A casinha no Bombarral

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente esteve em macau um grupo de académicos vindos de Portugal no âmbito de um simpósio da área das indústrias criativas. Da comitiva fazia parte a Alexandra, uma amiga minha de longa data, do tempo da faculdade lá no Porto. tive a oportunidade de passear com ela pelas ruas de Macau e, em simultâneo, pôr a nossa conversa em dia.

Descíamos as escadas de granito da estreita calçada do embaixador, perto das Ruínas de São Paulo, quando a Alexandra me pergunta, no meio de tantas outras perguntas que foi fazendo ao longo do nosso passeio: estás bem aqui em Macau, não estás?

Foi um instante da minha vida que inicialmente pareceu banal, sem grande significado, mas que acabou por ficar gravado na minha memória como algo muito especial.

Aquela pergunta supostamente trivial, de amiga para amigo, despoletou em mim uma reflexão profunda. E não podia ter sido feita em momento ou local mais apropriado: o cenário à nossa volta parecia tirado do In the mood for Love, de Wong Kar-wai. e a Alexandra, diga-se, é fotogénica.

Engana-se o caríssimo leitor se entendeu que me apaixonei pela Alexandra naquele preciso momento. Não. Há de facto aqui paixão da minha parte, mas não é por ela.

Sim, estou bem aqui em Macau. A minha resposta foi curta e seca. Mas, tal como a própria pergunta, trazia muito mais significado que as meras palavras pronunciadas.

Cresci em Macau nos anos 80-90. À semelhança de muitos portugueses dessa geração que aqui viveram, a minha educação foi definida tendo em mente a transferência de soberania e um futuro fora de Macau. O leitor português que viveu em Macau nesses tempos recorda-se concerteza do ambiente de contagem decrescente e da mentalidade de contentor.

Resultado da (má) experiência portuguesa nas ex-colónias ou simplesmente daquele típico prazer masoquista que guardamos pelas emoções do triste fado, ou mesmo até apenas por teimosia, a verdade é que nós, na nossa estreiteza mental, espiritualmente determinámos desde o início que a nossa presença no Macau do pós-99 não era viável.

Até eu, maquista chapado originário de família tradicional aqui radicada desde o século XIX, adoptei essa atitude. Futuro em Macau? Quantas vezes não respondi aos meus colegas da faculdade, com um sorriso arrogante: nãããão…

E assim, decisão tomada, o português em Macau na fase de transição passou o resto do tempo ocupado e preocupado com os afazeres relacionados com a sua casinha no Bombarral e com a mobília chinesa e as bugigangas ainda por comprar para encher o contentor. Quero levar lembranças de Macau.

Mas afinal regressámos. Entretanto a RAEM fez 15 anos e foi preciso esse tempo todo e aquela pergunta da Alexandra para que a minha cabeça fizesse, finalmente, o click. A transferência de soberania, afinal, fez-me bem. Fez-nos bem, a nós, portugueses. Passo a explicar. mas para já, da resposta aparentemente inconsequente que dei à Alexandra, quero acrescentar o seguinte:

Alexandra, nasci e cresci nesta terra. Sou macaense de gema, e com muito orgulho. Sou híbrido por natureza, está no meu DNA. com o estabelecimento da RAEM, e ultrapassada a subsequente fase do fervor nacionalista chinês e sentimento ferido do orgulho português, finalmente descartei todos os complexos e preconceitos absurdos referentes a formas de ser e de estar nesta cidade que eram desnecessariamente etiquetados como comportamentos chineses, portugueses ou macaenses e, como tal, bem vistos ou mal vistos por esta ou aquela comunidade, num período muito particular da história de Macau. Por conseguinte, hoje vivo e celebro a hibridez e a diversidade cultural desta cidade em toda a sua plenitude. Aqui em Macau eu sou mesmo eu, posso ser eu, sem inquirições de terceiros. Nunca gostei tanto de viver em Macau, nunca me senti tão bem em Macau.

É um sentimento profundo e pessoal que o caríssimo leitor poderá não compreender à primeira. Verborreia? Filosofia barata? Não. Deixo aqui uma pista: nos anos 80, uma professora do Liceu decidiu não dar nota máxima ao meu irmão na disciplina de Português porque ele falava com pronúncia de macaense, não obstante o facto de, tecnicamente, ter demonstrado dominar a língua e a matéria da cadeira na perfeição.

Este não é o discurso do nativo coitadinho maltratado pelo poder colonial. O que estou a querer dizer é que nós, portugueses (e não apenas nós, portugueses) andávamos todos afectados da cabeça. A sério. A transferência de poderes teve, por isso, um efeito positivo: passámos todos a ser estrangeiros a viver na China.

Pese embora a contínua existência de atitudes bacocas daqueles que, no fundo, bem lá no fundo, e infelizmente, ainda hoje não conseguiram compreender ou aceitar a transferência de soberania. Quanto a esses, nada a fazer, e não vou agora dissecar a irrazoabilidade que demonstram na análise dos problemas desta cidade. Fica para outro dia.

O que é certo é que a contagem decrescente foi abandonada de vez. O contentor foi desalfandegado, a mobília chinesa e as bugigangas de Macau ficaram na casa de Bombarral a apanhar pó. Vamos vendê-la? Ai as despesas…

Hoje assisto com regularidade a conversas entre pais portugueses sobre opções para a educação dos filhos, tendo em mente um futuro em macau. Preocupam-se com a língua chinesa e não querem que os filhos vivam num ghetto português. E isso é muito bom.

[quote_box_right]Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau.
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Porque… Vamos lá, sejamos francos: faz algum sentido, depois das oito da noite, ouvir no 98.00 FM o boletim de trânsito das estradas em Portugal? Dava um bom sketch à la Gato Fedorento: o português em desespero num engarrafamento na Ponte de Sai Van enquanto ouve pela rádio as informações de trânsito da Avenida AEP, no sentido Porto-Matosinhos. Bolas! E eu?? O que é que eu faço agora???

Entretanto, descobri que me fartei de pão, ovos estrelados e bacon ao pequeno almoço. Eu gosto é de canja e sopa de fitas logo de manhã, acompanhado de um tong café. Não é atitude ou achinesação. É o que o meu corpo me pede, logo de manhã, quando acordo. Sabe-me bem. E não tenho complexos.

Igualmente, sabe-me bem um café espresso depois de um almoço yam chá. Qual é o problema? Nunca me recusaram um café num restaurante chinês, nunca ninguém me veio dizer Desculpe, mas o senhor está num restaurante chinês, não servimos café.

Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau.

A essência de Macau é mesmo esta: seja o residente português, chinês, macaense, filipino ou mesmo o polaco que decide vender cannabis no Facebook. O residente de Macau vive macau conforme lhe apetece, conforme lhe dá mais jeito, conforme gosta, e há-de encontrar a sua zona de conforto, mou man tai, porque em macau tudo é válido, tudo pódi, nada faz sentido, mas tudo faz sentido.

Macau está com muitas falhas, eu sei. Mas estou apaixonado e, quando estamos apaixonados, tendemos a não ver os defeitos, apenas as qualidades. E estou nessa onda. Esta cidade preenche-me o coração na ín- tegra. Dedico, por isso, esta peça escrita à minha macau, que tanto amo.

Sorrindo Sempre

Sorrindo Sempre é uma atitude de vida que nos permite superar de forma pacífica situa- ções aberrantes que vão ao atropelo do bom senso e com as quais somos confrontados no nosso dia-a-dia. Implica tolerância, com- paixão e, acima de tudo, sentido de humor. Demonstramos, sem arrogância, que somos muito mais que a questão em causa, pelo que não nos deixamos afectar nem um pouco, por mais absurda e irritante que ela seja. No me ne fregga niente. Era o que faltava.

Um exemplo de Sorrindo Sempre: o meu pedido para um cartão de crédito que foi rejeitado por uma prestigiada instituição bancária local. Porquê?

Porque cessei as minhas funções oficiais em Março e decidi que merecia take a long break e descansar durante o mês de Abril, para voltar a trabalhar apenas no mês de Maio. O banco detectou a descontinuidade do meu rendimento e, provavelmente, o risco de eu ser incapaz de liquidar as contas do cartão de crédito. Então deu-me nega.

A minha reacção para a funcionária do banco: está a falar a sério?

Encolhi os ombros e soltei uma gargalhada. Sorrindo sempre…

15 Mai 2015

Viagem a partir de uma fotografia

Uma imagem antiga é o pretexto para recordar figuras importantes da história de Macau e o seu mundo antigo. Figuras que fizeram a ponte entre os dois lados da terra. Que se interessaram pelo outro e cruzaram culturas distantes. Vamos à vela, pela memória da descendência da História

[dropcap]P[/dropcap]arte-se de uma fotografia. Um tempo a sépia. O pai no liceu, aos 16 anos, os seus colegas, os professores, um passado vivido apenas por uma memória visual. Mas o sentido de pertença por uma imagem e por um impulso antigo, muito presentes, no dobrar da esquina de uma memória. “Eu cresci com esta fotografia”, afirma António Conceição Júnior, como se aquela recordação não fosse apenas papel, mas o desenrolar de uma vivência real e palpável, com todos os seus sentidos.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio”, refere Conceição Júnior, “as pessoas apanham o comboio na estação que for.” E continua, “se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem”. Estas são as palavras que reflectem sobre o acto contínuo do tempo, com as suas coincidências e factos, sem distinções entre presente e passado.

“Macau tem uma continuidade, Macau é o fio, as pessoas apanham o comboio na estação que for, se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem.”

No seu desenrolar, os nomes saltam com toda a sua importância: Pessanha, Mendes, Gomes, Jorge. Os apelidos da biografia de uma cidade a acontecer. As personagens de uma enorme importância para a vida cultural de Macau. Sem esquecer o de Conceição, pai e filho. Todos eles formam o núcleo da espiral de um ciclo de acontecimentos que ocorreram após o simbólico momento congelado no tempo, a fotografia tirada no pátio do Liceu Infante D. Henrique, por um autor desconhecido. Vivia-se a história de Macau e com ela rola esta crónica de coleccionadores.

Momento intensamente vivido

Camilo Pessanha com Silva Mendes, a seu lado, e António da Conceição e Gonzaga Gomes, da mesma altura, atrás de si

O próprio instante da fotografia é incerto. Se a fotobiografia de Camilo Pessanha refere o momento situado em 1921, Conceição Júnior marca-o no ano lectivo de 1925-26, pela referência do seu pai, António fa Conceição, o primeiro à esquerda, nascido em 1910. O poeta de “Clepsidra” morreu no dia 1 de Março de 1926 e os protagonistas têm um ar demasiado veraneante para que a ocasião possa ter ocorrido nesse ano, o ano em que o BNU se mudava para as suas instalações actuais. Talvez seja lógico pensar que a imagem traz o final do ano lectivo anterior, com as taças e os prémios de toda uma época e o início das férias. Mas Macau é sempre um mundo tropical onde tudo é possível.

Por detrás de Camilo está o jovem Luís Gonzaga Gomes. Sentado ao seu lado vemos Manuel da Silva Mendes e do outro lado da mesa dos troféus, no segundo lugar, está José Vicente Jorge, apoiado na cadeira. São eles as referências de uma visita guiada. O que têm em comum? Todos ousaram transpor a barreira da língua e ocupar um ponto na comunidade chinesa, na compreensão do idioma, estabelecendo desse modo ligações profundas com ela, na procura do conhecimento da cultura local. Facto notável numa sociedade colonial pouco receptiva à aceitação de outras formas de assumpção do quotidiano, com a sua zona cristã bem delimitada, que não se aventurava a conhecer o outro lado, na verdadeira acepção da palavra. Ainda hoje assim acontece.

Vicente Jorge (ao centro) do outro lado da mesa

A viagem começa aí, em Camilo Pessanha. Não o poeta excêntrico, que lhe trouxe a fama, mas o advogado, de raro brilhantismo, o juiz e sobretudo o professor de Filosofia, História, Geografia, Português, Literatura e Direito. Admirado pelos alunos, era figura central no mundo cultural, político e cívico da plataforma de Macau, à qual abordou em 1894. Terra de acolhimento onde desde logo tomou posições fundamentais no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses. Com a compreensão do idioma, abandonou desde logo a postura eurocêntrica da maioria dos seus contemporâneos, levando-o desde logo a traduzir, de forma livre, poemas da dinastia Ming (1368 a 1628). Talvez resida aí o rumor dessa poemária que viria a criar mais tarde. Na voz de Conceição Júnior, revivem-se as histórias de Pessanha. As suas casas, na Sidónio Pais, na Praia Grande, actual sede do Banco HSBC, na esquina que sobe para a Sé. Mas, principalmente, o gosto pela arte, que partilha com Silva Mendes e que fortalece toda uma relação de amizade entre os dois. O Palacete da Flora a ir pelos ares com uma colecção rara de que hoje não se conhece o rasto. O espólio de Silva Mendes, o homem que vindo do Porto, em 1900, ainda hoje tem uma presença preponderante na arte do território. Mendes foi o primeiro europeu a coleccionar peças de qualidade com as características da cerâmica de Shek Wan, da região de Cantão, reconhecendo-a como um dos mais refinados exemplos da arte chinesa, encomendando diversas peças durante toda a sua vida, que podem ser vistas nos dias de hoje no Museu de Arte de Macau. E uma ligação ao presente faz-se então por aí.

Juiz multifacetado, professor e reitor do liceu, advogado, magistrado, presidente do Leal Senado, Manuel da Silva Mendes foi um dos intelectuais mais representativos da história de Macau, dedicando-se ainda ao estudo da filosofia taoista e flutuando nos enredos da arte chinesa, como erudito e coleccionador. A colecção valiosíssima de Silva Mendes viria a formar grande parte do importante espólio do Museu Luís de Camões, situado no que é agora a Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, que foi instalado, com grande competência e conhecimentos da arte chinesa, por um seu aluno, Luís Gonzaga Gomes, um dos símbolos de Macau, no lugar do diálogo, da harmonia e da tolerância.

Nascido em Macau em 1907, sinólogo fervoroso, Gonzaga Gomes viria a traduzir para chinês “Os Lusíadas contado às crianças”, entre muitas outras obras escritas. Profundo auto-didacta, acabaria por ser professor de língua chinesa, defendendo sempre a importância do seu ensino junto da comunidade portuguesa, facto que raramente teve repercussão. Aí se aprofunda a ligação a António da Conceição, num tempo com todas as cores, no jornal Notícias de Macau, situado no local preciso da actual Tribuna de Macau, a que viria a juntar-se o nome de Deolinda da Conceição, mãe de Conceição Júnior, como a primeira jornalista do território. E as imagens continuam. O Hotel Riviera, os anos a correrem, o Museu Luís de Camões, as peças de Silva Mendes sem rasuras a caminharem para a actualidade e, finalmente, a memória da família de José Vicente Jorge, também um sinólogo e grande coleccionador de arte chinesa, que se viria a mostrar no prelo nas suas “Notas sobre a Arte Chinesa”. As memórias passam ainda pelo seu palacete, por cima do Lilau, também ele repleto de obras de arte, com o seu rico jardim, um espaço vivido por dentro pelo condutor desta viagem.

Uma memória adormecida?

“Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes.”

Pelas suas funções de intérpretes, professores e diplomatas, estas personagens da história foram a peça-chave da mediação cultural entre os dois mundos: o português e o chinês, contribuindo para um entendimento, muitas vezes difícil, de forma exemplar. E pergunta-se pelo valor que tens estas memórias? “Têm o valor que as pessoas quiserem encontrar nelas”, responde Conceição Júnior, o homem do leme. “Pessoalmente penso que é uma questão intimista, no sentido de que têm um valor muito subjectivo, na medida em que na vida actual a objectividade tem cifrões”. É nesse idioma do cifrão que se fala da Arte nos tempos que decorrem como se tudo começasse a ser criado agora, onde se ouve sempre o sussurro das indústrias do criar. Conceição Júnior responde: “Isso passa pela força do desconhecimento e pela ausência de memória, uma memória colectiva. Quando não se acede a essa memória, provavelmente animam-se pensando que são as pioneiras de uma coisa que já foi pensada por gerações”. Haverá ligação ao passado, actualmente, numa comunidade tão diversa? Que significado poderão ter estes nomes que passaram pela história de um território sob o cunho português? Haverá importância para outro lado do trampolim, por entre os resquícios da “zona cristã”, nesta Idade de Casino?

António Conceição Júnior aponta: “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes”. Assegurando que “neste momento é de uma imensa importância encontrar pontes entre as comunidades, não só sobre o actual mas também sobre passado”. Porque só podemos saber para onde vamos se soubermos quem fomos, para finalmente sabermos realmente quem somos. Quem somos nós, afinal, as gentes de Macau?

13 Jul 2010