção de redes, como a de um cabo de fibra óptica no Afeganistão. A adopção do sistema de posicionamento global “Compass ou BeiDou-2” chinês, rival do GPS, aumentará a independência dos sistemas ocidentais de telecomunicações. A segunda proposta é relativa às áreas urbanas, com a manutenção de vastos dados que poderiam melhorar todos os aspectos diários das cidades. Actualmente, existe uma integração de informações e avanços tecnológicos. A cidade de Yinchuan, capital da província de Ningxia, por exemplo, oferece aos cidadãos uma variedade de serviços inovadores, incluindo o acesso a informações da cidade, através de “Códigos QR” (código de barras bidimensional que pode ser facilmente digitalizado usando a maioria dos telefones celulares equipados com câmara), e a capacidade de pagar tarifas de autocarros no embarque através de suporte lógico de reconhecimento facial. A terceira proposta é relativa ao comércio electrónico, como as empresas chinesas “Grupo Alibaba (Alibaba)” e “JD.Com (JD)”, que estabelecerão armazéns em todas as regiões da Iniciativa, de modo a melhorar o sistema de fornecimentos e logística, trazendo melhores negócios para cada membro da Iniciativa, devido a uma enorme redução nos custos. A Iniciativa será financiada pelo “Banco Popular da China (PBC na sigla em língua inglesa)” que transferiu oitenta e dois mil milhões de dólares para três bancos estatais. A China criou um fundo especial para a Iniciativa com um capital total de quarenta mil milhões de dólares e conjuntamente com o AIIB, são os pilares do gigantesco projecto em termos de financiamento. Além disso, o “Banco de Exportação e Importação da China” emprestou oitenta mil milhões de dólares em 2015, enquanto no mesmo período, o “Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) ” emprestou vinte e sete mil milhões de dólares. [continuação]
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSÓ [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s casas dos poetas são locais estranhos que devemos ter como sentinelas de energias cósmicas, pois dormitam lá os veios que desaguam dos seus lençóis freáticos. São espaços consagrados que nem sempre sabemos definir como espaços singulares. Impunemente não foram ocupados e deixaram um lastro de encanto na sua decadência que não tem preço, não se deve profanar e de todos os lares é este o mais enigmático e o que produz mais encanto nas nossas tenções emocionais. Se para tanto acrescer, as suas vidas difíceis, nem por isso perturba esse chão que parece mergulhado de um silêncio desconhecido de uma manifesta antecâmara de iniciados, pois tal como disse Safo: vedado é o choro na casa de um poeta/ nunca tal pesar se apartará de nós. Na volúpia das transacções imobiliárias que fazem agora das populações de uma cidade seres em via de uma grande debandada para dar lugar a moradores que nada têm a ver com a terra, os hábitos e sabemos que a cidade, se lhes acrescentarmos as casas em ruínas dos poetas que ao abandono são escombros em plena via citadina, é bem mais que uma moldura para negócios imobiliários. E é da casa do grande simbolista que agora falo que em ruína está prostrada no meio da multidão, talvez que nada saiba já do seu antigo habitante, pois que a mesma Nação que vende todas as casas já pouco sabe dos que nelas viveram, sobretudo se foram poetas: há tantos, não é? – Não, não é. – E os que têm essas casas que para aí andam são “caseiros” do acto poético que não é o mesmo que o lar de um deles. Saberão as gentes quando se inclinarem para transpor as portas daqueles de que agora falo, e se não souberem as casas, por mais caras que sejam, também não valerão nada. Sem um certo conhecimento destas coisas não há ninguém para habitar, nem as portas nos selam a raiz da nossa intimidade. Ao abandono ficaram muitas e se a de um Almeida Garrett deu lugar a um cubo habitacional depois de lhe retirarem os belos varandins , resvés à de Pessoa, que nem casa era, mas um quarto, onde fizeram um “filme” asséptico que o próprio desdenharia na sua configuração inapropriada. Não esqueçamos que o poeta é levemente como os gatos, gosta da casa, gosta do tempo das coisas que a desgastam e transformam. Mas estamos num país de movediços e de grandes “imóveis” de uma visão de habitat, estamos numa plataforma de gentes que não sabe honrar o seu legado mais bonito. Encheram-se de coisas para jogarem aos dados financeiros e tolheram a capacidade de reabilitar os sonhos. António Nobre morreu cedo, não tendo deixado nas paredes da sua casa grandes vestígios de obras nem aclimatado as salas com a sua inquietação. Talvez estivesse recolhido com a saúde que sabemos frágil e «Só» lá habitasse ele e o que estava em queda simbólica no seu um tanto desesperado estado. O desencanto simbolista tem muitas cartas escritas em surdina que nem todos leram pois que para os “poetas” das casas novas não interessa a relação entre os pares. Mas talvez pudesse interessar às Instituições, aos Ministérios, agora que há o da Cultura, mas a Cultura tal como a conhecemos talvez nem precise de casas, mas sim de Festivais e estes “pequenos arranjos” sejam sem dúvida coisas de somenos. E assim nesta perspectiva de Jogos Florais e muito imprópria para a memória nos vamos dando conta que morrer jovem num local assim, antes como hoje, talvez seja a melhor maneira de escapar a uma tremenda falta de um núcleo central, que é o da sabedoria das pedras falantes. O saudosismo que embainha a obra não se refere à saudades do futuro, tão ao gosto de Antero de Quental, que este futuro brindado em derrocada e quase esquecimento tem pouco que contemplar, mas por cada casa de um destes poetas em ruína e desabamento há um anátema gigantesco que ninguém vê. E que tanto dá lembrar. O mundo nunca lhes pertenceu e agora é mais que tempo de não existirem. E quando tudo isto terminar, assim, como se a corrente da era fosse só isto, e desta maneira, as casas de todos desabarão de formas imprevistas. Não se pode atingir o esqueleto de altares sem uma manobra na atmosfera ao redor, e, se quase ninguém pode estar nas casas uns dos outros devido à magnitude das vidas impróprias, conservam-se no éter lembranças de vivas fontes e sentidas saudades quando nos damos conta daquilo que já foram. Também se pode colocar António Nobre no sanatório, mas lá estariam muitos e insanáveis seres que deixaram as suas casas para não contaminarem os outros habitantes, quem está a mais deve ser removido para locais onde não seja factor de perturbação, e, não havendo tença, não há direito a chão, quanto mais à reabilitação de relíquias! Era um grande inovador da linguagem poética do seu tempo e uma língua precisa dos seus xamãs ou será uma artilharia mecânica com bases na Lua – idem – a colocação das vozes para se dizer o banal com o palato em forma e as ideias sem fórmula … Mas este tão «Só» para não ficar confinado a coisa nenhuma, até foi editado em Paris quando o seu autor era jovem no ano de 1892. Convém reabilitá-los a todos, todos nos dão a Casa que esperamos ver reerguida, interlaçar simbolismo e saudosismo para a construção das nossas muralhas, porque podemos vir a não saber entrar mais nos nossos Templos. É que as nossas vidas precisarão sempre de um secreto amor. Mas nem tudo é triste na visão do poeta, nem a tristeza que deles irrompe, é, ou foi alguma vez teia de servidão, por isso há ainda uma alegria à Cesário e uma noção de festa que não pode ser arrecadada no esquecimento. “Georges! anda ver meu país de romarias e procissões! Olha essas moças, olha estas Marias! Caramba! dá-lhes beliscões. …………………………… ………………………….. Que lindos cravos para pôr na botoeira! Tísicos! Doidos! Velhos a ler a sina! Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos fechados! Reumáticos! Anões! Deliriuns- tremens! Quistos! ……………………………….. Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar… Qu´é dos pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar?” Como deixar cair esta deslumbrante forma manifesta, esta imensa lira de inventividade? Vamos para tua Casa!