Uma Macaense Uyghur

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xiste um ditado chinês que, em tradução livre, diz: “não se receie uma vida mal destinada; receie-se antes um nome mal escolhido”. (*)

Pretende este ditado sublinhar a importância que a escolha do nome tem para os chineses, tratando-se de um processo meticuloso e profundo em que são analisados os significados de cada caracter, bem como o sentido, a sonoridade e o número de traços do conjunto todo. É uma operação que reflecte perfeitamente a riqueza da cultura milenar chinesa.

Todavia, é comum por estas bandas a adopção de um nome em inglês para facilitar a interacção diária, já que no nosso ambiente multicultural essa é frequentemente a língua veicular utilizada. Neste contexto, o que até hoje ainda não consegui perceber é por que razão o mesmo cuidado não é tido na escolha desses nomes adoptivos em inglês.

Por cá existem indivíduos com nomes ingleses fantasticamente surreais. Se o caríssimo leitor desconhece esse fenómeno, tenho então a seguinte proposta a fazer: vá ao McDonald’s mais próximo de si e veja os nomes que os funcionários ao balcão trazem no peito. Já vi Zombie, Milk e até Wasabi.
Falo, naturalmente, de forma generalizada. Há também casos interessantes em que o nome em inglês é coerentemente escolhido em função da sonoridade do nome em chinês. Por exemplo, conheço uma rapariga chamada Mak Hoi Lan (para quem não sabe: Mak é apelido e Hoi Lan é nome) que se chama Helen Mak em inglês. O resultado parece-me bastante feliz.

Delicio-me com essas coisas que são para mim de grande interesse pois evidenciam a cultura híbrida a que estamos expostos aqui nesta parte do mundo.

Feita essa introdução, vou agora falar das caricatas situações que enfrento por causa do meu nome. Não o faço por egocentrismo, quando muito para expor o que nós, macaenses, temos de aturar dada a nossa natureza mestiça.

O meu nome – André – foi sempre uma dificuldade para os chineses. Fui criado por várias empregadas chinesas e nenhuma foi capaz de pronunciar o meu nome correctamente. O melhor que se conseguiu foi An-Te-Lé.

Sendo André um nome difícil para os chineses, toda a gente me trata por Ritchie, muito mais fácil por ser inglês (**). Como tal, sempre que qualquer chinês me pergunta pelo nome, digo “Ritchie”. E aqui começa a confusão, pois assumem que Ritchie é um nome de adopção, semelhante a Zombie ou Wasabi.

Para complicar as coisas, na comunicação social em língua chinesa fiquei conhecido pelo nome Lei On Tak, concebido em 2003 quando regressei a Macau. Assim, tudo somado, frequentemente sou identificado como o Mr. Ritchie Lei.

O problema é o trabalho que dá fazer as rectificações quando necessárias, pois tipicamente ficam a olhar para mim com um ar incrédulo. Até já fui contrariado: uma rapariga que, apontando para a face em chinês do meu cartão de visita, insistiu que o meu nome não era como eu dizia que era. Haja paciência.

Entretanto, sou diariamente confrontado com um outro problema que já todos conhecem: a famosa vírgula do BIR. De um momento para o outro, em Macau passei a chamar-me “Xavier Sales Ritchie, André Duarte”.

Aborrece-me o facto de, mesmo depois de séculos de presença portuguesa em Macau, a malta ser incapaz de perceber que nos nossos nomes o apelido principal é o último nome, e não o primeiro.

Passei a ser Mr. Xavier. E o facto de Xavier ser um nome muito difícil para os chineses também não ajuda em nada. “Zeivier”, “Sáfiar”, “Ex-Eivier”, já me chamaram esses nomes todos.

No outro dia recebi a chamada de um desconhecido que iniciou a conversa da pior forma, em inglês: “Hello! Is it Mr. Zei… Errr… Saf… Ahm…”. Tive de o acudir, mas fi-lo em cantonense e com um tom propositadamente seco: “Ouça, eu sou o Mr. Ritchie. Falo chinês. Vamos falar em chinês?”

Pobre coitado… Ora, como poderia ele adivinhar que, com um nome tão complicado, do outro lado da linha encontrava-se afinal um sujeito fisicamente oriental e perfeito falante de cantonense?

Contudo, os meus dramas não se limitam a Macau. Também sofro em Portugal: quantas vezes não me fizeram elogios despropositados, do género “Oh, mas o senhor fala tão bem português, fala português como um português!”

Normalmente ignoro. Mas às vezes não me controlo e respondo torto: “Muito obrigado. O senhor também fala muito bem português. Onde aprendeu a falar tão bem?”. É antipático, eu sei. E as pessoas não têm culpa. Só que a paciência tem limites.

Entretanto, como Ritchie não é um apelido português, em Portugal nem sempre é pronunciado correctamente: já me chamaram de Ricky, Rí-xe ou Rís-ti. Aliás, quantas vezes não tive de soletrar o meu apelido em serviços públicos, bancos ou simples reservas de mesa?

Um dia armei-me em esperto e, ao telefone com um funcionário da Telepizza, identifiquei-me como “André Sales”, sendo este o meu apelido que vem antes do Ritchie. Reacção do outro: “Sales é com um L ou com dois L’s?”. Apeteceu-me dizer um palavrão.

Felizmente, nem tudo no meu nome está mal: pelo menos não tenho nenhuma preposição. A minha mulher, por exemplo, tem o apelido “de Jesus” e é vítima de uma situação espectacularmente pitoresca: por causa da tal vírgula do BIR, em Macau passou a ser Ms. De! E como De (leia-se “dí”) soa a compatriota do interior da China, com as feições que tem devem pensar que é Uyghur!

Isto tudo tem muita piada, mas também não tem: um conterrâneo meu esteve perto de perder um voo porque nos altifalantes fartavam-se de chamar pelo Mr. De e ele, naturalmente, não se apercebeu que era o destinatário da mensagem. Portanto, se o caríssimo leitor tem como apelido “dos Santos” ou “da Silva”, esteja atento e não diga que não avisei: passou a ser Mr. Dos ou Mr. Da.

Enfim… Conheço inúmeras histórias semelhantes, mas fico por aqui e vou fechar o artigo regressando àquele ditado chinês para dizer o seguinte: (1) a minha vida está bem destinada, muito obrigado; e (2) não, apesar de tudo, não acho que o meu nome tenha sido mal escolhido.

Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida.

Em qualquer parte do mundo, até mesmo em Macau, ninguém consegue compreender que laia de gente somos nós.

De resto, acho que nem nós próprios nos compreendemos.

[quote_box_right]Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida[/quote_box_right]

Sorrindo Sempre

No ginásio que frequento há um tirano que tem a mania que tudo o que lá está foi feito para o uso exclusivo dele. No seu universo os outros utentes não existem.

Entra na sauna e, sem o consentimento dos presentes, deita água em grande quantidade para cima das pedras. Mas depois não se aguenta nem um minuto: abandona o recinto, deixando os outros lá dentro a ferver com as altas temperaturas. Eu fervo a dobrar: de calor e de raiva.

Sorrindo sempre, é verdade. Mas no outro dia coloquei um travão: enquanto corria na minha máquina preferida, que tem uma televisão à frente, o dito chega, instala-se na máquina ao lado e decide mudar de canal sem me dizer nada.

Quer dizer, estava eu muito bem a assistir a passagens de modelos do Fashion TV com umas mulheres bestiais e, de repente, tenho pela frente um crocodilo do National Geographic a comer um animal vivo, com sangue a jorrar por todo o lado?

Com muita calma, paro a máquina de corrida, saco o comando da televisão e mudo novamente para o Fashion TV. Mais: tiro as pilhas do comando e meto-as no bolso. Isso tudo sem dirigir um único olhar ou palavra ao tirano. Chupâ ovo.

Retomo tranquilamente o meu exercício. Quando acabo, recoloco as pilhas no comando e, como o tirano ainda corria, mudo para o National Geographic. O crocodilo estava morto e todo aberto, a ser analisado em laboratório. Ele acenou e sorriu para mim (o tirano, não o crocodilo).

Às vezes, viver em Macau é também assim. O conceito da multi-secular amizade abarca essas situações. Não se trata apenas de nos entendermos bem com o próximo. Acima de tudo, temos é de nos desentender bem. E foi assim durante séculos.

Sorrindo sempre.

(*) 唔怕生壞命,最怕改壞名 (ng pa sáng wai meng, choi pa koi wai méng).
(**) Na verdade, não é inglês porque Ritchie deriva de Ricci: o meu antepassado era italiano e veio de Palermo no séc. XIX

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