Leonor Sá Machado EventosO decénio do século [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Instituto Cultural (IC) escolheu o Departamento de Cultura da Província de Henan para co-participar nas actividades de comemoração dos dez anos de inscrição do Centro Histórico do território na lista do Património Mundial. Parte disto fazem espectáculos de dança, música, teatro e palestras relativas às duas regiões. O cartaz de eventos inclui cinco exposições, publicação de novos documentos sobre o Centro Histórico e sua preservação, realização de palestras até final do ano e actuações de espectáculos culturais de música clássica e de teatro. A primeira mostra conjunta estará em exibição no Casino Galaxy e tem entrada gratuita, realizando-se entre os dias 13 a 28 deste mês. “Génese e Espírito” pretende mostrar aos residentes da RAEM o que Henan tem para oferecer e divide-se em várias actividades relacionadas com arte, workshops, música e uma palestra. A última tem lugar das 14h30 às 15h30 do próximo domingo, na Casa do Mandarim. As Ruínas de S. Paulo vão ser palco para um espectáculo artístico no próximo fim-de-semana, às 17h00 de sábado e 11h00 de domingo. Já na Casa de Lou Kau ocupa-se de uma mostra de artesanato de Henan, de 14 a 28 deste mês, com entrada gratuita das 10h30 às 13h30 e das 14h30 às 17h30. Outros palcos De 12 de Julho a 15 de Agosto estará exposta nas Ruínas de S. Paulo uma mostra que “foca os feitos alcançados, ao longo dos anos, na salvaguarda do património” local. E porque a cultura estará espalhada por toda a cidade, é nos Lagos Nam Van que estreia uma outra exposição, desta vez com fotografias de edifícios e outros marcos de Macau. Esta realiza-se de 13 a 20 de Junho, coincidindo com a Regata de Barcos-Dragão. O dia 12 de Julho fica assim reservado para a realização de um seminário sobre a preservação do Centro Histórico, a partir das 11h00. O IC deverá convidar especialistas e académicos para discutirem esta matéria, na sala de convenções e entretenimento da Torre de Macau. Dar música Além de tudo isto, o IC guardou ainda espaço para a realização de concertos por orquestras. Estes acontecem de 4 a 26 de Julho, em locais emblemáticos como são o Teatro D. Pedro V e a Casa do Mandarim. Entre os artistas estão a Orquestra de Macau, a Companhia Juvenil de Teatro de Repertório de Macau e a Orquestra Chinesa de Macau, com espectáculos cujas entradas podem ser livres ou variar entre as 30 e as cem patacas. O programa das comemorações inclui ainda outras duas exposições: a primeira acontece em Novembro e vai integrar uma série de reproduções de mapas antigos da cidade que se encontram espalhados por vários centros de documentação e bibliotecas mundiais. A mostra pretende explicar aos visitantes as mudanças sofridas. Por último, o IC, juntamente com o Instituto do Desporto, pretende organizar, em Dezembro e por ocasião da Maratona Internacional de Macau, uma exposição sobre o Centro Histórico na Nave Desportiva, no Cotai.
Leocardo VozesEu, Português, me confesso [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ntem assinalou-se mais um 10 de Junho, e com este começo de frase na língua em que a estou a escrever quase nem é preciso acrescentar mais nada para que outra pessoa que a esteja a ler e a entenda saiba exactamente o que esta data significa. Isto é tão extraordinário que nem encontro palavras para descrever o que sinto, pois com toda a certeza que iria ser acusado de “não respeitar nada” ou de “ter a mania das gracinhas”, e depois assim “não me levam a sério” (o que para mim dá imenso jeito, que sempre me chateiam menos com bagatelas). Trocando isto por miúdos, não sou patriota nem patriótico, ou nada que rime com “idiota” ou “hipnótico”, mas sinto que tal como todos os que vêm de lá daquela toca-de-rato atirada lá para fundo do continente que levou novos mundos ao mundo (diz-se por aí) chamado Portugal, existe dentro de mim um gene que me torna especial . A mim e a todos os portugueses, naturalmente: somos todos especiais. Os “special ones”, como diz o outro nosso compatriota. Mas o que é, no fim de contas, esse “ser” Português? [quote_box_right]O 10 de Junho é o único dia em que nos lembramos que somos portugueses, em vez de nos recordarem a toda a hora dessa maldição, que é ao mesmo tempo uma benção. Porquê? Epá não me perguntem. Sou só um português… [/quote_box_right] Existe um rol de personagens, reais ou da ficção, com que por vezes associamos os naturais de determinado país, o que pode parecer algo redutor, mas que às vezes tem a sua graça – que me pode garantir que se lhe for apresentado um natural do México, não vai demorar nem dois segundos até pensar no Speedy Gonzalez? Noutros casos somos induzidos a associar factos ou episódios históricos, muitas vezes caindo na tentação de cometer uma pequena crueldade. Assim de repente lembro-me do caso particular dos alemães, que por muito agradáveis que tentem ser (e até vão tentando, coitados) não se safam do rótulo que o tio Adolfo lhes colou durante aquele curto mas a todos os títulos lamentável período durante os meados do século XX. Mas e nós, a quem ninguém chama de “nazi” ou associa a qualquer desenho animado mundialmente famoso pela sua castiça e rústica foleirice? Temos o Zé Povinho, eu sei, “toma!” e tal, mas quantos estrangeiros conhecem o Zé Povinho? Já agora, e com todo o respeito pelo “my main man” Rafa Bordas Pina, este não podia ter pensado num nome menos idiota para dar ao seu personagem? Fica muito a dever à criatividade, para quem é considerado um dos maiores satiristas lusitanos. Ser português é uma seca: nada acontece, aconteceu ou acontecerá que a isso nos deixe indelevelmente associados. Pois é, os descobrimentos e não sei que mais, tudo bem, mas e o “timing”? Não existia Facebook para se fazer um “like” ao Pedrocas Álvares quando ele escrevesse na sua página que tinha acabado de chegar a um sítio bué giro, com praia a perder de vista e habitado por nativas nuas sem qualquer noção de nenhum tipo de moralidade, e que ia “ficar com aquilo para ele, tipo”. E a malta comentava: “Que invejaaaaaa! LOOOOL!!!”. Não tínhamos “twitter” para seguir o Vasquinho, enquanto ele desbravava o imenso e aborrecido desconhecido inteiramente composto por água do mar, dando assim início ao que conhecemos hoje por “globalização”. Uau, isto é bestial, e até é algo de que os americanos falam a toda a hora, e tal, e foi um português que inventou, dizem vocês? So what? Isto é típico do tuga fala-barato e mandrião: dá início a um projecto que não desenvolve, e quando outros pegam na ideia e a convertem em algo de sumptuoso, quer a sua parte dos louros. Já viram a lata do tuguinha? É difícil ser só, pequenino, triste e sem amigos. Dez milhões? Se fossemos uma cidade não estaríamos nem entre as vinte mais populosas. E com uma área aproximadamente do tamanho do estado do Indiana, porque carga de água haviam os americanos de se importar connosco, com dúzias de portugáis ali mesmo à mão de semear? Mesmo no contexto da Europa, reparem com somos uma das pouquíssimas nações com mais de um século de existência (cem anos) que nunca ganhou um europeu de futebol nem o Festival da Eurovisão. Na mesma situação encontramos apenas países como a Finlândia, Islândia ou Malta – até a Grécia já ganhou um de cada destes eventos que mencionei, por amor de Deus! Será que é por sermos baixinhos que ninguém se apercebe da nossa insignificante existência? Sabem quantos espanhóis, franceses e italianos ganharam óscares? E até alemães, e checos? Onde está o nosso Ingmar Bergman? E o nosso Van Gogh? Está alguém aí, ou só o eco? Será que existimos de verdade ou atrevemo-nos a fazer essa presunção – no nosso caso é um presuntão. Perdoem-me esta pequeno desabafo, que no fundo é um pouco parte daquilo que somos, e que até ficamos associados através da nossa própria canção nacional: um longo e triste fado, um lamento sem fim. Mas atenção, alto lá, que há vantagens em toda esta insignificância, pensam o quê? Ninguém nos chateia, por exemplo, o que é bom quando nos dá moleza (sempre), ou na hora da sesta, essa nobre tradição lusitana cada vez mais em desuso. Pensem só nas vantagens que temos no evento de um conflito termo-nuclear. Com toda a certeza que somos um dos últimos (e poucos) países onde despejar umas quantas ogivas em cima não justifica o tempo e os meios a que tal encomenda obrigam. E a propósito, hoje já é dia 11, e por isso estou desculpado. É que o 10 de Junho é o único dia em que nos lembramos que somos portugueses, em vez de nos recordarem a toda a hora dessa maldição, que é ao mesmo tempo uma benção. Porquê? Epá não me perguntem. Sou só um português…
Leonor Sá Machado EventosCinema, Carpintaria e Sinologia O Instituto Cultural inaugura cinco novos espaços culturais na região, incluindo um cinema munido de um centro de documentação, uma exposição sobre a história da Carpintaria e uma outra sobre o sinólogo Jao Tsung-I. Assim se festejam os dez anos do Centro Histórico na lista do Património Mundial da UNESCO [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Instituto Cultural (IC) promove, a partir do próximo dia 30 e até final do ano, uma série de estreias em termos de instalações histórico-culturais e que de algum modo explicam a história e passado locais. A primeira, que inaugura no final de Junho, é o Centro de Informações da Fortaleza da Guia. O local, que serve actualmente como estrutura de apoio àquele monumento, vai ser transformado num sítio mais completo, com uma série de informações interactivas, como são a exibição de maquetas e uma retrospectiva dos trabalhos de restauro da Capela de Nossa Senhora da Guia. O espaço vai ainda dispor de um café e loja de recordações. O dia 28 de Julho é reservado à abertura da Exposição de Carpintaria de Lu Ban, na Associação Seong Ká Môk. Lu foi, de acordo com o IC, o “patrono dos carpinteiros na China” e o espaço pretende contar a história desta classe trabalhadora e mostrar aos visitantes aquilo que se tem feito nesta área em Macau. “Serão expostas numerosas ferramentas tradicionais de marcenaria e componentes de casas, para além de uma apresentação multimédia sobre a Associação”, explica o IC. Em nome do passado Além da mostra sobre a história da carpintaria em Macau, o IC prepara-se para abrir, a título permanente, a Academia Jao Tsung-I, conhecido sinólogo chinês. “Pinturas e Caligrafias Doadas por Jao Tsung-I” ficará no número 95 da Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida e compreende uma sala de exposições com trabalhos do autor e uma colecção do seu espólio de livros e outros documentos históricos. Há ainda um auditório, construído a pensar na promoção da cultura chinesa e do intercâmbio sobre estudos sinólogos. A par disto será ainda inaugurada a Cinemateca Paixão, que integra salas de cinema e um espaço de documentação cinematográfica. “É um espaço polivalente destinado a promover a indústria cinematográfica e criar uma atmosfera criativa e cinematográfica”, explicou o IC. Contudo, não há ainda um prazo definitivo para a abertura deste espaço, mas o IC assegurou que o anúncio será feito no seu website oficial. Para já, estabeleceu-se Setembro como data para a “abertura experimental”. Vai também ser inaugurado uma espécie de museu sobre a profissão de guarda-nocturno, muito comum na história do território. O Posto de Guarda Nocturno, situado na Rua da Palmeira, foi restaurado e vai abrir ao público para visitas durante a segunda metade deste ano, desconhecendo-se ainda o dia. “Ao preservar-se este Posto de Guarda Nocturno, mantém-se um testemunho único da existência desta profissão em Macau (…). Após obras de restauro o espaço será revitalizado para alojar uma exposição sobre o trabalho dos antigos guardas-nocturnos de Macau”, lê-se no folheto informativo.
Carlos Morais José EditorialAs lições do passado [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]untar “comunidade portuguesas” ao dia de Portugal e de Camões (bem como tirar-lhe a Raça) foi uma excelente decisão. Afinal, o nosso vate também foi um exilado, um homem basicamente expulso do país, um território onde para ele não havia lugar e onde haveria, no regresso, de definhar à míngua, mesmo depois de reconhecida a sua genialidade. Portugal de modo nenhum se reduz ao pequeno rectângulo. É muito maior, muito mais vasto e mais onírico do que isso. Os portugueses não pertencem a uma etnia, fazem parte de um povo que inclui todo o tipo de gente, com as mais diversas origens étnicas. Tal teve a ver com o facto de termos saído, mas também com a realidade geográfica do país. Sendo o último da Europa para Oeste, foi durante vários séculos uma espécie de fim do mundo, onde vinha parar todo o tipo de gente. Dali não podiam passar, a não ser em sonhos. E talvez tenham sido esses sonhos que nos lançaram numa das aventuras mais ousadas que Humanidade experimentou. Os portugueses foram os autores da primeira globalização, quando mostraram que era possível o contacto entre todos os povos do planeta. A segunda globalização veio tornar esse contacto imediato. Bem sabemos da importância das novas tecnologias, mas alguém se lembra da importância de mudar os hábitos alimentares de toda a gente com o transporte de plantas alimentícias como fizeram os nossos navegadores? Pouco importa o passado, dizem-nos. Glórias de antanho não nos resolvem os problemas que hoje defrontamos, afirmam. Será que não? Será que não existem lições a tirar da História que sejam úteis na interpretação do presente? Parece-nos que sim. Parece-nos, aliás, que existem tantas lições que nós hoje temos medo de olhar para elas e corar no confronto com a audácia e a inteligência dos nossos antepassados.
Carlos Morais José EditorialUma comunidade [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] que somos e para onde vamos ninguém sabe. Mas de onde vimos, isso é para nós claro como os céus índicos que algum dia um de nós teve de cruzar. Vimos de Portugal. Nesta, em gerações anteriores, de avião, de vapor ou caravela, foi ali que tudo começou. E isso tem um significado, um sentido, uma responsabilidade. Quais são exactamente, em cada caso, em cada homem e cada mulher, só cada um de nós perfeitamente sabe, por se tratarem de paixões intransmissíveis. Bem podemos reduzi-las a aspectos como o mar, o fado, o ardor da planície alentejana, o bacalhau seco, a saudade, a fogosidade minhota, a bonomia algarvia, o peito feito do Porto, o pastel de nata, o sol moribundo na falésia, as noites de Lisboa, o “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, a penedia serrana ou transmontana. [quote_box_right]Somos aqui uma comunidade devedora da História, de todos os que, nas suas pegadas, nos permitem calcorrear esta terra estranha feita família. Mas tal só deve ser entendido como dever de entender o presente e transformá-lo (nunca apenas interpretá-lo) no lugar onde nos é permitido viver.[/quote_box_right] Elas nunca serão somente isso. Como não serão apenas as ruas calçadas do Brasil e o dialecto luso, que escorre daquelas bocas como se nunca fôra mel, ou uma peça de patuá em Macau, eivada de brejeirice alfacinha. Somos tenazes. Ou porque não temos outra alternativa ou porque somos mesmo assim. Somos carraças. Quando vimos é para ficar, para nos reproduzirmos. Porque temos o excesso de julgar o mundo de todos e para todos, como virá a ser no futuro. Somos aqui uma comunidade devedora da História, de todos os que, nas suas pegadas, nos permitem calcorrear esta terra estranha feita família. Mas tal só deve ser entendido como dever de entender o presente e transformá-lo (nunca apenas interpretá-lo) no lugar onde nos é permitido viver. Aqui, sob a sombra de tantos, permanecemos no espaço ideal, hoje, para a construção do que está por vir. Por Macau tudo passa, ainda que só passe a sombra, o sintoma, a micro-referência, impossíveis de obter em qualquer outra partida do mundo. É um trabalho de atenção, de caçador ou pescador, na floresta ou no aquário global. A nossa comunidade sabe disto, mesmo que de tanto não esteja plenamente consciente. Há um monstruoso trabalho por fazer, tarefas hercúleas que instituirão o planeta de amanhã. É a nossa madrasta terra ou temos o mundo por sentença? A resposta está dada mas tudo se simplifica, tudo se ilumina, quando essa resposta é dada por cada um de nós.
André Ritchie Sorrindo SempreA casinha no Bombarral [dropcap style=’circle’]R[/dropcap]ecentemente esteve em macau um grupo de académicos vindos de Portugal no âmbito de um simpósio da área das indústrias criativas. Da comitiva fazia parte a Alexandra, uma amiga minha de longa data, do tempo da faculdade lá no Porto. tive a oportunidade de passear com ela pelas ruas de Macau e, em simultâneo, pôr a nossa conversa em dia. Descíamos as escadas de granito da estreita calçada do embaixador, perto das Ruínas de São Paulo, quando a Alexandra me pergunta, no meio de tantas outras perguntas que foi fazendo ao longo do nosso passeio: estás bem aqui em Macau, não estás? Foi um instante da minha vida que inicialmente pareceu banal, sem grande significado, mas que acabou por ficar gravado na minha memória como algo muito especial. Aquela pergunta supostamente trivial, de amiga para amigo, despoletou em mim uma reflexão profunda. E não podia ter sido feita em momento ou local mais apropriado: o cenário à nossa volta parecia tirado do In the mood for Love, de Wong Kar-wai. e a Alexandra, diga-se, é fotogénica. Engana-se o caríssimo leitor se entendeu que me apaixonei pela Alexandra naquele preciso momento. Não. Há de facto aqui paixão da minha parte, mas não é por ela. Sim, estou bem aqui em Macau. A minha resposta foi curta e seca. Mas, tal como a própria pergunta, trazia muito mais significado que as meras palavras pronunciadas. Cresci em Macau nos anos 80-90. À semelhança de muitos portugueses dessa geração que aqui viveram, a minha educação foi definida tendo em mente a transferência de soberania e um futuro fora de Macau. O leitor português que viveu em Macau nesses tempos recorda-se concerteza do ambiente de contagem decrescente e da mentalidade de contentor. Resultado da (má) experiência portuguesa nas ex-colónias ou simplesmente daquele típico prazer masoquista que guardamos pelas emoções do triste fado, ou mesmo até apenas por teimosia, a verdade é que nós, na nossa estreiteza mental, espiritualmente determinámos desde o início que a nossa presença no Macau do pós-99 não era viável. Até eu, maquista chapado originário de família tradicional aqui radicada desde o século XIX, adoptei essa atitude. Futuro em Macau? Quantas vezes não respondi aos meus colegas da faculdade, com um sorriso arrogante: nãããão… E assim, decisão tomada, o português em Macau na fase de transição passou o resto do tempo ocupado e preocupado com os afazeres relacionados com a sua casinha no Bombarral e com a mobília chinesa e as bugigangas ainda por comprar para encher o contentor. Quero levar lembranças de Macau. Mas afinal regressámos. Entretanto a RAEM fez 15 anos e foi preciso esse tempo todo e aquela pergunta da Alexandra para que a minha cabeça fizesse, finalmente, o click. A transferência de soberania, afinal, fez-me bem. Fez-nos bem, a nós, portugueses. Passo a explicar. mas para já, da resposta aparentemente inconsequente que dei à Alexandra, quero acrescentar o seguinte: Alexandra, nasci e cresci nesta terra. Sou macaense de gema, e com muito orgulho. Sou híbrido por natureza, está no meu DNA. com o estabelecimento da RAEM, e ultrapassada a subsequente fase do fervor nacionalista chinês e sentimento ferido do orgulho português, finalmente descartei todos os complexos e preconceitos absurdos referentes a formas de ser e de estar nesta cidade que eram desnecessariamente etiquetados como comportamentos chineses, portugueses ou macaenses e, como tal, bem vistos ou mal vistos por esta ou aquela comunidade, num período muito particular da história de Macau. Por conseguinte, hoje vivo e celebro a hibridez e a diversidade cultural desta cidade em toda a sua plenitude. Aqui em Macau eu sou mesmo eu, posso ser eu, sem inquirições de terceiros. Nunca gostei tanto de viver em Macau, nunca me senti tão bem em Macau. É um sentimento profundo e pessoal que o caríssimo leitor poderá não compreender à primeira. Verborreia? Filosofia barata? Não. Deixo aqui uma pista: nos anos 80, uma professora do Liceu decidiu não dar nota máxima ao meu irmão na disciplina de Português porque ele falava com pronúncia de macaense, não obstante o facto de, tecnicamente, ter demonstrado dominar a língua e a matéria da cadeira na perfeição. Este não é o discurso do nativo coitadinho maltratado pelo poder colonial. O que estou a querer dizer é que nós, portugueses (e não apenas nós, portugueses) andávamos todos afectados da cabeça. A sério. A transferência de poderes teve, por isso, um efeito positivo: passámos todos a ser estrangeiros a viver na China. Pese embora a contínua existência de atitudes bacocas daqueles que, no fundo, bem lá no fundo, e infelizmente, ainda hoje não conseguiram compreender ou aceitar a transferência de soberania. Quanto a esses, nada a fazer, e não vou agora dissecar a irrazoabilidade que demonstram na análise dos problemas desta cidade. Fica para outro dia. O que é certo é que a contagem decrescente foi abandonada de vez. O contentor foi desalfandegado, a mobília chinesa e as bugigangas de Macau ficaram na casa de Bombarral a apanhar pó. Vamos vendê-la? Ai as despesas… Hoje assisto com regularidade a conversas entre pais portugueses sobre opções para a educação dos filhos, tendo em mente um futuro em macau. Preocupam-se com a língua chinesa e não querem que os filhos vivam num ghetto português. E isso é muito bom. [quote_box_right]Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau. [/quote_box_right] Porque… Vamos lá, sejamos francos: faz algum sentido, depois das oito da noite, ouvir no 98.00 FM o boletim de trânsito das estradas em Portugal? Dava um bom sketch à la Gato Fedorento: o português em desespero num engarrafamento na Ponte de Sai Van enquanto ouve pela rádio as informações de trânsito da Avenida AEP, no sentido Porto-Matosinhos. Bolas! E eu?? O que é que eu faço agora??? Entretanto, descobri que me fartei de pão, ovos estrelados e bacon ao pequeno almoço. Eu gosto é de canja e sopa de fitas logo de manhã, acompanhado de um tong café. Não é atitude ou achinesação. É o que o meu corpo me pede, logo de manhã, quando acordo. Sabe-me bem. E não tenho complexos. Igualmente, sabe-me bem um café espresso depois de um almoço yam chá. Qual é o problema? Nunca me recusaram um café num restaurante chinês, nunca ninguém me veio dizer Desculpe, mas o senhor está num restaurante chinês, não servimos café. Cada um vive macau à sua maneira, de acordo com a sua própria identidade. E a beleza da coisa é que macau permite. Wey, captain: ng koi, iat ko bica. Era assim que o meu avô Lourenço pedia o seu café no Solmar. Desculpem, mas queiram perceber que isto só é possível aqui em Macau. A essência de Macau é mesmo esta: seja o residente português, chinês, macaense, filipino ou mesmo o polaco que decide vender cannabis no Facebook. O residente de Macau vive macau conforme lhe apetece, conforme lhe dá mais jeito, conforme gosta, e há-de encontrar a sua zona de conforto, mou man tai, porque em macau tudo é válido, tudo pódi, nada faz sentido, mas tudo faz sentido. Macau está com muitas falhas, eu sei. Mas estou apaixonado e, quando estamos apaixonados, tendemos a não ver os defeitos, apenas as qualidades. E estou nessa onda. Esta cidade preenche-me o coração na ín- tegra. Dedico, por isso, esta peça escrita à minha macau, que tanto amo. Sorrindo Sempre Sorrindo Sempre é uma atitude de vida que nos permite superar de forma pacífica situa- ções aberrantes que vão ao atropelo do bom senso e com as quais somos confrontados no nosso dia-a-dia. Implica tolerância, com- paixão e, acima de tudo, sentido de humor. Demonstramos, sem arrogância, que somos muito mais que a questão em causa, pelo que não nos deixamos afectar nem um pouco, por mais absurda e irritante que ela seja. No me ne fregga niente. Era o que faltava. Um exemplo de Sorrindo Sempre: o meu pedido para um cartão de crédito que foi rejeitado por uma prestigiada instituição bancária local. Porquê? Porque cessei as minhas funções oficiais em Março e decidi que merecia take a long break e descansar durante o mês de Abril, para voltar a trabalhar apenas no mês de Maio. O banco detectou a descontinuidade do meu rendimento e, provavelmente, o risco de eu ser incapaz de liquidar as contas do cartão de crédito. Então deu-me nega. A minha reacção para a funcionária do banco: está a falar a sério? Encolhi os ombros e soltei uma gargalhada. Sorrindo sempre…
admin CulturaViagem a partir de uma fotografia Uma imagem antiga é o pretexto para recordar figuras importantes da história de Macau e o seu mundo antigo. Figuras que fizeram a ponte entre os dois lados da terra. Que se interessaram pelo outro e cruzaram culturas distantes. Vamos à vela, pela memória da descendência da História [dropcap]P[/dropcap]arte-se de uma fotografia. Um tempo a sépia. O pai no liceu, aos 16 anos, os seus colegas, os professores, um passado vivido apenas por uma memória visual. Mas o sentido de pertença por uma imagem e por um impulso antigo, muito presentes, no dobrar da esquina de uma memória. “Eu cresci com esta fotografia”, afirma António Conceição Júnior, como se aquela recordação não fosse apenas papel, mas o desenrolar de uma vivência real e palpável, com todos os seus sentidos. “Macau tem uma continuidade, Macau é o fio”, refere Conceição Júnior, “as pessoas apanham o comboio na estação que for.” E continua, “se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem”. Estas são as palavras que reflectem sobre o acto contínuo do tempo, com as suas coincidências e factos, sem distinções entre presente e passado. “Macau tem uma continuidade, Macau é o fio, as pessoas apanham o comboio na estação que for, se estão descoladas foi porque não apanharam o resto da viagem.” No seu desenrolar, os nomes saltam com toda a sua importância: Pessanha, Mendes, Gomes, Jorge. Os apelidos da biografia de uma cidade a acontecer. As personagens de uma enorme importância para a vida cultural de Macau. Sem esquecer o de Conceição, pai e filho. Todos eles formam o núcleo da espiral de um ciclo de acontecimentos que ocorreram após o simbólico momento congelado no tempo, a fotografia tirada no pátio do Liceu Infante D. Henrique, por um autor desconhecido. Vivia-se a história de Macau e com ela rola esta crónica de coleccionadores. Momento intensamente vivido Camilo Pessanha com Silva Mendes, a seu lado, e António da Conceição e Gonzaga Gomes, da mesma altura, atrás de si O próprio instante da fotografia é incerto. Se a fotobiografia de Camilo Pessanha refere o momento situado em 1921, Conceição Júnior marca-o no ano lectivo de 1925-26, pela referência do seu pai, António fa Conceição, o primeiro à esquerda, nascido em 1910. O poeta de “Clepsidra” morreu no dia 1 de Março de 1926 e os protagonistas têm um ar demasiado veraneante para que a ocasião possa ter ocorrido nesse ano, o ano em que o BNU se mudava para as suas instalações actuais. Talvez seja lógico pensar que a imagem traz o final do ano lectivo anterior, com as taças e os prémios de toda uma época e o início das férias. Mas Macau é sempre um mundo tropical onde tudo é possível. Por detrás de Camilo está o jovem Luís Gonzaga Gomes. Sentado ao seu lado vemos Manuel da Silva Mendes e do outro lado da mesa dos troféus, no segundo lugar, está José Vicente Jorge, apoiado na cadeira. São eles as referências de uma visita guiada. O que têm em comum? Todos ousaram transpor a barreira da língua e ocupar um ponto na comunidade chinesa, na compreensão do idioma, estabelecendo desse modo ligações profundas com ela, na procura do conhecimento da cultura local. Facto notável numa sociedade colonial pouco receptiva à aceitação de outras formas de assumpção do quotidiano, com a sua zona cristã bem delimitada, que não se aventurava a conhecer o outro lado, na verdadeira acepção da palavra. Ainda hoje assim acontece. Vicente Jorge (ao centro) do outro lado da mesa A viagem começa aí, em Camilo Pessanha. Não o poeta excêntrico, que lhe trouxe a fama, mas o advogado, de raro brilhantismo, o juiz e sobretudo o professor de Filosofia, História, Geografia, Português, Literatura e Direito. Admirado pelos alunos, era figura central no mundo cultural, político e cívico da plataforma de Macau, à qual abordou em 1894. Terra de acolhimento onde desde logo tomou posições fundamentais no relacionamento entre portugueses, macaenses e chineses. Com a compreensão do idioma, abandonou desde logo a postura eurocêntrica da maioria dos seus contemporâneos, levando-o desde logo a traduzir, de forma livre, poemas da dinastia Ming (1368 a 1628). Talvez resida aí o rumor dessa poemária que viria a criar mais tarde. Na voz de Conceição Júnior, revivem-se as histórias de Pessanha. As suas casas, na Sidónio Pais, na Praia Grande, actual sede do Banco HSBC, na esquina que sobe para a Sé. Mas, principalmente, o gosto pela arte, que partilha com Silva Mendes e que fortalece toda uma relação de amizade entre os dois. O Palacete da Flora a ir pelos ares com uma colecção rara de que hoje não se conhece o rasto. O espólio de Silva Mendes, o homem que vindo do Porto, em 1900, ainda hoje tem uma presença preponderante na arte do território. Mendes foi o primeiro europeu a coleccionar peças de qualidade com as características da cerâmica de Shek Wan, da região de Cantão, reconhecendo-a como um dos mais refinados exemplos da arte chinesa, encomendando diversas peças durante toda a sua vida, que podem ser vistas nos dias de hoje no Museu de Arte de Macau. E uma ligação ao presente faz-se então por aí. Juiz multifacetado, professor e reitor do liceu, advogado, magistrado, presidente do Leal Senado, Manuel da Silva Mendes foi um dos intelectuais mais representativos da história de Macau, dedicando-se ainda ao estudo da filosofia taoista e flutuando nos enredos da arte chinesa, como erudito e coleccionador. A colecção valiosíssima de Silva Mendes viria a formar grande parte do importante espólio do Museu Luís de Camões, situado no que é agora a Casa Garden, sede da Fundação Oriente em Macau, que foi instalado, com grande competência e conhecimentos da arte chinesa, por um seu aluno, Luís Gonzaga Gomes, um dos símbolos de Macau, no lugar do diálogo, da harmonia e da tolerância. Nascido em Macau em 1907, sinólogo fervoroso, Gonzaga Gomes viria a traduzir para chinês “Os Lusíadas contado às crianças”, entre muitas outras obras escritas. Profundo auto-didacta, acabaria por ser professor de língua chinesa, defendendo sempre a importância do seu ensino junto da comunidade portuguesa, facto que raramente teve repercussão. Aí se aprofunda a ligação a António da Conceição, num tempo com todas as cores, no jornal Notícias de Macau, situado no local preciso da actual Tribuna de Macau, a que viria a juntar-se o nome de Deolinda da Conceição, mãe de Conceição Júnior, como a primeira jornalista do território. E as imagens continuam. O Hotel Riviera, os anos a correrem, o Museu Luís de Camões, as peças de Silva Mendes sem rasuras a caminharem para a actualidade e, finalmente, a memória da família de José Vicente Jorge, também um sinólogo e grande coleccionador de arte chinesa, que se viria a mostrar no prelo nas suas “Notas sobre a Arte Chinesa”. As memórias passam ainda pelo seu palacete, por cima do Lilau, também ele repleto de obras de arte, com o seu rico jardim, um espaço vivido por dentro pelo condutor desta viagem. Uma memória adormecida? “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes.” Pelas suas funções de intérpretes, professores e diplomatas, estas personagens da história foram a peça-chave da mediação cultural entre os dois mundos: o português e o chinês, contribuindo para um entendimento, muitas vezes difícil, de forma exemplar. E pergunta-se pelo valor que tens estas memórias? “Têm o valor que as pessoas quiserem encontrar nelas”, responde Conceição Júnior, o homem do leme. “Pessoalmente penso que é uma questão intimista, no sentido de que têm um valor muito subjectivo, na medida em que na vida actual a objectividade tem cifrões”. É nesse idioma do cifrão que se fala da Arte nos tempos que decorrem como se tudo começasse a ser criado agora, onde se ouve sempre o sussurro das indústrias do criar. Conceição Júnior responde: “Isso passa pela força do desconhecimento e pela ausência de memória, uma memória colectiva. Quando não se acede a essa memória, provavelmente animam-se pensando que são as pioneiras de uma coisa que já foi pensada por gerações”. Haverá ligação ao passado, actualmente, numa comunidade tão diversa? Que significado poderão ter estes nomes que passaram pela história de um território sob o cunho português? Haverá importância para outro lado do trampolim, por entre os resquícios da “zona cristã”, nesta Idade de Casino? António Conceição Júnior aponta: “Há um fenómeno de ruptura com a continuidade histórica, que não tem a ver com a transição, mas sim com os novos migrantes”. Assegurando que “neste momento é de uma imensa importância encontrar pontes entre as comunidades, não só sobre o actual mas também sobre passado”. Porque só podemos saber para onde vamos se soubermos quem fomos, para finalmente sabermos realmente quem somos. Quem somos nós, afinal, as gentes de Macau?