António Conceição Júnior Contos e histórias h | Artes, Letras e IdeiasAnónimos Imprecisa, em 1986, uma notícia informava que um condutor de triciclo cometera suicídio pendurando-se no gradeamento da ponte Macau-Taipa [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]perfil da cidade parecia benevolente na contraluz do sol poente. Com a ponta do pé, que recolheu de imediato não fosse haver um poço sem fundo, sentiu a água morna e o lodo do leito do rio. Sentiu repugnância. Decidiu pôr-se de novo a nado, duas cabaças atadas à cinta. Nadou até sentir um apoio sólido por debaixo da fina camada de lama. Parou no molhe, exausto. À direita, na ligação da barreira de pedra, pescadores lançavam redes esticadas por quatro bambus. À esquerda, o vulto de uma igreja no cimo de uma colina. Olhou para trás, levou a mão à cintura e puxou a corda fina de fibra de coco. Foi puxando, encostado às rochas, receando os fachos de luz que um farol projectava. Por fim, a corda trouxe um saco de pano. Encostou a cabeça ao molhe e respirou fundo. Chegara. Lentamente, desatou a corda apenas pelo tacto e desembaraçou-se das cabaças. Com cuidado subiu as pedras do molhe. Os intermitentes lampejos do farol permitiram que visse os pescadores, bambus ao ombro, dirigirem-se para terra firme. Deitou-se, o saco fazendo de almofada, para que a roupa secasse, mas adormeceu, não soube por quanto tempo. Acordou sobressaltado, olhando um céu estrelado. Não sabia as horas. Levantou-se e decidiu que tinha de caminhar. Subindo dois degraus que o trouxeram para terra, vislumbrou perto umas árvores. Mais longe, contra o céu ainda escuro, erguia-se uma massa ainda mais negra. Guó Jianjun atravessou lesto a estrada deserta, os braços apertando o saco contra o peito. Embrenhou-se na terra batida, sentindo a humidade sob os pés. Havia um cheiro que o fez recordar os campos que atravessara a cavalo. Agachou-se, concentrando os sentidos para entender a razão daquele odor. Discerniu uma barraca ao longe. Sapos coaxavam e mosquitos zuniam perto, numa sinfonia que lhe era familiar. Viu uma bananeira com fruta por colher. A fome apertava, comeu. De uma lata, bebeu água, mão em concha. Lá para Oriente já clareava e uma luz acendeu-se na barraca próxima. Junto à bananeira, escavou rapidamente a terra húmida. Abriu o saco, retirou algo que colocou no buraco, e cobriu-o novamente. Colocou um pesado pedregulho por cima e alisou a terra. Olhou em volta. Precisava fixar o local antes de se afastar. Amanhecia quando Guó chegou à cidade. Olhou em redor para se orientar. Encaminhou-se para uma rua. Tudo era novo aqui. Os edifícios recordavam-lhe vagamente Xangai, Tsingtao, mas aqui tinham um sabor que não sabia decifrar. Sobre jornais velhos, esteiras, caixas de papelão espalmado, viu gente a dormir debaixo de arcadas. Guó Jianjun tinha servido Chiang Kai-shek desde os tempos de Xangai. Tornara-se um dos elementos de ligação entre o Generalíssimo e o chefe do Grupo Verde, Du Yusheng, a quem chamavam “Du, orelha grande”. O Grupo Verde era uma seita que fazia os trabalhos sujos para o Kuomintang. Chegara a major quando a debandada no seu regimento começou, depois das notícias de Nanjing. Pegaram no ouro que puderam, meteram-se a caminho, cada um por si, e deixaram Xangai para os japoneses. Conseguira chegar a Ao Men. Era a última etapa. Pelo caminho, vira cadáveres que boiavam nos braços do delta. Tinha conseguido contornar os guardas japoneses, nunca largando o saco. Da ilha vizinha tinha olhado a cidade, mas não se atrevera a atravessar aquele braço de água porque lanchas patrulhavam junto aos juncos em descanso. Ouvira tiros, vislumbrara caçadores que se entretinham a caçar. A sua Mauser C96 perdera-a na fuga. Tirara o uniforme e lançara-o a um poço numa aldeia abandonada. Caminhou até onde tudo era deserto e, na calada da noite, foi atravessando ilha a ilha. Quase desesperara. Guó Jianjun, curvado, percorreu as arcadas. Passou por uma praça de traça ocidental. Procurou andar por ruelas, evitando expor-se. Meteu por uma viela, assinalada numa placa como Rua dos Cules e, ironicamente, desembocou na Rua da Felicidade. Desorientado, virou à direita, na Travessa do Aterro Novo. Encontrou uma casa de câmbios e de penhores. De cabeça ainda rapada, rosto sujo, preocupava-o não se fazer entender. Olhou em volta e entrou rapidamente, contornando um alto biombo vermelho. Olhou para cima, para o funcionário atrás das grades protectoras. Pôs a mão na cintura e retirou das calças um lingote de ouro bem amarelo, quase quadrado, com a inscrição 999 e, por baixo, 1000. Deveria ter de espessura um dedo. O funcionário olhou a peça com ar de treinada indiferença. Olhou para Guó e, sem querer, tremeu. Guó Jiajun olhava-o com um olhar que há muito não tinha. Era um olhar frio, gélido, impiedoso. O homem retirou-se, e Guó ouviu-o falar com outro num dialecto desconhecido. O homem voltou, olhou de dentro da jaula. Disse-lhe algo em cantonense. Guó respondeu uó pu tong(1) . O outro pegou numa folha e escreveu com o pincel “o câmbio está a oitocentas patacas”. Guó olhou para ele e rosnou ” Huángjīn shì jīn” (ouro é ouro). Os olhos eram duas ranhuras. O homem voltou a conferenciar com o superior invisível. Aproximaram-se os dois e o patrão olhou, mirou, e, atarantado, gaguejou “ni shi, ni shi” (você é, você é…). Os olhos de Guó abriram-se mais, aquele rosto gordo não lhe era estranho. “Ni shi lu ma?” A frase era enigmática, pois lu tanto podia significar verde como corça. Guó sorriu, levou a mão direita ao externo, o polegar e o dedo mínimo abrindo-se ao máximo, o indicador e o anelar esticados e o dedo médio recolhido e deixou a mão escorrer lentamente até ao estômago. O superior deu uma ordem ao funcionário, abriu a porta oculta para Guó subir, ni lai, lai (venha, venha). O outro ficou a contar enormes notas arroxeadas de dez patacas. Cem notas de dez. Li Gangming reconhecera Guó. Como era pequeno o mundo. As memórias de Du Yusheng, o orelhas grandes, tinham atravessado Xangai até ali. Ambos eram sobreviventes da mais recente das tragédias na China. Ambos tinham receado o poder crescente de Mao e de Zhou Enlai. Os comunistas tinham-se separado dos do Kuomintang desde 1927, embora ambos tivessem combatido os japoneses. Aquilo era uma confusão. Apenas tinha sabido que os do Kuomintang haviam fugido, quando os japoneses entraram em Xangai. Li levou Guó para outro compartimento, mirou Guó e pegando num pau com uma forquilha, depois de ter consultado uns papelinhos atados à roupa, tirou uma túnica e calças largas que lhe entregou. O funcionário, agora reverente, entregou com as duas mãos um embrulho com as mil patacas. Foi buscar uma bacia de esmalte, água quente e entregou uma toalha para Guó limpar o corpo. Meia hora depois Li Gangming e Guó Jiajun, agora apresentável, saíram e foram jantar. A guerra acabara, era tempo de se ajustarem algumas contas. Guó passou a viver à grande, quarto no Hotel Central. Jogava com frequência. Li Gangming fora obrigado a fechar a casa de penhor, vendera a licença de cambista por bom dinheiro e partira para Hong Kong. Aos poucos, a cidade foi-se despovoando dos refugiados. O mundo não parava. Muitos ficaram, adaptando-se ao pequeno burgo. As idas de Guó Jiajin ao buraco junto à bananeira pararam. Esgotara tudo, estoirara tudo numa febre autodestrutiva, numa raiva contra o destino. Vivia na miséria após alguns, poucos, anos de abundância. Pedalava um triciclo, tez queimada do sol, longas barbas brancas, e corpo magro, ressequido. Falava sozinho. Nos anos oitenta, um jornal noticiou, de forma vaga, um suicídio. Era Guó Jiajun que havia desistido de viver. Durante a noite, o ex-major tirou o cinto, atou-o ao corrimão da ponte, enfiou a cabeça e deitou-se de barriga para baixo e deixou-se asfixiar. Morte anónima, a do condutor de triciclo.
António Conceição Júnior Contos e histórias h | Artes, Letras e IdeiasNos idos anos 40 [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]aiu para a rua Central respirando o ar húmido. Era já noite. O dia tinha sido cansativo no Comando, mas decidiu não ir directo para casa. Mudara-se no Gabinete e vestia agora um fato de linho cinzento que o mainato entregara ao ordenança. Dispensou o carro. Desceu o troço que o conduziu à Almeida Ribeiro, olhando de passagem para a rua que levava ao Tribunal. Baixou a cabeça, num cumprimento seco, quando o polícia mouro lhe fez a continência. Àquela hora, ainda não tardia, já o silêncio pairava naquela zona, iluminada por candeeiros de mercúrio, de uma luz crua, algo azulada. As escadinhas, anexas ao edifício dos Correios, estavam vazias. Apenas se distinguiam, mais distantes, uns vultos junto ao casarão na esquina com a Travessa de S. Domingos. “Mais refugiados a morrer de fome” pensou, enquanto acendia um Lucky Strike, suprimento que uma sombra lhe fornecera e que no mercado negro custava quarenta patacas. Pôs os pensamentos e os escrúpulos de lado. Voltou à esquerda e entrou na Almeida Ribeiro. Ao chegar ao Senado, olhou para o Largo e para os escassos automóveis estacionados. De uma janela próxima, um erhu(1) gemia histórias antigas, enquanto um carro preto virava à direita, vindo de S. Domingos. Ferreira mordeu os lábios, irritado por ter dispensado o motorista. Estugou o passo por instinto, passou pelo “Soi Cheong” que ainda se encontrava aberto. À porta, um jovem de olhos protuberantes cumprimentou-o: “Mom noiti sinhó”. Ferreira saudou-o com um gesto. Ali, a dois passos, do outro lado da avenida, erguia-se imponente o mais alto edifício de Macau, o Hotel Central do Comendador Kou Ho Neng e Fu Tak Iam, concessionários do jogo através da sua Tai Heng & Co. O Hotel tinha sido construído a pouca distância da ponte-cais onde o “Tai Loi”, o “Takshing” e o “Fatshan” atracavam. Os passageiros, nas três horas de agradável viagem desde Hong Kong, jogavam nos salões principais o “pai kao”, espécie de dominó chinês, indiferentes ao histórico mar, às ilhas e alforrecas que se patenteavam a quem ficasse no convés. O coronel parou defronte à entrada do Central. Respirou fundo e cruzou solene a Almeida Ribeiro para o feérico átrio Art Deco versão local, pintado a creme. Entrou no elevador e premiu o botão do primeiro andar. Subiu e o abrir da porta coincidiu com o intempestivo barulho de gente excitada, vozearia, risos e demais sonoridades de emoções diversas. Os homens das mesas de fan tan ou do tai siu e ku sêk usavam largas calças chinesas e confortáveis sapatos pretos de solas de feltro. Alguns deles atarefavam-se a retirar das cestinhas, que se suspendiam dos varandins do andar de cima, o dinheiro das apostas gritadas lá do alto. Deu uma volta, viu poucos conhecidos, tudo estava em ordem. Observou os seguranças nas suas túnicas, as pistolas cuidadosamente ocultas, abanando-se em largos leques de papel castanho e fumando cigarros enrolados à mão. Aniceto Ferreira estava em pleno coração da vida nocturna de Macau que, apesar da guerra circundante, não parava. Entre os diversos refugiados aqui aninhados, de Hong Kong, Xangai, Chung Shan e Foshan, entrados pelas Portas do Cerco antes do seu fecho pelos japoneses, havia também russos e russas brancas, fugidos desde há muito do distante Norte, em inenarráveis trajectórias de sobrevivência. O modo como toda esta gente vivia, era, na maioria dos casos, desconhecido. O Governo acolhia os que podia. As mulheres de guerra, para sobreviver, convergiam para os locais de diversão nocturna, fossem belezas de Xangai ou de Vladivostok. Outros dedicavam-se a tarefas de respeitáveis profissões. Os anónimos dos anónimos iam morrendo à fome pelos cantos, desistindo da luta, exaustos de tanto fugir. A cidade era um enxame silencioso de gente em sofrimento. A população local, compassiva mas impotente, procurava ajudar como podia, partilhando o dispensável. Ferreira tornou ao elevador, esperou e, desta vez, premiu o botão do quinto andar. Saiu para outra atmosfera. Uma orquestra de metais tocava as canções em voga. Foi abordado por uma jovem que lhe ofereceu tickets, cartões que permitiam ao comprador fazer par com as dançarinas que se vislumbravam sentadas ou na pista. O resto era ajustado durante a dança. Olhou do pequeno vestíbulo para o salão. Não era muito tarde, mas já lá se encontravam oficiais japoneses bebendo mao tai, acompanhados por damas que lhes enchiam os copos. Mais além, para a direita, vislumbrou duas mesas com chineses, alguns envergando fatos tradicionais, outros, com negros cabelos luzidios de brilhantina, vestiam à ocidental. Ferreira lamentou estar sozinho, sem nenhum dos seus agentes mais conhecedores do meio. Parecia que tinham convergido para ali todas as facções em conflito, no oásis de tréguas, mesmo assim frágil, que era Macau. Não sabia distinguir os do Kuomintang e os Comunistas. Os das seitas já sabia que andavam de cabaia curta e calça larga. Tudo isto lhe passou pela cabeça em escassos segundos. Agora não podia recuar, tinha de entrar. Parou perto da mesa dos oficiais japoneses. Acendeu um cigarro, mas queimou-se com o fósforo e fez um esgar. Um dos oficiais japoneses sorriu, abriu a sua gunto(2) com a mão esquerda e, mostrando um pedaço da lâmina, passou o dedo, sorrindo sempre. Sem desviar o olhar de Ferreira, fez cair o sangue no mao tai e bebeu. Levantou o copo e, entre as gargalhadas dos outros, gritou kampai(3). O coronel sentiu o rubor subir-lhe ao rosto, desviou os olhos e afastou-se em direcção às mesas da direita, onde os ocupantes, se tinham tornado tensos a olhar os nipónicos. Ferreira engoliu a provocação, sabendo que qualquer resposta seria um rastilho curto para uma confrontação. Havia os colaboracionistas dos japoneses, havia as seitas, estava lá todo o mundo. Aquilo era um barril de pólvora embalado ao som de uma orquestra. Em 1941 os americanos entraram na guerra, em 1943 os japoneses tinham rompido a neutralidade de Macau, atravessando as Portas do Cerco, na tentativa de apreender um navio mercante britânico. A polícia enfrentara-os, mas estes causaram 20 baixas e Macau foi forçado a tornar-se protectorado nipónico, com oficiais destacados como conselheiros. Ferreira odiava-os entranhadamente. Sentou-se numa mesa vazia. Bebeu de um trago o CRF que pedira e pensou ter sido sábio não extremar posições. A contenção custara caro ao seu ego, mas pelo menos não se viria a arrepender. Estava certo que os aliados venceriam. Pearl Harbour tinha sido em 1941 e já se estava em 1944. A súbita aparição de Silva no salão interrompeu os pensamentos de Aniceto Ferreira. Parecia procurar alguém, mas tendo encontrado o chefe, encaminhou-se na sua direcção, sempre com a mesma expressão. O Silva nascera e crescera em Macau e, na polícia, era um dos homens da sua confiança. Conhecia todos os meandros, sabia distinguir as facções, reconhecia as hierarquias das seitas, entendia a noite onde tudo acontecia. Silva, pedindo licença, sentou-se. Ali não eram obrigatórias demasiadas formalidades. Ferreira perguntou se havia novidades. “Se dá licença, sugiro sairmos daqui já. Houve um pequeno incidente…” disse Silva, oferecendo um cigarro, cigarreira de prata aberta. “O que houve?” perguntou Ferreira, incomodado por não ter trazido o revólver. Por cima do ombro viu entrarem mais dois dos seus homens, que se sentaram numa mesa perto da entrada, um deles chamando o empregado. Este inclinou-se, ouviu, aquiesceu e foi-se com a bandeja vazia. Silva respondeu que explicaria depois. Levantaram-se e saíram da sala sem incidentes. Aguardaram o elevador e a vendedora de tickets saudou Silva com um tradicional “Vai embora tão cedo, Si Sing Sáng?” Os seus outros dois homens seguiram-no silenciosamente. Fechadas as portas, saudado o comandante, o Silva confidenciou: “Meu comandante, um homem caiu lá de cima e matou um condutor de triciclo. Não é bom estar aqui”. Ferreira ouviu, imaginando mais um desgraçado a atirar-se à rua depois de perder tudo ao jogo. Morte era coisa que não faltava. Todos os dias se encontravam cadáveres pelas ruas ou vielas, mortos de fome ou assassinados. As facções guerreavam-se surdamente nas sombras da frágil trégua. À saída, um dos acompanhantes à frente e o Silva e colega a ladearem Aniceto, viraram à direita, dirigindo-se para a Rua dos Mercadores. Na outra rua que ladeava o Hotel, a rua Oeste do Mercado de S. Domingos, uma ambulância recolhia os restos da tragédia tornada quase banal. Caminharam em silêncio até ao mercado. Àquela hora e com o racionamento, poucos vultos se viam. Chegados à esquina da Travessa do Soriano, o Silva disse aos outros: “Podem ir, eu acompanho o comandante”. Silva sabia que protegendo o comandante ganharia ascendente sobre este. A comunidade militar era pequena e o incidente poderia criar embaraços desnecessários. “Meu comandante, não se preocupe, nós tratamos disto. Vá descansar”. Tinha tudo preparado e, assim que desembocaram junto à entrada do mercado, um carro insuspeito acolheu Aniceto Ferreira. “Boa noite meu comandante” despediu-se Silva. Dentro reconheceu o seu motorista. Aquele Silva era competente como o diacho, porém tinha artes de o apanhar sempre em contrapé e ser-lhe útil. Como teria ele sabido do seu paradeiro, perguntou-se. Sentiu-se vigiado. O carro seguia agora pela Praia Grande, em direcção à Av. da República. A-Leong, o motorista, conduzia sem uma palavra. Aniceto olhava o breu onde alguns tancares(4) e sampanas(5) aguardavam a maré vaza. Sentiu um vazio e questionou-se sobre o sentido do seu papel ali. Não dominava o chinês, as sombras não lhe eram familiares como eram aos seus subordinados, que conheciam as faces e as máscaras das diferentes facções. Sentiu-se enredado numa teia de guerra onde precisava, verdadeiramente, dos seus homens para agir. Suspirou, cruzou os braços e deixou-se conduzir, disposto a não lutar contra o que o ultrapassava. Como militar, tinha informações do mundo e do modo como a Guerra do Pacífico se desenrolava. Soubera que as tropas nipónicas estavam a sofrer pesadas baixas e tinham começado os voos dos kamikaze(6) contra os navios americanos na região. Era o último recurso. Porém, isso não invalidava o seu sentimento de impotência e o modo como tinha de se forçar por ignorar o que via pela cidade. A noite engoliu-o no conforto da casa e, com a ajuda de uma garrafa, mergulhou no sono do esquecimento. No centro da cidade, e porque não era só o comandante que tinha informações, a noite ficou marcada pela morte de colaboracionistas japoneses. Começava lentamente a raiar o dia do fim do conflito. (1) Violino chinês (2) Sabre militar japonês (3) Brinde em japonês, significando “copo seco”. (4) Tancar, bote muito ágil com remo na popa. (5) Sampana vem do chinês sám pán, três tábuas, largura de três tábuas. (6) Vento divino.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasProfessor e chistoso poeta José Baptista de Miranda e Lima [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] dia de hoje está ligado ao macaense poeta e professor régio José Baptista de Miranda e Lima que aos 65 anos morreu a 22 de Janeiro de 1848, sem nunca ter saído de Macau. Foi também neste dia e mês, mas do ano de 1822, que o Senado enviou uma extensa e interessante representação a El-Rei D. João VI em que, juntamente com a proposta de um novo sistema de administração para Macau, seguiam copiosas notícias da História deste estabelecimento, sendo, como consta, esta representação da autoria do professor José Miranda e Lima. Tinha sido ele a redigir, em nome dos constitucionais, uma representação ao Rei e às Cortes, pedindo a restauração do Senado ao regime anterior a 1783, quando pelas Provisões dessa data, a Rainha D. Maria I centrou os poderes nos governadores, retirando a supremacia ao Senado. José Baptista de Miranda e Lima era filho do nosso último biografado, José dos Santos Baptista e Lima, o primeiro professor régio em Macau, que desde 23 de Abril de 1775 aqui ensinou Gramática Latina e como era recorrente, em 1804 José de Miranda e Lima sucedeu-lhe como professor régio. De lembrar ter o Marquês de Pombal expulso os Jesuítas de Portugal em 1759, o que em Macau ocorreu a 5 de Julho de 1762, e sendo sobretudo estes padres a dedicarem-se ao ensino, tal criou na cidade um vazio na educação escolar. Para colmatar a expulsão dos Jesuítas do ensino, logo foi criado um sistema estatal de instrução e em 1772, o Marquês do Pombal tomou providências decretando que se nomeasse um director de Estudos, a quem competia a inspecção dos Estudos Menores e se instituíssem cadeiras de Gramática Latina. Já quando Miranda e Lima escreveu em 1822 a representação a El-Rei D. João VI, vivia-se um período conturbado e na cidade digladiavam-se duas diferentes concepções de governação, os liberais, que estavam a favor do Rei D. Pedro IV e os absolutistas, que apoiavam D. Miguel para ocupar o trono de Portugal. Nessa altura, segundo Leôncio Ferreira, a educação em Macau estava já de novo bem servida, com a escola de instrução primária a cargo da Diocese, a Academia Militar e da Marinha fundada em 1814 e o Real Colégio de S. José, herdeiro do Seminário, restabelecido em 1784 e confiado aos lazaristas. Havia ainda, segundo Leôncio Ferreira, “a existência de aulas gratuitas, regidas pelos párocos das freguesias e pelos frades dos conventos”, assim como, uma aula de Gramática portuguesa e latina e de Retórica e Filosofia dadas pelo professor régio. O biografado Esse professor régio era José Baptista de Miranda e Lima, que nasceu a 10 de Novembro de 1782 numa casa situada onde hoje é a Rua Central, na freguesia da Sé. Era filho de pai português, José dos Santos Baptista e Lima, que chegara a Macau em 1775 e aqui se casara a 23 de Janeiro de 1782 com a macaense D. Ana Pereira de Miranda. Foi o primeiro dos cinco (seis) filhos do casal e uma semana depois do seu nascimento era baptizado na Sé Catedral pelo Governador do Bispado, o Padre António Jorge Nogueira. Esmerada foi a educação de José Baptista de Miranda e Lima, não fosse o seu pai professor e querer dar aos filhos tudo o que de melhor poderia para eles conseguir. Com ele estudou Português, Latim, História, Literatura Clássica e Moderna, tendo-lhe Frei Dionísio, religioso da Ordem dos Pregadores, ensinado Filosofia e o Bispo de Macau, D. Marcelino José da Silva, Retórica e Teologia. Ainda aprendeu francês e italiano, assim como Física, Matemática, Esgrima, Música, sendo um bom jogador de xadrez. Nessa altura, o seu pai, José dos Santos Baptista e Lima, sentindo-se apertado com o magro ordenado auferido como professor régio, que não dava para condignamente sustentar tão grande filharada, complementou a sua actividade com a do comércio, que pelos anos oitenta do século XVIII encontrava-se florescente, com muitos habitantes de Macau a enriquecer rapidamente. Entregou o ministrar das aulas a um clérigo chamado António José de Sales, substituto da Escola de Ler, Escrever e Contar e com o seu barco Nossa Senhora do Rosário e Almas pelo menos desde 1785 administrava o tráfego do seu Navio, mas vê o seu sonho de riqueza naufragar em 1790. Assim passou o mestre-escola a servir os grandes mercadores da época como secretário e para isso, foi eleito a 1 de Novembro de 1795 irmão da Santa Casa da Misericórdia, sendo ainda seu escrivão e provedor. Por provisão régia de 7 de Janeiro de 1804, José Baptista de Miranda e Lima sucedeu ao seu pai como professor régio de Português e Latim do Real Colégio de S. José. No artigo do “Impulso às Letras” encontra-se descrito a compleição física de José Miranda e aí diz ter “uma nobre e respeitável presença. Era alto de corpo, grosso e direito: tinha os ombros caídos, pescoço regular, cabeça grande, cabelo nimiamente crespo, testa larga, sobrancelhas copadas, olhos à flor do rosto, negros, rasgados e vivos; nariz extraordinariamente grande e aquilino, boca mediana, barba um tanto ponteaguda, a tez do rosto alva e corada, e um ar que tendia à severidade, desmentindo o seu carácter que era naturalmente brando, pois raras vezes o vimos perder a sua serenidade habitual, mas em tais ocasiões esses ligeiros assomos de cólera imprimiam no seu semblante um aspecto verdadeiramente terrível, que ainda sem prorromper em gritos, fazia gelar de susto os discípulos”. Historiador Em 1821, após treze anos da Corte portuguesa no Rio de Janeiro no Brasil, regressou o Rei D. João VI a Lisboa. Ano em que José Baptista de Miranda e Lima se casou, a 21 de Outubro, com Ana Margarida de Oliveira Matos e de quem teve três filhos: José Maria nascido a 2 de Fevereiro de 1823, Maria de Jesus em 19 de Março de 1824 e Ana Maria Clara a 12 de Agosto de 1825. Nos finais de 1821 chegou a Macau a notícia das profundas alterações políticas em Portugal e logo a 5 de Janeiro de 1822 foi publicada por Edital a adesão de Macau à causa nacional – a Monarquia Constitucional. Segundo J. F. Marques Pereira, é de “22 de Janeiro de 1822 a extensa e interessante representação do Leal Senado de Macau a El-Rei D. João VI, em que juntamente com a proposta de um novo sistema de administração, se contêm copiosas notícias da história do estabelecimento. Esta representação (de que, segundo me consta, foi verdadeiro autor José Baptista de Miranda e Lima) nunca se arquivou no Senado, porque os indivíduos que então o compunham, tendo sido depostos pelos acontecimentos desse ano, recusaram-se a dar conhecimento dela a quem os substituiu.” Ao longo da sua vida foi Miranda Lima escrevendo sobre a História de Macau, tendo coligido “muitos cadernos de apontamentos e cópias de documentos de entre os Arquivos do Senado, da Biblioteca Episcopal, do Colégio de S. José, dos manuscritos jesuíticos recolhidos por ocasião do confisco, da Crónica de Heanxane e de diferentes obras impressas. Mas não chegou a fazer outro uso delas, senão dando-os a quem quer que lhos pedia, como a José Ignácio de Andrade, ao sueco André Ljungstedt, aos Padres da Congregação das Missões de S. José, &c.” como é referido por J. M. da Silva e Souza no artigo “Impulso às Letras”. Na “Memória dos Feitos Macaenses” de Ignácio de Andrade há um poema de 1810 com sabor camoniano escrito e cantado por Miranda Lima em homenagem a Arriaga, como libertador providencial de Macau na vitória contra a frota do pirata Cam Pao Sai. A 16 de Fevereiro de 1822, no Senado foi jurada a adesão de Macau à causa da Monarquia Constitucional. Mas a cidade já vivia um período agitado pois, ainda a 11 de Fevereiro de 1822, apareceu uma Representação assinada por 36 pessoas, que advogava uma Câmara eleita pelo povo, fazendo-se assim notar dois estares diferentes. Altura em que surgiram dois partidos em Macau. Foi a 19 de Agosto de 1822 que o Senado de Macau voltou a ficar fora da dependência do Governador, independência que tinha perdido pelas Provisões de 1783, quando a Rainha D. Maria I centrou os poderes nos governadores, retirando a supremacia ao Senado. Nesse dia, em assembleia geral sob a presidência do Governador José Osório e Albuquerque, decidiu-se que a eleição dos novos membros da Câmara seria feita por sufrágio popular e logo ali foi realizada, tendo-se elegido os novos membros do governo municipal e restaurado a independência do Senado. Assim a 19 de Agosto de 1822, com 26 votos foi José Baptista de Miranda e Lima eleito um dos dois juízes, com exercício de Ouvidor, e pertencente ao grupo de sete membros do Senado, que formaram o Governo Constitucional. No dia 24 de Agosto, o novo regime democrático foi consagrado. Em 1826, era José Baptista de Miranda e Lima o Procurador de Macau, tendo-se mostrado à altura das suas funções quando fez frente ao Prefeito de Heangshan, recusando-se a entregar o Major Favacho, que a população chinesa acusava de ter morto um rapaz chinês. Tal como o pai, também Miranda e Lima foi proprietário de uma embarcação, o brigue Feliz Viana, que se dedicava ao comércio pela costa chinesa. Chistoso poeta e adepto do Rei D. Miguel Para além de professor, juiz e procurador, António Aresta refere ainda ter sido José Baptista de Miranda e Lima Almotacé da Câmara e Presidente do Montepio de Macau, mas mais que tudo, foi poeta e historiador, quando a cidade apenas vivia pelos interesses comerciais, completamente indiferente à cultura. Para além do muito que compilou sobre a História de Macau, que não chegou a publicar, foi autor de um manuscrito em 1832 com o título “Máximas morais e civis oferecidas aos Jovens Macaenses”. Escreveu “Diálogo entre 2 Pacatos na Rua Direita na Noite de 13 de Maio de 1824”, “Ajuste de casamento de Nhi Pancha cô Nhum Vicente” de teor satírico e empregando o dialecto macaense, “Solitário” e “Alectorea”, poema em quatro cantos de 1838, inspirado em Vergílio, cujos termos gregos alector, galo e alectoris, galinha dão-lhe o título. Ainda, “Philomena Invicta” em 1841, “Eustáquio Magnânimo” e “O Desengano”, canção cujos versos ele compôs e recitou na Sociedade Filarmónica Macaense a 18 de Setembro de 1845. Do seu envolvimento político nas lutas entre os constitucionais e os miguelistas, Miranda Lima mostrava a sua simpatia pelo Rei D. Miguel, compondo poesias em sua honra e do Realismo, o que muito agradou ao rei, aclamado em Macau a 3 de Novembro de 1829. Por isso foi condecorado, tendo recebido do Senado o aviso régio de 28 de Outubro de 1831, que podia usar a medalha de ouro da real efígie de Sua Majestade. Mas quando o Rei D. Miguel foi destronado, por ser desafecto à Rainha D. Maria II, foi demitido como professor régio em 17 de Abril de 1837. Tal ocorreu devido a ter-se oposto à execução do Decreto de 1834 que determinava a extinção das Ordens Religiosas, apesar de ter já aderido por dever nacional ao regime Constitucional. A Portaria de 7 de Junho de 1836 referia: “Não convindo ao Meu Real Serviço, e ao da Nação, que José Baptista de Miranda e Lima, continue no exercício de Professor de Gramática Latina, da Cidade de Macau, pelos seus reconhecidos sentimentos de desafeição ao Meu legítimo Governo e à Carta Constitucional, hei por bem demiti-lo do referido lugar”. Em Portugal, desde a Restauração de 1833 voltara a liberdade de imprensa, o que de novo fez aparecer uma enorme quantidade de jornais, tal como aconteceu em Macau. Miranda e Lima trabalhava como censor quando a 11 de Agosto de 1842 o Conselho Geral do Leal Senado resolveu acabar com os revisores, ou censores das folhas, declarando a imprensa livre de censura. Por Ofício foi feito um agradecimento pelo trabalho de revisor a José de Miranda e Lima, Francisco José de Paiva e ao Cónego Lourenço Taveira de Lemos. Já em 1843, alguns amigos conseguiram em Lisboa que ele fosse reintegrado como professor, voltando assim ao cargo. Após a morte da sua filha Maria de Jesus com vinte anos, Miranda e Lima dedicou-lhe uma sentida canção publicada em 1845 no semanário O Solitário na China. A 22 de Janeiro de 1848 faleceu nesta cidade com 65 anos de idade o professor régio e chistoso poeta macaense José Baptista de Miranda e Lima, tendo no dia seguinte sido sepultado no Cemitério público de S. Paulo. Nascera em 10 de Novembro de 1782 e nunca saiu de Macau, sendo o seu nome justamente havido por uma das glórias dela. No ano do seu falecimento, segundo Leôncio Ferreira, só havia nesta cidade uma aula de primeiras letras e a aula que o Padre Leite dava no Colégio de S. José.
Hoje Macau Entrevista Eventos MancheteK’ang-Hsi, imperador da China, revela segredo do sucesso da sua governação [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hegou ao poder muito novo e há quem diga que existiram vários sinais que previam a sua coroação e reinado. Quer dizer aos leitores de Macau algo sobre isto? O meu nascimento foi tudo menos miraculoso – nada de extraordinário aconteceu enquanto cresci. Cheguei ao trono com oito anos. Nunca permiti que se falasse de influências sobrenaturais do género das que se encontram registadas nas Histórias: estrelas da sorte, nuvens auspiciosas, unicórnios e fénixes, a erva chih e outras bênçãos, ou queimar pérolas e jade em frente do palácio, ou livros celestes enviados para manifestar a vontade do Céu. Tudo isto não passam de palavras vãs e não posso ir tão longe nas minha presunção. Limito-me a viver cada dia de uma forma normal concentrando-me em governar bem. É fácil, durante toda a vida, exercer constantemente o poder? Dar e tirar a vida. São esses os poderes do imperador. Ele sabe que os erros dos funcionários administrativos em departamentos do governo podem ser rectificados mas que um criminoso que foi executado não pode ser ressuscitado. Assim como uma corda cortada não pode de novo ser unida. Sabe, também, que por vezes as pessoas têm de ser chamadas à moralidade através do exemplo de uma execução. Em 1683, depois da captura de Taiwan, discuti com os sábios da corte a imagem do 56º hexagrama do Livro das Mutações, “Fogo na Montanha”. A calma da montanha significa o cuidado que se deve por na imposição de penas; o fogo move-se rapidamente, queimando a erva, tal como os processos, que devem ser resolvidos com celeridade. A minha leitura é que um regente necessita ao mesmo tempo de clarividência e cuidado no castigar. A sua intenção deverá ser castigar de forma a evitar a necessidade de mais castigo. No seu tempo a corrupção era um problema. Quer falar-nos de alguns casos mais relevantes? Hu Chien-ching era um subdirector do Tribunal de Adoração Sacrificial cuja família aterrorizava a sua região natal em Kiangsu, apoderando-se de terras, mulheres e filhas alheias e assassinando pessoas depois de as acusar falsamente de roubo. Quando finalmente um cidadão vulgar conseguiu demonstrar a sua culpa, o Governador considerou o caso longamente e o Conselho de Castigos recomendou que Hu fosse demitido e exilado por três anos. Eu, por outro lado, ordenei a sua execução, com o resto da família, na sua terra natal para que todos pudessem observar a minha visão de tal comportamento. O cabo Yambu foi condenado à morte por alta corrupção nos estaleiros navais; não só concordei com a pena como enviei o oficial da guarda Uge para supervisionar a decapitação, ordenando que todo o pessoal dos estaleiros, dos generais ao mais baixo soldado, se ajoelhasse em armadura completa e ouvisse o meu aviso de que o seu destino seria a execução se não pusessem fim à sua perfídia. Mas a pena de morte… Hoje em dia há quem seja contra… Em tempo de guerra deve haver execuções para castigar a cobardia ou a desobediência. A penal capital da morte lenta deve ser aplicada em casos de traição, tal como o Código Legal determina. Está então à vontade quando envia um homem para a morte? De entre as coisas que considero desagradáveis, nenhuma outra é pior do que dar o veredicto final sobre as sentenças de morte que me são enviadas para ratificação depois das sessões de Outono. Os relatórios de julgamento devem ser todos verificados pelos Secretários Superiores, no entanto, encontram-se ainda erros de caligrafia, ou mesmo passagens inteiras incorrectamente escritas. Isto é indesculpável quando se lida com a vida e a morte. Apesar de, naturalmente, me ser impossível examinar cada caso em pormenor, tenho, ainda assim, o hábito de ler as listas no palácio todos os anos, verificando o nome, registo e estatuto de cada homem condenado à morte e a razão por que lhe foi aplicada tal pena. Depois, verifico de novo a lista na sala de audiências com os Secretários Superiores e o seu pessoal, decidindo quais podem ser poupados. Quando julga alguém, que princípios aplica? É um bom princípio procurar sempre os aspectos bons de uma pessoa ignorando os maus. Quando se suspeita constantemente das pessoas estas acabam por suspeitar de nós. Mesmo quando se trata de Chineses (han)? Tentei ser imparcial entre Manchu e Chineses, não os separando nos julgamentos. Mas confiava plenamente nos seus oficiais chineses? Avisaram-me para não nomear o Almirante Shih Lang para liderar a campanha contra Taiwan por ter servido antes a Dinastia Ming e tambémo rebelde Coxinga e, logo, poder revoltar-se se lhe desse navios e tropas. Mas uma vez que os restantes almirantes Chineses asseguravam que Taiwan nunca seria tomada, chamei Shih Lang para uma audiência e disse-lhe pessoalmente: “Na corte dizem que te revoltarás quando chegares a Taiwan. É minha opinião que enquanto não fores enviado a Taiwan a ilha não será pacificada. Não te revoltarás, garanto-te.” Shih Lang capturou Taiwan num ápice e provou ser um oficial leal. Apesar de arrogante e desprovido de instrução, compensou esses defeitos pela prontidão e ferocidade das suas capacidades militares. Os seus dois filhos têm-me servido com distinção. Qual a sua visão sobre a queda da dinastia Ming? Passaram-se coisas absurdas durante os Ming: quando, no fim da dinastia, o Imperador Ch’ung-chen aprendeu a montar tinha dois homens para segurarem o freio, dois para os estribos e dois para o arreio de garupa – mesmo assim caiu mandando aplicar quarenta chicotadas ao cavalo e enviando-o para trabalhos forçados num posto militar. Do mesmo modo, quando uma pedra para ser usada na construção do palácio não passava na Porta Wu-men, Ch’ung-chen mandava aplicar-lhe sessenta chicotadas. Alguma loucura… mas os seus ritos imperiais também exageram… O imperador tem de suportar o elogio com que o cobrem e que enche os seus ouvidos e que não lhe é de melhor uso do que a chamada “medicina-restaurativa”. Essas banalidades evasivas asseguram o mesmo sustento que a pastelaria fina e rapidamente se tornam enjoativas. A balofice, pelos vistos, não funciona consigo. E exageros intelectuais também não. Se desejar, conhecer algo tem de o observar ou experimentar em pessoa. Se afirma conhecer algo com base em ouvir dizer, ou por o descobrir num livro, será motivo de riso para aqueles que realmente conhecem. Demasiadas pessoas afirmam conhecer as coisas quando, na verdade, nada sabem acerca delas. Desde a minha infância tenho procurado descobrir as coisas por mim mesmo em vez de fingir possuir conhecimento quando ignorante. Sempre que me encontrava com pessoas mais velhas inquiria acerca das suas experiências e recordava o que me diziam. Mantenha uma mente aberta e aprenderá coisas. Perderá as boas qualidades dos outros se apenas se concentrar nas suas próprias capacidades. Para si, a experiência parece ser fundamental. A nossa ideia de princípio deriva mais da experiência do que do estudo, embora devamos dedicar a mesma atenção a ambos. Afinal, muitas pessoas chamam antiguidades a velhos recipientes de porcelana mas se pensarmos em recipientes do ponto de vista do princípio sabemos que foram a dada altura feitos para ser usados. Apenas no presente nos parecem gastos e impróprios para deles bebermos e, por fim, acabamos por colocá-los nas nossas secretárias ou prateleiras, contemplando-os de quando em vez. Por outro lado, podemos alterar a função de um objecto e, portanto, alterar a sua natureza. Como fiz ao converter uma espada inoxidável que os Holandeses certa vez me ofereceram numa régua que mantinha sobre a minha secretária. Tal como o Jesuíta António Tomás observou, tratou-se de converter algo que transmitia medo em algo que proporcionava prazer. O raro pode tornar-se comum, como acontece com os leões e animais que os embaixadores estrangeiros gostam de nos oferecer e a que os meus filhos se acostumaram. Na guerra é a experiência da acção que conta. Os chamados Sete Clássicos Militares estão recheados de disparates sobre água e fogo, presságios e conselhos sobre o tempo, todos aleatórios e em contradição. Disse uma vez aos meus oficiais que quem seguisse estes livros nunca ganharia uma batalha. Falou de um jesuíta. Vários frequentaram a sua corte. Aprendeu muito com eles, sobretudo na Matemática e Astronomia? Apesar dos métodos Ocidentais serem diferentes dos nossos, podendo mesmo ser vistos como um seu melhoramento, há neles pouco de inovador. Os princípios da Matemática derivam todos do Livro das Mutações e os métodos Ocidentais são de origem Chinesa: a Álgebra – “A-erh-chu-pa-erh”– nasce de uma palavra Oriental. Claro, tudo tem origem na China… Mas esses jesuítas tentavam conhecer a cultura chinesa. Nenhum dos Ocidentais está realmente à vontade com a literatura chinesa – à excepção talvez do Jesuíta Bouvet, que leu muito e desenvolveu a capacidade de conduzir um estudo sério do Livro das Mutações. Muitas vezes não conseguimos impedir sorrir quando eles iniciam uma discussão. Como podem falar acerca “dos grandes princípios da China”? Por vezes, agem erroneamente por não estarem acostumados aos nossos hábitos, outras vezes são induzidos em erro por Chineses ignorantes – o enviado papal, de Tournon, usava caracteres mal escritos nos seus memorandos, empregava frases impróprias e assim em diante. Estou a ver que ainda não esqueceu a Questão dos Ritos, na qual discordou com o Cardeal de Tournon. Sobre a questão dos Ritos Chineses que podiam ser praticados pelos missionários Ocidentais, de Tournon recusou-se a falar, embora lhe tivesse enviado mensagens repetidamente. Concordei com a fórmula que os padres de Pequim estabeleceram em 1700: que Confúcio era honrado pelos Chineses como um mestre mas que o seu nome não era invocado em oração com o propósito de obter felicidade, promoções ou riqueza; que o culto dos antepassados era uma expressão de amor e recordação filial, cuja intenção não era obter protecção para o autor do culto e de que não havia a ideia de que ao erguer uma tábua ao antepassado a sua alma nela residia. Quando eram oferecidos sacrifícios aos Céus estes não eram endereçados ao céu azul, mas sim ao senhor e criador de todas as coisas. Se de Tournon não respondeu, o Bispo Maigrot fê-lo dizendo-me que o Céu é uma coisa material e não devia ser adorada e que se devia apenas invocar o nome de “Senhor do Céu” para mostrar a reverência apropriada. Maigrot não era somente ignorante da literatura Chinesa: não conseguia sequer reconhecer os mais simples caracteres chineses. No entanto, decidiu discutir a falsidade do sistema moral Chinês. O Papa queria impor-lhe um representante, não é verdade? Não compreendo o que quereis dizer com ‘um homem da confiança do Papa’. Na China, ao escolhermos pessoas não fazemos tais distinções. Alguns estão próximos do meu trono, outros a meia distância e outros mais longe. Mas a qual deles poderia confiar qualquer incumbência se houvesse a mais pequena falha da devida lealdade? Quem de entre vós se atreveria a enganar o Papa? A vossa religião proíbe-vos de mentir, aquele que mente ofende a Deus. O enviado respondeu: “Os missionários que aqui habitam são homens honestos, mas falta-lhes o conhecimento interno da Corte Papal. Muitos enviados de outros países convergem para Roma, sendo experientes em negociações e, por isso, preferíveis aos que aqui se encontram.” Então disse-lhe: “Se o Papa mandasse um homem de conduta impecável e dons espirituais tão excelentes quanto os dos Ocidentais que aqui estão agora, um homem que não interferisse com os outros ou os tentasse dominar, ele seria recebido com a mesma hospitalidade que os outros. Mas se dermos a um tal homem poder sobre os outros, como haveis solicitado, haverão muitas e sérias dificuldades. Encontrastes aqui Ocidentais que passaram quarenta anos connosco e, se mesmo esses ainda não têm um conhecimento perfeito dos assuntos imperiais, como poderia alguém tão recentemente transplantado do Ocidente fazer melhor? Ser-me-ia impossível dar-me com ele como me dou com estes. Precisaria de um intérprete, o que implica desconfiança e embaraço. Um tal homem nunca estaria livre de erro e, se fosse nomeado líder de todos, teria de suportar qualquer culpa incorrida pelos restantes e pagar o preço de acordo com os nossos costumes.” A verdade é que Vossa Excelência nunca foi convertido ao catolicismo. As suas palavras não eram diferentes dos mais tresloucados ou impróprios ensinamentos de Budistas e Taoístas, porque deveriam ser tratados de forma diferente? Então se não acredita no Deus cristão, pelo menos acredita no destino? O destino surge das nossas mentes e a nossa felicidade é procurada em nós mesmos. Daí serem feitas previsões a partir do curso dos planetas acerca do casamento e da fortuna, descendentes, carreira e o passar dos anos – no entanto, estas previsões não chegam muitas vezes a realizar-se na experiência posterior. E isto porque se não desempenharmos o nosso papel humano não poderemos compreender o caminho do Céu. Se o astrólogo diz que serás bem sucedido, poderás então dizer: “Estou destinado a sair-me bem e posso dispensar os estudos?” Se aquele afirma que enriquecerás, poderás sentar-te e aguardar a riqueza? Se te oferece uma vida livre de desgraça, poderás ser temerário? Ou ser debochado sem risco apenas por que diz que viverás muito e em saúde? Como encara o seu reinado? Estou a aproximar-me dos setenta e os meus filhos, netos e bisnetos são mais de 150. O país está relativamente em paz e o mundo está em paz. Mesmo que não tenhamos melhorado todas as maneiras e costumes e tornado toda a gente próspera e feliz, trabalhei com incessante diligência e intensa vigilância, nunca descansando, nunca ocioso. Durante décadas exauri todas as minhas forças, dia após dia. Como poderia tudo isso ser resumido numa frase de duas palavras como “trabalho árduo”? Deixa uma extraordinária herança. Qual foi o seu segredo? Todos os Antigos costumavam dizer que o Imperador se devia preocupar com princípios gerais mas que não devia lidar com pormenores. Não posso concordar com isto. O tratamento descuidado de um assunto pode trazer consequências nefastas ao mundo inteiro, um momento de distracção pode causar danos a todas as gerações futuras. A falta de atenção aos pormenores acabará por colocar em risco as nossas maiores virtudes. Por isso dedico sempre a maior atenção aos pormenores. Por exemplo, se negligenciar alguns assuntos hoje e os deixar por resolver, amanhã existirão mais assuntos para resolver. Está portanto satisfeito com o seu desempenho? Desfrutei a veneração do meu país e as riquezas do mundo. Não há objecto que não possua, nada que não tenha experimentado. Mas agora que atingi a velhice não consigo parar nem um momento. Por isso, considero o país como um sandália usada e todas as riquezas como lama e areia. Se morrer sem que tenha havido uma erupção de distúrbios, os meus desejos terão sido satisfeitos. Desejo que todos vós oficiais se recordem que fui o Filho do Céu portador da paz por mais de 50 anos e o que vos repeti, vez após vez, foi realmente sincero. Então, isso terá completado um fim digno da minha vida. Nada mais direi. Na próxima segunda-feira, a Livros do Meio lança “Imperador da China – Autobiografia de K’ang-Hsi”, na Fundação Rui Cunha, pelas 18h30. A apresentação da obra será feita por Carlos Morais José.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEscola Comercial | Portugueses, macaenses, malteses às vezes A 8 de Janeiro de 1878 foi inaugurada a Escola Comercial, criada por iniciativa da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Título apenas para assinalar o dia do seu aniversário, mas sem pretensão de fazer aqui a História desta Escola. Eis, resumidamente, o trajecto que a Educação teve em Macau, ligando a Escola Comercial às outras escolas de matriz portuguesa, até à incorporação na Escola Portuguesa de Macau [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] ensino estivera a cargo quase exclusivamente dos jesuítas desde o século XVI, até que estes foram presos e expulsos de Macau em 1762, por ordem do Marquês do Pombal. O Seminário de S. José, por eles fundado apenas em 1728, via assim sair os professores jesuítas expulsos de Macau, o que deixava a cidade sem verdadeiras escolas, tal como sem Universidade, a primeira a existir no Extremo Oriente. É o fim do primeiro período do ensino em Macau, que Aureliano Barata propõe como tendo acontecido entre 1572 e 1772, havendo a “exclusividade do Ensino por parte da Igreja Católica”. O desembargador-ouvidor Lázaro da Silva Ferreira escreveu para o Governo da Índia em Dezembro de 1784 a dizer que, como conta J. C. Soares, “depois da extinção dos Jesuítas cessaram aqui as escolas. Não houve mais uma cadeira de latinidade, nenhuma de moral ou teologia. Quem quis aprender foi a Manila, alguns para Goa e outros a quem os meios faltavam ficaram aqui, ouvindo lições de algum clérigo antigo…” Mas Lázaro da Silva Ferreira sabia que isso não era inteiramente verdade pois, nessa altura e já desde 1775, havia em Macau um professor de Gramática Latina, José dos Santos Baptista e Lima, que veio de Portugal, sendo o primeiro professor secular de nomeação régia. Acrescentava Lázaro da Silva Ferreira: “O professor régio com ordenado de 500 taéis ainda não formou um só estudante bom. As religiosas não dão aulas, nem estes conventos têm mestres”. Nota-se aqui um mote dado ao seu amigo, o poeta Bocage. Para este segundo período, Aureliano Barata refere ter ocorrido entre 1772 e 1835, acontecendo o “predomínio do ensino público pombalino e início da expansão da rede particular de ensino privado, em língua chinesa”. Até 1784, a educação em Macau vai sempre caindo em qualidade, apesar do Senado a 23 de Dezembro de 1778 solicitar ao Governador da Índia a criação de cinco escolas de ler e escrever, de gramática latina, filosofia, moral e teologia. Os dominicanos abriram uma escola no Convento de S. Domingos e devido à expulsão dos Jesuítas, o Seminário de S. José em 1784 foi restabelecido e confiado aos lazaristas. Como Colégio de S. José nesse primeiro ano teve apenas oito alunos. Nos anos seguintes chegaram de Goa para aí leccionar os padres Manuel Corrêa Valente, João Agostinho Villa, a que se agregaram outros dois vindos de Portugal. Segundo Ljungstedt em 1815 estavam no Colégio oito jovens chineses, dois malaios e dezasseis rapazes nascidos em Macau e em 1831, sete jovens chineses, dois de Manila, cujos pais eram portugueses e treze nascidos em Macau. Leôncio Ferreira referiu “a existência de aulas gratuitas, regidas pelos párocos das freguesias e pelos frades dos conventos, especialmente o de S. Domingos, que tinham uma boa escola.” Vila-Francada em Macau Era Macau ainda um importantíssimo porto de comércio, com uma razoável frota e pela necessidade de haver bons pilotos nas embarcações, foi em 1814 fundada a Academia Militar e da Marinha. Fechou em 1823, pois os lentes do primeiro e segundo ano, respectivamente o tenente-coronel Paulino da Silva Barbosa e o Major António Cavalcante de Albuquerque, foram presos e enviados para Goa, enquanto o lente do terceiro ano, José de Sousa Corrêa, vendo-se só, pediu e obteve o seu regresso a Portugal. Tal deveu-se à queda do Governo Constitucional a 23 de Setembro de 1823, quando se deu a revolta contra os liberal e colocou-se Macau, entre 1823 até 1825, a ser governado pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau Frei Francisco de N. Sra. da Luz Chacim. Juntamente com outros liberais, fugiu também o principal mestre do Convento de S. Domingos, Fr. Gonçalo de Amarante, (o redactor principal do primeiro jornal de Macau, Abelha da China, que de cariz liberal era um semanário criado por Paulino da Silva Barbosa, o chefe do partido constitucional, mas com a tomada do poder pelos conservadores, por ordem judicial do Governo Provisório miguelista mandou-se queimar publicamente às portas da Ouvidoria o jornal de 28-8-1823), que após se refugiar em Cantão, sem esperança de regressar a Macau, algum tempo depois embarcou para Calcutá, onde morreu. A Revolução Liberal começara em 1820 e advogava para Portugal a implantação da Monarquia Constitucional. Em Macau, como espelho do que se passava em Portugal, em 1822 surgiram dois partidos: o dos conservadores, chefiado pelo Ouvidor Miguel de Arriaga e o dos liberais, pelo tenente-coronel (ou major) Paulino da Silva Barbosa, tendo ao seu lado os dominicanos. Em 5 de Janeiro de 1822 foi publicada por Edital a adesão de Macau à causa da Monarquia Constitucional, que em meados de Fevereiro foi jurada pelos macaenses no Leal Senado da Câmara. Os lazaristas tinham aderido ao constitucionalismo, mas este movimento sufocado em 23 de Setembro de 1823 foi substituído pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau, Frei Chacim. Os lazaristas protestaram e em 4 de Outubro de 1823 foram presos três professores do Colégio. Joaquim Afonso Gonçalves e Luís Álvares Gonzaga fugiram para Manila, regressando poucos anos depois, talvez em 1825, onde continuaram a leccionar no Real Colégio de S. José (o antigo Seminário), que agora tinha na direcção o Padre Nicolau Rodrigues Borja. Por aí passou Jerónimo José da Mata, primeiro, em 1826 como aluno, onde terminou os seus estudos e nos anos trinta do século XIX como professor. Em Portugal a 1823, com a Vila-Francada, inicia-se a guerra civil entre miguelistas e liberais. A luta pelo poder era entre os Constitucionais, partidários de D. João VI e D. Pedro, que defendiam as ideias liberais e os Conservadores Miguelistas, que pretendiam continuar no sistema do governo tradicional proclamado por D. Miguel, filho mais novo de D. João VI. A primeira Constituição Portuguesa foi criada em 1822 e esteve em vigência por dois períodos: o primeiro, promulgado a 23 de Setembro de 1822 vigorou até 2 de Junho de 1823, quando as Cortes, após o golpe de D. Miguel a 29 de Maio de 1823, desistiram e deixaram cair a Constituição; o segundo começou com a Revolução de Setembro de 1836 (reconhecida por Revolução Setembrista), que transitoriamente repôs por decreto a Constituição de 1822 e aboliu a Carta Constitucional. Após D. João VI morrer, a 10 de Março de 1826, o seu sucessor, seu filho D. Pedro IV outorgou a 29 de Abril de 1826 uma nova Carta Constitucional, que seguia o modelo francês, o da Carta Constitucional outorgada por Luís XVIII. Também por decreto de 28 de Maio de 1834 foram suprimidas em Portugal todas as ordens religiosas e congregações, mas só após dois anos a Congregação da Missão (lazaristas) foi dissolvida em Macau, devido à oposição para a execução do decreto do Padre Joaquim José Leite, procurador das Missões e Superior. Os padres que aqui leccionavam tornaram-se seculares e continuaram a ensinar no Colégio. Assim existiram as escolas régias, até que em 1836, com a vitória do Liberalismo, surgiu um novo modelo de ensino público oficial baseado no sistema francês e novas escolas de iniciativa privada apareceram. Iniciativas privadas Abre-se o terceiro período, que para Aureliano Barata aconteceu entre 1835 e 1894, sendo de “grandes reformas do Liberalismo, com a introdução de órgãos mais especializados de supervisão do ensino. Início do ensino secundário, público e privado, em Macau”. A 16 de Junho de 1847 foi inaugurada a Escola Principal de Instrução Primária, fundada pelo Senado por meio duma subscrição e com o donativo de cinco mil patacas que o negociante inglês James Matheson ofereceu, por ocasião da sua retirada para a Europa. Mais tarde a essa verba juntou-se quatro mil patacas produto da venda anual da lotaria para ajudar a pagar aos professores. Situada em metade das casas do Recolhimento de S. Rosa de Lima, a Escola Principal de Instrução Primária foi confiada à direcção do macaense padre secular Jorge António Lopes da Silva, que aceitou “ser um dos mestres de primeiras letras com o ordenado de 350 patacas anuais, pondo as seguintes condições: 1) levar consigo os meninos que estudavam em sua casa; 2) os requerimentos para admissão deveriam ser dirigidos não a ele, mas ao Senado; 3) que se alterasse o horário de inverno, pois o tempo do meio-dia às 2 horas lhe parecia curto para descanso de professores e alunos”, como salienta Manuel Teixeira. E com ele continuando: “A escola compreendia três cadeiras; uma de ensino primário, a cargo de Joaquim Gil Pereira, outra de português a cargo do próprio Padre Jorge Lopes da Silva e outra de inglês e francês a cargo de José Vicente Pereira” e chegou a ter trezentos alunos. A Escola esteve no Convento de S. Francisco entre 1 de Maio a 20 de Junho de 1849 mas, como foi necessário aí aquartelar a força auxiliar vinda de Goa, teve de regressar de novo às casas do Recolhimento, começando então a pagar uma renda anual de 75 patacas. Era “onde grande número de órfãos pobres e desvalidos recebiam gratuitamente uma regular educação que se tornava de maior transcendência à vista da decadência de outros estabelecimentos da instrução pública que outrora prestaram grandes serviços” palavras do Senado ao Governador de Macau Isidoro Francisco Guimarães (1851-1863). Os fundos angariados pela comunidade macaense para a manutenção da Escola Pública eram provenientes do produto da venda de uma lotaria que desde 20 de Setembro de 1852, o Leal Senado foi autorizado anualmente a organizar. Também em benefício desta Escola em 14 de Novembro de 1854 foi feito um Bazar nas casas da Câmara, que rendeu $1073.83. Nos finais de 1853, o Padre Jorge Lopes da Silva, nascido em Macau a 8 de Maio de 1817 e ordenado em Manila com 24 anos de idade, pediu a demissão após sete anos à frente da Escola. Para o seu lugar veio para a direcção da Escola o Padre Vitorino José de Sousa Almeida. Por portarias do Ministério do Ultramar, o Governador Isidoro Guimarães propôs que a Escola Principal de Instrução Primária fosse a 3 de Novembro de 1858 reunida à do Seminário, onde existia também a instrução primária. Algo recusado antes de 1847 quando, para a fundação da Escola Principal de Instrução Primária, o Senado, por não ter um local para estabelecer um Estudo público, propusera ao Colégio de S. José, que lhe facultasse “algumas salas para ensinar a ler, escrever e contar, doutrina cristã, gramática portuguesa, aritmética, elementos de álgebra e geometria, história geral e particular de Portugal” Padre Manuel Teixeira. Já a Nova Escola Macaense, idealizada pelo Barão de Cercal, António Alexandrino de Melo, foi inaugurada a 5 de Janeiro de 1862 e contou com três professores contratados na Metrópole, mas fechou em 21 de Outubro de 1867, quando terminaram os contratos de seis anos feitos com os professores. Ao encontrar o Colégio de S. José apenas com um aluno interno e outros oito ou nove externos, o Bispo de Macau D. Jerónimo José da Mata em 1862 pediu para voltar este estabelecimento de ensino a receber professores jesuítas. Assim chegaram os padres Francisco Xavier Rôndina e José Joaquim da Fonseca Matos e em dez anos, com um “escolhido corpo docente” transformaram o Seminário numa das melhores e exemplares escolas de toda a Ásia. Atraídos por bons professores de diversas nacionalidades, a afluência de alunos era grande, apesar de a maioria não fazer intenção de seguir a vida sacerdotal e assim, quando terminaram o curso, muitos ocuparam lugares de destaque na Administração de Macau.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTentativa inglesa de ocupar Macau [dropcap style=’circle’]É[/dropcap] pelos documentos chineses, as chapas, trocados entre mandarins chineses e a resposta do Imperador Jiaqing durante a invasão inglesa de Macau em 1808, que Marques Pereira nos apresenta a visão oficial da China sobre os invasores. No princípio do século XIX, por três vezes a Inglaterra tentou tomar Macau, sempre com o pretexto de vir ajudar os portugueses de uma hipotética invasão dos franceses. Mas, tal como os portugueses se opunham a tal ajuda, também os chineses não viam com bons olhos esse auxílio. A 21 de Setembro de 1808, os ingleses aqui desembarcaram e os mandarins de Guangdong enviaram vários recados contra essa estadia, só entendidos quando os chineses cessaram o comércio com a Companhia Inglesa das Índias Orientais e por isso, para conseguir reatar o comércio em Cantão, os britânicos retiraram de Macau. A 12 de Outubro de 1808, a chapa dirigida pelo mandarim da Casa Branca ao Vice-Rei de Cantão diz: Ao presente os ingleses têm vinte e tantos navios, ou mais, bloqueando Manila, que fica distante da ilha do Ladrão quarenta e oito kings (1440 km). Portanto o expediente de cortar os víveres a Macau não é suficiente para obrigar os ingleses a ceder. Os soldados ingleses em terra são muito fracos, nada podem, mas as suas armas de fogo são em verdade terríveis. As suas bombas de ferro, de dez, três e duas mil libras de peso, são inumeráveis. Têm também muitas de bronze, e algumas montadas em carretas de rodas com seus aparelhos completos, e podem cursar até à distância de dez, a vinte lis (5 a 10 km). Além disto trazem eles espingardas, que por si mesmas dão fogo, sem ser necessário aplicar-lhes o morrão. Têm igualmente máquinas de fogo e água, e as suas bombas para acudir a incêndios podem alcançar a cem e a duzentos côvados de distância. Também trouxeram morteiros para arremessar bombas e expugnar cidades. Conduziram mais de trezentas tendas de campanha, que armaram desde S. Paulo até Patane, de sorte que estão resolvidos a não sair de Macau, e têm já segurado todos os lugares, guarnecendo-os com soldados e armas de fogo. Além do sobredito, também tenho sido informado de como catorze reinos, que os ingleses antecedentemente dominavam, quase todos têm seguido o partido da França, e agora só restam debaixo do seu governo Malaca, Pinão e Tipú. Madrasta e Bengala, que são as duas terras principais escolhidas pelo seu rei para capitães, são comunicáveis por terra. (Archivo da Procuratura.) Segundo Gonzaga Gomes, a 16 de Outubro, “as autoridades chinesas pediram, com insistência, ao Governo de Macau, que fizesse sair da cidade as tropas inglesas que aqui haviam desembarcado”. Cinco dias depois, “principiaram os distúrbios entre os chineses e os soldados da força inglesa. O Procurador Manuel Pereira oficiou aos mandarins de Hèong-sán e Casa Branca, pedindo providências para a repressão dos chineses. Os mandarins responderam que não eram precisas leis para castigar crimes que não deviam existir no império, que embarcassem os ingleses e tudo ficaria remediado”. Mas só a 23 de Outubro, “o Vice-Rei Chiun-Kuan, em seu nome e das mais autoridades superiores de Cantão, participou ao Imperador o desembarque das tropas inglesas em Macau, dando também conta das providências que tomara, sem resultado, para constranger o almirante Drury a pôr termo a essa ocupação.” Pedido aos ingleses para abandonar Macau Segundo refere Marques Pereira, cada dia que passava desde a permanência das tropas ingleses em Macau, cresciam as dificuldades e por isso, os sobrecargas da companhia inglesa (Roberts, Patle, Brameston, Helphinstone e Baring) escreveram em 29 de Outubro ao Governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria, queixando-se que ele não promovia entre os habitantes de Macau a simpatia que era devida ao auxílio britânico, nem expunha às autoridades chinesas os justos motivos da ocupação. No dia 30, respondeu-lhes Bernardo Aleixo: «Entre as difculdades que vos fiz antever, citei a inevitável complicação com os chineses. Tenho conhecimento do sistema do seu governo por longa experiência adquirida na prática; sei os vínculos que os unem a esta cidade e por isso previ o mau resultado da vossa empresa. Falei-vos com franqueza, e fui considerado como desafecto aos vossos projectos. (…) O senado trabalha para que não sejam reputados sinistros os fins da vossa expedição. Se tem havido desconfiança nos mandarins, não é motivada por este governo, pois tem patenteado com franqueza a sua correspondência.» Os sobrecargas replicaram a 31 de Outubro: «A carta de V. Ex.a encheu de mágoa os nossos corações pelas circunstâncias em que se acham os habitantes de Macau. Tudo nasceu do comportamento do Senado. Se adoptasse o nosso sistema não teria agora de ver essas lástimas. (…) Em verdade dissemos que o almirante removeria todos os obstáculos em Cantão. Assim aconteceria se o governo de Macau se unisse cordialmente com o almirante. Os esforços que V. Ex.a promete empregar em suas representações ao governo chinês são para nós de grande valor. Sabemos que hão-de produzir bom efeito. Estamos persuadidos de que só o governo de Macau pode remover as presentes dificuldades e misérias.» Retirada inglesa A chapa de 4 de Dezembro de 1808, enviada pelo Vice-Rei das duas províncias do Guangdong e do Guangxi ao Almirante inglês William Drury e ao primeiro sobrecarga da Companhia Inglesa, refere o despacho do Imperador Jiaqing (1796-1820) que está concebida nos termos seguintes: «Eu o mandarim Vú, (…) por esta declaro e faço saber a todos que, constando- -me haverem entrado em Macau tropas inglesas, dei parte desse acontecimen- to a sua majestade o imperador, cujo despacho, ou decreto, que ao presente recebi, é do teor que vai ler-se: O sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão me deram parte de haverem as tropas inglesas entrado sem permissão em Macau. Esses ingleses, pretextando haverem os franceses invadido e senhoreado o reino de Portugal, seu íntimo aliado, dizem que, receando que os portugueses residentes em Macau sejam atacados pelos franceses e que o seu comércio seja embaraçado, enviaram um chefe conduzindo soldados da sua nação e navios de guerra para os ajudarem a defender-se, e também para protegerem o seu próprio comércio. Nenhuma destas palavras se pode acreditar, pois nunca houve tal costume. A tal respeito ordeno por tanto que, se os ditos soldados e navios estrangeiros tiverem já ao presente evacuado Macau, esta pendência se haja por nda; mas, se ainda não tiverem saído, logo se expeça ordem ao sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão, para que enviem escolhidos mandarins de letras e de armas, que irão como delegados a Macau intimar este decreto, e os mesmos delegados rigorosamente repreendam e castiguem, segundo as leis proibitivas da celestial dinastia, com suma severidade e sem indulgência, para com este exemplo se evitarem semelhantes atentados. Na ocorrência de inimizade entre os portugueses e franceses, ainda que eles se combatam e matem, como isto acontece fora dos limites do império, não se intromete este nas suas contendas, nem lhes vai perguntar o motivo delas. Como porém nestes anos os estrangeiros de remotas regiões andam em guerras, se os de dois reinos entre si inimigos, combatendo-se e matando-se reciprocamente, chegarem às portas deste império e solicitarem algum adjutório, ou alívio, prestar-lho-ei sem dúvida, conforme a minha costumada piedade, mas sem a menor paixão por nenhuma das partes contendentes. O império da China, como os demais reinos estrangeiros, todos têm marcados os seus limites de território. Devem lembrar-se de que os navios da China jamais sulcam os mares em distância, desde que foram aos países estrangeiros demarcar os respectivos limites, ao passo que os navios europeus de guerra têm ousado aproximar-se a Macau, desembarcando ai os seus soldados, o que é uma ambição e cegueira extrema. Em quanto a alegarem que vieram para auxiliar os portugueses de Macau, receando que eles sejam atacados pelos franceses, – porventura ignoram que, habitando esses portugueses o território do império, nunca os franceses se os mesmos franceses tentassem ofender as leis da celestial dinastia, nunca as mesmas leis lho perdoariam? E que não haveria indulgência alguma para com eles, antes, pelo contrário, seriam logo destacados robustos e valorosos soldados para os combater, devastar e matar? – Sabendo-se isto, por que razão se enviaram soldados para virem prestar semelhante auxílio e protecção? Pelo que respeita ao outro motivo alegado de se achar a costa infestada por piratas, e assim desejarem fazer serviços a este império, – devem saber que a celestial dinastia não carece de tal adjutório… Que necessidade temos pois do seu pretendido auxilio? É manifesto que a razão da sua vinda é que, tendo visto o comércio que fazem os portugueses residentes em Macau, querem aproveitar a oportunidade que lhes oferecem as suas débeis forças, e pretendem, a título de protecção, apoderar-se de aquele território, – o que é contra as leis da celeste dinastia. Os embaixadores da Inglaterra têm trazido presentes ao imperador celeste, e sempre se têm portado com todo o respeito e veneração. Desta vez porem os ingleses tem-se comportado nesciamente, infringindo ao mesmo tempo e gravemente as ordenações. Na verdade excederam os limites da razão. Convém portanto fazer-se-lhes saber que se arrependidos souberem temer e retirarem com a maior brevidade os seus soldados, enviando-os para a sua terra, ainda poderá ser relevada a culpa e admitir-se a continuação do comércio. Porem, se persistirem na demora, sem obediência às leis, não só continuarão a ser-lhes fechadas as escotilhas dos seus navios, mas também se lhes mandará fechar entrada de Macau, privando-os de mantimentos. Enviar-se-ão além disto numerosas tropas para os cercar e prender. Então se arrependerão sem remédio. (…) Se vós, os chefes dos ditos estrangeiros souberdes temer e vos arrependerdes, mandando sair os soldados, poderei então dar parte ao meu grande imperador, rogando-lhe que, por muito especial graça, vos permita a continuação do vosso comércio. Mas se, pertinazes e obcecados, não mudardes de sentimentos e insistirdes na demora, não me restará então outro expediente mais do que, obedecendo ao imperial decreto, dispor e ajuntar um numeroso exército, com o qual vos mandarei cercar e prender a todos. Obedecei pois prontamente, para não vos arrependerdes depois.» Marques Pereira refere ter achado esta tradução numa colecção particular de manuscritos, que “hoje me pertence. Ai se diz que a foi entregue em mão própria, neste mesmo dia 4 de Dezembro, em uma das ilhas deste arquipélago, vizinha de Hang-fui, ao primeiro sobrecarga da Companhia, Roberts, pelo governador da cidade de Cantão e por um mandarim militar de graduação superior, os quais todos se reuniram ali para o acto, achando-se presentes os capitães dos navios da Companhia.” Gonzaga Gomes adita que a 17 de Dezembro o Ouvidor Arriaga conseguiu fazer reembarcar o corpo expedicionário inglês do almirante Drury. Mas segundo Montalto de Jesus: “A 18 de Dezembro o mandarim de Heangshan informou o procurador de que se à meia-noite ainda lá estivessem as tropas inglesas, o exército chinês entraria em Macau, em conformidade com o decreto imperial. O embarque, que estava então a ser feito, completou-se a 19, para alívio e alegria da cidade. Então, o mandarim insistiu na imediata partida do esquadrão. Antes de partir o contra-almirante Drury manifestou o seu reconhecimento a Lemos Faria, cujas declarações, admitia ele agora, eram verdadeiras e justas.” A 1 de Janeiro de 1809, o Vice-Rei de Cantão fez “saber a todos os europeus que, por desembarcarem soldados ingleses em Macau, jamais se lhes devia permitir comerciar neste império. Contudo, lembrando-nos que o seu rei oferecera tributo ao nosso imperador, relevamos a ofensa que nos fizeram pela sua entrada em Macau. Agora, depois de enviarem os soldados às suas terras, pedem os sobrecargas, arrependidos, perdão com muita humildade, afim de se lhes permitir comerciar neste império. Conhecendo a misericórdia do nosso imperador, cedemos às repetidas súplicas das sobrecargas, deixando que desembarquem as suas mercadorias e possam vende-las nesta cidade. Devem receber esta graça como um benefício extraordinário. Vê-se que as leis chinesas têm enfraquecido com o tempo; mas no futuro haverá mais rigor. De aqui em diante, se algum europeu se atrever a quebrar as leis do império, será expulso para sempre.” Quarenta anos após este episódio, os ingleses vieram fazer guerra à China, ficando ela conhecida pela I Guerra do Ópio.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesTao-Confúcio [dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente tenho ciberneticamente explorado sobre a sexologia taoísta que levou a uma pertinente preocupação das influências para o sexo que se faz na China. Se no mundo ocidental temos a igreja e as revistas cor-de-rosa a insistir em certos entendimentos sexuais, muitos deles que se caracterizam pela sua castração e repressão; da China histórica, encontramos muito provavelmente as influências do Taoismo e do Confucionismo (e por enquando ficar-me-ei por estas duas correntes, mas mais reflexões sobre a sexualidade oriental/chinesa estará por vir). Taoismo: Além das referências ao yin e o yang (阴阳), a importancia do qi (气) e ainda do jing (精), o taoísmo sexual, não surpreendentemente, foi descrito muito centrado na perspectiva masculina. Sexo em si era uma prática de potencial espiritual onde ‘se une a energia’ (合气) com vantagens grandiosíssimas para o homem, que se acreditava desenvolver muito boa saúde pela prática e, com muita dedicação, atingir a imortalidade. Acreditava-se que o sexo estabelecia o tão desejado equilíbrio que se procurava na natureza e que o yin e o yang ilustrava, sugerindo uma possível abordagem naturalista que nunca se popularizou. A verdade é que acreditava-se que o sémen continha altos teores de jing (精) e que a sua perda teria consequências para a sua saúde. Por isso: sexo sim, mas sem ejaculação. As práticas desenvolvidas trouxeram, por isso, dicas úteis para não perder o seu sémen e jing (精) em sexo que era necessário, mas não o pacote total. As mulheres eram vistas como um receptáculo sexual, um ‘caldeirão’ necessário para o desenvolvimento fetal e por isso até certo ponto eram respeitadas e deveriam ser estimuladas e agradadas porque só assim é que a energia gerada seria benéfica para o homem e para o seu desejo de imortalidade. Contudo, apesar de se sentir como uma obrigação médica agradar o yin (o lado feminino) para a sua energia ser terapeuticamente aproveitada, as mulheres continuavam a ser usadas como objectos. Confucionismo: Provavelmente a corrente filosófica mais influente na China, pouco ou nada disse sobre sexo. Confúcio não se debruçou por aí além pelo tema e tudo indicava que usaria pessoalmente a actividade sexual heterossexual de forma muito prática, desde que, contudo, não interferisse na sua vida social. O pior veio depois, quando Neo-Confucionistas, a partir da dinastia Sung, trouxeram uma reinterpretação dos ensinamentos do sábio e sugeriram uma teoria repressiva do sexo, que teóricos acreditam ser a base para o entendimento sexual na China dos últimos 1000 anos. Antes da intervenção dos neo-confucionistas, historiadores acreditam que as relações sexuais eram vistas com maior liberalismo e naturalidade porque as descrições de vidas amorosas, casamentos, divórcios, e tipos de relacionamentos heterossexuais e homossexuais não mostravam desaprovação nem condenação. Se esta visão continuou na base da vida privada chinesa, temos pouca certeza, porque os discursos pós-Sung mostram uma contínua repressão que poderiam ter mais forma em certas classes sociais e/ou nos documentos históricos a que temos acesso hoje. O que vale são as descrições literárias, as representações artísticas que ainda mostravam alguma criatividade sexual e que nos fica no imaginário de tantas taradices que julgamos chinesas. As descrições da antiga sexualidade chinesa, especialmente a Taoista, têm sido alvo de bastante análise pelos grupos que desejam elevar a sua sexualidade a uma experiência espiritual (tal como era descrita, na união das energias) e por isso tem aumentado de popularidade em círculos ocidentais interessados em Tantra. A filosofia sexual chinesa tem sido por isso reinterpretada à luz de uma maior igualdade de géneros e na possibilidade de estender a actividade sexual ao máximo, com tantos exercícios de controlo ejaculatório que existem. Consigo imaginar que não é da mesma forma que se influencia a sexualidade chinesa actual. Certas crenças ainda se perpetuam sobre como não é saudável desperdiçar o suco sexual, insistida pela medicina tradicional chinesa. Afectando, por exemplo, a forma como a masturbação é vivida na China. Se é herança dos neo-confucionistas ou não, também se denota a ditadura do silêncio sobre as coisas do sexo e alguma relutância em retirá-las da privacidade do quarto. Como em muitos outros contextos é simplesmente pouco falada. Mas e a globalização, o socialismo de características chinesas ou a agora política do filho ‘duplo’? NOTAS 1. Usei caracteres simplificados para ilustrar variados conceitos porque foi assim que aprendi, teria escolhido os tradicionais pela minha ligação a Macau, mas não seria fiel ao meu conhecimento da língua chinesa. 2. Muitas das informações aqui apresentadas basearam-se em Ng, M. L. & Lau, M. P. (1990) Sexual Attitudes in the Chinese. Archives of Sexual Behavior, 19 (4), 373-388 que oferece uma maior reflexão das práticas e das suas influências e que será do interesse de quem deseja aprofundar o tema.
André Ritchie Sorrindo SempreO genuíno Made in Macau [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ovembro é o meu mês preferido aqui em Macau. Não, qual bom tempo, temperatura amena, ausência de humidade ou gloriosos dias de céu limpo. Sim, também. Mas, caríssimo leitor, Novembro é o meu mês preferido porque é o mês do Grande Prémio de Macau. Calma. Não deixe de ler o artigo pelo facto de não ser fã do desporto motorizado, por detestar os engarrafamentos que o Grande Prémio provoca ou simplesmente porque concorda com aquele ilustre deputado que acha que esse evento viola a Lei da Prevenção e Controlo do Ruído Ambiental. Se é de Macau e/ou gosta de Macau, então tem de gostar do Grande Prémio de Macau. Passo a explicar. Tente falar com qualquer maquista sobre o Grande Prémio e, aposto consigo, será presenteado com um brilho nos olhos, entusiasmo e episódios interessantíssimos do passado. Sobretudo quando em conversa com maquistas mais antigos, pois não nos podemos esquecer do passado humilde desta cidade, dos tempos em que eventos locais com a mesma projecção do Grande Prémio eram praticamente inexistentes. Era pois o principal cartaz turístico de Macau, atingindo uma dimensão global, e isto muito antes de Macau ser re-inventada e invadida por combates do Manny Pacquiao e concertos da Britney Spears. O Grande Prémio é, por isso, a verdadeira festa local, celebrada e vivida com animação e intensidade no seio da comunidade Macaense. Sou grande entusiasta do desporto automóvel. No entanto, hoje vou-me debruçar sobre as histórias antigas do Grande Prémio que me foram contadas pelos meus familiares. Ainda hoje quando falo com a minha avó Ester sobre o Grande Prémio, ela há-de repetir com a mesma excitação de sempre o episódio do acidente que vivenciou mesmo à sua frente, junto da actual curva do Hotel Mandarim, quando um carro de competição se despistou e veio em direcção dela e dos seus irmãos que, felizes da vida, faziam um piquenique na berma do circuito enquanto viam passar os bólides. Não havia rails de protecção e o que lhes salvou a vida foi uma árvore! Da mesma forma, também se lembra do dia em que Arsenio Laurel perdeu a vida no Circuito da Guia, do fumo que se via à distância quando o carro se incendiou após o acidente e da exaltação geral quando a má notícia circulou do circuito para o resto da cidade. Já o meu falecido Tio-avô Pepe, era eu ainda miúdo quando me mostrou fotos a preto e branco por ele tiradas da queda da ponte pedonal entre o Hotel Lisboa e a Av. Rodrigo Rodrigues. Estavam tantas pessoas naquela estrutura provisória a assistir às corridas que a coisa toda cedeu e caiu. Houve mortes. Avançando uma geração, o meu Tio Nano ainda hoje fala do Alpine Renault que nos anos 60 foi o primeiro carro a completar uma volta ao circuito em menos de 3 minutos. Foi, na altura, um grande feito. Ora, para efeitos de comparação, nas celebrações do 50º aniversário do Grande Prémio em 2003, testemunhei com os meus próprios olhos a incrível velocidade de um Formula 1 que arrasou a barreira dos 2 minutos! Da parte dos meus pais também não são poucas as histórias que contam: a minha mãe teve a agradável experiência de gerir até agora a única edição do Grande Prémio que foi assolada por um tufão. No meio de chuvadas, ventos fortes e placards publicitários que voavam pela pista fora, decidiu-se adiar em um dia o Grande Prémio: as corridas principais realizaram-se numa 2ª feira! Contado assim até parece simples, mas imagine-se os impactos em toda a logística do evento. Quanto ao meu pai, foi médico destacado na pista quando eu era miúdo e, entre outros, tive o privilégio de andar num belíssimo Porsche 911, um Rescue Car da organização. Parece não ser nada de especial, mas, caríssimo leitor, queira perceber que nos anos 80 os Porsches em Macau contavam-se pelos dedos de uma mão. Que histórias tenho eu, então, para contar aos meus filhos e netos quando for velhinho? Aqui vão duas das minhas preferidas, que de alguma forma mostram como as coisas eram diferentes também no meu tempo: Quando era miúdo, era permitido aos participantes locais do Grande Prémio circularem pela cidade com os seus bólides, pois não existiam as instalações actuais onde os carros de competição ficam estacionados. Era comum encontrar-se carros a serem preparados para o Grande Prémio nas garagens locais. Andava eu na escola primária e sempre que passava um carro de corrida – o ronco dos carros daqueles tempos era infernal – a miudagem ia a correr para ver. Eis então que o condutor dum desses bólides foi simpático e resolveu animar a malta: encostou o carro à nossa frente, parou e começou a fazer brum, bruum, bruuum, BRUUUM! Até que parou porque partiu o motor, fez uma fumaceira tremenda e os bombeiros tiveram de intervir. Tive muita pena do homem. Sou do tempo em que a bancada da Curva do Hotel Lisboa era em bambú. A casa de banho resumia-se a um pequeno cubículo com paredes de lona onde as necessidades eram feitas directamente para o mar (o aterro do NAPE não existia). Das janelas do Hotel Lisboa de vez em quando apareciam umas meninas e ouvia-se da bancada um colectivo “waaaah!”. Bom ambiente. Mas um dia a bancada cedeu e teve de ser evacuada. Foi um pequeno grande susto – o bambú estalava por todos os lados! Fomos reembolsados: 20 patacas era quanto custava o bilhete. Essas são apenas algumas das minhas histórias do Grande Prémio. Como disse, qualquer maquista terá as suas, bem como as dos seus pais, tios e avós. Caríssimo leitor, provavelmente até aqui ainda não entendeu qual o sentido deste artigo. Não leve a mal, pois na verdade todo esse build-up foi enchimento de chouriços e serviu apenas para poder rematar a peça da seguinte forma: Numa altura em que em Macau tanto se vende o peixe da diversificação económica, tanto se fala no conceito “Made in Macau”, nas indústrias criativas e no apoio que se deve dar aos projectos locais e inovadores, aos incubadores de ideias e essa treta toda. Eis que temos aqui um verdadeiro produto “Made in Macau”: o Grande Prémio tem mais de meio século de existência, faz parte da nossa memória colectiva, é financeiramente auto-sustentável, atrai turistas, está intrinsecamente ligado à evolução física da cidade, tem um circuito com um enorme valor histórico que, tal como qualquer peça de património, foi protegido e se manteve intacto ao longo desses anos todos e é gerido por uma organização local muito experiente e com alto grau de profissionalismo. Acima de tudo, o Grande Prémio é um produto genuinamente nosso, de elevadíssima qualidade e prestígio que projecta mundialmente de forma muito positiva o nome de Macau. Portanto, não se trata simplesmente de se gostar ou não de corridas de automóveis. Estamos a falar do património da nossa cidade. Dito isto, que venham as corridas! Brum, brum, bruuum! Sorrindo Sempre O iluminadíssimo académico Dr. Roy Eric Xavier (*), figura respeitadíssima pela comunidade macaense local, deu uma entrevista interessantíssima com afirmações acertadíssimas sobre tudíssimo. Todavia, coitadíssimo, como é internacional e não domina a língua portuguesa, ficará eternamente sem perceber se o autor desta coluna adopta uma atitude séria ou sarcástica, pois Sorrindo Sempre é intraduzível para língua internacional, you know, Smiling Always, right? I put you in the eye of the street, get it? No? Aliás, desgraçadíssimo, pela mesma razão nem à sua própria entrevista poderá aceder e talvez por isso mereça um pequeníssimo desconto pois muito do que disse poderá resultar de um lost in translation. Tal como o middle name do seu próprio nome, de origem anglo-saxónica, que veio mal escrito na totalidade da peça, do início ao fim. How ironic. Caso o caríssimo leitor desconheça essa distinta personagem, faço aqui uma pequena introdução: Dr. Roy Eric Xavier é uma figura incontornável do campo dos estudos sócio-económico culturo-luso-sino-maquisto-internacionais, versado na especialidade do chupâ-sapeca. A sua credibilidade é indisputável. O expoente máximo das suas investigações foi atingido quando afirmou existirem pelo mundo fora 1 milhão de Macaenses. Sim, 1 milhão. One effing million. Teremos de contar com os que estão no São Miguel Arcanjo? Não: segundo esse distinto expert, existem os “Macanese from Macau” e os “International Macanese” – uma definição lata e abrangente que só ele sabe explicar. How refreshing. Finalmente, Dr. Roy Eric Xavier é também o célebre estudioso que há um ano atrás adoptou uma atitude de lai mau cheng quando instituições locais lhe recusaram apoio para um projecto pessoal que envolvia avultadas quantias porque, alegou, o mesmo seria executado por highly qualified professionals. E acabou disparando e disparatando para todos os cantos, dando tiros nos pés – nos seus próprios bem como nos dos representantes das instituições a quem inicialmente pedira apoio. How smart. Importante entrevista, de facto. Dr. Roy Eric Xavier é para ser levado a sério. Sorrindo sempre. (*) Leia-se “Dóctor Ruói Eruíque Zêivier”
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Fim da dinastia Song do Sul [dropcap style =’circle’]N[/dropcap]a Batalha Naval de Yamen, na embocadura de um dos ramos do Rio Oeste, próximo de Macau, foi onde a dinastia Song do Sul teve o seu fim, corria o dia 19 de Março de 1279. Os duzentos e cinquenta sobreviventes partindo por terra, foram-se refugiando nas aldeias próximas e o que restou desse grupo chegou a Haojing, onde se estabeleceu. Em 1206, surgiu Tai Zu no trono da tribo dos mongóis, que deu o nome ao povo. Tai Zu subordinou todas as outras tribos e através duma assembleia do povo, tornou-se Gengis-Khan. Começou em 1211 a invasão da China, conseguindo atravessar a muralha em 1213, conquistando Beijing dois anos mais tarde. Os mongóis usavam uma táctica de guerra revolucionária (estudada mais tarde por Napoleão) e que consistia em ataques aos flancos, centralização e fuga fingida, o que originava massacres. Após terminarem com a dinastia Jin em 1234, passam no ano seguinte a atacar os Song do Sul, que era uma dinastia virada para as artes e letras e que dava reduzida atenção e importância à parte militar. A dinastia Song do Sul durou até à conquista dos mongóis em 1279, apesar da sua capital Lin’an ter caído em 1276. Lin’an, a actual cidade de Hangzhou, capital da província de Zhejiang foi durante 149 anos a capital da dinastia Song do Sul (1127-1279). A fuga da corte Song do Sul Em 1274, uma força mongol de duzentos mil homens, comandada por Bayan, entrou por terra e pelas águas do Grande Canal no território Song do Sul. No ano seguinte, após a Batalha de Wuhu, as forças Song do Sul comandadas por Jia Sidao foram vencidas. Em 1276, os mongóis marchavam sobre Lin’an, a capital dos Song do Sul e ocuparam-na. Zhao Xian, que em 1274 se tornara com cinco anos o Imperador Gong, foi em 1276 levado como prisioneiro para Norte, onde entrando num mosteiro se tornou monge. O que restava da realeza Song do Sul, Duan Zong e o seu irmão mais novo Zhao Bing acompanhados pela Imperatriz Yang conseguiram escapar e acompanhados por pessoas da corte, militares, oficiais e civis fugiram para Sul, em direcção a Fujian, tendo como destino final a Ilha de Hainan. O inicial grupo ao longo do caminho foi engrossando com os familiares dos mandarins e com muitos dos que trabalhavam ao serviço dos Song do Sul, cujo território se estendia pelo Sudeste, pelas actuais províncias de Fujiam, Guangdong e Hainan. Também receando as represálias dos mongóis, na passagem por Fujian, muitos oficiais naturais desta província e suas famílias, se juntaram à corte fugitiva. Assim o grupo atingiu o meio milhão de pessoas. Em Fuzhou, Duan Zong com sete anos tornou-se o Imperador Zhao Shi (1276-1278). Por aí devem ter passado mais de um ano já que as datas só nos falam desta corte fugitiva no ano de 1278. Chegados a Quanzhou, tentaram alugar barcos para continuarem viagem, agora por mar até Leizhou, junto à Ilha de Hainan e onde se preparavam para estabelecer a corte. No entanto, o muçulmano árabe mercador Pu Shougeng, muito provavelmente nativo da China, que era também o oficial que administrava os barcos naquele porto, percebendo que cairia em desgraça perante os mongóis, que já se preparavam para ocupar os destinos da China, ou porque aqueles barcos lhe faziam falta para as suas marítimas viagens comerciais, não os cedeu. Por isso, os navios foram tomados pela força. No mar, já em frente da província de Guangdong, foram apanhados por um tufão e apesar de muitos naufragarem, outros conseguiram chegar a porto seguro. O imperador que tinha sobrevivido, foi em terra acometido de uma doença súbita e morreu no Delta do Rio das Pérolas, em Lantou (hoje território da Região Administrativa Especial de Hong Kong e onde foi construído o novo aeroporto). Assim, com cinco anos Zhao Bing em 1278 subiu ao trono da dinastia nómada dos Song do Sul, tornando-se o nono e último imperador da dinastia Song do Sul, como Bing Di (1278-1279). Com os barcos que sobraram, o novo imperador acompanhado pelos seus tutores e oficiais zarparam para um local mais seguro. De novo navegando pelo mar, chegavam ao Sul do actual concelho de Xinhui, no distrito de Jiangmen (porta do rio) província de Guangdong, quando viram a enorme armada mongol que vinha no seu encalço. Para se esconderem, entraram por um dos ramos do Rio Xi (Oeste) e encontravam-se na foz do afluente Rio Tan, em frente ao Forte de Yamen, quando foram alcançados pela armada mongol. O Forte de Yamen está situado a Leste do Monte Ya e com o Monte Tangping a Oeste formam como que uma entrada e por isso o nome de Yamen (Entrada dos Penhascos). Foi o forte construído ao nível da água, entre os anos de 1131 e 1162, durante a dinastia Song e reconstruído em 1809, tendo na I Guerra do Ópio albergado as tropas de Lin Zexu. Os barcos que transportavam o restante da corte nómada foram apanhados pela armada mongol na baía em frente ao Forte Yamen e aí se desenrolou a batalha naval, que durou vinte e dois dias e envolveu mil barcos. A Batalha de Yamen Após quase três anos passados e mais de metade dos que tinham fugido de Lin’an terem morrido, as forças navais mongóis partem em perseguição da nómada corte Song do Sul. O General Zhang Hongfan, um antigo oficial Song que se tinha colocado ao serviço dos mongóis, comandava um exército de vinte mil homens, enquanto o oficial Song Zhang Shijie se encontrava à frente de duzentas mil pessoas, sem alguma disciplina, nem treino militar ou marítimo. Por não possuir grande experiência em combates navais, Zhang Shijie, o comandante da dinastia Song do Sul, saindo do mar entrou pelo Rio Tan e foi alcançado em frente à povoação de Yamen. Sem espaço de manobra, colocou a sua frota de maneira a que os barcos dos mongóis os cercaram e sem possibilidade de desembarcarem para terra, nem fugirem, estavam a ser rapidamente derrotados. Zhang Shijie retirou-se com dez barcos, para os conseguir posicionar e manter o poder de combate, mas já era tarde. Vendo a derrota iminente, o oficial superior Lu Xiufu pegou no Imperador Zhao Bing e saltou para a água, fugindo assim de serem capturados pelos mongóis, preferindo a morte por afogamento, tal como fez a Imperatriz Yang. Em 19 de Março de 1279 as forças dos Song do Sul estavam aniquiladas. Zhang Shijie, ao regressar ao grupo dos seus barcos, já derrotados, encontrou o corpo da mãe do imperador a boiar na água, já sem vida. Mais tarde, Zhang foi apanhado por uma tempestade e morreu também afogado. A área desta batalha situa-se entre a aldeia Guanchong e o Norte do Lago Yinzhou, a Sul do Monte Yamen. Aí, se encontra o túmulo da mãe do Imperador Bing e uma pedra, cuja lenda diz marcar o local onde Lu Xiufu e o imperador saltaram para a água. Visitámos o templo em 2005 e nessa altura encontrava-se em profundo restauro. O altar, com a estátua da imperatriz-mãe e o túmulo, estava coberto por um plástico para a tinta com que se decorava os tectos nele não pingasse. O recinto do templo, que até aí tinha sido de pequenas dimensões, estava a ser ampliado e arranjado para receber grande quantidade de turistas. Visitado o templo, vamos à procura de um rochedo cuja lenda diz marcar o local onde Lu Xiufu e o imperador saltaram para a água e onde o comandante da armada mongol, o general Zhang Hongfan mandou gravar algumas palavras sobre a vitória das forças de Kublai-Khan. Perguntando o local dessa pedra, que assinala o fim da dinastia Song do Sul, indicam-nos a uma distância de cinco quilómetros do forte e a dois do templo, mas como as estradas se bifurcam é difícil encontrar o local. Estamos perto, quando a estrada dá para um portão. Guardado por soldados, não nos deixaram entrar no recinto onde a rocha se encontra, por ser uma base naval da marinha chinesa, logo vedada ao público. Assim seguimos para a visita do Museu comemorativo desta batalha, situado na outra margem do rio. Depois da Batalha de Yamen, que marcou o fim da dinastia Song do Sul, o que sobrou desse grupo, cerca de duzentas e cinquenta pessoas, daí fugiu e foi-se escondendo, criando aldeias, sendo uma delas Haojing, nome talvez proveniente de haver muitas vieiras (hao, 蠔) nas límpidas águas que refletiam como espelho (jin, 鏡), era como na altura se chamava Macau. Assim, em 1279 esse grupo estabeleceu-se na parte Norte da península de Haojing e dedicou-se à agricultura, construindo as suas casas na encosta Sul da colina de Mong-Há (que significa olhar para baixo). Conta-nos Ana Maria Amaro, que os fundadores de Mong-há-tchún deram ao lugar o nome de Monte Dourado, devido ao local ser de rochas graníticas. Os primeiros habitantes da zona foram indivíduos de apelido Kái, Lou, Pou, Tin, Hó e Sam, seguidos pelos Hói, Tcheong, Lam e Tchan, o que corresponde a serem provenientes de diferentes famílias e algumas da província de Fuquiam, o que poderá confirmar a história anterior. A península era seguramente ponto de passagem e de encontro para pescadores e mareantes e aí existia, não se sabe desde quando, uma pequena povoação de pescadores e mareantes na parte Sul junto ao Templo da Barra e dedicado à deusa Mãe A-Má. Podia ser a família Kái, que vivia afastada do Monte Mong Há e se dedicava à pesca. As suas casas, situadas na parte Oeste da Colina da Penha, ficavam assim abrigadas das intempéries. Assim, quando os portugueses chegaram à península de Haojing e colocaram as suas mercadorias a secar, encontraram na zona de Mong Há, um dos dois povoados existentes. Eram os descendentes da dinastia Song do Sul, que aproximadamente há 250 anos aqui viviam.
Leonor Sá Machado Manchete SociedadeEI | Grupo arrasa símbolos da cidade. Memória exterminada Edição de 28 de Agosto de 2015[dropcap style=’circle]F[/dropcap]oi em meados de Maio passado que o Estado Islâmico (EI) primeiramente ocupou Palmira, começando com uma vaga de homicídios e repetidas ameaças da destruição do local, classificado pela UNESCO como Património Mundial. De acordo com a Reuters, foram mortas cerca de 400 pessoas nos primeiros quatro dias de ocupação do EI em Palmira, há três meses. Dias depois, foi a vez das forças do presidente sírio Bashar al-Assad atacarem o local então liderado pelo EI. Este foi, segundo o director do Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR, na sigla inglesa), Rami Abdel Rahman, um dos ataques mais intensos desde a semana anterior, quando o controlo da cidade teve lugar. “Desde esta manhã [dia 25 de Maio], aeronaves do governo executaram pelo menos 15 ataques aéreos a Palmira e arredores”, disse Rahman. Uma fonte militar síria confirmou ao website DW que tiveram ainda lugar várias outras acções militares nessa altura. “Operações militares, inclusive ataques aéreos, estão em curso na área ao redor de al-Sujna, Palmira, Arak e nos campos de gás de al-Hail, bem como nas estradas que levam a Palmira”, afirmou uma fonte não identificada ao website. Erradicar fundamentalismos Francisco Leandro é um professor na Universidade de São José doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais que esteve em Palmira e outras zonas do Médio Oriente em 2009. Em declarações ao HM, sugere, como vários especialistas, a erradicação do fundamentalismo para cessar os avanços do EI. “O potencial destruidor dos crimes de guerra, em especial dos crimes de género em conflitos armados, é incomparável com outros tipos de crime”, começou por dizer. “Infelizmente, os líderes do ISIS cedo compreenderam esta minha afirmação e infelizmente praticam-na na perfeição: travar este flagelo implica erradicar os fundamentalismos”, acrescentou. O académico apontou que um património daquele valor é irrecuperável. “Uma destruição destas pode ser minimizada, mas nada voltará a ser como era. Aquando da minha estada na Síria, tive oportunidade de observar o esforço imenso da comunidade internacional, designadamente de Itália, nos trabalhos de recuperação, classificação e preservação do património histórico da Síria”, começou por dizer Francisco Leandro. A isto, o professor acrescentou que a presente perda “acarreta também a perda” de um esforço com o qual o governo sírio sempre contou. “Este é um dano civilizacional irreparável”, colmatou. Questionado sobre as formas de parar os avanços do EI, Francisco Leandro considera que se trata de uma guerra que vai beber aos ideais e usa a manipulação psicológica, sendo por isso, mais complexa de travar. O califado da discórdia Embora também em Junho e Julho se tenha assistido à destruição de estátuas e outros artefactos icónicos – como a peça do leão de al-Lat, que data do século II e foi descoberta em 1975 –, o anúncio da explosão do templo Baal-Shamin surgiu no início desta semana, com um especialista em antiguidades sírio, Maamoun Abdulkarim, a apontar que o sucedido tenha tido lugar no passado dia 23. “Temos dito vezes sem conta que eles iriam primeiro aterrorizar as pessoas, e depois, quando tivessem tempo, começariam a destruir os templos”, disse à agência Reuters Abdulkarim. “Palmira está a ser destruída perante os meus olhos. Que Deus nos ajude”, lamentou o especialista. No entanto, parece não haver consenso na data da destruição, já que o SOHR refere que o desmantelamento aconteceu há cerca de um mês. Seguindo as contas de Abulkarim, a destruição aconteceu apenas dias depois da facção radical ter decapitado o antigo responsável pelos museus e antiguidades de Palmira, Khaled al-Assad, de 82 anos. Actualmente, cumpria funções como consultor do local e a sua execução aconteceu, de acordo com o Observatório, porque o responsável se recusou a revelar o local secreto onde foram escondidas algumas das estátuas antes da chegada do EI a Palmira. Além deste homicídio, o EI publicou ainda notícias sobre um massacre de “infiéis” no anfiteatro de Palmira, há dias. Graeme Wood escreveu, na edição de Março da revista britânica The Atlantic, um artigo denominado “O que o EI [Estado Islâmico] realmente quer”, onde explica as intenções e a filosofia interna do grupo. Wood começa por dizer que poucas forças internacionais conhecem realmente os contornos da lógica que move o EI, referindo que há profundas diferenças entre o actual regime comandado por Abu Bakr al-Baghdadi e o de Bin Laden, a Al Qaeda. “Bin Laden perspectivava o seu terrorismo enquanto prólogo de um califado que não seria formado durante a sua geração. A sua organização era flexível, operando uma rede geograficamente difusa de células autónomas. Em contraste, o EI só se legitima através da conquista de território e é composto por uma estrutura hierárquica”, esclarece Wood. As estátuas dos infiéis De acordo com notícia do periódico The Week, o templo de Baal já havia sofrido um ataque com morteiros em 2013 e acredita-se que este tenha sido perpetrado por milícias sírias. Contra este movimento em crescimento acelerado estão vozes internacionais, às quais se juntam poderosos líderes do mundo árabe, que sendo muçulmanos, censuram as atitudes do EI e afastam qualquer relação com esta facção. Também Irina Bokova, directora da UNESCO, condenou a destruição dos artefactos como um “crime de guerra”, dos piores da história. A grande pergunta, no entanto, é “porque razão está o EI a destruir património mundial”? A destruição de Palmira consta, de acordo com vídeos publicados pelo próprio EI, do plano de conquista deste grupo radical muçulmano. O jornal New York Times (NYT) escreveu mesmo que o ataque a Palmira serviu para obliterar todas as restantes culturas e religiões do califado desta facção radical. O NYT citava os vídeos da destruição: “Os monumentos que vêem por trás de mim não são mais do que estátuas e ícones de pessoas de séculos anteriores, usados para a adoração em vez de Deus”. No ecrã, lia-se ainda “aquelas estátuas não são do tempo do Profeta e dos seus companheiros. Foram criados por Satânicos”. Verdadeiramente religiosos O artigo do The Atlantic refere que o que inicialmente parece um velado apoio ao Estado Islâmico é, na verdade, um esclarecimento para perceber como combater esta força. Para Wood, este é o grupo religioso que mais pura e radicalmente cumpre a doutrina de tempos antigos. “Quase todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo EI seguem criteriosamente a ‘Metodologia Profética’, seja nos seus media, placards, matrículas ou moedas”, escreve o autor. Wood refere o óbvio: “quase todos os muçulmanos recusam o EI”, mas isso não faz com que as acções do grupo não sejam o espelho da profecia escrita há milénios. A revolta do EI O mundo começou a ter – uma pequena – percepção da força do Estado Islâmico ainda em 2002, quando o presidente dos EUA George W. Bush declarou a inclusão do Iraque no ‘Eixo do Mal’, lista de países ‘non-grata’ para o governo norte-americano. Em 2003 o conflito intensificou-se e Bush prometeu usar força bélica caso necessário, justificando, através de comunicações públicas, que o Iraque escondia e possuía “algumas das mais letais armas jamais inventadas”. A existência deste tipo de artilharia nunca foi oficialmente provada. As tropas da aliança com os EUA acabaram por abandonar o Iraque, mas não sem antes capturarem Saddam Hussein, um dos maiores ditadores modernos. Foi por volta desta altura que o EI começou a ganhar relevância enquanto proclamador de um regresso aos tempos em que o mundo estava dividido em califados. De Mosul a Palmira Segundo o mapa do califado do EI, criado pelo Instituto de Estudos Bélicos em Janeiro, a facção controla uma linha de terra que vai desde a cidade síria de Aleppo até perto de Ramadi, no Iraque. Há ainda outras zonas, como são parte da fronteira da Síria com a Turquia. O mesmo mapa define zonas de ataque, onde a facção se encontra em guerra. Estas ocupam Fallujah – igualmente importante durante a invasão norte-americana –, e Bagdad. Outra grande parte do documento está pintada de cor-de-rosa, simbolizando zonas de apoio ao governo de Baghdadi. Estas compõem um espaço triangular desde perto de Damasco, passando por Aleppo, Mosul, Bagdad e Ramadi. Em Fevereiro teve lugar um outro ataque igualmente grave ao património mundial. Foi a vez de militantes do EI destruírem artefactos em Mosul, com direito a imagens dos momentos. Nos vídeos captados, ouvem-se palavras semelhantes àquelas proferidas em Palmira. “Este ataque é muito mais do que uma tragédia cultural – também é um assunto de segurança, porque alimenta o sectarismo, o extremismo violento e o conflito no Iraque”, afirmou na altura a directora da UNESCO, Irina Bokova. Reacção semelhante teve a direcção do Museu nova-iorquino Metropolitan, que descreveu o ataque como “catastrófico” num dos museus “mais importantes do Médio Oriente”. No dia anterior, os radicais haviam feito explodir um mesquita no centro da cidade. O arquitecto Ihsan Fethi lamentou uma “perda terrível” e justificou o acto por dentro da mesquita estar um túmulo que serve de objecto de adoração para os fundamentalistas. Já em Fevereiro, o ministro iraquiano do Turismo e Artefactos, Adel Fahad al-Shirshab tinha censurado a conduta do EI. “Este genocídio cultural contra a humanidade iraquiana tem que ser imediatamente travado antes que o EI destrua tudo o que resta”, disse.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesMacau ao estilo grego [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]té ao presente momento, o novo Governo da RAEM tem vindo a desempenhar as suas funções há já mais de oito meses. Porém, mais e mais defeitos têm vindo a ser identificados, devido a “deficiência genética ou mesmo fraco acompanhamento médico após o parto”. Visto tratar-se de uma administração que não necessita de prestar contas a ninguém, as políticas por si formuladas continuam, tal como no passado, a dar prioridade ao sector empresarial, ao mesmo tempo que inundam a sociedade com um populismo desmedido, especialmente impulsionado por certos políticos da chamada oposição democrática. Tendo tudo isto em consideração, pode-se então afirmar que, até agora, o Governo “tem colhido aquilo que semeou”. Devido ao fracasso das tentativas de transformação estrutural da economia depois da transferência de poderes, os dirigentes da RAEM têm-se encontrado na necessidade de depender das receitas provenientes da liberalização da indústria do jogo, assim como da política de vistos individuais para visitantes oriundos do continente. Aliado a isto, o enorme crescimento da economia chinesa derivado por uma série de reformas domésticas tem ajudado a indústria do jogo de Macau a cimentar a sua posição como um dos mais conhecidos destinos a nível mundial para entusiastas dos jogos de fortuna e azar. Ao mesmo tempo, o território tem-se tornado num dos principais centros para transferências de capital e nem sempre dirigido a indivíduos de renome. Todo este dinheiro, proveniente da China, mas de origem duvidosa, tem dinamizado a economia local, reflectindo-se principalmente no mercado imobiliário, que tem gozado de um crescimento espectacular. Mesmo estando cientes da aberração constituída pela nossa estrutura económica, que carece de uma lógica funcional, o Governo não tem permanecido vigilante nem tão pouco tomado precauções para tudo isto, optando em vez disso por se orgulhar dos lucros fáceis até agora conseguidos. Entretanto, e não obstante todos os sectores da administração terem vindo a registar cada vez mais despesas ou, por assim dizer, necessitarem de orçamentos cada vez mais avultados, vários mega-projectos estruturais têm sido iniciados um após o outro, apesar de cada um deles conseguir sempre ultrapassar as projecções orçamentais, assim como a esperada data de conclusão das obras. Cria-se assim a impressão de que alguns funcionários públicos não são responsáveis pelas suas próprias acções, acabando assim estes por desperdiçar o dinheiro dos contribuintes, além de outros recursos comunitários. Na superfície, Macau está em alta, embriagado pelas receitas do jogo, mas sempre dependente da boa fortuna dos vários casinos que operam na região especial. Mas se viermos a encontrar uma situação em que as receitas obtidas através do imposto cobrado sobre o jogo, como poderia então a RAEM sobreviver nesse cenário? Após a transição de soberania, o número de funcionários públicos empregados pela RAEM cresceu significativamente, tendo estes gozado igualmente de sucessivos aumentos salariais derivados das crescentes reservas financeiras oriundas do imposto sobre o jogo. Mas, com o passar do tempo, a administração viu-se forçada a realizar ajustes nos contratos estabelecidos com estes funcionários. Assim, primeiro procederam a mudanças no “Regime das Carreiras dos Dirigentes e Chefias dos Serviços Públicos”, passando de seguida a analisar todos os funcionários públicos, agrupados nas respectivas diferentes categorias a que pertencem. Há dois anos atrás, o salário dos titulares de cargos políticos foi reajustado, enquanto que os benefícios e os salários dos funcionários públicos foram recebendo aumentos anuais e tudo isto acabou por se materializar numa enorme despesa para os cofres públicos. Mas até com o grande público os nossos governantes têm sido generosos, atribuindo a todos os residentes uma ajuda pecuniária anual, assim como implementando uma série de subsídios e revendo em baixa os impostos taxados sobre a população. Isto faz com que os cidadãos esqueçam os seus problemas, no mínimo uma vez ao ano quando os cheques pecuniários são distribuídos pela população, e contribui para uma falsa ilusão de prosperidade eterna. Mas, na realidade, o Governo pouco ou nada faz para melhorar a situação e toda a conversa sobre a diversificação da economia não passa de nada mais do que conversa. As preocupações imediatas dos nossos dirigentes recaem invariavelmente sobre o mercado imobiliário, onde muitos funcionários públicos e os seus amigos, ou abastados homens de negócios, esperam receber lucros avultados como consequência dos seus investimentos nesta área. Porém, a grande maioria da população não beneficia da mesma maneira e, na verdade, acaba mesmo por ser prejudicada pelas rendas elevadas assim como os preços exorbitantes das casas. Esta falta de visão e procura de lucros imediatos acaba mesmo por se reflectir por toda a sociedade, pois as acções indevidas dos nossos governantes acabaram por imprimir na população uma atitude que espera “receber da vindima sem sequer semear”, chegando estes a exigir sempre mais e mais subsídios e outras regalias da parte do Governo. Mesmo quando estes subsídios são colocados à disposição, verifica-se então uma corrida louca para a obtenção de um lugar na lista de candidatos. O interesse pessoal e o egoísmo reinam em Macau, chegando mesmo a fazer hoje em dia parte dos atributos dos residentes locais. Quando as receitas do jogo sofrerem uma descida acentuada, vamos certamente encontrar ressentimento por parte da população local, que através das suas lamentações vai acabar por obrigar o Governo a apresentar uma série de medidas de contenção de custos, em virtude de não haver nenhuma outra solução. No caso da Grécia, o seu Governo implementou um bom sistema de segurança social de modo a garantir o voto dos seus apoiantes, mas esta situação criou um défice estatal que só pode ser remediado através da obtenção de empréstimos da União Europeia. Ao mesmo tempo, os políticos gregos realizaram um referendo para enganar os eleitores e exercer pressão sobre os outros estados da comunidade europeia. Mas mesmo assim os seus líderes foram obrigados a implementar uma série de medidas de modo a reduzir as despesas do Estado, o que constitui na verdade um pré-requisito para a obtenção do crédito europeu. O que fariam então os nossos governantes se a RAEM se encontrasse igualmente numa situação de falta de reservas financeiras? A maior parte dos visitantes que se dirigem aos casinos locais são oriundos da China continental, enquanto que os jogadores que frequentam os “quartos VIP” são, na maior parte, abastados homens de negócios do mesmo país. Estes usam todo o tipo de medidas para ganhar dinheiro no seu país de origem, acabando depois por investir as suas poupanças através do território de Macau. Se porventura a China não estivesse a viver a maior campanha anti-corrupção da sua história ou se não tivessem sido implementadas sérias medidas para impedir a transacção de capitais através dos cartões da China UnionPay, ou ainda se a conjectura mundial não tivesse mudado quando Xi Jinping assumiu o poder, acreditamos os cofres da RAEM ainda poderiam estar cheios de receitas obtidas através do imposto sobre o jogo. Porém, a China sentiu a necessidade de combater a corrupção de forma a garantir a sobrevivência do Partido Comunista assim como do próprio estado. Conseguiriam então estes homens de negócios, mas também bons patriotas que amam Macau, mudar as políticas implementadas pelo Governo Central? Pela conquista do dinheiro, existem aqueles que contemplariam até perturbar a segurança nacional ou a saúde dos funcionários da indústria do jogo e até o futuro desenvolvimento da RAEM. Se pesquisarmos o paradeiro dos descendentes desses mesmos indivíduos, quantos deles estarão ainda a residir em Macau? De forma a garantir o seu futuro, Macau tem de evitar embarcar pelo caminho seguido pela Grécia. E, durante este período de redireccionamento, uma pequena minoria de pessoas com interesses investidos poderia sem dúvida vir a sofrer, assim como poderiam ficar tristes aqueles habituados “a colher sem sequer semear”. Mas se a população do território não se livrar do vício que a prende a este ambiente económico, que mais se assemelha a uma droga, não poderão deter a clareza intelectual necessária para poder virar uma nova página. Apesar de a Grécia ser um país conhecido pela sua mitologia, nenhum dos seus cidadãos actuais pode viver uma vida relaxada como aquela gozada pelos deuses gregos, nem tão pouco o podem Macau e as suas gentes.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasMendes Pinto encontra a filha de Tomé Pires [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]desajustada política de D. Manuel para os Mares da China, como ficou bem provado com Simão de Andrade “habituado ao autoritarismo com que os Portugueses se haviam imposto por todo o Índico, não se adaptou às práticas locais, nem se apercebeu de que estava num país assaz peculiar, tanto de um ponto de vista cultural como do político e, por isso mesmo, incomparável a outras regiões asiáticas onde já servira o rei” como refere João Paulo Oliveira e Costa e com ele continuando: “Assim que chegou à orla do Império do Meio, Simão de Andrade cometeu um erro que originou o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais”, “resolveu defender-se em terra: ergueu para isso um fortim na ilha de Tamau, sem que os governantes chineses fossem ouvidos. Detentor de toda a autoridade no ilhéu onde se fortificara, o capitão enforcou aí um dos seus marinheiros, facto que fez crescer ainda mais a indignação e a preocupação dos chinas. Com as relações já tensas, Simão impediu que comerciantes de outras nações vendessem as suas fazendas e autorizou os seus homens a comprar moços e moças filhos de gente honrada” e João de Barros acrescenta: “Simão de Andrade personificava as virtudes e os defeitos do optimismo manuelino”. Desmandos em Tamão e no vizinho mar de Tunmen de Simão de Andrade, aliados com o de mercadores portugueses terem batido num mandarim, foi o rastilho que estourou com Duarte Coelho a abrir fogo na batalha naval de 1521. Estas as grandes causas do malogro das duas primeiras embaixadas à China, a de Tomé Pires e a seguinte, em 1522 com Martim Afonso de Melo Coutinho como Embaixador e daí, “todas as desgraças que os portugueses sofreram na China nos mais de trinta anos seguintes, até ao aparecimento de Leonel de Sousa, que fez o assentamento de 1553-1554, em Kuóng-Hoi, com o Intendente Marítimo, Van-Pé (o haidao Wang Bo, subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira que deu uma autorização de estadia temporária) – título que nos facultou o estabelecimento em Macau” A. Cortesão. A suspensão obrigatória de todas as actividades da vida chinesa após a morte do Imperador Zhengde, não tinham sido respeitadas pelos comerciantes portugueses que se encontravam em Cantão, o que levou à expulsão dos bárbaros do país após duas batalhas navais e “como consequência, a proibição dos navios portugueses não poderem aportar em Cantão, nem estabelecer relações diplomáticas e comerciais com a China, fez os portugueses juntarem-se aos japoneses na pirataria pelas baías da costa de Fuquiam e Zhejiang, trocando a prata e outros produtos por seda com os contrabandistas chineses” A. Cortesão. Havia ainda mercadores portugueses que entravam na China disfarçados e misturados com os comerciantes das embaixadas dos países do Sudeste Asiático. Fernão Mendes Pinto e seus companheiros em 1542, após o barco naufragar na enseada de Nanquim e de muitas peripécias, seguiam pelo interior até Pequim fazendo-se passar por mercadores do Sião, mas acabaram presos. Já em 1525 um édito imperial decretara o fim da marinha mercante chinesa nos mares da China, tendo por isso alguns chineses emigrado e desrespeitando as leis tornaram-se mercadores renegados, dependendo dos portugueses para manter os contactos com os familiares e no comércio com os conterrâneos. Com estas amizades feitas, esses chineses ultramarinos forneciam aos portugueses guias e após o imbróglio com Simão de “Andrade, levaram-nos a Liampó (Ningpo), onde os mandarins, largamente subornados, faziam vista grossa ao comércio proibido, que, com o passar do tempo, se estendeu a Chincheu (Zhangzhou), chegando a restabelecer-se às próprias portas de Cantão”, como refere Montalto de Jesus citando Gaspar da Cruz. As costas passaram a estar cheias de comerciantes piratas japoneses e portugueses à procura dos apetecíveis produtos chineses, pois proibido pela dinastia Ming o comércio marítimo com outros países e a China sem esquadras para patrulhar a longa costa. Mas os lucros em prata eram muitos e estas enseadas de Fujian e Zhejiang foram bons locais para as trocas entre chineses e portugueses. Tomé Pires está morto ou vivo? Montalto de Jesus refere que as “Cartas de Cantão que chegaram, anos depois, às mãos dos portugueses revelaram os sofrimentos atrozes da embaixada na prisão, onde roubaram a Pires os presentes reais recusados, assim como uma quantidade de almíscar, ruibarbo, damasco, cetim, ouro e prata que ele trazia consigo para fins comerciais. Era crença geral que, por fim, a desgraçada embaixada teria morrido na prisão.” Armando Cortesão complementa: “A carta de (o persa convertido Cristóvão) Vieira, concluída provavelmente em Novembro de 1524, diz que, de todos os companheiros de Tomé Pires, apenas ele e Vasco Calvo se encontravam vivos, na cadeia de Cantão, e à primeira vista dá a impressão de que Pires falecera em Maio desse ano. Esta passagem, que levou Barros, e todos os que, depois dele, mais ou menos levemente se têm referido ao assunto, a declarar que de facto Pires faleceu então na cadeia, é muito confusa e susceptível de várias interpretações. E aquela não é a interpretação que se coaduna com outros elementos de informação conhecidos.” “Na verdade, Vieira não diz que Pires morreu na prisão, o que, no caso afirmativo, não deixaria de mencionar; a informação foi-lhe provavelmente dada pelos chineses, que teriam interesse em o enganar. Castanheda, que, nessa ocasião, se encontrava na Índia, diz que o Rei da China . Porém, Gaspar Correia, que, durante quase todos esses anos, também esteve na Índia, diz positivamente que o Rei da China . Isto é ainda confirmado por um antigo documento chinês, citado por W. F. Mayers, em que este assunto é referido, no qual se diz que a embaixada de Pires foi enviada sob prisão de Pequim a Cantão e os seus homens expulsos para além das fronteiras da província. Por onde andava Tomé Pires Ora, Fernão Mendes Pinto escreve, na Peregrinação, que, ao passar, em 1543, pela povoação de Sampitay, na margem do Grande Canal, quando seguia preso de Nanquim para Pequim, encontrou aí uma mulher cristã que, depois de lhe mostrar a cruz que tinha tatuada no braço e o convidar e a seus companheiros portugueses para sua casa, lhes disse “que se chamava Inês de Leiria, e que seu pai se chamara Tomé Pires,”…”E que a seu pai lhe coubera em sorte ser seu degredo para aquela terra, aonde se casara com sua mãe, por que tinha alguma coisa de seu, e a fizera cristã, e sempre em vinte e sete anos que ali estivera casado com ela, viveram ambos muito catolicamente, convertendo muitos gentios à Fé de Cristo, de que ainda naquela Cidade havia mais de trezentos, que ali em sua casa se ajuntavam sempre aos domingos a fazer doutrina” A. Cortesão. E com ele continuando, Fernão Mendes Pinto “confirmou tudo isto numa declaração escrita, ainda hoje existente, que, em 1582, fez a uns jesuítas que o visitaram em Almada”. Também Cristóvão Vieira na sua carta diz: “as mulheres dos línguas, assim as de Tomé Pires, que ficaram em esta cidade o ano presente (1524) foram vendidas como fazenda de traidores, aqui ficaram em Cantão espalhadas”. De onde A. Cortesão depreende “o facto de Pires ter, pelo menos, uma mulher chinesa, ao que parece, a mãe de Inês de Leiria, de que nos fala Fernão Mendes Pinto. Pode, pois, reconstituir-se o que provavelmente se passou. Quando Pires, viajando pelo Grande Canal, quer na ida para Pequim, quer no regresso, parou em Sampitay, conheceu a mãe de Inês de Leiria, possivelmente, dama de certos meios e categoria, como cabia a um embaixador, com quem se juntou ou casou à maneira da terra. De modo que a venda da dama “como fazenda de traidores”, em Cantão, não teria tido para ela graves consequências, se é que foi abrangida em tal operação. Pelo que dizem Castanheda e, sobretudo, Gaspar Correia e o referido documento chinês, e Mendes Pinto confirma, se vê que Pires foi desterrado de Cantão, o que Vieira e Calvo não sabiam à data das suas cartas. Talvez nessa altura Inês de Leiria já tivesse nascido, ou estivesse para nascer, e é perfeitamente natural que Pires houvesse seguido com a filha e sua mulher para Sampitay, a terra em que esta tinha casa e bens” Armando Cortesão, que identifica “a Sampitay de Fernão Mendes Pinto, que então se chamaria Hsim (ou Sun) P’ei t’ai (segundo a grafia inglesa de nomes chineses) com a moderna povoação de P’i chou, ou P’ei chou, hoje, a uns nove quilómetros a nordeste do ponto mais perto no Grande Canal (cujo curso em certos sítios também variou muito durante os séculos), em latitude 34º 25′ N e longitude 118º 6′ E.” Conhecida actualmente por Pi Zhou, 邳州, era Sampitay denominada Pi Xian (邳县) em mandarim e situa-se a Leste de Xuzhou e ao Norte da província de Jiangsu. Segue-se um elogiar de Armando Cortesão: “A descrição de Pinto carece de ajuste, num ou noutro ponto, o que não deve surpreender quando se considere que Inês de Leiria lhe falou em chinês, língua que ele decerto conhecia mal, que escreveu de memória quando, pelo menos, uns vinte e seis anos haviam já decorrido sobre os acontecimentos, e que a Peregrinação só foi publicada trinta e um anos depois da sua morte, com as introduzidas por Francisco de Andrade, para que Inquisição a deixasse dar à estampa.” O que teria sido a Suma Oriental se… Pela Peregrinação concluída em 1580, mas só editada em 1614, não se fica a conhecer o ano em que faleceu Tomé Pires, mas pela descrição que Inês de Leiria fez a Fernão Mendes Pinto se deduz ter sido por volta de 1540 e que da sua casa em Sampitay foram apreendidos papéis por ele escritos. Com os portugueses proibidos de entrarem na China, difícil terá sido a Tomé Pires em Sampitay ter feito chegar a Malaca o que escreveu nos últimos quinze anos da sua vida. Por Gaspar Correia ficamos a saber que Tomé Pires a D. Duarte de Meneses, Governador das Índias entre Janeiro de 1522 e Dezembro de 1524. Mas até esse desapareceu, tal como tudo o resto que Tomé Pires escreveu na China. Seguramente uma grande perda para a História, Geografia e Botânica do século XVI, perante o que na Suma Oriental nos é permitido imaginar poderem ter sido essas informações. “Depois duma mocidade cheia de esperança e de uma fecunda passagem de cinco anos pela Índia e Malaca – em que acumulou muito saber e não pouco cabedal, em cargos modestos mas que lhe permitiram grandes possibilidades de exploração e ao conhecimento do tão diferente e variado mundo oriental, com que os portugueses apenas vinham de entrar em contacto – o simples boticário achou-se, de repente, guindado a embaixador, para afinal vir a morrer ignoradamente, depois de tanta desilusão, ignomínia e sofrimento, perdido e esquecido numa terriola qualquer dessa China imensa, cujo mistério e riqueza tanto o haviam seduzido. O nome de Tomé Pires é mais um a inscrever entre os de tantos dos seus compatriotas que pagaram o mais alto preço pela honra de bem servir a Pátria e a Humanidade”. Londres, Abril de 1945, Armando Cortesão. Foi para comemorar os quinhentos anos do manuscrito Suma Oriental que, sobre a base do trabalho de Armando Cortesão e documentos dos arquivos chineses que têm visto tradução em português e transmitidos por muitos dos actuais historiadores de quem me socorri, fizemos esta longa viagem pelo percurso de Tomé Pires, esperando ter ficado o leitor, que acompanhou os episódios desta aventura, com uma visão sobre a acção e as dificuldades dos portugueses no primeiro período de relacionamento com a China, entre 1513 e 1522.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs interesses da embaixada [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e Duarte Coelho foi um dos responsáveis pelo início das hostilidades navais com os chineses, apesar de Joaquim Veríssimo Serrão dele dar uma imagem de homem honrado e ilustre diplomata, anteriormente, já Simão de Andrade, sem tacto diplomático, “cometeu um erro que originou o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais”, como refere João Paulo Oliveira e Costa, e, “após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão, que tem sido, desde as dinastias Tang (唐, 618-907) e Song (宋, 860-1279), um importantíssimo empório para o comércio externo chinês. As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.” Com os dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses, em 1522 terminou “o primeiro período que começara com a chegada de Jorge Álvares à China em 1513”. Iniciava-se um novo ciclo “em que os Portugueses começaram a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que acabou” em 1549 “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó” Revisitar os Primórdios de Macau. O antigo Sultão de Malaca “As petições do enviado do antigo sultão de Malaca, ferozmente anti-portuguesas, encontraram um renovado acolhimento na corte imperial, onde foram analisadas pelo libo (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão: O libo de Cristóvão Vieira corresponde ao Tribunal do Ritos pequinense, que estava encarregado de organizar o protocolo das missões tributárias (Hugh b. O’Neill, Companinon to Chinese History). A partir das informações, algo confusas, do prisioneiro português, pode deduzir-se que em finais de 1521 a missão de Tutão Mafame rumou novamente a Pequim, onde pôde apresentar as suas razões em audiência imperial. O embaixador malaio queixava-se da abusiva conquista de Malaca pelos portugueses, pedindo a intervenção militar do Filho do Céu para repor a legalidade, ao mesmo tempo que denunciava a embaixada de Tomé Pires como missão de espionagem. Subsequentemente, os malaios foram reenviados para Cantão, com a promessa de que brevemente [lhe mandariam o despacho]”. E continuando no Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “A decisão imperial, com efeito, não tardou, após o lipu ter deliberado que [a terra dos franges devia ser cousa pequena chegada ao mar], uma vez que [depois que o mundo é mundo nunca viera a terra da China embaixador de tal terra]. O Imperador Jiajing (1522-66) ordenou, em primeiro lugar, que a carta do monarca português fosse queimada. Depois, o presente trazido por Tomé Pires devia ser recusado. Em terceiro lugar, o embaixador e os membros da sua comitiva deviam ser aprisionados e mantidos como reféns. Ou seja, a China não reconhecia a missão portuguesa como embaixada tributária formal. Finalmente, as autoridades provinciais deveriam escrever a el-Rei D. Manuel e ao seu representante em Malaca, com instruções peremptórias para que esta cidade fosse devolvida ao seu legítimo soberano. Após a entrega da praça ao antigo sultão, Tomé Pires e os restantes prisioneiros seriam libertados. Caso o Rei Venturoso desrespeitasse as decisões imperiais, realizar-se-ia um novo conselho. Entretanto, os navios portugueses deveriam ser rigorosamente impedidos de visitar portos chineses. (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão. Para T’ien-Tsê Chang, a conquista portuguesa de Malaca, que viera perturbar o equilíbrio político-militar no Sudeste Asiático, foi o factor determinante no fracasso da embaixada de Tomé Pires (Malacca and the failure)” Rui Manuel Loureiro. “Com a denúncia dos emissários do desapossado sultão de Malaca, ficou apurado o facto – já tão bem conhecido pelas autoridades de Cantão como pelas centrais, mas omitido de propósito pelos mandarins e eunucos junto do Imperador – de que eram mandados pelo país Folangji, que conquistara a cidade, tributária da China. Mesmo assim, a Corte só mandou executar os intérpretes sob a acusação de terem trazido à China estrangeiros e não maltrataram os membros não asiáticos da embaixada” Revisitar Os Primórdios de Macau. E ainda desse livro: “Quanto aos contactos com a Corte, (…) foi Ning Cheng, quem fez este favor aos Portugueses porventura em troca de algum presente ou suborno”. Sem ordem de prisão Encontrava-se desde 22 de Setembro de 1521 Tomé Pires e os restantes membros da sua comitiva em Cantão, mas só a 14 de Agosto de 1522 foram formalmente acusados de entrarem em território chinês sob falsos pretextos. Altura em que decorriam nos mares de Cantão os confrontos entre a armada chinesa e os navios de Martim Afonso de Melo Coutinho. “Quanto à rejeição da embaixada, inicialmente, quando os Portugueses foram mandados de volta a Cantão, não houve ordem de Pequim para deter a embaixada em Cantão, como bem elucida um trecho do diário de Yang Tinghe, o ministro mais influente dessa altura: (…) quanto aos bárbaros de Folangji, mandem-nos sob escolta de volta para Cantão, onde ficarão à espera de novas ordens de Baofang (Casa de Leopardo). Esta ordem foi dada como correspondendo à vontade expressa pelo Imperador Zhengde no seu testamento, mas a verdade é que foi preparada postumamente por Yang Tinghe que exerceu a regência durante a sucessão, juntamente com a Imperatriz-Mãe. Pelas fontes chinesas, sabemos que no momento do falecimento do Imperador Zhengde, o quase regente Yang Tinghe, por uma questão de segurança da capital, tomou muitas medidas, das quais algumas implicavam o repatriamento de embaixadas, tais como as de Qomul, Turfan e a de Portugal, que se encontravam em Pequim, além da execução do eunuco Jiang Bin, entre outros protegidos do Imperador Zhengde. Como o falecido Imperador não deixou descendentes, o vácuo do poder poderia dar lugar a uma renhida luta pela sucessão entre os diferentes ramos da casa imperial, como costumava acontecer nestes casos. Assim sabemos que o principal motivo do reenvio da Embaixada de Tomé Pires para Cantão se ficou a dever a uma questão de segurança nacional.” “A questão é que a vinda da Embaixada de Tomé Pires para Cantão terá sido interpretada pelas autoridades provinciais como um claro sinal de rejeição dessa missão. Para esconder a sua cooperação e participação neste processo passível de ser considerado como uma fraude, uma irregularidade que poderia custar a carreira e até mesmo a própria vida a essas mesmas autoridades, caso fosse descoberta, houve, pois, todo o interesse em silenciar o caso. Entretanto, chegou de Pequim a ordem de deter a embaixada, tomando os seus membros como reféns até à desocupação de Malaca. Daí que, como nos informa Cristóvão Vieira, as autoridades de Cantão passassem a perseguir implacavelmente os Portugueses com todas as acusações possíveis e imagináveis e com todos os meios ao seu alcance” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang. O presente real Quanto aos presentes destinados ao Imperador chinês, pelas fontes portuguesas, sabemos que o embaixador Tomé Pires os levou; todavia, até agora não foi possível localizar nenhuma lista, embora haja muitas referências a eles. O que levou Rui Loureiro a colocar estas questões: “O presente para o Imperador nunca é descrito na documentação quinhentista. Por mero lapso? Ou talvez porque a missão de Tomé Pires não tinha o estatuto oficial de embaixada e, como tal, o presente que transportava não era significativo?” De novo no Revisitar os Primórdios de Macau de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “Em nosso entender, dado que a primeira missão diplomática portuguesa junto da Corte chinesa foi uma iniciativa lisboeta e o embaixador seleccionado e nomeado pelo vice-rei da Índia, o presente destinado ao Imperador da China foi preparado in loco e de modo improvisado. Talvez esta tenha sido a razão da insignificância dos presentes. No entanto, a pobreza da oferta leva-nos a crer que a primeira missão diplomática portuguesa teria mais por objectivo um reconhecimento do terreno do que apresentar-se como uma embaixada propriamente dita, como nos revela António Galvão: ” Revisitar os Primórdios de Macau. E nele continuando: “Ora, também este documento chinês tem esse mérito: o de preencher uma lacuna multissecular na historiografia portuguesa das relações luso-chinesas. Analisando o conteúdo da lista, não podemos dizer que fossem presentes preciosos em extremo. No entanto, não eram de preço menor. Para isso, é interessante ver as componentes desta relação. O objecto que lidera o inventário é o coral em rama, que era muito apreciado na China imperial”. Mas, como objecto de maior valor que vinha no presente, para além de alguns tecidos e vidros, “os portugueses incluíram um espadagão de três gumes e outro terçado de ferro, uma escolha diplomática prudente a substituir as armas de fogo, que tanto poderiam causar admiração como suspeita.” A observação de que “o cabecilha costumava ler livros” confirma que Tomé Pires era um homem culto e amigo da leitura” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
Hoje Macau Política“Nada Tenho de Meu” – #02 “Nada Tenho de Meu, um Diário de Viagem no Extremo Oriente” Autoria: Miguel Gonçalves Mendes, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca Montagem: Pedro Sousa Narrador: Siung Chong Desenho de Som: 1927 Audio Tema Original: Pedro Gonçalves Produção: JumpCut
André Ritchie Sorrindo Sempre VozesThe Boys from Macau 2.0 [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á duas semanas atrás aprendi que não devo abordar publicamente temas relativos à tutela onde outrora trabalhei, pois corro o sério risco de ser mal interpretado, conforme aconteceu com uma entrevista recente que dei. Tal foi a coisa que o Macau Concealers (*) até se deu ao trabalho de traduzir para chinês afirmações minhas tiradas fora do contexto e que, deste modo, se tornaram bombásticas e incoerentes com a minha pessoa. Conclusão: tive direito a uma valente sova no Facebook. É pena, pois até gostava de abordar de uma forma construtiva a 3ª fase de auscultação pública do Plano Director dos Novos Aterros e dizer o que penso da proposta que é ora colocada para discussão. Fica para outro dia. Mudemos de assunto. Quando era miúdo, uma coisa que me dava particular prazer era acompanhar as histórias antigas de Macau contadas pelos amigos dos meus pais e avós. Uma que me despoletou particular interesse foi contada pelo tio Joca (**) no Solmar. O tio Joca, tal como muitos macaenses nascidos na primeira metade do século XX, viveu e trabalhou uma temporada em Hong Kong. [quote_box_left]A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional[/quote_box_left] Se o caríssimo leitor desconhecia esse fenómeno, fique então a saber que, nos tempos coloniais, chegou a existir uma forte presença portuguesa na vizinha cidade de Hong Kong. Sobre esse tema existe, inclusivamente, um livro muito interessante, da autoria de Luís Andrade de Sá, intitulado “The Boys from Macau” (***). Conforme se lê na contra-capa dessa publicação: “ (…) Foi a Macau e aos seus portugueses que os britânicos recorreram para criar a administração pública e para montar as companhias comerciais quando foi fundada a nova colónia, em 1841. (…) Havia portugueses em todos os sectores – na justiça e na banca, na função pública, de armas na mão em defesa da colónia, no desporto, nos jornais e nas igrejas. (…) ” O tio Joca trabalhou na banca em Hong Kong. No Solmar, enquanto tomava café com os meus pais e o meu avô Lourenço, contou-nos como na entrevista de trabalho foi posta à prova o seu domínio da língua inglesa; os calafrios que sentiu no primeiro dia de trabalho, quando engolido pelo grandioso lobby de entrada do banco; e, ainda, o bom relacionamento que conseguiu logo estabelecer com os executivos do banco, todos eles britânicos, de quem mereceu rapidamente a confiança, traduzindo-se em promoções sucessivas que inevitavelmente criaram inveja interna. Assim termina a história do tio Joca? Não. As boas histórias têm sempre um final potente e essa não foge à regra. Mas já lá vamos. Conforme é já sabido, recentemente desvinculei-me da função pública para aceitar um novo desafio numa das operadoras da indústria do jogo. Tendo iniciado as novas funções há cerca de dois meses, algo que me surpreendeu desde logo foi o número de portugueses e de macaenses que trabalham na empresa. Foi para mim uma verdadeira e agradável surpresa. Todos os dias falo português com alguns colegas meus e ouço falar português quando me cruzo nos corredores da empresa com funcionários portugueses e macaenses, sendo que alguns até conheço dos tempos do Liceu. Trata-se de um ambiente muito diferente do da função pública onde trabalhei nos últimos 12 anos. Não pretende esta ser uma crítica ao Governo face ao reduzido número de portugueses que se tem vindo a contratar ou à falta de uso da língua portuguesa na administração pública. Nesse aspecto fui sempre muito frio e realista. Há coisas que temos de aceitar e essa é uma delas. Com a excepção das áreas da justiça e do Direito, onde a presença da língua portuguesa é forte pelas razões óbvias que nem vou aqui mencionar, temos de aceitar que, com a transferência de poderes e a localização dos cargos de chefia, o chinês passou necessariamente a ser a língua veicular de trabalho. E com isso, naturalmente, a estratégia de contratação de pessoal tomou outro rumo e, acrescente-se, a cultura de trabalho passou também a ser outra. Para o bem e para o mal. Precisamente por essa razão, pese embora tenha sido funcionário público ao longo de tantos anos, aos meus conterrâneos acabados de regressar do estrangeiro com um canudo na mão, sempre os aconselhei a procurarem alternativas na privada. Sobretudo se não forem bilingues em pleno, com perfeito domínio oral e escrito da língua chinesa, pois actualmente o nível de exigência é outro. O chinês de rua, do tai má ti, chu tak ng chu tak, que antigamente servia para desembaraçar as chefias portuguesas, já hoje não serve. Não tenho nada contra o Governo – que, aliás, foi para mim uma grande escola. Apenas me parece que está na altura de nós, portugueses em geral e macaenses em particular, abandonarmos a ideia de que na procura de emprego em Macau devemo-nos virar única e exclusivamente para o Governo. E que o Governo tem a obrigação de nos contratar. As coisas mudaram e temos de nos adaptar. A transferência de poderes e a abertura da indústria do jogo criaram um novo cenário. E se a função pública, antigamente, absorvia em grande quantidade a malta portuguesa e macaense, atrevo-me a dizer que, de certa forma, esse papel tem vindo a ser progressivamente desempenhado pela indústria do jogo, ainda que numa escala diferente. Posso estar enganado pois ainda sou muito novo nessa área. No entanto, quer me parecer que poderão estar aqui novamente reunidas condições para demonstrarmos a nossa utilidade, embora num ambiente culturalmente mais diversificado e profissionalmente mais sofisticado e competitivo, onde o inglês é a língua principal de trabalho. Uma espécie de The Boys from Macau, versão 2.0. Aparentemente, a nossa presença já se faz sentir. Ainda no outro dia fui apresentado da seguinte forma a um executivo da empresa: “This is Andre. He’s one of those locals who speaks all languages.”. Um reconhecimento dessa nossa particular qualidade e, simultaneamente, uma descrição simples e rápida do ser Macaense. Voltando então à história do tio Joca. Num belo dia de trabalho, o tio Joca vê-se repentinamente confrontado pelos executivos do banco por terem recebido a seguinte queixa: alegadamente, terá ido jantar com alguns chineses a uma tasca onde se servia carne de cão. Sentindo-se provocado e ofendido com a situação, por se ter apercebido do verdadeiro problema em questão, o tio Joca confirmou categoricamente essa ocorrência aos executivos, assumindo orgulhosamente a sua (outra) identidade cultural. Eram tempos diferentes e os executivos, naturalmente, não ficaram bem impressionados com essa atitude. Calculo até que se tenham sentido de alguma forma traídos. O que é certo é que a partir desse dia as relações azedaram e não houve mais promoções. Moral da história? A nossa hibridez cultural tanto pode beneficiar como prejudicar a nossa imagem e reputação, pelo que se torna fundamental sabermos onde nos queremos ou devemos posicionar do ponto de vista civilizacional. Não me canso de afirmar que nós, Macaenses, somos uma grande contradição. Controlar a percepção que os outros têm de nós não é tarefa fácil. Contudo, é estrategicamente fundamental. Não existe uma fórmula universal para isso, pois trata-se de uma questão muito pessoal. Mas, antes de mais, somos nós próprios que temos de perceber quem somos e como queremos ser vistos pelos outros. O problema é que tudo depende de que lado da cama acordamos. Sorrindo Sempre Tive duas semanas monocromáticas, nada de especial que mereça registo aqui neste espaço quinzenal. Assim, na ausência de uma história colorida para aqui contar, desta feita o Sorrindo Sempre assume um formato diferente, com rapidinhas curtas e boas: Portanto, sorrindo sempre quando: • Resisto à tentação de atropelar turistas que atravessam a rua de qualquer maneira; • Mal as portas do elevador se abrem, pessoas cheias de pressa entram na cabine antes de me deixar sair; • Sou tratado por “Sr. Engenheiro”, esclareço que sou arquitecto e respondem-me na tentativa absurda de remediar o embaraço: “mas engenheiro é melhor!”; • Conterrâneos meus tentam convencer-me a tirar o wui heong cheng (****) afirmando com firmeza que ao portador desse documento não é atribuída a nacionalidade chinesa, pese embora na imigração fazerem fila para o guichet “chinese nationals”, e isto apenas para não mencionar o que vem contemplado nos diplomas legais aplicáveis que tive o cuidado de estudar; • Deparo-me com ilustres que falam em termos absolutos e fazem acusações graves, quando na verdade não têm conhecimento de facto sobre o assunto em discussão; • Estou carregado de compras e as chaves estão no bolso que dá menos jeito; • … Sorrindo sempre. (*) 愛瞞日報 , espaço no Facebook onde são abordados temas locais de forma conspiradora e sensacionalista. (**) Nome fictício. (***) Edição da Fundação Oriente / Instituto Cultural de Macau. ISBN 972-9440-93-X. (****) Salvo-conduto emitido pelas autoridades chinesas.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasSchoenberg e Bartók, por exemplo [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]alou-se aqui das óperas que têm sido representadas em Macau ao longo da história do F.I.M.M. Adiantou-se que seria prático à iluminação dos espíritos e ao conforto das almas apresentar outro tipo de repertório. Para lá do F.I.M.M., integrado no Festival de Artes ou na temporada de espectáculos do C.C.M. poder-se-ia optar por mostrar ao público algumas óperas do século XX ou XXI. Lembrei-me de Erwartung e de O Castelo do Barba Azul, respectivamente de Schoenberg e Bartók, porque existe um artigo de Edward Said sobre um programa duplo, em Nova Iorque, que incluiu estas duas óperas – arranjo que não é invulgar uma vez que são sensivelmente da mesma época e exprimem um universo semelhante. São dois úteis modelos pois trata-se de peças com um conjunto mínimo de cantores. Erwartung tem apenas uma cantora e a peça de Bartók apenas dois. Posso acrescentar que são duas das minhas óperas preferidas do século passado. Intercale-se uma pequena nota. Von heute auf morgen, de Schoenberg, a sua única ópera cómica e a primeira obra a utilizar o sistema de 12 tons, tem cerca de uma hora e pede apenas 4 cantores. Glückliche hand, do mesmo compositor, um drama com música, é uma pequena peça de cerca de vinte minutos dividida em 4 cenas que pede apenas um barítono e um coro de seis homens e seis mulheres.* (Moisés e Arão, a outra das 4 óperas de Schoenberg, é um caso completamente diferente, uma obra em 3 actos – o último incompleto – com um conjunto “normal” de cantores e um coro que implica uma produção de maior peso). Tanto Erwartung como O Castelo do Barba Azul são peças subtilmente sedutoras pelo que escondem no seu negrume e na sua melancolia. Na peça de Schoenberg nunca percebemos bem o que se passa e qual a responsabilidade da mulher na morte do homem que esta encontra na floresta. Será que este existe ou é ele apenas uma expressão dos tormentos da mulher? O enigmático Barba Azul acompanha a sua recente mulher ao longo dos corredores do seu lúgubre castelo que, como a peça de Schoenberg, se situa num lugar indeterminado e dominado pelas trevas. A mulher da obra de Schoenberg não tem nome, é apenas die frau/a mulher. A esta sedução do desconhecido junta-se uma outra – a da sexualidade. Pelos corredores sinistros do castelo do Barba Azul e pelos recessos nocturnos da floresta de Erwartung demonstra-se uma sexualidade enigmática, por vezes fria, por vezes muito excessiva e expressiva. O gosto pela e o estudo da psicologia (que tem origens num complexo científico, intelectual e artístico em que a cidade de Viena teve um papel nuclear) tornara-se por esta altura uma moda que se estendera ao cinema, ao bailado, à ópera e a outros campos das artes. O mundo misterioso e sedutor da sexualidade, assim como o estudo dos sonhos e do subconsciente informam intensamente este período. Qualquer destas duas óperas pode ser vista como a descrição de um sonho (Schoenberg diz que Erwartung é uma espécie de pesadelo) em que a sexualidade tem um papel importante. Erwartung foi apenas representada em 1924 mas havia sido composta em 1909**, nove anos depois da publicação de Interpretação dos Sonhos, de Freud, e de vários outros estudos do mesmo autor, e três anos depois de um controverso livro do filósofo austríaco Otto Weininger (que se suicidou aos 23 anos) sobre sexualidade chamado Geschlecht und Charakter/Sexo e Carácter. Elektra, de Strauss, estreada em 1909, ano da conclusão de Erwartung, é uma ópera que tem sido igualmente apreciada através da perspectiva psicanalítica. É a época do triunfo da psicanálise, de Freud e de Breuer. Existe literatura que oferece uma interpretação de Erwartung que liga o texto desta peça directamente a um caso clínico específico – referente a uma paciente que seria parente da autora do libreto – constante em Studien über Hysterie (1895), de S. Freud e Josef Breuer. Exprime-se um compreensível fascínio por um mundo que se revelara aos poucos nos finais do século XIX e ao longo dos inícios do século XX. Esta é uma obra que tem uma longa carreira de representações até aos dias de hoje e que ilustra à perfeição a inclinação anti-realista, anti-naturalista, simbolista e expressionista que impregnava o grupo de Schoenberg em particular, enquanto demonstra o clima cultural geral prevalente na Áustria e na Alemanha no início do século XX. O palco e o canto, a ópera e o drama para música, são veículos modelares para a transmissão da transcendência, do misterioso, da sedução labiríntica do interior do indivíduo e do universo dos sonhos e da sexualidade. Alerte-se que à solista desta peça de Schoenberg se pede um esforço maior. Uma produção com uma cantora que não esteja à altura pode trazer resultados desagradáveis. No entanto, garantida a qualidade, é difícil não nos deixarmos seduzir pelo tormento expressionista desta mulher solitária que parece (nada nesta peça é claro) tentar encontrar, na escuridão da floresta, respostas para o destino do seu amante e do seu amor. O Castelo do Barba Azul tem seduções semelhantes, um lugar sinistro e soturno onde se cria a expectativa de um desfecho funesto. A recém mulher do Barba Azul, Judite, pede ao seu marido que lhe abra as 7 misteriosas portas que se encontram no castelo. Por trás de cada uma delas há objectos, jardins, um lago de lágrimas, etc., cobertos de sangue, testemunhos do passado do Barba Azul, um que Judite parece conhecer e querer obsessivamente confirmar, um passado escuro e enigmático sobre o qual Judite, através do poder do Amor, tenta lançar uma luz redentora. Paralelamente, é a sua obsessão em desvendar que a chama ao inevitável engolimento. O Barba Azul, por sua vez, abandona-se, sem conseguir resistir, ao apelo do destino. Ao aproximarmo-nos da última porta aumenta a tensão da peça, uma de infinitas possibilidades cénicas. A música, tonal, é sempre misteriosa e inquietante, de uma cor lúgubre e labiríntica. Exige também um esforço grande para os intérpretes que durante cerca de uma hora não param de cantar – praticamente não há partes unicamente orquestrais.*** A extrema concentração em apenas um pequeno episódio da história do Barba Azul (ao contrário do que acontece com Ariane e o Barba Azul, de Dukas, estreada em 1907) ajuda a manter intacto o desassossego que caracteriza a peça, um pouco como acontece com Erwartung, cuja curtíssima duração cria uma focalização feérica, fortemente obsessiva. Se estas são duas óperas bastante conhecidas muitas outras se compuseram no século XX e XXI de apresentação desejável. Sem Strauss, Schoenberg, Alban Berg, Debussy, Janacek, Hindemith, Krenek, Britten, Henze, Birtwistle, Stockhausen ou John Adams é impossível compreender a evolução de um género musical que tem vindo a ganhar uma importância cada vez maior. Estimo que o número de óperas compostas no século XX e XXI seja, no mínimo, entre 850 a 900. * foi notado num dos artigos anteriores que existem, nos séculos XX e XXI, muitas óperas de curta duração. ** um ano de brilhos, em que Schoenberg compôs, no Verão e no início do Outono, além de Erwartung op. 17, as Três Peças para Piano op. 11 e as Três Peças Orquestrais op. 16. Duas das óperas mais interessantes deste período, ousadas e enigmáticas também, Salomé e Elektra, de R. Strauss, respectivamente de 1905 e 1909, são testemunho de como a herança cromática wagneriana sofria constantes re-valiações e de como o retrato de mulheres em situações de extrema perturbação carrega uma extrema sedução. Hofmannsthal estava a ler Studien über Hysterie (1895), de Freud e Breuer, quando escreveu Elektra (cf. 2005, The Cambridge Companion to Twentieth-Century Opera, Ed. Mervyn Cooke, pág.48), um fio intelectual que chega naturalmente a Erwartung. *** existe uma versão filmada, de 1963, realizada por Michael Powell, muito datada cenicamente (e por isso interessante) e interpretada por Norman Foster e a bela Ana Raquel Satre.
Carlos Morais José EditorialJust one of those things Para Cole Porter, com mesurada vénia [dropcap style=‘circle’]É[/dropcap]só mais uma daquelas coisas. Daquelas que começam de repente sem aviso nem sufrágio. Não conseguimos perceber bem de onde vêm. Sabemos que chegam e invadem os territórios que cuidávamos sagrados. São hábeis, são cruéis de tão belas, dotadas de graça sem consciência do mal bom que disseminam. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que nos deixam uma certa cicatriz, um sulco inolvidável, um cheiro que teima em persistir depois de uma catarata de remorsos nos ter passado pelo corpo. É bom e é inútil na sua inevitabilidade. Não nos larga e não nos agarra. Permanece sem querer e parte quando exprime o desejo de ficar. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que não podemos controlar, que nos possuem num ápice e cujo desaparecimento anunciado nos aterroriza. São assim essas coisas que são só mais uma: belas e terríveis, doces e amargas, indecentes e sem pecado. Deixam-nos calados e fazem-nos falar como se fôramos possuídos. Não sabemos o que dizemos, mas há um pânico que nos impele, uma porta que se fecha no horizonte e onde teremos rapidamente de chegar, como no mais insone dos nossos pesadelos. É só mais uma daquelas coisas. Daquelas que nos ultrapassam pela esquerda baixa e sem contemplações. Como a tempestade que se forma sobre o mar. É o poente. E nada mais. Só uma daquelas coisas, só um Verão oculto nas promessas de uma divindade inexistente. É só mais uma daquelas coisas. É só mais uma daquelas coisas…
André Ritchie Sorrindo SempreUma Macaense Uyghur [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]xiste um ditado chinês que, em tradução livre, diz: “não se receie uma vida mal destinada; receie-se antes um nome mal escolhido”. (*) Pretende este ditado sublinhar a importância que a escolha do nome tem para os chineses, tratando-se de um processo meticuloso e profundo em que são analisados os significados de cada caracter, bem como o sentido, a sonoridade e o número de traços do conjunto todo. É uma operação que reflecte perfeitamente a riqueza da cultura milenar chinesa. Todavia, é comum por estas bandas a adopção de um nome em inglês para facilitar a interacção diária, já que no nosso ambiente multicultural essa é frequentemente a língua veicular utilizada. Neste contexto, o que até hoje ainda não consegui perceber é por que razão o mesmo cuidado não é tido na escolha desses nomes adoptivos em inglês. Por cá existem indivíduos com nomes ingleses fantasticamente surreais. Se o caríssimo leitor desconhece esse fenómeno, tenho então a seguinte proposta a fazer: vá ao McDonald’s mais próximo de si e veja os nomes que os funcionários ao balcão trazem no peito. Já vi Zombie, Milk e até Wasabi. Falo, naturalmente, de forma generalizada. Há também casos interessantes em que o nome em inglês é coerentemente escolhido em função da sonoridade do nome em chinês. Por exemplo, conheço uma rapariga chamada Mak Hoi Lan (para quem não sabe: Mak é apelido e Hoi Lan é nome) que se chama Helen Mak em inglês. O resultado parece-me bastante feliz. Delicio-me com essas coisas que são para mim de grande interesse pois evidenciam a cultura híbrida a que estamos expostos aqui nesta parte do mundo. Feita essa introdução, vou agora falar das caricatas situações que enfrento por causa do meu nome. Não o faço por egocentrismo, quando muito para expor o que nós, macaenses, temos de aturar dada a nossa natureza mestiça. O meu nome – André – foi sempre uma dificuldade para os chineses. Fui criado por várias empregadas chinesas e nenhuma foi capaz de pronunciar o meu nome correctamente. O melhor que se conseguiu foi An-Te-Lé. Sendo André um nome difícil para os chineses, toda a gente me trata por Ritchie, muito mais fácil por ser inglês (**). Como tal, sempre que qualquer chinês me pergunta pelo nome, digo “Ritchie”. E aqui começa a confusão, pois assumem que Ritchie é um nome de adopção, semelhante a Zombie ou Wasabi. Para complicar as coisas, na comunicação social em língua chinesa fiquei conhecido pelo nome Lei On Tak, concebido em 2003 quando regressei a Macau. Assim, tudo somado, frequentemente sou identificado como o Mr. Ritchie Lei. O problema é o trabalho que dá fazer as rectificações quando necessárias, pois tipicamente ficam a olhar para mim com um ar incrédulo. Até já fui contrariado: uma rapariga que, apontando para a face em chinês do meu cartão de visita, insistiu que o meu nome não era como eu dizia que era. Haja paciência. Entretanto, sou diariamente confrontado com um outro problema que já todos conhecem: a famosa vírgula do BIR. De um momento para o outro, em Macau passei a chamar-me “Xavier Sales Ritchie, André Duarte”. Aborrece-me o facto de, mesmo depois de séculos de presença portuguesa em Macau, a malta ser incapaz de perceber que nos nossos nomes o apelido principal é o último nome, e não o primeiro. Passei a ser Mr. Xavier. E o facto de Xavier ser um nome muito difícil para os chineses também não ajuda em nada. “Zeivier”, “Sáfiar”, “Ex-Eivier”, já me chamaram esses nomes todos. No outro dia recebi a chamada de um desconhecido que iniciou a conversa da pior forma, em inglês: “Hello! Is it Mr. Zei… Errr… Saf… Ahm…”. Tive de o acudir, mas fi-lo em cantonense e com um tom propositadamente seco: “Ouça, eu sou o Mr. Ritchie. Falo chinês. Vamos falar em chinês?” Pobre coitado… Ora, como poderia ele adivinhar que, com um nome tão complicado, do outro lado da linha encontrava-se afinal um sujeito fisicamente oriental e perfeito falante de cantonense? Contudo, os meus dramas não se limitam a Macau. Também sofro em Portugal: quantas vezes não me fizeram elogios despropositados, do género “Oh, mas o senhor fala tão bem português, fala português como um português!” Normalmente ignoro. Mas às vezes não me controlo e respondo torto: “Muito obrigado. O senhor também fala muito bem português. Onde aprendeu a falar tão bem?”. É antipático, eu sei. E as pessoas não têm culpa. Só que a paciência tem limites. Entretanto, como Ritchie não é um apelido português, em Portugal nem sempre é pronunciado correctamente: já me chamaram de Ricky, Rí-xe ou Rís-ti. Aliás, quantas vezes não tive de soletrar o meu apelido em serviços públicos, bancos ou simples reservas de mesa? Um dia armei-me em esperto e, ao telefone com um funcionário da Telepizza, identifiquei-me como “André Sales”, sendo este o meu apelido que vem antes do Ritchie. Reacção do outro: “Sales é com um L ou com dois L’s?”. Apeteceu-me dizer um palavrão. Felizmente, nem tudo no meu nome está mal: pelo menos não tenho nenhuma preposição. A minha mulher, por exemplo, tem o apelido “de Jesus” e é vítima de uma situação espectacularmente pitoresca: por causa da tal vírgula do BIR, em Macau passou a ser Ms. De! E como De (leia-se “dí”) soa a compatriota do interior da China, com as feições que tem devem pensar que é Uyghur! Isto tudo tem muita piada, mas também não tem: um conterrâneo meu esteve perto de perder um voo porque nos altifalantes fartavam-se de chamar pelo Mr. De e ele, naturalmente, não se apercebeu que era o destinatário da mensagem. Portanto, se o caríssimo leitor tem como apelido “dos Santos” ou “da Silva”, esteja atento e não diga que não avisei: passou a ser Mr. Dos ou Mr. Da. Enfim… Conheço inúmeras histórias semelhantes, mas fico por aqui e vou fechar o artigo regressando àquele ditado chinês para dizer o seguinte: (1) a minha vida está bem destinada, muito obrigado; e (2) não, apesar de tudo, não acho que o meu nome tenha sido mal escolhido. Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida. Em qualquer parte do mundo, até mesmo em Macau, ninguém consegue compreender que laia de gente somos nós. De resto, acho que nem nós próprios nos compreendemos. [quote_box_right]Quando muito acho que nós, macaenses, somos uma grande contradição. Frequentemente os nossos nomes não batem certo com as nossas feições que, por sua vez, não batem certo com a nossa forma de ser e de estar na vida[/quote_box_right] Sorrindo Sempre No ginásio que frequento há um tirano que tem a mania que tudo o que lá está foi feito para o uso exclusivo dele. No seu universo os outros utentes não existem. Entra na sauna e, sem o consentimento dos presentes, deita água em grande quantidade para cima das pedras. Mas depois não se aguenta nem um minuto: abandona o recinto, deixando os outros lá dentro a ferver com as altas temperaturas. Eu fervo a dobrar: de calor e de raiva. Sorrindo sempre, é verdade. Mas no outro dia coloquei um travão: enquanto corria na minha máquina preferida, que tem uma televisão à frente, o dito chega, instala-se na máquina ao lado e decide mudar de canal sem me dizer nada. Quer dizer, estava eu muito bem a assistir a passagens de modelos do Fashion TV com umas mulheres bestiais e, de repente, tenho pela frente um crocodilo do National Geographic a comer um animal vivo, com sangue a jorrar por todo o lado? Com muita calma, paro a máquina de corrida, saco o comando da televisão e mudo novamente para o Fashion TV. Mais: tiro as pilhas do comando e meto-as no bolso. Isso tudo sem dirigir um único olhar ou palavra ao tirano. Chupâ ovo. Retomo tranquilamente o meu exercício. Quando acabo, recoloco as pilhas no comando e, como o tirano ainda corria, mudo para o National Geographic. O crocodilo estava morto e todo aberto, a ser analisado em laboratório. Ele acenou e sorriu para mim (o tirano, não o crocodilo). Às vezes, viver em Macau é também assim. O conceito da multi-secular amizade abarca essas situações. Não se trata apenas de nos entendermos bem com o próximo. Acima de tudo, temos é de nos desentender bem. E foi assim durante séculos. Sorrindo sempre. (*) 唔怕生壞命,最怕改壞名 (ng pa sáng wai meng, choi pa koi wai méng). (**) Na verdade, não é inglês porque Ritchie deriva de Ricci: o meu antepassado era italiano e veio de Palermo no séc. XIX
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs torna-viagens [dropcap style =’circle’]O[/dropcap]Brasil tornou-se desde a sua origem o grande mito português de uma causa mais vasta que a própria noção territorial, um vasto significado de mitos de um Império renascido na mais plural vertente humana e de uma necessidade de aludir ao conceito da osmose daquilo que ficou conhecido por «Filosofia Portuguesa» e que teve os seus arautos, após, e sempre mais fundamentadamente, depois da sua existência. Estamos no Reino do Quinto Império, negado que nos foi o encontro com o Rei do Mundo, o tal Prestes João. Nunca, como aqui, depois de uma longa conversação com os homólogos espanhóis, nos pareceu tanto o fruto de uma habilidade e proveniências divinas. O mais vasto continente da América Latina era sem dúvida a nossa «Ilha dos Amores», o culto do Rei Midas e todas as coisas com que tecer o mito ardente de uma Terra Prometida. Multirracial, fraterno, rico, grande, estava concluída a saga dos navegadores, com êxito. África nunca produziria o mesmo encanto nem as praças fortes a Oriente. O Brasil era a nossa estrutura arquetípica, resultado de uma busca de espaço e de exotismo que na mente se buscava e seria necessário acontecer. Com as guerras napoleónicas a fuga do Rei tornou-se um marco de preservação daquilo que devia ser mantido a todo o custo, ficando o território nacional para segundo plano nos momentos mais difíceis. Quanto a mim, esta atitude revela uma inquietante indulgência territorial para com os invasores, transmitindo-lhes a segurança de governar um Reino sem retaliações maiores. Portugal perde credibilidade e autonomia com esta fuga que até hoje não conseguiu recuperar. Um Rei que foge devia ser punido pela História, que foge porque o seu país é atacado, diga-se. Mas Portugal jamais reagiu a tal aviltamento, o facto de ser o Brasil o local da fuga iliba o monarca aos olhos do país. Com ele, foi um séquito, um mundo hierarquicamente constituído e não faltaram os fidalgos de província que, cansados de morgadio peninsular, quiseram novos escravos, mais genuínos e dóceis. Uma fidalguia desgastada e enraizada em modos feudais dá agora azo à sua megalomania, fundando um complexo conceito social, onde eles reinam de forma autónoma. E, assim, a noção de um Império é lá que se funda com o primeiro Imperador. Da ala liberal nascem paradoxalmente os grandes e primeiros bastardos da Nação. É preciso inovar na base de uma mensagem vinda de outros locais e esquecer, como em 1383-85, o Povo. A partir de um certo momento há que fazer como todos fazem se, se deseja a noção de “status”. O Povo é sempre essa massa anódina de mercenários e valentes que se levantam quando as causas e os discursos não resultam. Certos de que ele no seu labor de séculos há-de aguentar – por outro lado há quem não possa partir – o território tem de estar assegurado por aqueles a quem a vida dura não permite sonhos de grandeza. Há que guardar a reserva daquilo que o fez acontecer mantida a duras penas, dado que os Governos a partir daí foram formações de ajuda a outros Impérios, quiçá, não tão belos, mas mais poderosos. Aquilo que consideramos pequeno fica para o fim, e assim, sem atenção às gentes, Portugal se foi tornando paralisante, em cada etapa mais agonizante, dando para sempre a ideia de quem aqui fica não foi bem sucedido. Mas toda esta noção implicou uma constante falta de rigor e a mais básica noção de Estado, eles são feitos para as pessoas e não o contrário. E assim nos fomos tornando aventureiros, numa aventura de sobreviventes que correm contra o seu próprio mito. Foi destas águas muito turvas que nasceu o fazer improvisado, o milagre da acção, a vida enquanto excepção e nunca como regra. Ficou-nos o sabor amargo dos que se vão quando mais precisamos deles, a desconfiança nos Governos, a deriva das ilusões. Desenvolvemos uma psicose colectiva que é a megalomania “ o melhor do mundo, o maior do mundo, o mais poderoso do mundo, o ardor infinito pelos nossos egos abandonados à loucura do transtorno… uma infinidade de sintomas digno de diagnósticos e de ajudas. Em vez de nos exaltarmos colectivamente na base da justiça ou da fraternidade, tornámo-nos sagazes nas artes do enredo, mesquinhos a ver o outro, medrosos a negociar, com artimanhas tais que cada um quer ser o poder de um centro que lhes falta. Há uma periferia amarga muito para lá da geográfica, e, como que aluados olhamos o mar de onde nos vem um horizonte sem lei para nos perdermos por aí fora. A terra fundada é um local onde se sofre. Mansamente, porque a escala contém as vontades e os ritos marciais que fariam bem para desanuviar os traumas. Não sendo possível anular a agressividade, comemo-la como um espectro abafante dando origem a uma má postura física e uma enevoada visão psíquica. O rebordo destas duas faz-se muitas vezes pela auto-imagem desgastada até às calendas de um inferno qualquer, e, como reféns, vivemos no torpor de todas as prisões. Claro que continuamos a ir para o Brasil, é lá que ainda está a «Ilha dos Amores» ou ele vem até cá para nos mostrar o quanto estamos cansados. Os homens portugueses amam o exotismo erótico do povo que ajudaram, pensam, paternalmente a construir, dá-lhes a soberania dos machos Alfas, ao lado das suas mulheres, que eles por séculos abandonaram, e se tornaram dirigistas e muito responsáveis nas acções, a mulher portuguesa é quase um macho disfarçado . É valente, sim. Esteve quase sempre a sós ao comando da Nação. A protecção que lhes é devida, foi e continua a ser muito baixa. Eles que já são poucos e se vão, fundam novos sistemas “coloniais” abraçando as causas que lhes foram negadas enquanto machos dominantes. Neste vaivém, quem fica para trás, que sobreviva, porque também a própria estrutura e justiça da época não está para contemplar o feminino. Levando os levantes de literaturas há muito gastas no Velho Continente, montam as suas bancas de uma inventividade que passou e de uma originalidade que foi palco vai para uns cem anos. Transportam assim os fantasmas de uma modernidade que nunca viveram e com ele encantam indígenas e anfíbias populações autóctones. Não seria possível brilhar tanto entre aqueles que sabem mais. Por isso, estendem lá as suas tendas de “artes mágicas” quase sempre falhas de talento, mas ousadas na acção, e sempre malsã, de antigos colonos. Não falando na grave forma do ninho de víboras dos nazis e vândalos europeus que se escondem na selva Amazónica e de toda a espécie de condutas que o Velho Continente não quer, eles têm a largueza que se estreita cada vez mais a nossos olhos. A mentalidade de antigos negreiros não foi abolida e, por vezes, existe na memória colectiva, tensões. O Instituto Camões padece de soberania nacional tendo-se tornado um feudo da cultura brasileira, que fazem teses, milhões de teses acerca do Eça de Queiroz. Não passaram de um certo realismo de opereta, na vasta sanzala de uma cultura artificial. Salvam-se os poetas, dos melhores da Língua Portuguesa mas que, dados à economia verbal e à beleza pujante, nem sempre têm como mereceriam aqui lugar. O território é deles, cantam, dançam, levam a “boa-nova” como outrora nos seus casarios de fidalgos de província. Nunca deixaram de o ser perante uma elite embevecida com os antigos amos. Os que ficaram, porém, muitos foram literalmente corridos- dos bons- não precisaram de fugir, e quando a Nação estava mais triste do que nunca, ainda lhe apararam as lágrimas deixaram testemunho das suas inolvidáveis obras, e com estranho amor ainda lhe sorriram. Não tiveram pedaço de terra que fosse sua, foram maltratados em todos os regimes e continuaram sonhando um país, afinal, que lhes deve tudo. O resto são mercadores, torna-viagem, esperteza saloia e incómodo ao próprio génio de ser. São esses que farão sempre falta a uma Nação assim, paralisada e imprópria, para o melhor das suas gentes. Se morrer fosse tão fácil como deixar de existir, diria que o sol dos trópicos os há-de queimar para sempre no coração da Nação que, cansada de abutres, está agora a tentar sobreviver ao último estandarte da usura desenfreada, tal qual fizeram com o ouro que lhes veio do Brasil, numa ânsia de fazer brilhar o país de todas as ruínas.
Hoje Macau Política“Nada Tenho de Meu” – #01 “Nada Tenho de Meu, um Diário de Viagem no Extremo Oriente” Autoria: Miguel Gonçalves Mendes, Tatiana Salem Levy, João Paulo Cuenca Montagem: Pedro Sousa Narrador: Siung Chong Desenho de Som: 1927 Audio Tema Original: Pedro Gonçalves Produção: JumpCut
Rui Flores VozesA gendarmerie de África [dropcap]E[/dropcap]nquanto os Estados Unidos da América (EUA) têm desempenhado, nalguns casos com particular desvelo, o papel de polícia do mundo, a França, por seu lado, tem-se mostrado muito confortável no fato de gendarme do continente africano. Os casos de intervenção das forças armadas francesas sucederam-se durante o século XX. Este novo milénio tem mostrado a mesma tendência. Embora com o Presidente Jacques Chirac, na sequência do papel desastroso desempenhado pela França no Ruanda, tenha parecido que os franceses se estavam a afastar de África, as recentes intervenções autorizadas por Hollande, na República Centro-Africana e no Mali, reforçaram esse papel de polícia do continente africano. Ao contrário de Portugal, que fez a descolonização pela batuta do processo revolucionário em curso, com um resultado final que pode ser resumido pela ideia de uma debandada institucional generalizada – afinal, Portugal combatia os movimentos de libertação nacional em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e estava à beira de uma guerra civil –, as circunstâncias da continuidade da ligação militar de Paris com as suas antigas colónias são diferentes. Acima de tudo – e esta é a principal diferença – a França procurou continuar a ligação orgânica com as colónias e tratou de garantir que os novos regimes africanos a aceitavam como o mais relevante parceiro – senão o único – no sector estratégico da cooperação e assistência técnica militares. Em troca, Paris requeria apoio nas votações nas Nações Unidas. Simples, bonito e eficaz Na verdade, essa proximidade não foi muito difícil de estabelecer. Como no caso das antigas colónias portuguesas, a maioria dos líderes políticos que saíram dos processos de independência tinham grandes proximidades com o antigo poder colonial – ou haviam estudado na “metrópole” ou tinham até tido papéis de destaque no aparelho colonial. Criaram-se pois redes de contactos mais ou menos informais que tiveram em Jacques Foccart, assessor do Presidente Charles de Gaulle e responsável pela célula africana dos serviços secretos, o principal impulsionador desta relação privilegiada. Esta relação de proximidade adquiriu um nome próprio: “Françafrique”, que chegou aos dias de hoje e que expressa uma certa intimidade entre as elites africanas e o poder em França traduzida, na prática, pela manutenção de generosos orçamentos da Europa para o continente africano. Quem o inventou foi o primeiro presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouet-Boigny, logo em 1973. Passados mais de 40 anos, a relação de proximidade com a África sub-sahariana mantém-se. Num recente artigo para a Political Science Quarterly, a revista académica publicada pela Academia de Ciência Política de Nova Iorque, o investigador francês Victor-Manuel Vallin faz o balanço desta relação especial. A França mantém acordos de cooperação militar com oito países africanos, alguns da sua esfera de influência tradicional (como são os casos do Senegal, Costa do Marfim, Benim, Camarões, Gabão, Republica Centro-Africana, Comoros) e outros mais recentes, mas com uma importância geo-estratégica capital (como é o caso do Djibuti, país onde a França instalou uma das suas maiores bases militares em África e onde, além dos EUA, está presente o Japão que, em 2011, estabeleceu ali a sua primeira base militar no estrangeiro desde o final da II Guerra Mundial). Estes acordos de defesa implicam nalguns casos a manutenção de uma presença militar no país. A França tem bases no Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Costa do Marfim, Níger, Chade, Gabão, Republica Centro-Africana e Djibuti. Estas têm como principal objectivo contribuir para a manutenção da ordem pública – leia-se o status quo, que a alteração de regime pode sempre pôr em risco os interesses nacionais. Mas Paris mantém também nestes países um número considerável de assessores (e não apenas nos Ministérios da Defesa), que aconselham as autoridades na definição das diferentes políticas. Durante a minha estada na República Centro-Africana, por exemplo, conheci vários destes assessores que tinham acesso privilegiado ao ouvido dos respectivos ministros. Estes assessores constituem uma fonte considerável de informação sobre a situação do país, o que dá à França a upper hand em termos de conhecimento rigoroso do que se passa de um ponto de vista politico e militar, que faz dela um caso único, por exemplo na África Central. Esta proximidade levou ao estabelecimento de academias militares, em 17(!) países, com as quais a França gasta 10 milhões de euros por ano e nas quais os militares franceses dão formação à futura elite castrense. Este é um papel decisivo para a afirmação internacional da França. É no continente africano, por exemplo, que a língua francesa tem capacidade de crescimento. Não é em França, na Bélgica ou na Suíça, ou mesmo no Canadá, que o francês pode sonhar de novo em desempenhar um papel de destaque na política internacional, como tinha no início do Século XX, em que era, ainda, a língua da diplomacia internacional, um papel que desempenhou em regime de monopólio praticamente desde o Século XVII. São agora longínquos os tempos em que os diplomatas britânicos e americanos usavam o francês para vincular a posição dos seus Estados. Mas França já não está só neste papel de polícia voluntário do continente africano. Há outros actores no continente a ganhar destaque. Desde logo, os EUA. No âmbito da luta contra o terrorismo, Washington aumentou consideravelmente a presença em África, onde criou, em 2007, o Africom, um comando militar dedicado para o continente. Essa vontade de contribuir para a solução dos problemas africanos foi visível, por exemplo, recentemente, quando Obama enviou contingentes militares para a África Ocidental, para ajudar na contenção do vírus do ébola e, anteriormente, havia despachado assessores militares para darem formação, no âmbito da luta contra Joseph Kony e o seu Exército da Libertação do Senhor. Embora os EUA – e a China, que entretanto também reforçou o seu envolvimento com o continente, tendo já assinado acordos de cooperação militar com 15 Estados africanos – sejam os “new comers”, a França mantém-se, hoje em dia, como um parceiro quase único do chamado “mundo ocidental” contra as consequências do extremismo em África. Os números actuais da presença francesa em África não são conhecidos. Mas quando o primeiro-ministro Lionel Jospin, em 2002, deixou o poder após cinco anos de contínua diminuição da presença militar no estrangeiro, continuavam pela África sub-sahariana 5300 operacionais franceses. Este número cresceu, indesmentivelmente, nos últimos anos após as operações na República Centro-Africana e no Mali. E assim se deverá manter nos próximos anos. Como também a tentação de, por vezes, interferir directamente no desenrolar dos acontecimentos nos países onde os interesses e a presença francesa são muito grandes.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA espera em Cantão de Tomé Pires [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma viagem normal, em condições favoráveis, desde Cochim até à costa chinesa demorava-se quatro meses, mas esta, que trazia o Embaixador Tomé Pires, levava já mais de dezassete meses quando, em 15 de Agosto de 1517, a frota comandada por Fernão Peres de Andrade chegou a Tamão (Lin Tin). Aí, os primeiros contactos com os chineses foram através do Pio de Nantó, tendo os portugueses que ficar mais de um mês em Tamão à espera pela permissão para seguir até Cantão. Segundo Gonçalo Mesquitela, os portugueses chamavam a esta ilha de Tamão, Beniaga, que significa mercadoria, e a causa por “esta ilha ser assim chamada é porque todos os estrangeiros que vão à Província de Cantão, é a marítima mais ocidental que o Reino da China tem, a ela por ordenanças da terra hão-de ir por estar por espaço de três léguas da terra firme e ali provém os navegantes do que vão buscar” como refere João de Barros. Beatriz Basto da Silva explica que o termo de Ilha de Veniaga só foi usado pela primeira vez em 1525, referindo-a como a ilha de encontro comercial de mercadores portugueses e chineses e é uma expressão propositadamente vaga, tal como “a designação de ‘ilha do encontro’, já que podia não ser a mesma em cada ano, como convinha ao comércio clandestino que então se praticava na China meridional”, sendo Tamão, (Tunmen em mandarim), nesse ano de 1517 a Ilha da Veniaga. E continuando com Mesquitela: “A três léguas da ilha da Veniaga está outra em que vive o almirante ou capitão-mor do Mar, na vila de Nantó (Nantou encontra-se na área de Nanshan, em Shenzhen). Logo que chegam estrangeiros a Veniaga faz saber aos regedores de Cantão quais são e que mercadorias trazem e quais querem comprar”…”Informado disto por Duarte Coelho, mandou Fernão Peres recado ao capitão da armada chinesa, fazendo-lhe saber quem era e que vinha com uma embaixada d’el-rei D. Manuel de Portugal, seu Senhor, a el-rei e que por vir em paz e não em guerra, não respondera nas palavras de Barros. Ao que o capitão (chinês) respondeu manifestando-lhe muito boas vindas e que pelo navio de Duarte Coelho, chegado dois dias antes, soubera, que a sua armada tinha partido de Malaca; e que pelos chineses que ali iam tinha também notícias da verdade e cavalheria dos Portugueses. Que folgava com a paz e que guardasse os costumes da terra, que ele primeiro ia mandar recado aos regedores de Cantão, e o que respondessem, isso fariam.” Mas os dias iam passando e a resposta não aparecia e então “Fernão Peres insistiu por mensageiro junto do Almirante do Mar, o Pio, tendo como resposta, dada nos mais amáveis termos, que os regedores de Cantão ainda não tinham comunicado a sua decisão.” E continuando com João de Barros: “Sobre este negócio houve tantos recados de parte a parte que enfadado Fernão Peres desta dilação, mandou tirar do porto da ilha alguns navios para se pôr em caminho e com os pilotos chineses que trouxera de Malaca, meteu-se em Cantão.” “Enquanto Fernão Peres subia o Rio das Pérolas até à cidade de Cantão, parte da armada permanecia próximo da foz, sob o comando de Simão de Alcáçova; João de Barros relata-nos que este grupo de navios foi atacado por piratas, mas não se refere a baixas avultadas; ter-se-á tratado de uma simples escaramuça…” refere João Oliveira e Costa. A instrução protocolar Em finais de Setembro de 1517, os barcos que transportavam a Embaixada Portuguesa ao Imperador do Celeste Império entraram em Cantão. “Desfraldando bandeiras e salvando com toda a artilharia, os navios portugueses lançaram ferro em frente do cais principal da cidade” A. Cortesão. Como os três governadores de Cantão, o Tutam, o Concam e o Chumpim, se encontravam ausentes da cidade foi com o Puchanchi, o haidao interino Gu Yingxiang, que os portugueses primeiro trataram. Gu Yingxiang não os recebera, sendo toda a comunicação feita por intermédio do intérprete chinês”, como está referido no Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang. Aí se diz que, devido ao haidao Wang Hong se encontrar fora numa missão oficial a Pequim, Gu Yingxiang nessa altura substituía-o na repartição do Haidao (Circuito da Defesa Marítima). “Logo o Puchanci, a mais alta autoridade que no momento se encontrava em Cantão, mostrou o seu desagrado contra o que dizia ser uma violação dos direitos da terra por parte dos portugueses, que demais tinham chegado sem consentimento oficial. Respondeu Andrade que o salvar da artilharia e desfraldar de bandeiras era devido à sua ignorância, apenas significando uma marca de respeito, e, quanto a vir sem licença, explicou que o Pio acabara por lha dar e fornecer pilotos” Armando Cortesão. Resolvido este pequeno problema, muitos outros foram ocorrendo. Para João de Barros: “A ida dos três governadores fora da cidade, segundo depois pareceu, foi mais artifício para Fernão Peres ver a majestade e pompa de suas pessoas quando entrassem nela, que alguma outra necessidade; e ainda para ver os graus da precedência de cada um e a diferença que a cidade fazia no seu recebimento, vieram um e um, tomando dia próprio para isso.” “Foi então arranjada uma entrevista com os portugueses. Andrade, que até aí tinha proibido o desembarque de qualquer português ou a entrada de chineses nos navios, enviou a terra o feitor (Giovanni da Empoli), . O feitor disse aos Governadores como o Rei D. Manuel de Portugal, desejando relações de amizade com tão grande Príncipe como era o Rei da China, enviara aqueles navios, sob o comando do seu Capitão Fernão Peres de Andrade, conduzindo um Embaixador e presentes para serem entregues aos Governadores de Cantão, que os enviariam à corte” A. Cortesão e com ele continuando, “No fim de Outubro de 1517, foi Tomé Pires desembarcado por Andrade, . O presente para o Imperador, que só na sua presença deveria ser aberto, foi fechado na mesma casa e a chave entregue a Pires” Armando Cortesão. O encontro entre os governantes da cidade e o Embaixador Tomé Pires decorreu na Mesquita Huaisheng, que continua hoje a existir na Rua Guangta, no centro de Cantão. Ainda antes disso, o haidao interino Gu Yingxiang “imediatamente mandou comunicar tudo e Ning Cheng, eunuco dos Três Salões e Guo Xun, o marquês Wuding, à altura no cargo de Zongbing acorreram ao aviso. O cabecilha (Tomé Pires) saiu de longe para os receber mas não lhes fez genuflexões. O Censor Metropolitano e Grande Coordenador Chen Jin (o Tutão) chegou mais tarde sozinho e mandou dar vinte bastonadas no intérprete, dizendo ao Superintendente do Comércio Marítimo: . No primeiro dia, começaram a fazer genuflexão com a perna esquerda, no segundo dia conseguiram fazê-la com a perna direita, e só no terceiro dia aprenderam a bater a cabeça no chão” Revisitar os Primórdios de Macau. Fernão Peres deixa Pires em Cantão [quote_box_right]O encontro entre os governantes da cidade e o Embaixador Tomé Pires decorreu na Mesquita Huaisheng, que continua hoje a existir na Rua Guangta, no centro de Cantão[/quote_box_right] “Embora a comitiva ficasse alojada num edifício próprio, especialmente destinado às missões estrangeiras, as despesas da estada corriam por conta dos portugueses, como expressamente exigira Fernão Peres” assim diz João de Barros na Ásia, segundo Rui Manuel Loureiro e com ele continuando: “Durante longos meses, os portugueses estiveram ancorados diante da grande metrópole da província de Guangdong, efectuando proveitosos negócios e colhendo amplas notícias sobre a realidade sínica, por ocasião de sucessivas visitas à cidade e de múltiplos contactos com a população local e com os mandarins cantonenses. Entretanto, um navio capitaneado por Jorge Mascarenhas explorou demoradamente o litoral chinês até às imediações de Amoy”. E Beatriz Basto da Silva complementa “entre saguates (presentes destinados a predispor bem um interlocutor, costume muito comum então no Oriente, especificamente na China), deixou sementes de bom entendimento”. Por outro lado, segundo João Oliveira e Costa: “o êxito desta armada deveu-se em grande parte ao tacto do capitão-mor (Fernão Peres de Andrade), que procurou respeitar todas as práticas locais. Num país com um poder fortemente centralizado, como era a China dos Ming, que contrastava com a situação política do resto do continente asiático, os Portugueses não podiam ofender as autoridades de uma cidade, pois se tal acontecesse não seriam bem aceites em todos os outro portos do Celeste Império. Não era possível repetir aqui o que acontecera na Índia e na África Oriental…” Rui Loureiro refere que: “De acordo com documentos coevos, o jurubaça principal da embaixada portuguesa, um chinês que dava pelo nome de Huo-che Ya-san (Huozhe Yasan), estabelecera excelentes relações com as autoridades provinciais, logo após o desembarque no porto de Cantão. Por sua própria iniciativa, e graças a uma generosa distribuição de dádivas, conseguira obter autorização imperial para Tomé Pires visitar Pequim como enviado do rei de Malaca.” “Depois de declinar convites para ir a terra, Andrade despediu-se dos Governadores, por lhe ter chegado notícia de que os navios que deixara em Tamão tinham sido atacados pelos piratas, e também porque uma parte da sua gente dos navios de Cantão estava adoecendo com febres e disenteria, doença que já vitimara nove homens, entre os quais Impole (o feitor da armada). Desta vez, os chineses prestaram todo o auxílio na reparação dos navios.” E seguindo ainda com A. Cortesão: “Após algum tempo em Tamão, recebeu Andrade notícia (aliás, falsa) de que os Governadores de Cantão já tinham ordem da corte para enviar a Embaixada. Mandou então lançar pregões para se qualquer chinês tivesse recebido agravo de algum português ou algo lhe fosse devido, se lhe queixasse a fim de receber reparação ou pagamento, o que causou excelente efeito. E, assim, partiu em Setembro de 1518, depois de se ter demorado quase catorze meses na China, chegando a Malaca , conforme comenta Barros”, que adita ter Fernão Peres nesta estadia aprendido dos chineses algumas técnicas de construção naval, que introduziu nos navios portugueses e passaram a ser, nestes, de uso corrente. A longa espera em Cantão Com Tomé Pires, segundo João de Barros, ficaram em Cantão sete portugueses mas, Cristóvão Vieira informa que foram Duarte Fernandes, Francisco de Budoia, Cristóvão de Almeida, Pedro de Faria e Jorge Álvares, todos portugueses, <eu, Cristóvão Vieira, pérsio de Ormuz, doze moços servidores e cinco jurabaças> (intérpretes). Eram, pois, cinco portugueses, um persa lusitanisado e dezassete outros. Duarte Coelho foi enviado pelo capitão-mor D. Jorge de Mascarenhas para Malaca com a informação de o Embaixador Tomé Pires ter sido bem recebido em Cantão mas, quando aí chegou em Março de 1518, Duarte Coelho logo mandou avisar Fernão Peres de Andrade que a praça estava a ser atacada pelo Rei de Bintão. Já com a informação que chegara instruções do Imperador da China para lhes enviar o Embaixador português, os navios sob o comando de Fernão Peres largaram de Tamau em finais de Setembro de 1518, chegando no mês seguinte a Malaca. Ainda antes de partir, Fernão Peres de Andrade disse aos Governadores de Cantão que, no ano seguinte, outro Capitão português iria com uma armada buscar o Embaixador. No entanto, Tomé “Pires e o seu séquito ainda tiveram de esperar mais de quinze meses em Cantão antes de partirem para Pequim. Só depois de três recados transmitidos à corte e de terem vindo de lá outros três recados para os Governadores, pedindo mais pormenores sobre os portugueses, etc., chegou enfim ordem para a Embaixada seguir” A. Cortesão. Já Beatriz Basto da Silva diz que: “Tomé Pires aguardou viagem em Lantao” onde os visitantes ficaram em “prisão preventiva”, enquanto não chegava autorização imperial a Cantão. Assim, por questões de ordem diplomática, a embaixada teve que esperar até 1520 para que fosse permitido a Tomé Pires ir até Pequim entregar os presentes e a carta que trazia do Rei de Portugal D. Manuel ao Imperador da China, nessa altura Zheng De (1505-21) da dinastia Ming, cujo nome de Templo é Wu Zong.
Carlos Morais José Entrevista Manchete SociedadeViriato Soromenho Marques: “A nossa política doméstica é hoje política europeia” Viriato Soromenho Marques, professor de Filosofia da Universidade de Lisboa, tem um extenso currículo, não apenas académico. Esteve em Macau para promover o seu novo livro intitulado “Portugal e a Queda da Europa”, no qual defende a abolição do Tratado Orçamental da UE e que o federalismo europeu não seja apenas penitência mas também salvação. [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] pontou diversos erros na construção da União Europeia, fazendo um diagnóstico não muito favorável. Por outro lado, apontou um outro caminho que seria mais federalismo. Isso faz-me lembrar o que Nietzsche diz de Kant: a raposa que destrói a sua jaula para a seguir construir outra e se meter nela… (Risos) Refere-se à passagem da Crítica da Razão Pura para a Crítica da Razão Prática, não é? Sim. Da crítica “radical” da possibilidade de conhecer à emergência do “radical”, “terrorista” imperativo categórico (risos). De facto, penso que há uma consistência na minha afirmação, isto é, a construção europeia foi efectuada através de uma metodologia que, desde o início e para os observadores mais atentos, estava “impregnada” de deficiências de design, ou seja, de construção. Temos vários marcos das críticas que foram feitas. As críticas foram feitas em diferentes períodos: um deles que foi na década de 70, porque a ideia de uma união monetária – que é hoje a zona Euro – já vem bastante de trás. Praticamente, desde que a comunidade europeia se constituiu, em 1958, com um dos Tratados de Roma, que temos várias tentativas de a construir. A primeira – e a mais consistente – é de 1970 e tem o nome do Primeiro-Ministro do Luxemburgo [Pierre Werner], que ficou encarregue de fazer o esboço e é o Plano Werner, que consiste em fazer uma união monetária de 70 a 80, ou seja, em dez anos. Este é muito parecido com aquele que está actualmente em vigor. Tendo sido objecto de críticas válidas, se o plano actual é muito semelhante, as críticas são igualmente válidas. As deficiências que hoje vemos claramente são fruto do choque daquela estrutura com a realidade. A primeira crítica é a seguinte: uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado… Pode dar um exemplo, para entendermos melhor o que é realmente para si essa necessidade…, digamos, federal. O exemplo mais puro é o do Federalismo Americano. Temos a Constituição Federal de 1787, aprovada e em vigor em 88, mas não temos o dólar nem nenhum banco central. No entanto, tinham já uma Constituição comum dizia as competências do Governo comum. Só timidamente, à medida que a realidade ia evoluindo, é que eles começaram a introduzir o dólar – em 1792 – e houve várias tentativas falhadas de fazer um banco central. [quote_box_left]“Uma união monetária só pode sobreviver se tiver uma grande solidariedade política e por isso é que as uniões monetárias – que a História verifica e que sobreviveram – são as que tinham o suporte de uma união política, geralmente de recorte federal ou aparentado…”[/quote_box_left] Está então a dizer que existem erros estruturais, conjunturais e também eventos dramáticos… Um outro caso, a que eu chamo de império federal, foi o II Reich, de Bismarck. A Alemanha tinha 30 e tal unidades políticas e a Prússia liderava a unificação depois da vitória sob a França. Só em 1876 é que foi possível unificar todos os bancos centrais que existiam nos estados alemães e que na altura se chamava Reich Bank. Em 1871 fizeram a Constituição. Digo que [isto] era Imperialismo Federal na medida em que os estados continuavam a estar representados parlamentarmente; a única questão é que o imperador era sempre da Prússia. O Império Austro-Húngaro – que também tem traços democráticos – tinha uma união monetária que passava pelo crivo do Parlamento. Como era um império constituído por dois reinos, de dez em dez anos havia uma sessão especial do Parlamento que se debruçava sobre a renovação da união monetária… Nós nunca tivemos nada disto na zona Euro. Sem união política, considera então impossível a união monetária? Que funcione, sim. A união política permite criar uma esfera de Governo comum e a Comissão Europeia não é um governo comum, até porque precisam de ter um orçamento comum que permita fazer investimentos, políticas contra-cíclicas quando os Estados estão com dificuldades. Num governo federal, quando há uma expansão económica, o governo tende a contrair. Quando fala de federalismo, está a falar de política, mas a verdade é que o Tratado Orçamental, que impõe a intromissão na definição dos orçamentos nacionais, não é só um instrumento económico mas, sobretudo, de economia política. No fundo, já existe federalismo através deste tratado… Existe uma caricatura, na medida em que só existe o federalismo como penitência e não como salvação. Uma questão central tem que ver com o orçamento comum e a capacidade de políticas de coordenação económicas, que são duas coisas que efectivamente ainda não existem na Europa. O orçamento comunitário da UE corresponde a 1% do PIB e, quando o [Jean-Claude] Juncker e o [Durão] Barroso se sentavam com os chefes de Estados dos Governo, tínhamos 1% do PIB europeu sentado à mesa de 45% do PIB europeu, que é sensivelmente aquilo que os orçamentos dos governos representam. Temos uma desproporção absolutamente brutal. Para podermos falar de federalismo económico de um governo que tivesse capacidade de fazer as tais medidas, precisaríamos de ter um orçamento europeu, no mínimo, de 4% a 5%. Isto para um federalismo “low-cost”… [quote_box_right]“Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas…”[/quote_box_right] Isso significaria mais impostos para os povos europeus? Neste momento temos 1% e não dá. Como é que vamos arranjar os tais 5%? Através da superação de uma outra desvantagem que a actual situação traz: não só não temos política de coordenação económica, como temos uma competição fiscal – no sentido português da palavra – terrível. Isto provoca situações como as empresas do nosso PSI 20 pagarem impostos na Holanda. A vantagem da coordenação económica é que obriga a algum federalismo fiscal. Isto significa simplesmente que o orçamento comum é baseado nos impostos e toda a gente percebe. Se perguntar como é que funciona o orçamento europeu, só um técnico é que sabe responder. Mas esta baseia-se no princípio de garantir que algumas economias são contribuintes líquidas e outras beneficiárias: é de paternalismo fiscal. A ideia é manter sempre sete ou oito países à frente. É essa Europa que quer federalizar ainda mais, dando mais poder a estes países? Se já temos um federalismo na prática… O que temos é uma “consolidação de Estado”, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos. O BCE é que tem salvo a Europa de uma desagregação que teria acontecido em 2010 ou 2011. A grande reforma que precisamos não são na Grécia ou Portugal, mas sim da zona Euro e a prova disso é o BCE. O próprio resgate da Grécia e Portugal era proibido pelo artigo 125 [Tratado de Lisboa] e é muito interessante, porque o mecanismo que foi encontrado é o da ambiguidade e falta de coragem de se dirigir ao cidadão. O artigo 125 é uma espécie de cadáver que está no Tratado… E o artigo 123, que proíbe o financiamento monetário. Ou seja, enquanto os bancos centrais de outros países compram as suas obrigações do tesouro no mercado primário e consegue fazer um financiamento político, o BCE compra a dívida que está sobretudo na posse dos bancos, no mercado secundário. Então, pelos vistos, interpretando esse artigo do Tratado de Lisboa, conclui-se que os políticos europeus estão nas mãos desses bancos, fazem-lhes as vontades. Vamos federalizar mais para lhes dar ainda mais poder, para expandir e dar uma dimensão final às doutrinas neo-liberais? Não. A proposta que defendo é a explicitação do federalismo e isso implica ser capaz de voltar ao princípio, à ideia de um tratado constitucional, definindo claramente as competências da esfera europeia, fazer uma reforma fiscal que permita habilitar esse governo a ser eleito pelos cidadãos com os recursos orçamentais necessários e impedir esta situação em que temos o Conselho Europeu a controlar o processo. A Comissão Europeia está neste momento na posição de “serva” do Conselho Europeu e não tem tido capacidade de iniciativa. Os tratados recomendam que todo o processo legislativo começa na Comissão e agora é ao contrário: todo ele começa nas reuniões do Conselho Europeu, por sua vez dominado pela Alemanha, às vezes com o apoio da França. Temos que fazer esse caminho – claro que a política é a procura da liberdade possível – mas também procurar evitar a “física política” – que é quando se faz a única coisa que se pode fazer. Estamos a ver que a política na Europa está a estreitar-se tanto que qualquer dia já só temos física, sendo só administrada a desordem. [quote_box_left]“O que temos é uma ‘consolidação de Estado’, ou seja, uma forma de hegemonia misturada com uma partilha de soberania monetária e cambial, mas que é um federalismo só com desvantagens e sem a solidariedade e o desenvolvimento. É um sistema monstruoso e que, na minha perspectiva, não vai sobreviver muitos anos”.[/quote_box_left] Neste enquadramento, também deu a ideia de que prefere uma solução que passe pelos partidos políticos tradicionais do que pela emergência de novas forças políticas ou novos conceitos, que acontecem em países como a Grécia, a Espanha ou a França. Em que sentido prefere os tradicionais? O que prefiro é que exista uma consciência colectiva dos europeus no sentido de não voltarem as costas à Europa, porque é a casa que nós temos e, se ela se fragmentar, as ruínas caem-nos em cima. Julgo que tudo é possível porque entramos numa zona – com a Grécia – em que as regras já não se aplicam e é uma situação nova, porque é a primeira vez que um país da OCDE não cumpre os planos do pagamento do FMI e é, de facto, grave. É, sobretudo, feito num contexto em que não sabemos se vai haver acordo, pelo que se não houver, a Grécia terá que criar uma nova moeda. No entanto, isto vai ser uma confusão muito dolorosa para a Grécia e para o resto da Europa, porque não é só a questão dos credores oficiais, mas também da inserção deste país no mercado europeu, na medida em que os importadores e exportadores vão, certamente, ficar numa situação em que deixarão de estar interessados em vender produtos à Grécia, país com nova moeda e que vai ter que renegociar tudo com toda a gente. Mas a dívida infinita também não é uma opção viável… Não. Temos que ser rigorosos. Vale a pena ler o documento das propostas apresentadas por Juncker, depois destes quatro meses de negociação com Tsipras. É como se nada tivesse acontecido, as mesmas coisas. É o IVA a aumentar, exclusões de sectores de pessoas com problemas… Não existe um regime de federalismo político assumido: com eleições, governo, presidente da Europa, nada… Mas há uma dúzia de bancários e políticos de determinados países que jogam no mercado financeiro e impõem aos países determinadas medidas. Não lhe parece que podíamos aproveitar a Grécia para, pacífica e politicamente, começarmos a mudar as coisas? Era interessante. Essa racionalidade fazia sentido e julgo que os países que deviam ter logo aproveitado com a questão grega eram Portugal, Espanha e a Itália. O que eu acho inadmissível – e que os eleitores vão ter que punir estes governos nas próximas eleições – é que os governos de Portugal e Espanha não tivessem aproveitado, até porque sabemos que os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais. Pensaram no seguinte: se conseguirmos ganhos por causa da Grécia, significa que toda a oposição que temos à nossa esquerda, vai ganhar as eleições porque vão perguntar porque não fizemos o que a Grécia fez. – É preciso que corra mal na Grécia para que nos corra bem a nós – é precisamente o discurso de Passos Coelho. [quote_box_right]“Os ministros das finanças português e espanhol foram mais papistas que o Papa no Eurogrupo e isto significa que tanto em Portugal como em Espanha o que tivemos foram dirigentes partidários e não nacionais”[/quote_box_right] Mas estes partidos do arco da governação são aqueles que defende… Não exactamente. A reforma do sistema partidário pode assumir várias dimensões. Falamos dos casos grego e espanhol, onde está a ver-se uma reforma ao lado dos partidos tradicionais. Todavia, julgo que também é possível vislumbrar uma reforma da parte dos partidos tradicionais. Podemos conceber um processo misto, com o aparecimento de partidos convencionais que sejam capaz de dar a volta e ajustar contas com o seu passado, renovando-se, com novos partidos. No caso português, temos no espaço da direita uma certa renovação, com uma coligação que vai aguentar até ao fim e que vai partir outra vez para as eleições. A direita foi capaz de fazer uma coisa que a esquerda tem muita dificuldade em fazer, que foi unir-se, sempre com a perspectiva da manutenção do poder. Em relação à esquerda, vejo dois partidos mais pequenos – o PCP, que é um partido clássico que mantém basicamente as mesmas posições e o BE, que está numa posição de grande incerteza em relação ao futuro –, o aparecimento de uma força que vai disputar votos à esquerda, à direita e ao centro – que é Marinho Pinto – e a questão do PS, que é um grande enigma. Aparentemente, teria condições para se renovar e até produziu, com a equipa de Seguro, as primárias – que era um desígnio já muito antigo –, mas está a ser perturbado por uma grande dificuldade em não apenas calibrar o seu discurso programático mas também da narrativa do seu passado. A situação de ter um ex-primeiro-ministro preso não facilita a situação. Um dos grandes problemas do PS vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período. As Legislativas 2015 estão à porta e há a possibilidade do Governo mudar. Em que medida é que uma possível alteração de partido poderia influenciar a forma como Portugal se posiciona na Europa? Julgo que a verdadeira escolha está, essencialmente, na compreensão de que a nossa política doméstica é hoje política europeia, tal como para Espanha, Grécia ou Itália. Qualquer possibilidade de contrariarmos a austeridade, que tem feito cair o investimento público a níveis tão baixos que só têm paralelismos históricos se recuarmos décadas, de ter capacidade para lutar contra a fragmentação financeira da UE, que faz com as nossas empresas tenham condições competitivas piores do que empresas da Europa Central… Tudo isto só será possível mudando as regras do jogo europeu. A melhor política que um novo governo pode fazer, pelo bem do nosso país, será a de dialogar extensivamente com forças de outros países. Temos algum tempo, mas não temos todo o tempo do mundo, partindo do princípio que a situação da Grécia não vai escalar muito mais. Aquilo que temos mesmo discutir é a questão do tratado orçamental e a minha posição é radical: este devia ser abolido, porque é um instrumento que não serve à UE. Se tivermos que encontrar uma posição intermédia, teremos que rever aquelas metas absolutamente irrealistas do défice e da dívida pública que nos condenariam a uma austeridade por, pelo menos, mais 20 anos. [quote_box_left]“Um dos grandes problemas [do PS] vai ser conseguir a demarcação muito clara relativamente à figura do anterior primeiro-ministro, mas também do método de fazer política que foi predominante durante esse período.”.[/quote_box_left] Disse que Portugal não tem uma lógica de projecto colectivo. Em que medida seria possível contornar esta sua ideia? Maurice Duverger dizia uma coisa muito interessante quando aderimos à UE: ao entrarem na comunidade europeia, vocês, portugueses, parecem estar a reformar-se da História. Isto significa que Portugal não amadureceu suficientemente o seu desígnio estratégico, depois de termos rompido com uma tradição secular. A maioria dos portugueses e políticos não se apercebeu da mudança sísmica da revolução de 74: é que, nesta altura, não nos limitámos a substituir uma ditadura por um regime de democracia representativa. Já a tínhamos tido na Primeira República e na Monarquia. Em 74 interrompemos um ciclo em que a nossa identidade estratégica dependia de um apoio externo, que era o imperial. Em 74 estava em causa precisamente esta questão: onde é que vamos buscar este apoio externo? O país continuou a precisar disso… Adriano Moreira diz isso e eu apoio. Julgo que a Europa foi isso mesmo, mas não fomos capazes de perceber que a Europa era um espaço de luta e não de repouso. Devíamos ter negociado os termos de amarração na Europa. Uma espécie de projecto nacional, como houve com os Descobrimentos… Resumimo-nos agora à selecção nacional de futebol e, esporadicamente, tivemos Timor, que foi um caso de sucesso. Exacto. O falhanço nacional principal foi o Tratado de Maastricht. Em 1986 a negociação e as condições de entrada foram bem conseguidas. O que a democracia conseguiu não é nada que o Estado Novo não tivesse já pensado, até porque o primeiro pedido de adesão à comunidade europeia foi feito em 66, e não foi com Marcelo Caetano mas sim com Salazar, que pediu a adesão discretamente. Foi De Gaulle que se opôs porque tinha acabado de criar a sua política agrícola comum. Olhou para Portugal e pensou que era um país pequeno mas demasiado parecido com França: tinha muito agricultores. A vocação europeia não é nenhuma descoberta democrática, mas sim lógica. Haveria outras alternativas? De entre várias outras, há um projecto mais audaz, que seria o de uma união lusófona, que faria de Portugal um país descentrado da Europa, com uma base europeia, mas fundamentalmente centrado em África, que era o projecto de Norton de Matos. Nova Lisboa era o embrião de uma capital em África, o que seria uma experiência absolutamente extraordinária. O que falhou? O que falha actualmente: não se pode fazer isto nem um regime federalista sem democracia plena. Julgo que a actual crise que estamos a viver é também um momento para um despertar da nossa consciência nacional, de não estamos condenados à fatalidade, de pensar o país como um processo de venda a saldo do capital construído, dos bens imóveis, até que não exista mais nada. Este governo tem vendido tudo aquilo que constituía um suporte da nossa capacidade de autonomia em caso de sermos obrigados a seguir o nosso destino. No fundo, o nosso país está a ficar um país de assalariados. [quote_box_right]“Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa.”[/quote_box_right] O investimento chinês tem estado particularmente presente na área de investimento português. Como vê a influência da China em Portugal e que futuro augura? A China é claramente uma potência que tem uma visão estratégica mundial, já não é só asiática, e também não tem estados de espíritos: partidos republicanos e democráticos, políticas conjunturais, nem presidentes burros ou inteligentes… Tem um projecto estratégico de décadas. Outro aspecto: a China não faz caridade e está a investir em Portugal porque neste momento é um bom negócio com empresas bastante válidas e estruturas lucrativas. Parece-me também que na perspectiva de projecção de poder no mundo, a China prefere a aliança e a parceria ao confronto e à dominação. Estando nós numa situação tão incerta e insegura em que a nossa permanência na zona Euro pode estar em perigo, é conveniente termos outras amarrações geopolíticas e geoestratégicas do ponto de vista económico com outras zonas do mundo. Temos que estreitar a cooperação com os PALOP, mas Portugal não pode pertencer a uma lusofonia mais forte se não tiver alguma coisa para oferecer. Devemos manter o projecto europeu, porque o que nos valoriza junto dos moçambicanos, brasileiros e angolanos é a nossa pertença à Europa. Como aos olhos da China… Faz todo o sentido fazermos parcerias com a China em vários sectores e talvez se tenha exagerado um pouco na percentagem de capital de cada sector que foi negociado e a culpa foi do nosso Governo. A Índia é também muito importante, mas os EUA também não devem ser esquecidos, tal como outros países. Diria que, à semelhança do que a região de Macau representa, também no que diz respeito ao investimento chinês em Portugal, o governo que vem a seguir deverá manter uma boa cooperação com a China. com Leonor Sá Machado leonor.machado@hojemacau.com.mo
António Conceição Júnior Manchete VozesDa Primavera e do Outono [dropcap]E[/dropcap]m 1046 a.C., há cerca de 3.500 anos, em plena Idade do Bronze, os Shang travavam a mais crucial batalha contra os Zhou, onde é hoje a província de Henan, na bacia do Rio Amarelo, berço da civilização chinesa. A batalha de Muye opôs o exército dos Shang, de 700.000 homens, contra os Zhou, possuidores de uma força de 4.000 carros de guerra e 48.000 homens, ditando a queda dos primeiros. Esta batalha iria dar origem à mais longa dinastia da China, a dos Zhou, nada mais que 790 anos (1046 – 256 a.C.), dividindo-se em complicados sub-períodos, nem por isso menos interessantes. É no período chamado “Primavera e Outono” (770 a.C. – 476 a.C.) que se afirmam, na falta de outro termo, as quatro escolas filosóficas chinesas: o Taoísmo, o Confucionismo, o Mozismo e o Legalismo. Conta a lenda que Lao Tzu, antes de transpor as portas de Luoyang para desaparecer no horizonte Ocidental, deixou escrito o Tao te Qing, os fundamentos do Taoísmo, que contém este belo trecho, entre tantos outros: [pull_quote_center]Havia algo de indeterminado antes do nascimento do Universo. Essa qualquer coisa vagueia sem cessar. Como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao (Caminho, Via) Com um nome deve ser a Mãe de todas as coisas Sem nome, é o Antepassado dos deuses.[/pull_quote_center] Do legado Taoísta, à benevolência do Confucionismo, segue-se a entrada do Budismo na China dos Han (206 a.C. – 220 d.C.) pela Rota da Seda, estabelecendo-se uma como que trindade de crenças, onde ao conceito cósmico, dinâmico e abstracto do Taoísmo se conjugam os princípios éticos do Confucionismo e a oportunidade da extensão temporal por via da crença Budista na roda das encarnações. No Império do Meio o tempo passa a ter uma outra dimensão. O tempo do tempo Das altas montanhas debruadas de nuvens, às magnificentes capitais e à grandeza dos seus inventos, dir-se-ia que toda a longa história da China parece ter sido tecida – pura ilusão – para desembocar num conceito que lhe era exógeno, o da República. [quote_box_right]Este breve olhar sobre a história milenar de um país que, nas últimas décadas, assistiu a uma transformação quase ímpar no desenrolar da história do mundo, fez-me lembrar um outro, no Extremo Ocidental da Europa, que, também há poucas décadas, teve o ensejo de se poder metamorfosear em um país democrático, moderno e desenvolvido, mas, dessa Primavera, resta-lhe apenas, apesar do céu azul, um ar Outonal. [/quote_box_right] A República mais não significou que a primeira tentativa de resgate de um sistema decadente e corrupto cujo final, protagonizado pela Regente Ci Xi, mostrou a distância e o alheamento com que o Império era (des)governado. Após o período revolucionário liderado por Mao Zedong, a China percorre em 30 anos, como país mais populoso do mundo, um caminho em direcção ao que Deng Xiao Ping apontou: “Socialismo não tem de significar pobreza”. E nos subsequentes planos quinquenais e no estabelecimento do princípio Um País Dois Sistemas conduzem com firmeza o país a uma Economia Socialista de Mercado, um dos conceitos-chave que iriam, num curtíssimo período, criar uma classe média de 400 milhões, uma classe milionária assinalável, e colocar a economia chinesa no topo da escala mundial. Apesar dos quase 100 milhões que vivem ainda abaixo da linha de pobreza, das migrações e da sustentabilidade ambiental constituírem um desafio para o governo central, a República Popular da China é hoje uma presença mundialmente poderosa. Este breve olhar sobre a história milenar de um país que, nas últimas décadas, assistiu a uma transformação quase ímpar no desenrolar da história do mundo, fez-me lembrar um outro, no Extremo Ocidental da Europa, que, também há poucas décadas, teve o ensejo de se poder metamorfosear em um país democrático, moderno e desenvolvido, mas, dessa Primavera, resta-lhe apenas, apesar do céu azul, um ar Outonal.