Isabel Castro Entrevista MancheteLuís Sá Cunha, investigador: “[Luís Gonzaga Gomes] trouxe o mundo para Macau” Luís Gonzaga Gomes é uma figura ainda por reconhecer, que deveria servir de inspiração para a cidade de hoje. Mais tolerante, mais transversal, mais pensada. Esta semana, Luís Sá Cunha recuperou o cenáculo que, no início da década de 90, criou para que o último grande sinólogo de Macau não fosse esquecido [dropcap]D[/dropcap] e onde vem o interesse por Luís Gonzaga Gomes? É uma coisa estranha, mágica, uma empatia. Vem desde miúdo: chegava a um sítio e, como o Papa João Paulo II, ajoelhava-me, beijava o chão, aquela era a minha terra. O facto de ser a minha terra significava que eu lhe pertencia e tinha de conhecer tudo. Quando cheguei a Macau, tive uma empatia com Luís Gonzaga Gomes. Comecei a ler. Em 1991, resolvi fundar o Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, porque achava que era uma pessoa que encarnava no pensamento, nas obras, no comportamento, o mais essencial do espírito de Macau. É um lugar-comum, mas tem de se dizer: Macau foi um lugar de intercâmbios e sínteses culturais, de biótipos de todos os valores culturais. Luís Gonzaga Gomes é o último sinólogo de uma grande escola e de uma grande geração de sinólogos. Foi professor. Logo na escola, e depois onde esteve, começou a dizer que era preciso ensinar chinês nas escolas dos miúdos portugueses. Mas o que é que Luís Gonzaga Gomes teve de tão diferente de outros estudiosos e sinólogos daquela geração? A primeira diferença é que ele foi militante disto. Quando aqui cheguei, para compreender Macau e a cultura do Sul da China, e a China, lia os livros de Gonzaga Gomes – daí a minha empatia. Ele traduziu os clássicos, traduziu livros importantes para português. Também fez a tradução de livros portugueses para chinês. Sobretudo no ensino, procurou sempre impor nas escolas o ensino do chinês para os portugueses e vice-versa. Por onde ele passou, nos Correios e em outros lados, fez manuais para que se aprendesse cantonense. Foi uma vida inteira a escrever e a traduzir. O que é que tem de diferente? Tem de diferente que fez isso e os outros não fizeram. Tem 100 livros publicados, uma coisa enorme, esteve em todo o lado, fez parte de tudo. Também foi desportista, jogou ténis, tocava violino, na música era uma figura espectacular. Naquela altura, trouxe cá músicos famosos no mundo, pessoas que andavam no circuito internacional. Conhecia profundamente a música. Diz-se que tinha em casa um quarto inteiro forrado a corticite com uma discoteca enorme e o melhor que havia de aparelhagem. Era uma pessoa silenciosa, que andava como um gato, e que fugia dos sítios onde tinha de participar. Julgo que ia não só investigar, mas sobretudo ouvir muita música. Foi director da biblioteca, do arquivo histórico de Macau. Fez tudo. Abriu muito o conhecimento e a perspectiva sobre a China. Lia livros estrangeiros, tinha contacto com academias estrangeiras. Tirava cursos por correspondência, o que era muito normal naquela altura para gente que queria ter saber universitário, mas não tinha universidades. De certa maneira, procurou viver um próprio ideal universitário e de formação aqui. Ele respirou o mundo, ele trouxe o mundo para Macau. É uma figura que está longe de ter o reconhecimento público que devia. Acho inacreditável como é que Luís Gonzaga Gomes – considerado por toda a gente, e pelo Padre Manuel Teixeira o maior historiador de Macau de todos os tempos, com todo o trabalho que fez e publicou – não teve o devido reconhecimento e homenagem. Foi também uma das razões do Cenáculo, sobretudo por aquilo que ele representa e que eu desejava que se mantivesse nas gerações actuais, e nas gerações futuras. Há um pequeno reconhecimento na escola luso-chinesa. Há uma rua, mas isso, para mim, não é reconhecimento. É uma falha. Como é que é possível que se tenham editado obras completas de vários autores e não de Gonzaga Gomes – e não vou discutir o mérito deles. Como dizia o Padre Teixeira, “o pobre do Luís trabalhava até às duas da manhã”. Recolheu todos os artigos do Silva Mendes e publicou-os em quatro volumes. Mas ninguém fez o mesmo com a obra dele. Uma das coisas que o Cenáculo vai fazer, e que eu estou a fazer com o apoio nesta parte do Instituto Internacional de Macau (IIM), é juntar tudo o que escreveu nos jornais aqui. Depois tenho de ir a Portugal mas, agora, o mais importante está aqui, para haver um plano de edição das obras dele. Não digo a obra completa porque pode demorar muito tempo. Ele próprio organizou edições dos trabalhos dele. Depois, foram feitas edições sobre a obra, com selecções de artigos que são mais discutíveis, arbitrárias. Não são más, não é isso, mas não é aquilo a obra dele, há muita coisa para publicar, com rigor científico. Tem de se ir buscar prefácios, tem de se ver especialistas de antropologia, de etnografia de Macau, tem de ser feito um enquadramento histórico. Não é uma tarefa simples para um homem só. Já ando há dois anos a fazer isto, também a investigar, tenho toneladas de documentos para escrever a biografia dele para o Albergue da Santa Casa. Não tem uma biografia e acho que merece uma. Isto quanto a mim é a primeira base de um programa no plano cultural, que falta a Macau, e que é muito importante. E a importância de Luís Gonzaga Gomes para o que é hoje Macau? Ao ler esta semana uma newsletter no IIM encontrei uma nota para a revista em 2007 a dizer assim: Macau está-se a descaracterizar nas volumetrias da cidade. Na chegada massiva de turistas, na falta de conhecimento dos turistas que chegam aqui e disparam fotografias perante fachadas. Aquilo para eles é plástico, não existe, acham muita graça… Não há cá, no meu entendimento, um turismo cultural, mais profundo. Devia haver, porque Macau é uma coisa riquíssima nesse aspecto, e podiam-se chamar cá mais nacionalidades, se houvesse esses programas e se se fizessem esses itinerários. Dantes, quando vinha cá um Presidente da República, chamava-se o Padre Teixeira para ir explicar, porque ele sabia tudo. Hoje se vieram cá várias pessoas quem é que se vai chamar? O arquitecto Marreiros pode falar da cidade, também pode ser. Devia haver essa formação. Mas hoje não há visita guiada para que haja explicação. Mas há aí muitas coisas. Eu podia fazer um itinerário romântico de Macau, era interessante. É a mesma coisa que o Schliemann fez, quando andou a buscar a história da Guerra de Tróia, investigou o mito de Helena de Tróia. Mas encontrou pouco. Supõe tu que estava lá uma pedra e que havia uma prova qualquer que era ali o trono dela. Era o suficiente para atrair uma multidão de turistas, porque a lenda e a história à frente daquela pedra têm outra solicitação. E aqui há pequenas coisas, casas que davam para isso. Coisas muito interessantes, muito bonitas. Luís Sá Cunha Diz que Gonzaga Gomes incorpora uma essência de Macau que se está a perder. Há uma integração de 150 mil, 200 mil novos habitantes de Macau de repente, que não sabem nada disto. Estão aqui a viver, vão para os casinos e não sabem. Devia haver um museu. Os americanos têm de saber que Macau os ajudou, numa fase crucial para eles, para o desenvolvimento do comércio e de uma certa identidade cultural, porque as elites americanas vieram para aqui, para o comércio do Oriente. Foi com o auxílio de Macau que destruíram a Companhia Inglesa das Índias Orientais. Essas coisas não se sabem. Macau podia dizer assim ‘vocês agora estão com os casinos, vão outra vez ganhar dinheiro’, deviam fazer algum mecenato para obras culturais, revistas… Falta uma revista em Macau para certas áreas. E isso significa a descaracterização de Macau. As novas gerações não sabem nada, só de negócios. São cidadãos do mundo – não sei bem o que isso significa, para mim um cidadão do mundo é uma pessoa que pode andar em vários lugares, radica lá, mas ajoelha para beijar a terra. Tem de a conhecer, e tem de se dedicar também a ela quando está lá. Não podemos permitir essa descaracterização. Há gente nova que está aqui como se estivesse na Jugoslávia, no Sri Lanka ou noutro sítio qualquer. Refere-se a uma comunidade em particular? Estou a falar de todos. O novo Cenáculo vai ser diferente dos anteriores, porque o Cenáculo teve uma fundação em 1991 e foi interrompido em 1992, depois foi reanimado em 2007, e agora é reanimado outra vez. Vai ser diferente porque já foi convidada gente da nova geração de Macau, com uma grande participação de chineses bilingues. Isto é que é rigorosamente o espírito de Gonzaga Gomes. O bilinguismo, a multiculturalidade. Exacto. A edição, a tradução, a sinologia. Não só na língua, é também na gastronomia, na pintura e na música. Está aí o Simão Barreto que sabia todos os instrumentos, faz parte do conselho honorífico. Chamei mais de 30 pessoas [para o Cenáculo] e vou chamar mais.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Exposição Industrial de Macau, organizada como complemento dos trabalhos de propaganda do novo porto, tinha fechado a 12 de Dezembro de 1926 e A Pátria de 21 desse mês referia: “Diariamente têm sido transportados para o novo museu, instalado no Palácio da Flora, vários objectos, entre eles algumas pedras lavradas, lápides e lajes de antigas sepulturas. Dos artigos expostos na Exposição Industrial, saíram algumas amostras gentilmente oferecidas por alguns expositores à Secção Comercial do Museu, tal como a cedência, facilitada por parte de chefes de serviço, de alguns objectos.” Parecia agora a todos que Macau iria conseguir ter por fim um Museu. Luís Gonzaga Gomes refere, “Pela Portaria n.º 221, datada de 5 de Novembro de 1926, foi criado, pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda, um mostruário de produtos nacionais de Portugal Continental e Ultramarino, especialmente, de Macau e Timor, com carácter comercial, abrangendo uma secção do museu da Colónia e tendo agregada a colecção de exemplares de Comissão de Pescarias, sobre o nome de Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões e a constituir com os artigos que possam provir da Exposição Industrial e com os que possam ser dispensados por diversas repartições, devendo ir sendo completada à medida das possibilidades. Para orientar e dirigir este Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões foi nomeada uma comissão, por portaria da mesma data, composta, pelo engenheiro João Carlos Alves, director principal; o missionário padre Manuel José Pita, director da secção do mostruário; e o professor do Liceu Central, Dr. Telo de Azevedo Gomes, director da secção do Museu; o pouco que foi possível colher-se do refugo das repartições públicas e de uma ou outra igreja, se instalou, no Palacete da Flora…” A ideia do Almirante Lacerda era um museu histórico e artístico e em anexo ficava uma exposição comercial. “Ora como não conviesse misturar objectos artísticos e históricos com espécies comerciais e etnográficas e sendo o Palacete de Flora demasiado acanhado para se poder dar um conveniente arrumo ao que se pretendia expor, o Leal Senado resolveu (…) ceder para a secção histórica do Museu, algumas salas do seu andar nobre”, segundo Luís G. Gomes. Já o semanário A Verdade de 1 de Setembro de 1927 informava: “Estão sendo colocadas no átrio do Edifício de Leal Senado, gentilmente cedido pela digna Câmara de Macau, as pedras com inscrições históricas, armas, brazões, etc. sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Muzeu, Dr. Telo de Azevedo Gomes. Brevemente deverão começar os trabalhos da instalação da Biblioteca n’algumas salas do andar nobre daquele edifício, passando as Repartições Municipais para o Correio e este para umas dependências do Palácio do Governo.” No entanto, A Pátria de 4 de Novembro de 1927 referia que a secção comercial do museu ainda se encontrava instalado no Palacete da Flora, tendo essa mudança já sido efectuada para o rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia, como referia a Verdade a 2 de Outubro de 1928. Tal poupou essa parte do recheio do museu, pois a explosão do Paiol da Flora em 13 de Agosto de 1931 tê-lo-ia destruído. O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, dividido por dois edifícios, abriu a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento. Os antecedentes Por decreto de 26 de Janeiro de 1871 fora organizado o Museu Colonial em Lisboa e pedira-se aos Governadores de cada uma das Colónias portuguesas para reunirem amostras de produtos industriais ou outros artefactos. Para tal, o Governador da Província de Macau, Joaquim José da Graça (1879-1883), “Considerando que para se reatarem os laços comerciais entre Macau e o Reino muito convém serem conhecidas as qualidades, aplicações e preços dos produtos da indústria e comércio deste mercado, o que melhor se pode conseguir expondo-os nos museus, destinados a reunirem as amostras das riquezas em que as colónias abundam”, mandou constituir oficialmente uma Comissão. Esta era composta pelo Secretário-geral do governo o bacharel José Alberto Côrte Real e os cidadãos, Filomeno Maria da Graça, António José da Fonseca, Maximiano António dos Remédios, Pedro Nolasco da Silva e Lauriano José Martinho Marques. “Outrosim hei por conveniente declarar que se tornou muito digno de louvor o leal senado pela parte com que contribuiu o município, que é o primeiro interessado em todos os esforços tendentes a desenvolver a actividade e a riqueza desta população”. A Comissão não só coleccionava produtos de Macau como de Timor, à data junta com esta Colónia. No Domingo, 2 de Maio de 1880 pelas 13 horas ocorreu nas salas do Leal Senado da Câmara a Exposição de artefactos, produtos industriais e outros objectos desta província. Era assim em Macau “apresentado ao público numa das salas do Leal Senado da Câmara o resultado dos esforços empregados pela comissão em reunir, classificar, coordenar e expor metodicamente os produtos que vão ser remetidos ao museu Colonial de Lisboa e ao da Universidade de Coimbra, sendo de mais a mais esta a primeira exposição de carácter industrial que se faz na colónia”, como se encontra referido no Boletim da Província de Macau e Timor, Suplemento de 28 de Junho de 1880. Durante a inauguração, o advogado António Joaquim Bastos Júnior propôs a criação do Museu Municipal de Macau. Esta exposição criou um enorme entusiasmo e a vontade de continuar a coleccionar produtos industriais chineses para enviar para Portugal que, a 31 de Janeiro de 1882, o Presidente da Comissão José Alberto Homem da Cunha Côrte Real, que era também Secretário-Geral do Governo de Macau, pedia ao Leal Senado a cedência das suas salas para fazer uma nova exposição. E foi com esta nova exposição que se reavivou a ideia de António Joaquim Bastos Júnior de criar o Museu Municipal de Macau. Um dos grandes impulsionadores para a existência desse museu foi José Alberto Corte Real que, por se retirar da colónia, na sua carta de despedida de 10 de Julho de 1883 refere remeter ao Presidente do Leal Senado “alguns objectos, que eu ia pouco e pouco reunindo por via dos meus amigos para o museu municipal cuja fundação tão útil se me afigurou sempre.” Seguindo o seu exemplo e como um dos principais mentores, em Macau começaram a aparecer muitos particulares a adquirir peças de arte chinesa, que foram transformando as suas casas em verdadeiros museus.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasAfastados 排华 Julie O’yang [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem havia de dizer que nos nossos dias as notícias sobre refugiados e chacinas étnicas voltavam a encher páginas de jornais, fazendo-nos recuar a um passado por demais sinistro. Neste mundo de Deus já só há reedições. Seguindo esta linha de pensamento, veio recentemente parar-me às mãos o livro Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses de Jean Pfaelzer. Trata-se de uma história chocante que ainda continua por contar, senão mesmo escondida. Nos finais do séc. XIX, inícios do séc. XX, milhares de imigrantes chineses foram alvo de motins e de outros actos de violência que tinham como objectivo afastá-los das cidades americanas da costa oeste. A história pouco conhecida sobre a qual o Professor Pfaelzer escreveu ensinou-me duas coisas: 1. Neste mundo já foi tudo visto. 2. Os chineses não se deixam ficar. E também serve para que os milhares de chineses apoiantes de Trump, que bradam sobre o “autoritarismo carismático” da personagem”, pensem melhor. Há pouco tempo recebi pelo Wechat a imagem de uma pedra tumular que tinha gravada uma mensagem que gostava de partilhar com os meus leitores. “Primeiro vieram buscar os comunistas. Como não era comunista, não protestei. “Depois vieram buscar os judeus. Como não era judeu, não protestei. “A seguir vieram buscar os sindicalistas. Como não era sindicalista, não protestei. “Depois vieram buscar os católicos. Como não era católico, não protestei. “No fim vieram buscar-me a mim e ninguém protestou.” Por isso da próxima vez tentem ser um bocadinho menos egoístas, está bem? E agora um excerto de Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses: Às 9.00 da manhã de 3 de Novembro de 1885, as sirenes apitaram em todas as fundições e fábricas de Tacoma, para anunciar o início da expulsão dos chineses da cidade. Os bares fecharam e a polícia montou guarda, enquanto quinhentos homens, brandindo cacetes e pistolas, se dirigiram ao bairro chinês para despejar todas as casas e atirar os seus conteúdos no cais. No início da semana, quando se aperceberam do clima ameaçador que pairava no ar, quinhentos chineses fugiram de Tacoma. Aos que ficaram foram dadas quatro horas para deixar a cidade. Em desespero, tinham de guardar anos de vida em sacas, trouxas e cestas, penduradas em varas apoiadas nos ombros— com colchões, roupas, tachos e alguma comida. Ao meio-dia, a multidão começou a arrancar os trabalhadores chineses das suas casas, a pilhar as roupas e a atirar as mobílias para o meio da rua. Os comerciantes chineses rogaram ao Mayor e ao Xerife que lhes dessem mais 24 horas para desmontar as lojas. Ao início da tarde daquela fria terça-feira, vigilantes armados escoltaram duzentos homens e mulheres chineses até às docas. O Governador do Distrito de Washington, Watson C. Squire, fez vista grossa aos muitos telegramas vindos da China, que solicitavam a sua intervenção. O Mayor e o Xerife fecharam-se no edifício da Câmara enquanto a multidão conduzia os chineses, debaixo de chuva torrencial, ao longo de uma linha de comboio lamacenta que se estendia por 15 quilómetros para lá da cidade. As mulheres dos comerciantes, impossibilitadas de fazer o percurso a pé por causa dos pés enfaixados, foram atiradas para vagões. Lake View Junction era uma estação da linha ferroviária do Pacífico Norte, que tinha sido construída por trabalhadores chineses. Um pequeno número de desalojados encontrou abrigo nas barracas de armazenamento, nos estábulos, ou dentro do exíguo edifício da estação. A maioria pernoitou ao ar livre. Durante a noite, que estava fria e chuvosa, dois ou três comboios pararam na estação. As pessoas que tinham algum dinheiro pagaram seis dólares para apanhar o comboio para Portland e para Oregon. Outros apinharam-se num comboio de mercadorias. Os restantes iniciaram uma caminhada de 150 quilómetros para sul, em direcção à Chinatown de Portland, onde esperavam encontram refúgio numa comunidade que se tinha recusado a obedecer à ordem de abandonar a cidade. Durante vários dias foram vistos a seguir a linha do comboio. Houve também quem tivesse fugido para o Canadá. Dois dias mais tarde a Chinatown de Tacoma foi destruída pelo fogo. Jean Pfaelzer, “Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses Comunicado da Universidade da Califórnia”, 2008
Sofia Margarida Mota EventosJoão Botelho, realizador: “Quando se constroem muros, é preciso pontes que os destruam” “A Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto é o título e tema do próximo filme de João Botelho. O realizador português esteve em Macau a apresentar o projecto no “Crouching Tigers Project Lab”, secção do Festival Internacional de Cinema que reúne cineastas e a indústria para levar os filmes, que ainda são ideias, ao grande ecrã. Para João Botelho, esta é uma oportunidade de dar o cinema português ao conhecimento asiático [dropcap]E[/dropcap]stá na secção “Crouching Tigers Project Lab” a apresentar o seu novo projecto, “ A Peregrinação” baseado na obra de Fernão Mendes Pinto. Porquê esta escolha? Gosto de adaptar livros. Comecei quando fiz os “Tempos difíceis” do Dickens numa adaptação portuguesa. Depois comecei a fazer coisas que considero importantes na cultura portuguesa e penso estarem pouco divulgadas. Adaptei, do Frei Luís de Sousa, o “Quem és tu?” e “A corte do norte” da Agustina Bessa Luís, que é uma escritora que admiro. Fiz “O desassossego” do Pessoa e “Os Maias” do Eça. Acho que agora é a altura de fazer uma coisa que os portugueses se vão esquecendo e que é ter orgulho em alguns dos grandes momentos portugueses. O Fernão Mendes Pinto representa um deles. Foi uma pessoa desprezada durante muito tempo e de repente descobre-se que ele tinha muito mais verdades do que aquilo que se pensava. Naquela altura, os portugueses queriam epopeias que revelassem a grandeza e Fernão Mendes Pinto foi uma pessoa que apenas relatou, e muito bem, os anos que esteve na Ásia. Por outro lado, as contradições do ser humano estão todas na sua obra. Outro aspecto importante é que estamos numa altura em que está tudo a construir muros e o Fernão Mendes Pinto, através das civilizações que vai conhecendo e com quem se vai relacionando, dá um bom exemplo do que é a coexistência pacífica entre os povos. Numa altura em que se constroem muros, é preciso pontes que os destruam. Ele só começou a escrever o livro passados oito anos de regressar a Portugal. Ninguém lhe ligava. Não foi muito bem reconhecido em Portugal. A única pessoa que o reconheceu foi o Filipe II de Espanha. Nem foi em Portugal. Mas era alguém que conhecia, na altura, como ninguém, o oriente. Outra coisa curiosa acerca do Mendes Pinto, é que considerava que, quando os portugueses se portassem mal, deveriam ser castigados por isso. Um sentido de justiça? Sim, ele achava que toda a acção tem uma paga. Este filme é um filme de aventuras e o cinema que faz é conhecido pelo seu lado mais contemplativo. Como é que junta a acção da aventura com este aspecto contemplador? Tem de ser com muito cuidado. Por exemplo, este filme também é um musical. Adoro o “Por este rio acima” do Fausto, e achei que uma das coisas magníficas que se podem fazer no cinema é, quando há uma acção com crueldade, por exemplo, podemos parar os actores e pô-los a cantar a própria acção. Por exemplo, há uma grande tempestade e em vez de fazer a cena toda (até porque é muito cara), a cena pára a determinada altura e os actores, agarrados aos mastros, cantam a tempestade, cantam o naufrágio. É um filme que tem um bocado de acção, um bocado de contemplação e de narração também. É um filme também narrado? O herói deste filme é a grande escrita do Fernão Mendes Pinto e vamos ter uma voz off a narrar o próprio filme, a dele. Uma das coisas que estamos a trabalhar aqui, e que tem sido uma sugestão que agrada à indústria, é de a de que a voz do narrador seja uma voz do país em que está a ser distribuído. Por exemplo, na China será chinesa, no Japão, japonesa, no Brasil, o português brasileiro, na Malásia, o malaio. Mas, para ser fiel, porque o narrador é o Fernão Mendes Pinto que é português, quando estas situações acontecerem, muda-se o pronome, o eu passa a ser ele. A linguagem também unifica… Sim, nesta mistura cultural é um meio de unificar, aliás o cinema pode sempre unificar porque no cinema podemos fazer tudo. Não há uma regra para o cinema. Como é que está a correr a apresentação do projecto nesta secção? Aqui as pessoas parecem estar muito interessadas neste projecto. Esta secção está muito bem pensada e organizada. De repente houve uma data de produtores, distribuidores e agentes que estão aqui. Vêm da china, de Hong Kong, Malásia, Coreia. São sobretudo asiáticos. Apareceu um grande produtor da China continental que tem uma sucursal em Hong Kong e também tem estúdios em Los Angeles. Segundo eles, quando também lhes perguntamos no que é que estão interessados, a resposta é que estão interessados em tudo. Apareceu-nos outra pessoa, um miúdo fantástico da Coreia que faz efeitos especiais, que se ofereceu para tratar da pós produção deste filme. Nesse caso, ficam os direitos para a Coreia. É uma troca e é muito boa porque vamos precisar disso. Outro representante da indústria de Hong Kong queria comprar-nos os direitos para fazer um filme de animação. Não aceitei. Quero fazer o filme mas posso ceder os direitos daqui a dois anos para o projecto de animação. O mercado asiático está interessado? Sim e pela primeira vez. Este pode ser um meio dos filmes, principalmente portugueses, atingirem outros mercados. Eles gostaram muito desta história e pareceram muito interessados. Pode não dar em nada mas acho que vai dar. O Martin Scorsese acabou de fazer um filme acerca dos Jesuítas no Japão, a peregrinação é também uma abordagem do oriente. Considera que há um interesse crescente e visível pela abordagem da Ásia no cinema ocidental? Sim, há. Este é o próximo império. Os impérios são como as pessoas: nascem, crescem e morrem. Nós também o fomos. Agora é a China. A Europa estagnou, os Estados Unidos estão com problemas gravíssimos e a China tem tempo. Para a China, mil anos não é nada, eles têm tempo para esta uma ocupação lenta. Filmou na China, com que impressão ficou? Foi uma impressão de uma certa violência, ou seja, de vez em quando é preciso fechar os olhos a alguma coisa para poder ver a beleza de coisa inacreditáveis. É uma cultura de massa mas por outro lado tem orgulho e dimensão deste novo império. Quando é que prevê a estreia de “A Peregrinação”? Vou filmar de Abril a Julho e espero que lá para Novembro do ano que vem possa estrear.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesAs consequências do Motim 1-2-3 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] debate em torno das questões das diferentes áreas de governação, que se prolongou por vários dias, está finalmente concluído. Para além das sessões de interpelação oral, todo este processo assemelhou-se mais a uma conferência de imprensa do que outra coisa. Com esta sessão foram encerrados os debates da 5ª Assembleia Legislativa. Mas é possível que em 2017 venhamos a ouvir o mesmo grupo de deputados na Assembleia, porque a “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau”, ainda em revisão, dificilmente poderá deter a corrupção eleitoral. Os ricos e poderosos continuam a desfrutar de absoluta vantagem no processo eleitoral. As provisões recentemente introduzidas na “Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau” vêm reforçar o controlo da liberdade de expressão, o que evidentemente coloca em desvantagem as novas gerações da oposição. No entanto, estas novas disposições não foram contestadas por nenhuma das bancadas do hemiciclo. Há alguns dias atrás fui com alguns membros da Associação de Novo Macau à Assembleia entregar um manifesto de objecção às novas adendas, mais especificamente no que diz respeito à alínea em que se diz que “os candidatos à Assembleia Legislativa devem declarar o seu apoio à Lei Básica e demonstrar a sua lealdade à Região Administrativa Especial”. A nossa acção destinou-se a chamar a atenção do público para a crescente redução de liberdades. Embora sabendo que será muito difícil que o Governo venha a retirar estas adendas, acreditamos que é necessário ter a coragem de lutar contra as “impossibilidades” e que essa deve ser a atitude de todos os combatentes pela democracia. No fundo é pôr em acção as palavras do famoso filósofo chinês Hu Shih (1891-1962), “Antes morrer por falar do que viver em silêncio”. O que está a acontecer actualmente em Macau está directamente relacionado com os incidentes do “Motim 1-2-3”. Quando estes episódios terminaram, há 50 anos atrás, Macau tornou-se um local onde só passaram a ter lugar na política pessoas com um certo tipo de pensamento. A grande centralização do poder e a monopolização da informação impediram a transformação da estrutura social. A RAEM queixa-se frequentemente de falta quadros qualificados. Mas a razão para que isso suceda prende-se com o facto de muita gente ser excluída das posições de decisão e portanto haver pouco por onde escolher. Para assinalar o 50º aniversário do “Motim 1-2-3”, diversas organizações realizaram em conjunto três eventos nos dias 3 e 4 de Dezembro. Os meios de comunicação social chineses deram pouco ou nenhum destaque aos acontecimentos. No entanto perguntamos o que levará o “campo patriótico” a evitar conotações com o “Motim 1-2-3”? Será certamente o carácter político do “Motim 1-2-3”! Alguns dos intervenientes que falaram nestes eventos comemorativos pensavam que esta revolta não tinha sido encorajada pela Revolução Cultural. Mas é inegável que se não fosse a movimentação decorrente da Revolução Cultural, o conflito despoletado pela construção da escola na Taipa não se teria transformado numa luta de grandes dimensões. Claro que quando grupos de manifestantes empunhando o livrinho de “Citações do Presidente Mao Tsé Tung” se dirigiram ao Palácio do Governador, tornou-se inevitável que os protestos se tivessem transformado em confrontos. Antes de 1966 Macau era um local muito agradável para se estar no mês de Outubro. No dia 1 tínhamos as comemorações do Dia Nacional da China. Logo a seguir, no dia 5, comemorava-se a Implantação da República Portuguesa. Dia 10, eram as comemorações do Dia Nacional da República da China (Taiwan). Salvas de artilharia faziam-se ouvir e a cidade ornamentava-se de bandeiras patrióticas. Mas depois do “Motim 1-2-3” de 1966, as forças do Kuomintang (Partido Nacionalista) foram retiradas de Macau e a influência da Igreja Católica diminuiu. Aos poucos, Macau foi ficando sob a influência de frentes políticas que utilizavam nas suas manobras slogans como “amor à Pátria, amor a Macau”. Após o regresso de Macau à soberania chinesa, em 1999, estas frentes tornaram-se o reflexo do próprio Governo de Macau. Uma sociedade deve ser um fórum de troca e debate de diferentes pontos de vista. Quando as pessoas vivem em locais onde não devem fazer análises nem ter um pensamento independente, acabam por ficar semelhantes a robots. A História não se repete! As consequências do “Motim 1-2-3” fizeram-se sentir e os macaenses transformaram-se em actores secundários na cena política. Quando numa sociedade não existe pluralismo de pensamento não pode existir diversidade de desenvolvimento. Para mitigar todos estes factores negativos, podemos encarar as eleições do próximo ano como um ponto de viragem. Mas isso vai depender dos eleitores e de haver ou não vontade para exigir reformas radicais.
Sofia Margarida Mota EventosLivro | João Botas investiga a vida de Manuel da Silva Mendes O jornalista e vice-presidente da Casa de Macau em Portugal, João Botas, passou por cá para apresentar o livro “Wartime Macau – Under the Japanese Shadow”. Ao HM, falou do novo trabalho que tem em mãos e em que aborda a vida de Manuel da Silva Mendes, figura da história local que, considera, tem sido “menosprezada” [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om fortes ligações a Macau, onde nasceu e viveu até ir para a universidade em Portugal, João Botas está a preparar mais um livro sobre a história de Macau. O jornalista, que tem dedicado os últimos anos à exploração do passado local, vai dedicar a próxima obra a Manuel da Silva Mendes que, considera, é uma figura histórica cuja importância tem sido menosprezada. “A certos níveis, e é possível perceber nos livros, comparando com Camilo Pessanha, [Manuel da Silva Mendes] é muito mais significativo”, referiu ao HM. A ideia de abordar a história de Manuel da Silva Mendes tem já alguns anos. “Em 2013, a última vez que cá estive, vim fazer pesquisas relacionadas com a história da vida de uma personalidade, para mim marcante, do primeiro quartel do século XX em Macau. É Manuel da Silva Mendes, que viveu entre 1867 e 1931”, explicou. Com o andar da pesquisa, Silva Mendes foi-se revelando enquanto “personagem curiosa: chegou cá em 1901 e era uma pessoa discreta, formada em advocacia em Coimbra”. Já em Portugal, o advogado tinha sido o primeiro autor de um livro acerca do socialismo e do anarquismo. “A partir de certa altura, sentiu-se desintegrado: a monarquia não mudava e, ao mesmo tempo que defendia um certo anarquismo, não era um homem de ir à luta de forma muito prática. De repente, teve a oportunidade de ter um exílio para clarificar as ideias e vir para Macau. Concorreu para professor do liceu e ganhou” o lugar. De professor do ensino secundário passou a advogado, um percurso que era comum a muitos “bacharéis que, na altura, chegavam a Macau”, explica João Botas. O primeiro sinólogo português A relevância para Macau deste homem de início de século XX é, para o investigador, óbvia. “É um homem que, a partir de certa altura, embrenhou-se na cultura chinesa, no gosto e na ânsia de querer aprender e apreender a cultura chinesa, aos mais variados níveis.” De entre as preferências de Silva Mendes estavam as manifestações artísticas e a filosofia, nas quais “se embrenha de tal forma que se torna um sinólogo de forma praticamente autodidacta e tão exigente para com ele próprio que não há ninguém que o tenha rebatido naquilo que ele foi escrevendo”. Paralelamente, foi um homem que viveu os problemas do território e “ajudou a fundar alguns dos jornais de Macau, escreve centenas e centenas de artigos ao longo dos 30 anos que aqui viveu, e escreveu também os primeiros livros sobre cultura e filosofia chinesa”. A vida política também não passaria indiferente ao advogado, e “há quem diga que foi presidente do Leal Senado”, sendo que João Botas refere que, da sua investigação, acredita que possa ter exercido o cargo mas apenas de forma interina. Manuel da Silva Mendes não é o único vulto que João Botas considera “esquecido” na história de Macau. Ao HM referiu exemplos que mereciam mais destaque. “José Neves Catela é também um homem do início do século XX que veio para Macau. Era da marinha mercante e aqui transformou-se em fotógrafo e agente turístico, tendo trabalhado nos serviços de turismo. Tem umas fotografias brilhantes da década de 20, 30 e 40”, ilustrou o jornalista. Uma história ímpar Acerca da colaboração no livro “Wartime Macau – Under the Japanese Shadow”, uma obra que junta, em inglês, trabalhos de João Botas, Roy Eric Xavier e Stuart Braga, com a coordenação e edição de Geoffrey C. Gunn, João Botas conta que a ideia surgiu na sequência do livro que lançou em 2012: “Macau 1937-1945, os Anos da Guerra”. “Na sequência disso, Geoffrey Gunn, que está em Nagasaki, desafiou-me a dar um pequeno contributo para uma edição da Hong Kong University Press.” O capítulo de que é autor “versa sobre as consequências económicas do território fruto da invasão japonesa na China, primeiro, em 1937, e depois quando a Segunda Guerra Mundial se alastra à Ásia”. “Em Dezembro de 1941, o Japão fez o ataque a Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram na guerra. Poucos dias depois, o Japão tinha as tropas às portas de Hong Kong e começa a invasão daquele território, que é consumada a 24 de Dezembro desse ano. A partir dessa altura, as coisas aqui mudam radicalmente”, contextualiza. Apesar de Macau não ter sido invadido pelos japoneses, as consequências foram inevitáveis. “O anel de tropas japonesas à volta de Macau impôs um bloqueio económico total, por via marítima e também por via terrestre. Isso fez com que, por via do grande fluxo de refugiados, a população tenha quase triplicado – não há números muito fidedignos em termos oficiais –, mas terá passado de 200 mil antes da guerra para mais de 600 mil”, recordou João Botas.
Andreia Sofia Silva Manchete ReportagemEfeméride | Motim 1-2-3 aconteceu há 50 anos O projecto de construção de uma escola na longínqua ilha da Taipa mais os dias quentes da Revolução Cultural levaram a que parte da comunidade chinesa se tenha revoltado contra a Administração portuguesa no ano de 1966. Jorge Fão começava a carreira como funcionário público; António Cambeta tinha acabado de chegar. Hoje recordam dias difíceis que já não voltam [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á 50 anos aconteceu no centro histórico de Macau o que hoje seria impensável: pessoas foram mortas a tiro, foram arrancadas pedras do chão para servirem de armas e estátuas de personalidades portuguesas foram derrubadas. Tudo começou no dia 3 de Dezembro de 1966, com um motim desencadeado pela comunidade chinesa que demoraria cerca de dois meses a ser sanado e que só seria totalmente resolvido com a chegada ao território do Governador Nobre de Carvalho. Viviam-se na China os tempos da Revolução Cultural, imposta por Mao Zedong, e em Macau sopravam ventos comunistas. O longo embargo à construção de escola, na Taipa, ligada ao Partido Comunista Chinês, levou a que um grupo de pessoas tenha despoletado um motim contra a Administração portuguesa. Jorge Fão, ex-deputado e actual dirigente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC), tinha na época pouco mais do que 18 anos. Com uma maioridade atingida à força, pois precisava de trabalhar, Jorge Fão tinha acabado de ingressar na Função Pública e trabalhava nas instalações do antigo tribunal. Recorda um motim que começou com um episódio aparentemente sem importância. “Queriam construir uma escola na Taipa e o administrador das Ilhas na altura, de apelido Andrade, mandou embargar a obra. Dizia que não tinha licenças e claro que as pessoas fizeram barulho. Mas isso alastrou porque demos oportunidade. Nós, portugueses, não tivemos sensibilidade para perceber a situação política da China”, recorda Jorge Fão ao HM. António Cambeta chegou como militar a Macau em 1963. Quando o motim explodiu nas ruas, já trabalhava numa empresa de navegação na Avenida Almeida Ribeiro e tinha uma namorada chinesa, hoje sua mulher. Recorda os momentos negros em que os acontecimentos da Revolução Cultural se fizeram sentir em Macau. “Os chineses andavam muito saturados da Administração portuguesa e da forma como eram tratados. Eram rebaixados em tudo e para tratarem de qualquer assunto junto da Administração tinham de pagar por baixo. Até então estavam calados, mas o episódio da escola e o início da Revolução Cultural fizeram com que tudo desse uma volta”, contextualiza. “Os comunistas reuniram-se perto do hospital Kiang Wu, na véspera do dia 1 de Dezembro, e nessa noite saíram para o centro da cidade. Morava nessa altura na Rua Coelho do Amaral e à hora de jantar ouvi um grande barulho. As pessoas começaram a mandar vir contra os portugueses. Fui à janela e vi que era esse grupo de comunistas a fazerem barulho. Estava a jantar em casa da minha namorada, chinesa, e fiquei ali.” Começou então a perceber que viriam tempos difíceis para os portugueses. “Apanhei o autocarro e o condutor disse-me: ‘Hoje ainda entra, mas amanhã já não pode apanhar o autocarro, porque temos ordens superiores para não vendermos nada aos portugueses’. Aí já havia a separação entre as duas comunidades. Fui para casa almoçar e já não voltei para o serviço.” Mortes na Rua Central Numa altura em que Macau não tinha governador, Mota Cerveira, comandante militar em funções, não soube travar o avanço da revolta. “Os chineses aproveitaram e fizeram uma série de manifestações em Macau e na Taipa, e exigiram a demissão do administrador das Ilhas e do comandante da PSP. Começaram a disparar, mataram-se umas pessoas, uma triste memória”, frisou Jorge Fão. Fão recorda o momento em que lhe passaram uma arma para as mãos, para se defender de eventuais perigos. “Aquilo foi um barulho infernal durante vários dias. Aquilo foi piorando, de tal maneira que gerou tumultos por todo o lado. Armaram os funcionários públicos e deram-me uma espingarda daquelas antigas, com cinco munições, para nos protegermos. Quiseram invadir a esquadra da polícia, na Rua Central, com camionetas a subir a rua. Houve disparos de metralhadora e fizeram recuar as pessoas. Depois invadiram o Leal Senado e derrubaram uma estátua do Coronel Mesquita.” As mortes que ocorreram na Rua Central (oito mortos e algumas centenas de feridos), causadas por disparos de polícias portugueses que tentaram evitar a confusão, geraram ainda mais revolta. “Com a morte dos chineses, a maioria da população comunista em Macau ficou revoltada. Nas Portas do Cerco havia muitas pessoas ligadas à Revolução Cultural que queriam invadir Macau. Isso poderia ter sido evitado se o administrador das Ilhas não tivesse prolongado por tantos anos a construção da escola chinesa”, diz António Cambeta. No Leal Senado e na Avenida da Praia Grande derrubaram-se estátuas. “Muitos deles eram chineses ultramarinos e foram para o Leal Senado, mandaram a estátua do Coronel Mesquita abaixo, mandaram livros para o chão, e foram para a conservatória, onde é hoje a Santa Casa da Misericórdia. Queimaram tudo. Depois partiram um braço à estátua do Jorge Álvares. Depois a polícia, como não tinha qualquer preparação, começou a largar gás lacrimogéneo. A partir daí todos os restaurantes e lojas não vendiam nada aos portugueses, foi um período com muita tensão. Muitos portugueses pediram para levar as suas coisas para Lisboa”, recorda o antigo militar. A solução do Governador Nomeado Governador, Nobre de Carvalho chegou ao território sem saber o que, de facto, se estava a passar. “Apanhou o motim sem saber como nem porquê e conseguiu resolver o assunto com a ajuda de Carlos Assumpção [antigo presidente da Assembleia Legislativa]. Admiro que uma pessoa com um posto militar elevado tenha conseguido salvar o território. Ele aceitou as condições impostas pelos chineses, indemnizou as famílias dos membros que foram mortos com os disparos. Assinaram uma declaração de arrependimento. Constava que o exército chinês estava aqui ao lado, pronto a entrar no território”, afirmou Jorge Fão. Também João Botas, jornalista e autor de vários livros publicados sobre a história de Macau, destaca o papel que Nobre de Carvalho teve neste período. “Só soube do que se estava a passar pelo Governador de Hong Kong e foi difícil tentar inteirar-se de tudo. Foi tudo uma bola de neve que era impossível controlar de outra forma. Poderiam ter sido evitadas algumas mortes”, nota ao HM. “Nunca teve o apoio oficial do Governo português e aí não foi fácil para Nobre de Carvalho. Fala-se da humilhação pela forma como ele resolveu o assunto, mas não vejo assim. Bem ou mal, com a ajuda de elementos da comunidade chinesa, resolveu um assunto que foi dramático e que poderia ter tido consequências”. Palestra acontece amanhã na Livraria Portuguesa Há cerca de três anos que o jovem activista Sou Ka Hou começou, por sua iniciativa, a estudar o que aconteceu há 50 anos no dia 3 de Dezembro de 1966. O antigo presidente da Associação Novo Macau decidiu pegar em meses de pesquisa e escrita, e realizar uma palestra para lembrar à população que um dia os chineses saíram à rua para lutar por algo em que acreditavam. “A história que os residentes de Macau devem conhecer: meio século sobre o turbulento motim 1-2-3” é o nome da palestra que irá decorrer na Livraria Portuguesa no domingo, entre as 15h e as 18h, e que contará com vários historiadores e académicos que se debruçam sobre o tema. Ao HM, Sou Ka Hou lamenta que as escolas não ensinem o motim 1-2-3 aos mais novos. “As pessoas de Macau conhecem pouco a história local e este motim é considerado um dos acontecimentos mais representativos da história de Macau. Quero aproveitar este momento para atrair o interesse das pessoas, sobretudo dos mais jovens, deixando-os conhecer a história a partir deste assunto, para que depois tenham interesse sobre outros assuntos importantes”, diz. “Parece-me que a sociedade não é mais pacífica e que ainda existem algumas confusões, e este acontecimento pode levar as pessoas a pensar, para que a sociedade avance. É uma pena que os manuais da história de Macau não falem disto, além de não registarem outros episódios da história”, defende ainda o actual membro da Juventude Dinâmica de Macau. Sou Ka Hou recorda que a maior parte das associações tradicionais de cariz político, como a União Geral das Associações de Moradores (Kaifong), surgiu após o 1-2-3. “O 1-2-3 demorou cerca de dois meses e aconteceu num lugar pelo qual muitas pessoas passam todos os dias. Mas poucos sabem que lá aconteceu este motim. Quando estava a investigar sobre isto percebi que este assunto estava muito próximo de nós, pois todos os dias passamos no Leal Senado. É uma grande inspiração pessoal e também para a sociedade, pois no passado reunimo-nos em conjunto para lutar por alguma coisa. Todas as associações foram fundadas após esse episódio. Há a ideia de que as pessoas de Macau muitas vezes não falam e não reagem a questões injustas, achamos que os locais são sempre indiferentes, mas segundo a história não foi sempre assim. Mas as escolas agora não nos ensinam isso. As pessoas de facto lutaram por algumas coisas”, rematou o activista. Motim 1-2-3 trouxe “maior visibilidade às associações” Para o investigador Fernando Sales Lopes, o motim 1-2-3 serviu sobretudo para dar mais poder às associações de matriz chinesa que já existiam, como a Associação Comercial de Macau e os Kaifong (associação de moradores). “O pós-1-2-3 acaba por trazer outra estabilidade, Macau foi-se preparando a pouco e pouco para a transição de poder, apesar de faltarem ainda três décadas. Sempre houve um poder chinês e um poder português, e havia sempre uma negociação diária”, afirma. “Depois do 1-2-3 houve um reforço do poder das entidades chinesas. Ho Yin, entre outros, teve um papel relevante neste período. As relações diplomáticas entre a China e Portugal só voltaram a ser restabelecidas após o 25 de Abril de 1974 e só estes capitalistas patriotas desempenhavam o papel de intermediários. Este papel de intermediários entre o poder português e a China acaba por vir a ganhar mais força, acabam por ser embaixadores e tornam-se líderes da comunidade chinesa. As associações chinesas, em vez de estarem fechadas numa comunidade, passaram a intervir no cenário público com mais poder.” Apesar da importância do motim, o investigador afirma que o 1-2-3 foi “um acontecimento ligado ao contexto da altura. “Em Macau sempre fomos um porto de abrigo e fomo-lo para os chineses. Revoluções políticas na China sempre houve.” Para o jornalista João Botas, autor de livros sobre a história do território, “é de facto um dos períodos significativos e marcantes da história de Macau”. “Foi naturalmente fruto do contexto, a história não se repete. Estamos a falar de um período, a consequência do que se passava politicamente na China, da Revolução Cultural, e que mais cedo ou mais tarde acabaria por chegar a Macau e a Hong Kong”, conclui.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs incidentes de 3 do 12 de 1966 A estátua do Coronel Vicente Nicolau de Mesquita, situada no Largo do Leal Senado desde 1940, antes de ser deitada abaixo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 3 de Dezembro de 1966 ocorreram confrontos entre a comunidade chinesa de Macau e as forças do Governo português, episódio conhecido pelo “1-2-3” e que se prolongou até 29 de Janeiro de 1967. Era o extravasar de tensões, trazidas como herança do não reconhecimento por parte do Governo de Lisboa da República Popular da China, proclamada a 1 de Outubro de 1949, assim como em Macau, a resistência feita pelo governo português às forças comunistas da cidade e as ajudas que aqui tinham as organizações nacionalistas, partidárias de Chiang Kai-Skek e derrotadas em 1949 pelo Partido Comunista numa longa guerra, levando-os a fugir para Taiwan. Os que para aí não seguiram refugiaram-se em Hong Kong e Macau e daí faziam constantes provocações aos governantes da República Popular da China. O brigadeiro Nobre de Carvalho aceitara o cargo de Governador, quando Macau era um lugar tranquilo, sem os problemas que enfrentavam os restantes territórios portugueses do Ultramar. Vinha substituir Lopes dos Santos que, devido à doença da sua esposa foi obrigado a ficar por Portugal e apesar de novamente nomeado para um segundo mandato, teve de o recusar. O novo Governador Nobre de Carvalho, só quando chegou a Hong Kong, a 25 de Novembro de 1966, soube pelo seu homólogo da colónia vizinha, Sir David Trench, o problema que o esperava. No barco para Macau, o chefe de gabinete Mesquita Borges e o ajudante de campo, Mendes Liz, explicaram-lhe o problema ocorrido a 15 de Novembro. Tudo começara com a construção de uma escola na Taipa, para a qual a Associação de Moradores da Taipa tinha há longo tempo pedido uma licença às Obras Públicas, mas vendo o tempo a passar e sem resposta, os residentes resolveram começar a construir o edifício. Logo interveio a polícia, havendo feridos, o que revoltou a população chinesa. Acabado de chegar, “Nobre de Carvalho foi apanhado completamente de surpresa e viu-se no meio de algo que não entendia, apesar de ter ficado com o caso para resolver”, segundo Manuel Maria Variz, com quem a partir daqui seguimos o seu relato. A 3 de Dezembro avançou uma manifestação de chineses até ao Leal Senado e perante a fraqueza da polícia, que não recebia ordens do seu comandante, “os amotinados espatifaram o Leal Senado e a Secretaria Notarial e não fizeram mais porque não quiseram…” Documento secreto O documento, que passamos a reproduzir, foi considerado «secreto». Resposta do Governo de Macau ao protesto que lhe foi apresentado pelos representantes dos habitantes chineses de Macau: “O Governo de Macau solenemente declara. Que decidiu assumir a inteira responsabilidade do incidente sangrento de «15 de Novembro», ocorrido na ilha da Taipa. E dos trágicos acontecimentos de «3 de Dezembro», ocorridos em Macau. A fim de impedir que habitantes chineses da Taipa reconstruíssem a sede da sua Escola, o Governo de Macau, em 15 de Novembro de 1966, destacou polícias para reprimir aqueles habitantes de que resultaram feridos e detidos, o que provocou indignação nos habitantes chineses de Macau. No dia 3 de Dezembro, quando professores e alunos chineses de Macau se dirigiram ao Palácio do Governo para apresentarem o seu protesto, o Governo de Macau novamente destacou polícia para os reprimir e, em seguida, impôs a lei marcial, reforçou tropas para disparar tiros, dos quais resultaram mortos e feridos entre habitantes chineses. Nestes incidentes, infortunadamente, ao todo, foram mortas 8 pessoas, ficaram feridos 212 e detidas 62, admitindo o Governo de Macau representarem estes factos sérios crimes dos seus principais causadores. Por isso, o Governo de Macau dirige-se agora, respeitosamente às famílias dos mortos e aos feridos, aos que estiveram presos e a todos aqueles que porventura tiverem sofrido quaisquer prejuízos durante estes incidentes, bem como a todos os habitantes chineses de Macau, para admitir as culpas havidas, significar as respectivas escusas e manifestar o seu profundo pesar. Tendo decidido aceitar, na totalidade, os seis pedidos apresentados pelos representantes dos habitantes chineses de Macau e executá-los imediatamente, o Governo de Macau já exonerou sucessivamente das suas funções, por os admitir como causadores destes incidentes e para apuramento das suas responsabilidades, o Comandante Militar Mota Cerveira, o Comandante da Polícia Galvão de Figueiredo, o Segundo Comandante da Polícia Vaz Antunes e o Administrador interino do Conselho da Ilhas Rui de Andrade, ao quais foi ordenada a sua imediata saída de Macau, para regressarem à Metrópole, para aguardar julgamento das instâncias competentes e correspondente punição. Igualmente decidiu o Governo de Macau chama a si a responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas do enterro e da cerimónias fúnebres, bem como das compensações às famílias dos mortos, pelo pagamento de todas as despesas de hospitalização e tratamento dos feridos e também dos prejuízos inerentes, responsabilizando-se, ainda, pelo pagamento de todos os prejuízos resultantes da invalidez dos feridos, pelo pagamento das indemnizações às demais vítimas, por todos os prejuízos derivados destes incidentes. O governo de Macau pagará em dinheiro todas as indemnizações acima referidas, cujo montante é de $2.058.424,00 (patacas) e solicita aos representantes de todos os sectores sociais dos habitantes chineses de Macau a indicação de um organismo para se encarregar da sua distribuição. Aboliu-se já a lei marcial, foram postos em liberdade todos os indivíduos detidos durante estes incidentes e cancelados os processos que respeitam aos seus registos, devendo também considerar-se anulada, por infundada, a sentença proferida contra um dos habitantes chineses presos durante os incidentes da Taipa e cancelado o seu processo. O governo de Macau já reconheceu a legitimidade da pretensão dos habitantes chineses da Taipa para reconstruir a sede da sua Escola, podendo esta obra ser efectuada imediatamente. Acrescente-se ainda que foi atendido o protesto do diário «Ou Mun», referente ao caso da sua reportagem o incidente da Taipa, pelo que se assegura que, de futuro, não se repetirá semelhante ocorrência. O governo de Macau reitera o seu pesar a todos os habitantes chineses de Macau e dar efectivas garantias de segurança das suas vidas e dos seus haveres e de protecção dos seus justos direitos e interesses, para o que, além do mais, reafirma e assevera que, de futuro, não permitirá decididamente que os agentes secretos do grupo do Tchiang Kai-Chek pratiquem quaisquer actividades em Macau. O Governador de Macau – José Manuel Nobre de Carvalho”. A assinatura do acordo de capitulação, com um texto imposto pela parte chinesa, teve lugar na sede da Associação Comercial a 29 de Janeiro de 1967 e a ordem pública durante todo esse ano foi mantida com o auxílio de milícias das kaifong, como refere José Pedro Castanheira.
Isabel Castro Entrevista MancheteJorge Forjaz, autor da II edição da obra “Famílias Macaenses”: “É a família que dá braços” Há 20 anos, publicou um trabalho que julgava ter dado por concluído. Mas duas décadas depois do “Famílias Macaenses”, Jorge Forjaz apresentou uma reedição, que só a Internet tornou possível. São mais 80 capítulos de um livro onde cabem os filhos da terra que quiseram fazer parte dele [dropcap]N[/dropcap]a sequência de uma iniciativa do Albergue SCM, surgiu a oportunidade de fazer uma nova edição, revista e aumentada, de uma obra que já era considerável. Como foi fazer este trabalho? Vim cá, por iniciativa do Albergue, fazer uma conferência sobre os 15 anos da publicação das “Famílias Macaenses” – uma reflexão sobre o efeito do projecto, o impacto que tinha tido nas comunidades macaenses. A sala esteve cheia, trocaram-se opiniões e, a certa altura, Carlos Marreiros perguntou-me se eu nunca tinha pensado em fazer uma segunda edição. É uma obra que, do ponto de vista gráfico e editorial, não é fácil, não se arranja um editor com facilidade. Além disso, tinha encerrado o meu capítulo de Macau, estava já dedicado a outro tipo de investigações, e tinha oferecido toda a documentação a uma universidade em Los Angeles, ao arquivo “Old China Hands”, que tem como objectivo a preservação da memória ocidental na China. Também não se justificava actualizar a obra – que são três grossos volumes – só para acrescentar uns casamentos e uns nascimentos. Tinha de haver realmente uma alteração muito substancial para justificar a reedição. A minha primeira reacção foi dizer que não seria possível. Era preciso que houvesse nova documentação, novas fontes para explorar que permitissem alterar substancialmente o texto original. Que alteração foi essa que justificou a reedição? Houve um aspecto nestes últimos 20 anos que alterou tudo, sobretudo para uma pessoa que faz uma obra como a minha, sobre uma comunidade que está espalhada pelo mundo inteiro. Conheço muitos genealogistas em Portugal que fazem trabalhos sobre Évora, Estremoz, eu fiz sobre Angra do Heroísmo e sobre a Terceira – é um trabalho sobre pessoas que vivem todas na Terceira. É mais complicado fazer um estudo sobre uma comunidade cuja origem é este pequeno território, mas o palco em que se movimenta é o mundo inteiro. Há 20 anos, o contacto com todas essas pessoas foi feito como se fazia no séc. XIX: através de centenas ou até mesmo de milhares de cartas para aqui e para ali, com os encargos e, acima de tudo, com a demora que isto implica. Escreve-se uma carta, está-se três meses à espera da resposta, que não é satisfatória, escreve-se outra e, com isto, passou meio ano. Nestes 20 anos, aconteceram a Internet e o email. A Internet permitiu o acesso aos arquivos. Usando o exemplo de uma família de Macau: sabia que o primeiro [elemento da família] tinha nascido em Lisboa. Tomava nota de todas essas coisinhas, como vivo nos Açores tinha de ir a Lisboa, estava lá 15 dias, ia aos arquivos de Lisboa; depois apanhava um comboio e estava dois dias no Porto, mas havia algo em Guimarães. Alugava um automóvel e ainda ia lá a ver o arquivo. Hoje não preciso de nada disso: estou nos Açores, em minha casa, abro a Internet e encontro a documentação toda online. Faço quase tudo em casa. Foi possível descobrir então mais informação sobre as famílias macaenses. Fez uma diferença enorme, porque permitiu-me o acesso a uma documentação que nunca tinha visto, porque não era possível ver. Quando se vive longe, como é o meu caso, não posso andar de um lado para o outro constantemente – teria custos astronómicos e era fisicamente impossível. Para aquilo que era possível fazer entre 1990 e 1996, hoje, olhando para trás, parece-me impossível ter conseguido fazer este trabalho. Viajei pelo mundo inteiro antes da publicação: fui à Austrália, ao Brasil, à América do Norte – sobretudo Califórnia, Toronto e Vancouver –, a Singapura. Percorri tudo isto à procura do rasto de toda esta gente. Não tinha sequer um computador portátil, só tinha um em casa nos Açores, o que significa que, quando vinha para Macau para trabalhar, tinha de imprimir tudo e andar com os papéis atrás de mim. Lembro-me de me perguntarem na Califórnia quantas pessoas tinha a minha equipa. E eu fiz assim [abriu as mãos]. Disseram-me: ‘Só 10 pessoas?’. E eu respondi: ‘Não, dez dedos”. Realmente estávamos na Idade da Pedra comparando com o que acontece hoje. O acesso à nova documentação permitiu-lhe encontrar que tipo de informação? Permitiu perceber quem foi a primeira pessoa [da família] a vir para Macau – aconteceu em muitos casos. É algo que as pessoas gostam muito de saber – quem são os seus antepassados, de onde é que vieram. Nenhuma das pessoas que vieram para cá teve a consciência de que estava a contribuir para a construção de uma comunidade. E para a globalização. Vinham para cá para o serviço militar – acabava e regressavam a Portugal, como aconteceu com a maioria – ou vinham como juízes, vinham fazer uma comissão de serviço. Chegavam cá e acabavam por ficar. Nunca ninguém veio de Portugal para ficar em Macau o resto da vida, para casar aqui e dar início a uma nova família. Foi sempre o produto do acaso. Casavam e ficavam, até porque quando chegavam cá solteiros ficavam imediatamente debaixo de olho dos pais das meninas solteiras que cá viviam, porque não havia muitos candidatos. Os que eram militares de carreira faziam comissões bem maiores do que era costume, mas depois acabavam por regressar a Portugal. Por exemplo, a família Senna Fernandes tem dois ou três casamentos com pessoas de Portugal que fizeram aqui as suas comissões, e acabaram por ir todos para Portugal. Mas os que vinham em serviço militar, os militares que não eram profissionais, quando passavam à disponibilidade saíam da tropa e estabeleciam-se. Já tinham arranjado uma namorada, casavam com uma chinesa ou com uma macaense e nunca mais regressavam. A maior parte dessa gente nunca mais voltou a Portugal – quer do séc. XVII, do séc. XVIII, do séc. XIX e mesmo do séc. XX. Isso é que é interessante: uma comunidade que vinha e não regressava, mas mantinha sempre acesa a chama portuguesa. Há aqui pessoas que falam português, têm nomes portugueses, são católicas, cantam o hino nacional, e o antepassado deles que veio para cá nasceu em 1720 ou em 1770. A genealogia anda à procura de datas e traçam-se percursos a partir daí, mas é possível ir mais longe e construir uma história. Claro. Fala-se muito em história – na história económica, na história da arquitectura… Mas por trás de tudo isto tem de haver a história das pessoas, porque sem elas não há economia ou arquitectura, não há nada, e tudo se faz para as pessoas. Quem é essa gente? Como é que essa gente vivia aqui? Que tipo de vida é que fazia? Quantos filhos é que tinham? Casavam ou não? Os filhos morriam muito. Penso muitas vezes no aspecto da mortalidade infantil: hoje, temos um filho ou dois; antigamente as pessoas tinham 10 e 15 filhos, mas morriam oito, nove ou 10. Quem é que hoje poderia tolerar um desgosto desses? É necessário que não se sofresse na altura o mesmo que hoje, que é um desgosto para a vida inteira. Aquelas famílias todas tinham muitos filhos que morriam, mas a sociedade não vivia toda em luto permanente. Tinha de haver um sistema de autodefesa – um antropólogo poderá estudar isso melhor – para enfrentar a morte das crianças. Voltando à Internet. Além da consulta dos arquivos, permitiu-lhe evitar o trabalho de envio de centenas de cartas. Quando decidi fazer a nova edição, mandei uma mensagem para as casas de Macau do mundo inteiro, pelo que em cinco minutos ficaram a saber que havia este projecto. Desafiei-as para que comunicassem aos associados que este trabalho ia ser feito para que, sabendo da primeira edição, do que lá faltava e do que não chegou a ser publicado, da família que não chegou a ser incluída ou das datas que entretanto aconteceram, me mandassem as informações. Podia ter funcionado melhor, porque há sempre pessoas que deixam para amanhã e acabam por não enviar. Há muita gente que vai ficar com pena agora quando vir o livro, que podia ser maior, sendo que é enorme quando comparando com o primeiro. Na primeira edição aconteceu o mesmo: escreveram-me cartas no dia a seguir à publicação, a dizerem-me que quando houvesse uma reedição tinha ali novos dados, que eu já tinha pedido mas que nunca tinham mandado, talvez por não acreditarem que o livro iria ser publicado ou não saberem quem era o autor. Agora todos sabem quem sou e acreditam no projecto. O outro aspecto importante foi a organização do Arquivo Histórico de Macau que, nestes últimos 20 anos, recebeu imensa documentação nova, está muitíssimo bem organizado e permitiu-me trabalhar lá, coisa que praticamente não fiz há 20 anos. No contacto que tem com os membros das famílias, e atendendo que a história social de Macau é muitas vezes marcada por alguma ilegitimidade – filhos de vários casamentos em simultâneo, por exemplo – sentiu dificuldades no contacto com os descendentes? Mostram-se disponíveis para falar da história familiar? Raramente as pessoas têm informações muito precisas sobre os antepassados – sabem os pais e os avós, naturalmente, mas se falarmos do quarto, quinto ou sexto avô, de quem é que veio para Macau, não sabem. Esta era a realidade antes da publicação do “Famílias Macaenses”, porque agora sabem. Mas raramente peço informação sobre os antepassados, porque as pessoas – com a melhor boa vontade e com uma enorme boa-fé – dão informações erradas. Por norma, só falo com as pessoas sobre os antepassados depois de já saber mais do que é suposto elas saberem. Normalmente o que peço são dados sobre os vivos; os mortos é negócio meu. Quanto às ilegitimidades e aos vários casamentos, em Macau há uma situação muito original: os casamentos segundo os ritos católicos e os casamentos segundo os ritos chineses. O português, que é um especialista em intercomunicação à escala universal, aproveitou com grande vantagem para ele os ritos chineses. Então, tinha um casamento português e mais três ou quatro chineses. Quando as pessoas sabem e as coisas são muito claras, não há problema; às vezes, há uma certa surpresa quando lhes digo que o avô e a avó não eram casados. Hoje em dia, é banal, mas antigamente não era. As pessoas reagem pelo espírito da época e não pelo espírito de hoje. Mas isso nunca foi um problema: se virmos bem, praticamente todas as famílias foram marcadas por isso. O que é excepção passa a ser quase a regra e, sendo a regra, faz parte das características do ser macaense. Neste trabalho sobre Macau, há alguma história que o tenha marcado de forma especial? São tantas. A obra tem mais de 380 capítulos. Como se sabe, o nome Silva é dos mais comuns em Portugal. Três pessoas que se chamam Silva não são necessariamente parentes. Em Macau, há 40 famílias Silva que não têm nada que ver umas com as outras. Só o capítulo Silva são quase 400 páginas – é um livro. Isto serve para dar ideia da dimensão. Quanto às histórias, quando cheguei cá, para mim Macau era só isto. Tinha uma vaga ideia de que havia uns macaenses em Hong Kong e mais nada. Para mim, Macau eram três ou quatro famílias de que ouvia falar em Portugal: os Senna Fernandes, os Nolasco e pouco mais. Mas, como noutros sítios, aqui havia a alta sociedade, a média sociedade, a baixa sociedade – não faço juízos de quem é quem. A mim interessa-me se responde àquilo que é a minha definição de macaense. Lembro-me de ter falado com uma pessoa a quem disse que estava a pensar fazer um trabalho sobre as famílias macaenses, que me disse: ‘Não é preciso, isso já está feito. O Padre Manuel Teixeira já fez isso. Somos só seis ou sete famílias’. Deste número passaram a 15, depois a 20, a 30 e acabou com 280 ou 300 – já nem sei quantas são. Depois é que tomei consciência de que, para perceber Macau, é preciso perceber Cantão, Hong Kong e Xangai. São os quatro pontos essenciais da comunidade macaense. O que é interessante verificar é como todas estas pessoas, dispersas desta maneira, mantiveram sempre uma ligação fortíssima com Portugal. Uma das histórias mais engraçadas tem que ver com a revolução republicana de 1910: logo a seguir à proclamação da república houve uma festa no Clube Lusitano de Xangai em que já lá estava a bandeira verde e vermelha. E mais: houve uma família de lá que baptizou o filho com o nome ‘Bernardino Machado’, o nome do primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros da república. As pessoas imediatamente assumiram a nova situação portuguesa, pessoas que eram bisnetas e trinetas de portugueses, e que nunca foram a Portugal. Até que ponto pode ser importante o conhecimento da história pessoal? O que se pode retirar hoje de se saber de onde se vem? Um dos países da Europa onde há mais estudos genealógicos é a Polónia. Porquê? É o país europeu mais sacrificado nas suas fronteiras: a Rússia retirou-lhe um bocado, a Alemanha outro, deixou de ser independente, depois avança a fronteira, depois recua a fronteira. Mas as pessoas vivem sempre na mesma cidade: um dia eram alemãs, noutro dia eram russas, o nome tinha de ser mudado, depois emigram para a América e já nem sabem bem o que é que são. Vivem obcecadas pelas suas origens. Com fronteiras definidas há mil anos, não temos essa noção. As pessoas podem não saber a sua genealogia, mas têm a perfeita consciência da sua origem. O polaco tem imensas angústias existenciais. A genealogia é a primeira explicação para saber quem sou. Há umas pessoas que me dizem que não querem saber, que tanto lhes faz. Mas se lhes disser que a família é uma cambada de bandidos, dizem-me logo que não me autorizam que fale mal dela – afinal, a família tem um valor, que é um sentimento de pertença a uma comunidade, a uma terra, a uma tradição, a uma religião, a uma gastronomia, a uma língua. É a família que dá braços para prender tudo isto. A maior parte das pessoas tem uma pequena memória familiar, mas tem sempre grande curiosidade em ir um pouco mais longe. A genealogia dá resposta à pergunta que cada um faz a si próprio: quem sou eu? Nestas famílias macaenses, só houve um ou dois casos de pessoas que não queriam saber, que me disseram que não me respondiam.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO lago na Feira da Exposição Industrial [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre Macau, o jornal A Pátria de Janeiro de 1926 refere, “que os atractivos diurnos não eram de grande monta. De feito, não temos para oferecer aos estudiosos e investigadores uma biblioteca pública, um museu; um parque bem ensombrado e de ruas asfaltadas ou cimentadas, facilitando o passeio a pé e onde não houvesse tanques sem os beneméritos peixes que devoram as larvas dos mosquitos; lanchas a motor ou embarcações a remos, de aluguer, que permitissem o passeio na Baía da Praia Grande. Oh! A bela baía que estamos em riscos de perder conspurcada pelo aterro a que Carlos da Maia sempre se opôs por destruir toda a linda perspectiva do lugar, não só pelas futuras construções, como também pela maculante modificação do conjunto. A linda avenida marginal onde se pode contemplar a sua curva graciosa de 1300 metros de extensão” iria ser “sacrificada à execução de uma ideia por alguém sugerida de uma avenida de luxo rectilínea e de mais um campo desportivo”. Então “o que nos resta para oferecer ao turista como passatempo às horas do dia? … E a noite?” Contradizendo este texto de Gregório Fernandes, o próprio, a 24 de Abril, durante a quarta reunião da Comissão, apresentou “a proposta de que fosse coberto, pelo menos com óla o coreto de música do Jardim Vasco da Gama, não só para conforto dos músicos, abrigando-os da chuva, como também por motivos de condições acústicas”. Em 1926, era extraordinário o número de novas construções. “Num abrir e fechar de olhos surgem-nos grandes edifícios e novas ruas, sobretudo para os lados de Patane, onde a Avenida Lacerda, que se estende até às alturas da Ilha Verde, já se vê literalmente ladeada de grandes fabricados, servindo quase todos de estaleiros”. Era a géneses da nova cidade de Macau, fora da parte cristã, ainda muralhada no tempo do Governador Ferreira do Amaral quando, após Portugal ser instado a tomar posse de Macau e torná-la independente da China, se não, esta seria ocupada por outra potência europeia, este mandou abriu as primeiras estradas fora das portas da cidade, expandindo-a. Tudo isso, aliado ao isolar o Campo de Mong-Há do Bazar Chinês e a constante violação das sepulturas dessa área pelos ingleses, que por aí gostavam de passear a cavalo, tal como Ferreira do Amaral, cujo hábito de cavalgar sozinho por essas paragens em 1849 lhe custou a vida e a cabeça. Era a China a mostrar de quem era Macau, cuja sua terra não era alienável. José Coelho do Amaral, Governador de Macau entre 1863 e 1866, continuou a obra de Ferreira do Amaral, abrindo uma estrada, inicialmente baptizada com o nome de Estrada do Mong-Há e depois, Estrada Coelho do Amaral e que ia da Avenida de Horta e Costa à do Coronel Mesquita. O lago da Feira A Exposição Industrial e Feira de Macau realizou-se no Campo de Mong-Há, vulgarmente denominado Campo dos Aviadores, onde a 1 de Maio de 1926 aterraram vindos de Hanói o aviador espanhol, Capitão E. Gallarza e o mecânico Arosameña, no voo Madrid-Manila. O recinto com 8 hectares era parte do terreno com aproximadamente 360 mil metros quadrados expropriado em 1901 aos chineses locais, graças ao prestígio e influência de Lu Cao. Essa zona, de várzeas, prédios, casebres e barracas, compreendida entre as estradas da Flora, Adolfo Loureiro e Coelho do Amaral e a povoação de Mong-Há, devido ao sistema de cultura era a causa do paludismo e febres, que atacavam os locais. Por isso, em 1901 planeava-se, depois de saneado o terreno, construir ruas, largos e avenidas, devendo-o transformar num bairro que podia vir a ser o mais belo de Macau. Mas parte desse terreno em 1926 encontrava-se ainda livre de construções e por isso, foi decidido usá-lo como local para o recinto da Feira e Exposição. Situado entre a Rua Conselheiro Ferreira de Almeida e as avenidas Coronel Mesquita, Sidónio Pais e Horta e Costa, havia na parte NE do seu interior um lago situado em frente à entrada do Kun Iam Tong. Este lago foi criado a partir de uma depressão que formara uma lagoa e pertencia à bacia hidrográfica de Mong-há, tal como o do Jardim do Sr. Lu-Lim-Ioc, sempre cheio de água corrente renovada diariamente e por isso não eram estes de água estagnada. O médico subchefe dos Serviços de Saúde, o Dr. Nascimento Leitão refere numa entrevista de 1926, “Os terrenos baixos e alagadiços do vale, ou melhor, da bacia de Mong-há, impropriamente conhecida pela designação de várzeas, que ainda há vinte anos se estendiam de Long-Tin-chin até ao rio (Xijiang), tem ido pouco a pouco desaparecendo sob os aterros de um bem necessário saneamento. Havia naqueles terrenos quatro depressões, permanentemente cobertas de água, que os aterros têm poupado, circunscrevendo-os num contorno mais ou menos caprichoso. Três destas depressões estão transformadas em lagos de jardins particulares, restando ainda uma delas, a mais vasta, cortada por duas estradas em três porções, uma das quais foi, por feliz ideia, convertida em lago de diversões da presente Exposição”. É este lago alimentado pela drenagem pouco profunda dos terrenos circundantes, sendo a génese da sua água nada mais do que dos poços naturais e era com ela que contavam os Serviços de Incêndios colocados no recinto da Feira. Visita aos pavilhões À entrada do recinto da feira, situada na Avenida Horta e Costa, pela forma original impunha-se o pavilhão nº 9 da Portugal-Oriente, expondo produtos de origem portuguesa. Recebeu o segundo lugar dos pavilhões com Diploma de Medalha de Ouro. Em primeiro ficou o Holland Pacific Trading Co. que levantou na ilha do lago um imponente moinho holandês com casa anexa. “Estas duas construções imprimem à feira uma nota original, quer pela sua forma, quer pelo feliz local escolhido. Expõe produtos de origem holandesa, como leite condensado, chocolates, etc.. Esta firma, que é também agente de várias companhias de navegação, apresenta várias fotografias de vapores. No meio da casa, toda ladrilhada, vê-se um pequeno monte de carvão de Moçambique que o Sr. Van Genepp”, representante em Macau da Companhia, pretende aqui introduzir. Já o terceiro lugar coube à Companhia Netherlands Harbour Works. Desde Maio de 1923 adjudicatária das Obras dos Portos, fez-se representar por um pavilhão também de gosto holandês, tendo em exposição vários modelos de barcos, gruas das obras feitas em H.K., assim como um gráfico com as diferentes fases dos trabalhos realizados no porto de Macau. Estes alguns dos pavilhões que participaram comercialmente na Feira da Exposição Industrial.
Sofia Margarida Mota SociedadeAcadémicos reticentes quanto aos novos manuais de história feitos com a China A produção de manuais de História uniformizados com os do interior da China é uma iniciativa prevista para o ano lectivo de 2019/2020 que suscita, desde já, reacções diferentes. Tereza Sena acha que é uma iniciativa “louvável”, desde que reserve espaço para as particularidades de Macau. Larry So considera que se trata de um acto político [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] uniformização da produção de materiais escolares para a disciplina de História com o interior da China, medida anunciada esta semana pelo Chefe do Executivo, é vista por académicos do território de forma diferente. Os novos livros deverão chegar às escolas no ano lectivo de 2019/2020, confirmou Chui Sai On no debate sobre as Linhas de Acção Governativa (LAG). Se para a historiadora Tereza Sena é uma iniciativa positiva, para o sociólogo Larry So trata-se de uma manobra política. “Faz sentido que a história da China seja ensinada em Macau, mas tem de existir uma parte reservada à história local”, afirma Tereza Sena ao HM. Macau é uma região administrativa especial e tem um passado diferente do da China e, mesmo com a uniformização dos manuais, “faz sentido que também tenha direito à sua própria história”. Os livros vão ser concebidos pela Direcção dos Serviços da Educação e Juventude (DSEJ) em conjunto com os serviços homólogos do Continente. “Apesar da concepção de livros de História de Macau ser um projecto recorrente no território, é louvável a iniciativa anunciada por Chui Sai On. Este é um projecto de que já se falou várias vezes e que, não se sabe porquê, acabou por não se concretizar”, explica a historiadora. No que respeita às equipas que poderão colaborar na produção dos manuais, com o conhecimento referente ao território, a historiadora considera que “hoje em dia há excelentes investigadores – tanto chineses como portugueses e de outras nacionalidades – no que respeita à investigação acerca da História local, pelo que há uma abordagem científica rigorosa”, sendo que um trabalho conjunto se afigura a melhor solução. Apesar de elogiar a iniciativa, não foi sem dúvidas que Tereza Sena recebeu a notícia. “Há conteúdos para fazer um manual. Agora, resta saber se o manual de que Chui Sai On fala será uma visão partilhada ou uma história direccionada”, lança, considerando que “a história de Macau já ultrapassa até mesmo as abordagens mais nacionalistas”. A historiadora sublinha que o trabalho feito em língua chinesa acerca da história do território “é muito interessante”, mas há outros, também de valor, e noutras línguas com outras origens. “Desde que seja uma visão partilhada de Macau, acho muito bem, até porque esta é uma terra que pertence a todos e representa um lugar de encontro mundial, em que não há só chineses ou portugueses”, explica. Para a investigadora, o ideal será um manual que conte com o contributo dos vários grupos identitários que têm passado pelo território. Recorda ainda que “já existe uma academia em Macau em que há diálogo e há troca de conhecimento”, sendo que espera que a iniciativa espelhe o trabalho conjunto que tem vindo a ser feito “com os melhores e mais recentes contributos”. Politiquices As directivas anunciadas por Chui Sai On representam, para o sociólogo Larry So, uma manobra política. “Penso que esta é uma orientação política porque o assunto pode ser crítico e é uma forma de manipulação”, defende ao HM. Para Larry So, o facto de as pessoas, desde pequenas, aprenderem as coisas de determinada maneira é algo que fica registado, e o modo como são dadas as informações pode fazer com que pensem que o que é bom e verdadeiro é o que lêem nos livros escolares: “Ficarão a pensar que é aquilo que se passou”. Para o analista, é claro que “com este tipo de iniciativa, os livros podem ser manipulados e isso é, de facto, um assunto político e não de conhecimento”. Larry So não entende porque é que a produção de um livro escolar tem de ser feita por um Governo. “Porque é que um Governo faz um manual?” questiona, considerando que “há pessoas na comunidade com formação em educação, com o conhecimento para o fazer e que podem realmente transmitir a história e não a afectar”. No entanto, não deixa de considerar que a história apresentada vai sendo mudada com o tempo. “Penso também que, de vez em quando, todos nós alteramos a história, até pela forma como a olhamos.” Larry So espera que os manuais anunciados “se cinjam à transmissão de factos sem terem associada uma interpretação ideológica”. No que respeita à história local, marcada pela presença portuguesa, Larry So considera que os conteúdos dos livros de História “não vão embaraçar as relações com os portugueses e que vão respeitar a sua presença de modo a promover promover uma amizade nova com o país, diferente da que existiu durante cerca de 400 anos”, na sequência das directrizes de Pequim dadas recentemente ao território, com a visita do primeiro-ministro Li Keqiang.
Hoje Macau Manchete SociedadeCentenário do padre Benjamim Videira Pires – Uma vida dedicada a Macau Tereza Sena* [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntendo não ser o calendário que determina ou regula a evocação, a celebração, a reprodução da memória. Mas ajuda. Sobretudo se for democraticamente gerido. Porque há que conciliar disponibilidades, recursos, oportunidades, mesmo numa era dita de informação, cada vez mais desinformada pela atoarda da ilusão de que toda ela está acessível à distância de um “click”. A memória, a sua reprodução, o apelo que lhe fazemos são processos selectivos, e muito, todos o sabemos. Como indivíduos, cidadãos, profissionais, afiliados, amigos, precisamos, utilizamos e reproduzimos pedaços de memória(s), nela nos visitando, revisitando e representando, quer individual, quer colectivamente. Uns mais, outros menos. E Macau é um local de memórias, de muitas diversas memórias, nem sempre partilhadas, nem sempre plenamente conhecidas, nem sempre unanimemente aceites ou reconhecidas por todos, a ela arribados de um sem número de proveniências e por outras tantas vias. Memórias nem sempre evocadas, ou dados a conhecer por aqueles que reclamam o direito à cidadania e à intervenção num espaço que também assumem como seu. Vem tudo isto a propósito da passagem, neste 30 de Outubro, do centenário do nascimento do padre jesuíta Benjamim Videira Pires (1916-1999), um homem que dedicou a sua vida a Macau, onde permaneceu de 1949 a 1998, e nela se afirmou pela acção educativa, criando uma instituição de ensino de elite, vocacionado para a instrução da população chinesa, mas também pelo contributo intelectual honesto, rigoroso, e marcante nas décadas de 50 a 80 do século passado. Antropologia e outros estudos Ensaísta, versou sobretudo temas antropológicos, como é o caso da sua conhecida obra Os Extremos Conciliam-se (1988), que foi vertida para chinês; e históricos, de que destaco a história da Companhia de Jesus, Ordem na qual ingressara jovem, em 1932, e o estudo da actividade marítima de Macau. Recorreu para isso a fontes primárias, pesquisando e disponibilizando documentos até então inéditos, anotando-os e comentando-os profusa e cuidadosamente, deixando obra de relevo, em grande parte ainda hoje dispersa. Mas foi também poeta, dramaturgo, jornalista e interventor político, para além de pedagogo e de sacerdote, naturalmente. Menos conhecida é actividade de Videira Pires em prol do estudo, classificação e perservação do património edificado de Macau, realizada no seio da Comissão de Estudo do Património Artístico e Histórico de Macau, criada em 1960 e reformulada em 1962, que integrou, sobre o que lavrará relatório em 1963. Coube-lhe o estudo detalhado das igrejas e cemitérios antigos (o que constituí uma novidade), o que é testemunhado pela bibliografia que produziu neste domínio, onde pontuam, entre outros, textos sobre vestígios e achados arqueológios. Também será chamado a integrar a comissão incumbida da recuperação e reorganização do espólio do Arquivo do Leal Senado, após os incidentes do 1,2,3, em 1966 — onde aliás teve um papel activo na defesa das Escolas Católicas de Macau, cujo Conselho secretariava —, embora a tarefa tenha sido maioritariamente realizada por Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), à época (1962-1967) director da Biblioteca Pública Municipal, situada no edifício da mesma câmara de Macau, como se sabe. É certo que, de quando em vez, o nome de Videira Pires vem sobretudo à baila nos escritos de António Aresta e de Jorge Rangel, um dos poucos a relenbrarem o centenário e a promover, através do Instituto Internacional de Macau, discreta sessão assinalando a efeméride e relembrando o homem, o padre e o intelectual, Benjamim Videira Pires, na qual foi oradora Beatriz Basto da Silva. Tratou-se, tanto quanto julgo saber, da única homenagem institucional que a memória e o legado de Benjamim Videira Pires suscitaram, pelo menos em Macau. Não que os seus méritos não tenham sido reconhecidos, entre outros, pela Academia Portuguesa de História, que o fez sócio correspondente em 1988, quando já era sócio-efectivo da Academia de Marinha de Lisboa. É de lamentar. Relembro a forma esforçada e proveitosa como a Biblioteca Central de Macau, do Instituto Cultural, assinalou a passagem do 90º aniversário de Monsenhor Manuel Teixeira (1912-2003) com iniciativas que se prolongaram até 2004, tal como aconteceu com outras instituições, ou grupos ad-hoc, em Portugal. Manuel Teixeira foi indubitavelmente o mais mediático e célebre de todos os estudiosos de Macau nela residentes do Século XX. Não pretendendo aqui estabelecer comparações entre as personalidades, contributos e legados destes dois homens de vulto, Teixeira e Videira Pires, que partilharam interesses comuns, conviveram, colaboraram (rivalizando um pouquinho é certo, de quando em vez), trilhando caminhos idênticos e atravessando os mesmos tempos. Apenas pretendo sublinhar que não pode a nossa memória colectiva, não podem as nossas instituições, não devemos nós pautar-nos pelo brilho das luzes da ribalta e pelo volume do eco com que esses nomes soam na cidade a partir de além-fronteiras. Macau tem uma palavra a dizer sobre o valor e a utilidade destes e de outros legados, deve relembrá-los e ensiná-los como homens de Macau e do seu património, cultural, histórico, literário e historiográfico, para nos ficarmos por aqui. Quero com isto dizer que instituições públicas como o Instituto Cultural e a sua Biblioteca, ou privadas como a Companhia de Jesus e o seu Instituto Ricci de Macau, estabelecimentos de ensino superior como, por exemplo, a Universidade de S. José, entre outros, e para apenas citar os mais óbvios, deviam uma palavra e um gesto de atenção a Benjamim Videira Pires. Ignoro se o seu tão querido colégio, rebaptizado de “Mateus Ricci” em detrimento de “Melchior Carneiro”, e não obstante todos os tristes percalços por que passou nos finais dos anos 1990, relembrou ou não o homem que com tanto esforço e dedicação o criou em 1961. Por fazer Mas, para além da evocação e da homenagem, muito há a fazer: Urgentemente ― não sou a primeira a dizê-lo, mas nunca será de mais repeti-lo ―, a inventariação e localização da obra de Benjamim Videira Pires, sobretudo a que se encontra dispersa pelas muitas revistas e jornais que dirigiu ou onde colaborou, assim acontecendo também com as inúmeras entradas que preparou para a Enciclopédia Luso-Brasileira, da editora Verbo. E, neste campo, a Biblioteca Central podia e devia oferecer o seu prestimoso contributo, na pesquisa de todo este acervo, tal como o fez para Monsenhor Manuel Teixeira, actualizando o trabalho que iniciou em 1992 e desenvolveu em 1997, se bem que ainda bastante lacunarmente, como reconheceu o mesmo Jorge Arrimar, que à época dirigia a instituição e assinou as notas introdutórias desses dois pequenos catálogos. Há ainda a considerar a reunião de manuscritos, alguns eventualmente inéditos, levantando-se aqui a magna questão da localização presente do espólio(s) do próprio Videira Pires, sobre o que não me detenho, a que acresce toda a informação iconográfica e registo audio-visual que lhe respeitem. Depois, a reunião em volume(s) dessa obra dispersa, e a reedição de alguns dos seus livros, hoje já inacessíveis, sem pôr de lado, a eventual tradução para língua chinesa, ou até inglesa, do que se considerar mais relevante para o desenvolvimento dos “estudos de Macau”, em que se empenham grupos e instituições, domínio em que o contributo de Benjamim Videira Pires tem lugar de direito próprio. Finalmente, o próprio estudo da vida, obra e pensamento de Benjamim Videira Pires, na suas diversas vertentes, para o que já dispomos de textos biográficos, mais ou menos emotivos, como é o caso de P. Benjamim Videira Pires, Meu Irmão, da autoria de Francisco Videira Pires, dado à estampa pelo Instituto Internacional de Macau em 2011, e alguns contributos de António Aresta, de que destaco “A Identidade Cultural de Macau no Pensamento de Benjamim Videira Pires, SJ”, incluso no seu livro, Macau Histórico Cultural, que acaba de ser dada à estampa pela editora Livros do Oriente. Mas há certamente muito a dizer sobre o pedagogo, o pensador, o mediador e o político. Uma ressalva final, esta sim, contendo talvez alguma novidade, e que reputo da maior importância. Qualquer edição ou reedição da obra de Benjamim Videira Pires deverá ser cotejada com os exemplares dessas mesmas obras que lhe pertenceram já que, atendendo ao rigor e seriedade intelectual que o caracterizavam, tudo anotava, corrijia, acrescentava, mesmo após a publicação dos textos, o que, naturalmente, merece e é de justiça ser considerado, para além de ser urgente recuperar. E isto enquanto tivermos acesso àquela que foi, pelo menos em parte, a sua biblioteca pessoal ou/e da residência dos jesuítas (outro tema a merecer a atenção de especialidade, tanto mais que anotava e criticava profusamente o que lia e consultava), e que integra hoje o espólio do Instituto Ricci de Macau. Exemplifico apenas com um conjunto de textos, profusamente documentados, que o nosso autor preparou sobre os “Jesuítas e Macau”, tema de investigação que o ocupou desde cedo mas que terá ganho maior fôlego quando pretendia assinalar a passagem do IV centenário do estabelecimento dos inacianos na cidade, em 1964, dando então à estampa um pequeno volume sobre o assunto. Sabe-se que o Padre Videira Pires preparava a edição de vários volumes sobre o tema, o que tudo já estaria mais ou menos delineado em 1994, tratando-se muito possivelmente da reunião dos artigos que vinha publicando desde os inícios da década de 1950 nas páginas da “Religião e Pátria”, do “Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau”, da Enciclopédia Luso-Brasileira, da “Brotéria” e noutras sedes. Por onde andará tal trabalho desconheço, mas talvez valesse a pena indagar. O padre Videira Pires teria certamente em mente uma versão revista e anotada desses textos, contemplando as aludidas correcções, acrescentos e actualizações bibliográficas, que atrás referi e de que junto exemplos que bem atestam da relevância do legado que temos entre mãos e de que urge cuidar. * Historiadora Um homem na cidade [dropcap]C[/dropcap]hegou a Macau em 1948 e aqui passou grande parte da vida. “Foi um homem de Igreja, mas foi um homem com impacto social”, diz Luís Sequeira. É assim que o jesuíta começa por descrever Benjamim António Videira Pires, um retrato que “não é fácil de fazer para conseguir ser objectivo”. É que Videira Pires, cujo centenário do nascimento se assinalou ontem, 30 de Outubro, foi um homem com várias dimensões. Transmontano nascido em Mirandela, saiu de casa cedo, como acontecia à época, para estudar. Depois de passar pelo seminário em Guimarães, entrou na Companhia de Jesus, em 1932. Quatro anos depois, concluiu o curso superior de Humanidades Clássicas e de Literatura Portuguesa. Já em Braga, estudou Filosofia e, em Granada, Teologia. A ordenação enquanto sacerdote aconteceu em 1945. Três anos depois chegou a Macau. Luís Sequeira conta que Videira Pires se “impunha pelo seu valor intelectual e sensibilidade aos problemas da sociedade”. Foi este lado do jesuíta que o levou a ser voz activa na Macau administrada então por Portugal. “Mantinha num jornal uma série de textos chamada ‘Calçada das Verdades’, escrevia artigos de opinião”, explica. “Sendo um homem da Igreja, era um homem com impacto e tinha presença na sociedade de Macau. Ao mesmo tempo, recordo que era uma pessoa com um temperamento delicado, respeitoso, com muito boas relações humanas, expressando-se até na recolha de fundos, ao nível internacional, para as suas obras” no território. À chegada a Macau, Benjamim Videira Pires estudou chinês e foi professor do Liceu Nacional Infante D. Henrique, além de exercer funções pastorais. “A sua grande obra foi o Instituto Melchior Carneiro – foi ele que lançou esse grande colégio – embora na parte final da sua vida tivesse sido transformado no Colégio Mateus Ricci”, contextualiza Luís Sequeira. O padre jesuíta faz referência à vertente das humanidades e literatura que Videira Pires cultivava: deixou obra poética, “era um homem sensível, delicado, era culto, lançou-se na poesia e fazia-o bem”. Depois, há a dimensão da história, “com muita repercussão ao nível internacional, com pequenos artigos ligados à presença portuguesa no Oriente – sempre manteve esta linha – e teve uma postura que lhe granjeou respeito no campo da história”. Luís Sequeira repara que, “por vezes, era demasiado patriótico, embora fosse uma pessoa com o sentido da interculturalidade”. A espiritualidade é outro lado recordado: “Foi sempre um homem muito dedicado, atento à comunidade cristã, particularmente à de língua portuguesa”. Benjamim Videira Pires deixou Macau em Agosto de 1998. Morreu no ano seguinte em Portugal. POR Isabel Castro
Isabel Castro Entrevista MancheteRogério Miguel Puga, académico: “Há muita investigação ainda por fazer” São histórias de mulheres com olhares muito diferentes, que completam o vazio sobre o quotidiano da Macau do século XVIII. O investigador Rogério Puga voltou ao território para participar na conferência internacional “Discursos memorialistas e a construção da história”, que termina hoje na Universidade de Macau. E explica-nos o que se descobre sobre o passado desta cidade quando se vai de Boston a Filadélfia. [dropcap]T[/dropcap]rouxe a Macau o caso do diário de Caroline H. Butler Laing, uma norte-americana, escritora, uma mulher de família também, que passou por cá no século XIX em viagem com o marido. Que diário é este? Que escritas femininas são estas? São escritas protestantes, um olhar protestante sobre Macau, que estranha quer o chinês, quer o português católico. É uma mulher que vem de Nova Iorque, muitas vinham de Boston, e nunca tinham visto católicos. O português católico é tão exótico para estas mulheres quanto o chinês. Elas têm de descodificar esses dois outros que encontram em Macau. São exercícios religiosos: os católicos confessam-se, os protestantes não, pelo que escreviam diários como exames de consciência para ver o que tinham feito bem e o que tinham feito mal. Estas mulheres passam o ano todo em Macau, os maridos estão em Cantão seis meses, elas ficam sozinhas aqui com os empregados e os filhos, aborrecidas até à morte, rodeadas de católicos e de chineses, e descrevem desde o cão que está a latir aos cortinados e às cadeiras. Para se reconstituir a história do quotidiano da Macau do século XIX estas fontes são riquíssimas, são muito melhores do que as fontes portuguesas. Elas eram tradutoras culturais, porque tinham de explicar tudo ao mínimo pormenor sobre a China. Estes diários eram epistolares, em forma de carta, eram enviados para os Estados Unidos, e a rua e o bairro inteiro liam aqueles diários. Foram também responsáveis pelas primeiras imagens americanas sobre a China. São quase ferramentas da sinologia norte-americana. Porquê esta mulher? O que tem de especial Caroline H. Butler Laing? Tem o que todas as outras têm, mas há neste diário uma coisa muito interessante: o dia-a-dia da mulher protestante em Macau. Ela no fim faz uma espécie de um esquema do quotidiano de uma mulher norte-americana: as orações, a hora a que se levanta… Há outro diário, da Rebecca Kinsman, que enviuvou cá em Macau – o marido, Nathaniel Kinsman, está enterrado no cemitério protestante. Eles, por exemplo, trouxeram uma vaca dos Estados Unidos da América. Como os chineses não bebiam leite, as vacas não eram leiteiras. Se traziam crianças, traziam uma vaca. Quem ia embora deixava a vaca leiteira aos amigos que cá ficavam, assim como mobília – ofereciam ou faziam leilões. Este diário tem isso de especial: ela descreve o quotidiano da mulher de língua inglesa, protestante, em Macau: se ia visitar as amigas, se ia passear a pé até às Portas do Cerco, se ia visitar uma aldeia chinesa. Há todo este ponto de vista dos estrangeiros que chegam a Macau. Por exemplo, estranham o repicar dos sinos de hora a hora, que é uma coisa que não acontece nos países protestantes. É um olhar muito diferente do de uma mulher portuguesa que visitasse a Macau católica do século XIX: não estranharia o repicar dos sinos porque em Portugal também soam para dar as horas. É muito interessante esta focalização protestante sobre um território simultaneamente português e chinês. Porque observa pormenores que seriam dados adquiridos para portugueses e chineses. É, portanto, uma fotografia mais completa. É. Muitas vezes permite encontrar os vazios das fontes portuguesas, certas práticas que não estão descritas nas nossas fontes e que eles descrevem. Acontece muito, nas fontes oficiais, aquilo que interessava aos portugueses esconder do Rei de Portugal, os americanos ou os ingleses falarem abertamente, e vice-versa – o que interessava aos ingleses esconder, as fontes portuguesas muitas vezes revelam. Esse cruzamento das fontes de línguas diferentes permite encontrar vazios quer numas fontes, quer noutras. Destacou o facto de serem fontes de religiões diferentes também, num contraste com os escritos de residentes e viajantes católicos. Existe uma diferença muito grande na abordagem do mundo, certo? Existe, a cosmovisão é diferente. Estas mulheres americanas, quando vão para festas portuguesas até às quatro da manhã, sentem-se culpadas, há o peso da seriedade protestante. Os hábitos são diferentes, quase que se sentem forçadas a justificar porque é que ficaram até às três da manhã numa festa na casa do Governador. Há esse peso religioso. Há as práticas dos quakers e dos unitarianos em Macau, que casavam entre primos. Os próprios americanos espantam-se com os hábitos uns dos outros, o que não deixa de ser curioso. Existiam várias Macau – não eram só a portuguesa e a chinesa, havia também uma norte-americana, uma britânica. Esta visão caleidoscópica de um território tão cosmopolita como Macau era e continua a ser muito importante no cruzamento destas fontes. Era uma Macau interessante, esta que a Caroline H. Butler Laing descreve? Era. Sobretudo até à fundação de Hong Kong, era a única porta de entrada para a China e foi esse o segredo de Macau. Por isso é que ficamos tantos anos aqui: também era útil para as autoridades chinesas manterem os estrangeiros todos em Macau, delegando nos portugueses a responsabilidade de os administrar. Nenhum estrangeiro estava mesmo na China – ia de Macau para o complexo das feitorias de Cantão, que também era fechado como Macau, que funcionou um pouco como tubo de ensaio, desde o século XVI, para o comércio da China, nos séculos XVIII e XIX. Replicou-se o formato encerrado de Macau com as Portas do Cerco nas feitorias de Cantão. E daí a utilidade: manter os estrangeiros com um pé fora e outro dentro da China, encerrando-se as Portas do Cerco quando os portugueses e os outros estrangeiros não respeitavam o desejo das autoridades chinesas. Na outra intervenção nesta conferência, que faz hoje, traz uma descoberta que revelou em 2012, que tem que ver com o primeiro museu da China e que foi criado precisamente aqui em Macau. Foram exactamente estes diários que me permitiram fazer esta descoberta. Parece impossível como é que só em 2012 é que se faz esta descoberta, mas deve-se ao facto de ter sido uma iniciativa completamente anglófona, de língua inglesa. Este museu foi fundado por funcionários da Companhia das Índias inglesa e por missionários protestantes, e era sobretudo frequentado pelos visitantes estrangeiros e pela comunidade anglófona. Por isso, não aparece muito nas fontes portuguesas – quase ninguém lhe fez referência. Quando começo a ler estes diários de mulheres norte-americanas, aqui e ali encontrei frases como ‘Fui ao museu britânico de Macau’, ‘Fui ao museu de Macau’. Comecei a juntar uma linha ou duas, em vários diários, o que depois me permitiu, com o tempo, ir chegando à conclusão de que aquilo, para a época, era um museu representativo. Juntei várias referências, investiguei em revistas da época, e cheguei à conclusão de que entre 1829 e 1834 tinha sido inaugurado o ‘British Museum of Macau’ e que, ao contrário do que toda a gente dizia e do que a história da museologia da China defendia, foi o primeiro museu que abriu portas, e não um museu fundado por um jesuíta francês, Pierre Heude, em 1868. Portanto, o primeiro museu da China de cariz ocidental não abriu as portas em 1868, em Xangai, mas em 1829, em Macau, e fecha depois com o final do monopólio da Companhia das Índias em 1834. Sabe-se qual era a localização? Não. Foi uma das coisas que me perguntaram, quando a revista da Cambridge University Press avaliou o meu trabalho. Também queria saber. Penso que seria na zona onde hoje é o Palácio do Governo, porque era na Praia Grande que estava a sede da Companhia das Índias. Penso que seria algures entre a Penha e o actual Palácio do Governo mas, até à data, não encontrei ainda nada. Era uma casa arrendada e os comerciantes ingleses e chineses traziam peças para esse museu, havia um guarda, e as peças estavam legendadas. Dois anos depois desta descoberta, escreveu sobre a primeira biblioteca de língua inglesa na China. Que biblioteca é esta? É uma biblioteca itinerante. Todos os estrangeiros que vinham para Macau traziam livros – da América, de Inglaterra, da Irlanda –, deixam-nos ficar, trocam-nos. Esses livros vão sendo depositados na sede da Companhia das Índias em Macau e na feitoria inglesa e norte-americana em Cantão. Os livros viajavam Rio das Pérolas acima, Rio das Pérolas abaixo, com os comerciantes ingleses, que passavam o Verão e a Primavera em Macau, e o Outono e o Inverno a comprar chá, porcelana e outras mercadorias nas feitorias de Cantão. Alguns livros ficavam lá, outros voltavam, e a maioria, com o final do monopólio da Companhia das Índias, foi para a biblioteca que é hoje a Biblioteca Robert Morrison na Universidade de Hong Kong. A Companhia das Índias tinha também de defender o seu bom nome – o museu e a biblioteca [aparecem nesse contexto], até porque em Inglaterra eram cada vez mais acesas as críticas ao monopólio. A Companhia das Índias tinha de se preocupar com a sua imagem pública e provar que também se preocupava com o local onde fazia negócios. Essa era uma forma de o fazer e depois não houve nenhuma estrutura que substituísse a Companhia das Índias – as firmas norte-americanas já cá estavam – e isso acabou por influenciar o tipo de presença britânica aqui. Esse desregulamento da presença britânica vai dar lugar mais tarde à Guerra do Ópio. Mas estas duas actividades relacionam-se com as diaristas femininas de Macau. É necessário também estudar esta presença, não apenas a presença portuguesa, mas de todas estas comunidades que contribuíram em larga escala, no século XIX, para a vida cultural de Macau. Havia peças de teatro organizadas pela comunidade de língua inglesa, os cenários eram pintados pelo George Chinnery, que ainda chegou a fazer algumas personagens. Como é que decidiu dedicar-se ao estudo das fontes em língua inglesa e não ao estudo das tradicionais fontes portuguesas? Percebi que havia um vazio enorme que era não só o estudo dessas fontes americanas e inglesas, como também o cruzamento com as fontes portuguesas. Tendo estudado Estudos Portugueses e Ingleses, poderia fazê-lo, casar as duas línguas e culturas que estudei. Fiz o doutoramento em Estudos Anglo-Portugueses exactamente sobre um romance inglês cuja acção se passa em Macau: ‘City of Broken Promises’, de Austin Coates. Apercebi-me de que havia muita coisa a fazer e que estas fontes eram importantíssimas para o estudo do quotidiano da Macau portuguesa. Uma das razões pelas quais pude fazer essa descoberta e ajudar a reescrever a história da museologia na China foi porque os estudiosos estrangeiros não dominam, a maioria deles, o português, e fogem de Macau – estudam Hong Kong, Xangai, são fontes francesas e inglesas. Os historiadores portugueses, até há bem pouco tempo, também não se debruçavam sobre as fontes em língua estrangeira, porque estavam manuscritas, era preciso ir para Inglaterra e para os Estados Unidos. Tive de correr a costa toda, desde Boston até Filadélfia, em busca de diários de mulheres, não publicados. Contactei com familiares. A relação dos norte-americanos com este tipo de fontes é completamente diferente: emprestam tudo, fotocopiam, enviam-nos livros, criei em certa medida uma relação com os descendentes destas diaristas. Adoram ver estes estudos publicados. Há depois o medo em relação à referência ao tráfico de ópio – digo sempre que me interessa a história cultural, não a do comércio nem do tráfico, e aí ficam mais descansados e o tipo de relação é outro. Mas há muita investigação ainda por fazer.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeCalçada portuguesa | Macau aguarda candidatura de Portugal à UNESCO Um calceteiro em Portugal resolveu lançar uma petição para promover a calçada portuguesa a património mundial imaterial, numa altura em que tem sido removida de muitas ruas lisboetas. Em Macau aponta-se a falta de formação e de calceteiros, mas defende-se que a classificação da UNESCO poderia valorizar ainda mais a calçada [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ernando Correia começou uma luta pela preservação da calçada portuguesa, mas não está sozinho. Criou uma petição, já recebida pela Assembleia da República, que pede que Portugal faça uma candidatura à UNESCO para que a calçada seja património mundial imaterial. “A calçada portuguesa é um património que faz parte da nossa história e preservá-la não só nos difere de todo o resto do mundo, como nos caracteriza a nós, portugueses, uma nação que evidencia e constrói um tipo de arte tão apreciada além-fronteiras. Portugal é um dos países mais visitados pelo turismo internacional, sendo a calçada portuguesa um dos temas mais apreciados”, escreveu na petição. O calceteiro de profissão que, até ao fecho desta edição, não respondeu às perguntas do HM, alerta ainda para o desaparecimento gradual da calçada portuguesa de muitas das ruas de Lisboa. Esta tem sido, para Fernando Correia, substituída “por um tipo de pavimento que, diga-se de passagem, carece de um forte aspecto visual e de durabilidade duvidosa”. “Existem diversos casos, como o Terreiro do Paço em Lisboa, que tinha uma calçada portuguesa toda executada em desenhos, tendo sido removida e colocado posteriormente um pavimento que, passado poucos anos, já se encontra bastante deteriorado, não se enquadrando com a restante arquitectura na zona da baixa Pombalina”, acrescentou. Fernando Correia explica na sua petição que os constrangimentos advindos da calçada portuguesa podem ser contornados. “Uma das maiores dificuldades que as pessoas relatam tem que ver com o facto de que a calçada escorrega. É um facto aceitável. Contudo, existem diversos tipos de calçada antiderrapante, tal como a calçada em granito.” Macau, provavelmente um dos lugares fora de Portugal onde mais existe calçada portuguesa, diz apoiar esta candidatura, caso seja essa a vontade do Governo português. “A calçada portuguesa é um tipo de arte do pavimento característico a aplicar na estrada, deixando a Portugal uma imagem urbana diferente de outras cidades europeias. Macau é uma cidade que foi influenciada pela cultura portuguesa ao longo prazo, onde há muitas estradas deste tipo como existem nas outras cidades, as quais constituem uma paisagem urbana única de Macau. Assim, se Portugal pretender candidatar para que a calçada portuguesa seja património mundial, o Governo da RAEM irá apoiar e participar nesta iniciativa e ficará feliz de ver quando isso acontecer”, disse o Instituto Cultural ao HM, em resposta escrita. Uma arte a desaparecer Fernando Simões, o único calceteiro português a residir em Macau, aprendeu o ofício com 14 anos e veio para o território com 27. Hoje diz que o território perdeu grande parte dos seus calceteiros e que há falta de formação. Há, sobretudo, falta de informação sobre as pedras e os desenhos que diariamente são pisados por milhares de pessoas. “Em Macau tivemos cerca de 20 calceteiros portugueses e ninguém sabe sobre isto. Aqui ninguém fala, ninguém sabe quem foram os autores das calçadas, acho que houve uma falta de memória. Pode ser que com esta nomeação para património mundial mude o panorama. E será bom para Macau, porque é capaz de ser dos sítios onde há mais calçada portuguesa. E não há registos, ninguém sabe”, contou ao HM. Fernando Simões esteve ligado à pavimentação da zona da Barra, bairro de São Lázaro e o antigo palácio do Governador, hoje sede do Governo. “A petição e a candidatura serão bons para as pessoas valorizarem a calçada, porque é algo que se está a perder. Hoje as pessoas optam por outro tipo de trabalhos.” O calceteiro afirma que não há novos projectos com calçada portuguesa e o IC também nada disse sobre o assunto. “Neste momento estou a fazer trabalhos de pintura e escultura. Macau é pequeno, mas há um grande mercado na China e há vários arquitectos que estão interessados. Mas há muita gente que não conhece a calçada portuguesa.” Manuel Barbosa coordenou o grupo que pavimentou o Leal Senado em 1993. Actualmente a residir em Portugal, também aplaude a petição lançada pelo seu colega de profissão, tendo uma visão pessimista sobre a sua profissão. “Está a haver muito movimento sobre isso [em Portugal] e é de louvar que isso esteja a acontecer, porque é uma arte que fazemos. É uma arte que está a ser desvalorizada, sobretudo em Portugal. Dá-se mais valor à calçada portuguesa fora do país do que cá”, contou. Manuel Barbosa, que durante um período vinha todos os anos a Macau de propósito para vários projectos de instalação de calçada portuguesa, garante que “se dá mais valor à calçada portuguesa” no território. “Todos os anos fui aí fazer projectos do Francisco Caldeira Cabral, arquitecto paisagista. Via que o povo asiático e os macaenses gostavam da calçada portuguesa, e diziam que tínhamos uns belos passeios. Tenho falado com pessoas que estão em Macau e todos me dizem que as ruas têm mais calçadas, que o povo todo gosta e que o território ficará mais valorizado se a calçada portuguesa for património mundial.” Contudo, há “falta de formação, porque se houvesse sempre portugueses a acompanhar os calceteiros chineses, seria uma mais valia. Isso é que faz falta. Vê-se que há muita calçada feita em Macau mas falta qualidade, se houvesse formação isso ia acontecer”, garantiu Manuel Barbosa. Associações chinesas defendem protecção da calçada portuguesa Do lado das associações chinesas ligadas ao património, a inclusão da calçada portuguesa na lista do património mundial imaterial da UNESCO é vista como uma mais-valia. “Penso que será muito possível que a calçada portuguesa entre na lista, mas será difícil para a UNESCO porque cada cidade portuguesa tem a sua calçada. Do ponto de vista do imobiliário ou do cenário de uma cidade, a UNESCO não pode incluir só as calçadas de Lisboa e não as de Coimbra, por exemplo”, disse Nero Liu, presidente da associação dos embaixadores do património de Macau. Lam Cheok Ho, vice-secretário geral da Associação para a Reinvenção de Estudos do Património Cultural de Macau, defendeu que “convém Portugal candidatar-se”. “Mas a nossa associação considera que Macau também deve proteger a calçada, incluindo-a na lista do património local ou do interior da China, para que a forma de protecção seja mais eficaz.” “Pensamos que a inclusão da calçada portuguesa na lista de património local seria aprovada porque há muitos turistas que têm dúvidas sobre a calçada. Penso que uma inclusão da calçada portuguesa numa lista local de protecção de património seria mais rápida do que a inclusão na lista da UNESCO”, acrescentou. “Além de existir calçada portuguesa em Macau, também há na Índia e noutros lugares que foram antigas colónias portuguesas, e isso serve de registo da história e cultura da colonização portuguesa. Deste ponto de vista é possível que a candidatura seja bem sucedida”, concluiu Lam Cheok Ho.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasÉsquilo, Sófocles, Eurípedes (Parte 3) [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]vancemos para a nossa derradeira paixão, apaixonemo-nos agora por Eurípides. Na introdução à sua excelente tradução de Medeia, de Eurípides, à página 11, Mário da Gama Kury escreve: “As gerações subsequentes manifestaram preferência por Eurípides em comparação com Ésquilo e com Sófocles. Tanto assim foi que das 74 peças que escreveu 19 sobreviveram, enquanto das 94 de Ésquilo somente 7 se conservaram e das 123 (ou mais) de Sófocles somente 7 chegaram até nós.” E, ainda no mesmo livro, agora às páginas 15-6, a acabar a sua introdução à peça, Kury escreve: “Para dar uma fama da Medeia na Antiguidade, citamos a seguir, em tradução, um epigrama do poeta Arquimedes (época desconhecida), conservando na Antologia Palatina, livro VI, 50, contendo conselho aos poetas seus contemporâneos: ‘Não te atrevas a percorrer, poeta novo, a estrada frequentada por Eurípides; nem mesmo tentes, pois seria dificílimo seguir o seu trajecto; a impressão é que ela é fácil, mas se alguém tenta pisá-la vê que é árdua como se fosse pavimentada de estacas pontiagudas. Experimenta apenas retocar a trilha de Medeia, a filha de Aietes! Sentir-te-ás anónimo e rasteiro. Afasta as tuas mãos da coroa de Eurípides!’” Estamos então perante, não só um novo poeta, mas também uma nova situação. A nova situação é a da influência exercida nas gerações subsequentes, por parte da obra de um autor em detrimento dos outros. Na época de ouro da tragédia grega, isto não acontecia. Havia momentos em que um deles era preferido em relação aos outros, mas pela própria apresentação da peça em competição e não por um juízo teórico ou a priori da própria tragédia e do seu conceito. Talvez não seja alheio a célebre frase que encontramos na Poética de Aristóteles (1453 a 30), acerca de Eurípides: “o mais trágico dos trágicos”. Curiosamente, ou talvez não, Aristóteles nessa mesma obra, tece duras criticas à peça Medeia, de Eurípides. Em 1454 b 1 e 1461 b 20, Aristóteles “censura Eurípides pela implausibilidade do episódio em que Medeia e Egeu se encontram (versos 758 e seguintes) e pelo recurso ao sobrenatural (a fuga de Medeia no carro do Sol) para finalizar a peça. As críticas de Aristóteles, todavia, só conseguem acentuar o primitivismo de sentimentos que Eurípides imprimiu à peça e a importância dos poderes mágicos de Medeia, factores essenciais para o desenvolvimento da tragédia. O episódio de Egeu, por exemplo, por meio da ânsia do rei de Atenas de conseguir que sua mulher lhe desse um filho, acentua a necessidade instintiva dos pais de se verem perpetuados nos filhos e, portanto, torna mais compreensível a ideia de Medeia de vingar-se de Jasão nos filhos dele. E, naturalmente, o episódio é parte do encadeamento da peça, por assegurar a Medeia um refúgio fora de Corinto quando tivesse de fugir após a prática dos crimes (vejam-se os versos 1578-1580). Quanto ao final da peça, a saída de Medeia no carro do Sol é apenas um elemento sobrenatural a mais entre tantos que se integram na trama, cuja heroína se vangloria de seus poderes mágicos e os comprova, e se orgulha de descender do próprio Sol.” (Mário da Gama Kury) Mas qual a razão de tanto apreço em relação a Eurípides, nas gerações subsequentes, e pouca em relação a Sófocles e Ésquilo? Umas das razões que podemos apontar é, sem dúvida, o facto da trama da tragédia não se dever senão aos erros humanos, aos seus próprios actos e não ao destino e às paixões dos deuses. Há, por conseguinte, em Eurípides uma ruptura enorme em relação à própria concepção da tragédia. Eurípides ultrapassa, se assim o podemos dizer, a tradição para criar ele próprio a sua tragédia, o seu entendimento da tragédia. Não podemos deixar de imaginar o espanto que estas peças devem ter causado no espírito de Sófocles, pois não poderia haver poeta mais radicalmente oposto a ele do que Eurípides. E para além de imprimir uma ruptura com o conceito de tragédia, acaba também por produzir uma ruptura com a própria construção da mesma, como veremos adiante. Eurípides introduz a originalidade individual na tragédia, isto é, a trama da tragédia já não se rege mais pela tradição, pela origem dos mitos, mas antes pela originalidade individual, pela criação do próprio autor. O poeta não cria apenas os versos, mas cria também a trama. Sem dúvida, trata-se de algo extremamente ousado, se tivermos em atenção que ele é apenas dez anos mais novo do que Sófocles, e este era considerado o expoente máximo desta arte ática. Estar a procurar novos caminhos, era estar a procurar também um divórcio entre o autor e o público. Pois não seria de estranhar que, um público habituado a, e apreciador de Sófocles (naturalmente também de Ésquilo, mas a comparação com Sófocles torna-se aqui bem mais pertinente), não tenha repudiado as peças de Eurípides. Pelo menos, terá tido bastante dificuldade em compreendê-las e apreciá-las. Não é por acaso que, Eurípides é, de entre os três génios, o menos compreendido no seu tempo. Convém fazer aqui um pequeno parêntesis para falarmos da grande causa desta diferença nas peças de Eurípides. Na segunda metade do século V a.C. começa a surgir um novo movimento intelectual fora de Atenas e que iria influenciar determinantemente Eurípides: as obras sofistas, de Protágoras, Górgias, Pródico e Leontinos. O que vai marcar esta época com mais profundidade, traçando uma enorme ruptura como passado é Protágoras, com a sua célebre frase: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, das que não são enquanto não são.” Trata-se de uma ruptura, com a tradição e com o modo como o humano entendia o mundo e a si próprio, muito maior do que nós possamos imaginar. Um mundo que era ainda marcado pela reverência aos deuses, por um pensamento profundamente religioso deveria sentir-se completamente abalado por estes novos intelectuais, este novo modo de pensar e de entender o cosmos. Protágoras escreve: “Acerca das divindades não posso saber se existem ou não existem, ou como são figuradas, pois muitos obstáculos impedem verificá-lo: sua invisibilidade e a vida tão curta do homem.” Esta afirmação é ainda mais agressiva ao pensamento vigente do que a anterior, se é que é possível; mas a verdade é que elas estão entrelaçadas. Pela primeira vez, afirmar a existência dos deuses era considerado inacessível aos humanos. E por que razão? Pela impossibilidade de verificação. Verificar é precisamente o oposto de acreditar. Podemos acreditar que Deus existe, mas não podemos acreditar que o sol existe. A existência do sol é verificável, por conseguinte arredada do foro da crença. Só o inverificável pode ser acreditado. Eu posso acreditar que escrever um texto acerca de Eurípides tem algum valor, porque, hoje, aqui e agora, é inverificável, mas não posso acreditar que estou escrevendo estas palavras, pois elas são verificáveis. Posso acreditar que uma mulher me ama, mas não posso acreditar que ela tem sexo comigo, caso isso aconteça. O que é verificável é oposto da crença. Colocar como necessidade humana a verificação para atestar da existência dos deuses é, efectivamente, fazer uma inversão epistemológica no acesso ao mundo e suas manifestações. Com Protágoras, passa a existir, a ter carácter ontológico aquilo que pode ser verificado (embora não se trata de uma verificação com as exigências e protocolos do pensamento do século XX, tal como foi escrito na filosofia das ciências por Karl Popper). Existe o que homem pode ver ou pensar. Existe o que o homem pode. O que o homem não pode, não existe. Em verdade, não há a negação da existência do que não pode ser verificado, apenas não se pode afirmar a existência dessas entidades. Esta distinção é de extrema importância, pois ela permite a possibilidade da existência de algo muito caro aos sofistas em geral e a Protágoras em particular: a antilogia ou contradição, tal como é expressa na obra de Protágoras, com o título de Antilogias (Antilogai). Era a aceitação de que para cada coisa há duas maneiras de conceber, que se contradizem. A contradição tornava-se assim, para estes novos intelectuais, a própria natureza do humano. O humano é por natureza contraditório, por conseguinte os juízos pronunciados acerca das coisas são eles mesmos também contraditórios. Contradição, antilogia, não é apenas a possibilidade de se afirmar correctamente juízos opostos acerca de uma mesma realidade, por exemplo, afirmar que o homem é mortal e o seu contraditório o homem não é mortal (defendo aqui a imortalidade das suas obras); ou ainda dizer-se que a desgraça de Édipo foi causada por um deus, por exemplo, e que a desgraça de Édipo não foi causada por um deus. Contradição é também a afirmação da impossibilidade de verificação, quer seja pelo pensamento, quer seja pelos sentidos. Nos casos anteriores, contradição é a aceitação da impossibilidade de dar uma resposta única àquelas questões, de saber se o homem é ou não mortal (independentemente do argumento do seu prolongamento na história) ou de se saber se foi ou não por causa de um deus que Édipo caiu em desgraça, pois para isso seria necessário sabermos se a alma é ou não imortal, para a primeira antilogia, ou o que é um deus, para a segunda antilogia, e isso está fora do alcance humano. (continua)
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasNingbo e a cidade de Liampó [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Zhejiang encontramos a cidade de Ningbo, situada no Delta do Rio Yangtzé. Com uma estratégica posição na costa marítima a meio da China, usufrui de três portos, o Beilun banhado por um canal de águas profundas, o Zhenhai e o antigo porto de Ningbo, equipado para petroleiros e outros navios de grande porte. Se a razão da visita é ser Ningbo a última cidade do Grande Canal e encontrar-se na lista das cidades chinesas ligadas à antiga Rota Marítima da Seda, confesso trazer a curiosidade desperta pela Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e Tratado das Coisas da China do Frei Gaspar da Cruz, cujas informações recolhidas em meados do século XVI, me colocavam a imaginação às voltas ao pretender entender como seria Liampó, “estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü”, como o classifica Rui Loureiro numa das notas redigidas no Tratado das Coisas da China. Por isso, aqui não vamos escrever sobre a actual Ningbo e seus arredores, nem da cidade esplendorosa desde a dinastia Tang até à Song do Norte, que com o nome de Mingzhou foi um dos principais portos da costa chinesa, o que continuou na dinastia mongol dos Yuan. Com a abertura dos caminhos terrestres, a cidade começou a perder importância e caída no esquecimento, quando em meados da dinastia Ming, o , dominicano Frei Gaspar refere, os portugueses “a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”. Tal estabelecimento inicial dos mercadores portugueses em Liampó terá ocorrido em 1540 e segundo Rui Loureiro, Liampó tanto designava nas nossas fontes quinhentistas a cidade de Ningpo e área circundante, como o estabelecimento português que floresceu entre 1540 e 1549 em Shuang-hsü, uma das ilhas do arquipélago de Chu-san, no litoral fronteiro a Ningpo. Complementa Victor F. S. Sit, ” Em Shuangyu, os portugueses envolveram-se com piratas chineses e japoneses (wokou) em negócios ilícitos de elevados lucros, dando, assim, origem a uma colónia portuguesa, a segunda maior da Ásia, de importância apenas inferior à de Malaca. Lá viviam 10 mil comerciantes, entre os quais 1200 portugueses. Havia mil casas, uma municipalidade, uma assembleia, um tribunal, várias igrejas e um hospital. Esta povoação mais parecia um estado dentro da China”. A muy nobre e sempre leal cidade de Liampó Ainda antes do estabelecimento em Macau dos portugueses, segundo Montalto de Jesus refere, “da leitura de outro relato contemporâneo, a famosa Peregrinação de Mendes Pinto, ressalta que Liampó foi sempre considerada como a mais bonita, a mais rica e a melhor abastecida colónia que os portugueses tiveram na Ásia – um município oficializado como cidade portuguesa e intitulado, nos testamentos e escrituras, Esta muy nobre e sempre leal cidade de Liampó, pelo Rey nosso Senhor, como se se situasse em Portugal. A colónia atingiu o auge da sua prosperidade depois da descoberta do Japão (ocorrida entre 1542 e 1543). O comércio, calculado em mais de três milhões de cruzados de ouro, rendia três ou quatro vezes o capital investido. A comunidade era de mil e duzentos portugueses e mil e oitocentos orientais, que por ali prosperavam sem ser molestados pelos piratas. Ao Sul, no entanto, os portugueses eram muitas vezes vitimados e o comércio entre Malaca e Liampó disso se ressentia fortemente. Certa vez calhou a António de Faria, que arruinado resolveu vingar-se. Com o apoio dos seus companheiros equipou uma expedição contra o seu saqueador, o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa. A partir do Sião, Faria esmagou muitos piratas poderosos – e uma das vitórias impressionou tanto os chineses que estes lhe enviaram uma deputação, oferecendo-lhe um tributo de vinte mil taéis e solicitando a sua protecção como rei dos mares. Ele de boa vontade aceitou e emitiu salvos-condutos, pondo como condição que os portugueses fossem tratados de forma fraternal pelos chineses sempre que se encontrassem.” (…) “a expedição teve a seguir a fatalidade de naufragar numa ilha deserta – e a perseguição teria terminado aí não fosse o apresamento de um barco que casualmente lá aportou para se restabelecer de água. Então, com a frota de um pirata chinês, Faria terá eventualmente conseguido alcançar, derrotar e matar Coja Acém e a sua horda, não dando quartel nem aos feridos e doentes encontrados em terra. A frota vitoriosa, carregada de ricos espólios, perdeu-se parcialmente num tufão”. Tal terá ocorrido por volta de 1541 e é preciso lembrar que por essa altura, e desde 1521, após a primeira das duas batalhas navais ocorridas entre navios mercantes portugueses e a armada chinesa, as autoridades chinesas decretaram a expulsão dos portugueses e por isso, eram estes ali considerados piratas. Os piratas japoneses Tributários da China no século V a.n.E., durante a dinastia Zhou do Leste, os japoneses ao longo dos tempos até à dinastia Ming continuaram a receber do erudito país constantes influências, tanto culturais como religiosas, de onde lhes veio na dinastia Tang, o Budismo, o modelo com que estruturaram a sua hierarquia Imperial, a arquitectura das casas e muitas outras influências. Já na dinastia Yuan, por os japoneses não quererem em 1266 ser tributários da dinastia mongol, em 1274 e 1281 foram invadidos pelas tropas de Kublai Khan. Nessas duas vezes, na primeira invasão os 30 mil mongóis e coreanos foram repelidos por uma tempestade e na última, com 140 mil soldados, “ao fim de dois meses de luta, nova tempestade – Kamikaze, vento divino – dispersa a frota invasora. Novamente Kubilay se prepara para tomar as ilhas, organizando um quartel-general para o ataque em 1293. A sua morte em 1294 susta esta tentativa. O regente dos Hojo, mantém, no entanto, o alerta militar até 1314”, segundo Gonçalo Mesquitela. Estas tentativas mongóis de invasão levaram os japoneses à construção de embarcações, ficando assim guarnecida a capacidade marítima do Japão. Anteriormente e desde longo tempo, “o comércio exterior japonês estivera entregue a navegadores coreanos e chineses. A ameaça mongol, como dissemos, desenvolveu a classe marítima nipónica. Nas décadas que se lhe seguiram, instituíram-se numerosas comunidades japonesas na costa, (…), aventurando-se depois no mar da China”, como refere Mesquitela. E com ele continuando, “Nos princípios do século XIV, os japoneses começaram as actividades de pirataria e saque das costas, tendo daí advindo para estes barcos japoneses o nome de Wako, oriundo da bandeira invocadora do deus da Guerra que ostentavam. Este carácter de pirata resultava também da clandestinidade a que as autoridades da Coreia e da China obrigavam o comércio marítimo, considerado indesejável, pelo que o pretendiam suprimir ou, pelo menos, restringir fortemente”. Logo desde o início da dinastia Ming, em 1373 o Imperador Hong Wu (1368-1398) “mandava ao Japão dois monges como seus enviados, pedindo que cessassem as actividades Wako contra a navegação e as costas chinesas”, Mesquitela e continuando com a sua ideia, em 1401 o Japão tornou-se de novo tributário da China, prometendo acabar com os wako a troco de uma viagem de dez em dez anos. Nesse decénio houve seis. “Com um acordo comercial mais liberal, recomeçou o comércio em 1432, sob a mesma base de uma embaixada decenal, mas com mais navios”. Por essas ligações de barco receberam então os japoneses a influência chinesa nas artes e na técnica. Navegação marítima interdita Após a chegada da última das sete viagens do Almirante Zheng He, em 1433 o Imperador Ming, Xuande (Zhu Zhanji, 1425-35), “desencorajara abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que, no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”, segundo Rui Manuel Loureiro. E continuando com Frei Gaspar: “E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China, lhe é lícito ir sem certidão dos loutiás da terra donde partem, na qual se relata para onde vai e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem. Se não leva esta certidão é degradado para as partes fronteiras”. (Existiam os passaportes internos para os chineses viajarem dentro na China). “O mercador que leva fazenda leva certidão da fazenda que transporta e como pagou direitos dela. Em cada alfândega que há em cada província paga uns direitos, e não os pagando, perde a fazenda e degradam-no para as partes fronteiras. Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros no Sião, outros em Patane e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhes despache os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem mui escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora e tornam mui escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chineses, com achaque de navegarem para fora, se faziam ladrões e salteavam as terras de longo do mar”, segundo escreveu o Frei Gaspar da Cruz. Foi após os problemas ocorridos entre 1521 e 1522 e sobretudo pelos desmandos de Simão de Andrade, que levaram à expulsão dos navegantes portugueses da costa chinesa, que estes chineses a viver fora da China os encaminharam “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses. E como estes chineses que andavam entre os portugueses eram os que terçavam (interceder a favor) entre os portugueses e os mercadores da terra nas compras e vendas, tinham deste negócio mui grande proveito. Os loutiás pequenos de longo do mar recebiam também mui grandes proveitos deste trato, porque recebiam grossas peitas de uns e doutros, pelos deixarem contratar e lhes deixarem trazer e levar as fazendas. Pelo que esteve este trato entre eles muito tempo encoberto d’el-rei e dos loutiás grandes da província. Depois de se haverem feito por algum tempo assim encobertamente as fazendas em Liampó, foram-se pouco a pouco estendendo os portugueses e começaram a ir fazer fazenda ao Chincheo e às ilhas de Cantão. E também já outros loutiás, pelas peitas, os iam consentindo por todas as partes, pelo que chegaram alguns portugueses com a contratação até além de Nanquim, que é já muito longe de Cantão, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato. Sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó”, Tratado das Coisas da China de Frei Gaspar da Cruz. Em 1542/3 chegaram os portugueses ao Japão e “Liampó tornou-se numa importante base comercial para os Portugueses nas viagens para o Japão, que aí desafiavam todas as ordens proibitivas em vigor para o comércio externo. Um incipiente comércio popular, no dizer dos governantes, e o comércio clandestino, agravaria ainda mais o problema da pirataria japonesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA população do mar e navegações | Piratas versus corsários [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ouve já na História os Povos do Mar, indo-europeus que devido à fome emigraram para o Próximo Oriente à conquista de terras férteis e no século XII a.n.E. o devastaram, sendo apenas derrotados pelos exércitos e forças navais do Faraó Ramsés III. Daqui se subentende a antiguidade do uso de embarcações para transporte. O nómada estar pelas águas vivendo em barcos, transforma a frota numa povoação e crescendo em número de embarcações compõem-se em armada, tornando-se assim uma cidade flutuante. E no início, tudo tinha partido do ver uma folha, ou um tronco, a flutuar levando algo em cima. Nessa ondulante sedentarização, de quem se viu pelas costas marítimas a retornar às oceânicas águas, cativando muitos a embarcar, primeiro como pescadores ou, depois de uma vida de pobreza no campo, seguirem como marinheiros, aventureiros e soldados, nos barcos do comércio. Muitos, degredados pelos sedentários, que os expulsavam das suas terras, eram embarcados para longínquas ilhas e pelas revoltas no mar se tornaram piratas e fizeram da água a sua terra. Com espelho no que acontecia em Portugal, segundo Oliveira Marques, “Em finais de Trezentos, a estrutura naval portuguesa acusava algumas centenas de marítimos, entre quadros e pessoal subalterno, possibilitando o lançamento das mais variadas empresas: guerra ofensiva, guerra defensiva, fossados de mar, corso, pirataria, empreendimentos comerciais, etc.”. O mesmo historiador refere ser o pirata “um fora de lei, um bandido do mar”, ao passo que o corsário “recebia autorização régia ou senhorial para atacar o adversário, pagando uma percentagem ao seu senhor, a quem muitas vezes a embarcação pertencia”, mas na prática ambas se confundiam com frequência. E onde há comércio marítimo existem piratas, sendo a pirataria um fenómeno muito antigo espalhado por todas as costas do mundo. O andar ao corso, muitas vezes patrocinado pelos governos, outras contra esses, em actos de pirataria assaltavam os barcos para aumentarem a sua frota naval, ficar com a mercadoria e vender os homens como escravos, ou resgatados por muito dinheiro e interesses. A técnica de acostagem desenvolvida pelos piratas, mostra serem os barcos a primeira necessidade aos que expulsos para fora da sedentária sociedade, vão embarcados para o exílio e devido às insubordinação e revoltando-se tornam-se fora de lei. Acto que muitos mercadores e os roubados, sem produtos para trocar, recorreram e reconfortados com os fabulosos ganhos, entre si recriaram uma sociedade com as suas leis e princípios. Juntavam-se em torno de um líder, e normalmente o chefe dos piratas é quem nunca se rende e luta até ao fim. Interiormente traz nele uma revolta, ou um objectivo político para reconquistar o trono e nesse ideal consegue por a acreditar a terra da água e daí se faz a ética entre piratas. Ou como refúgio do fugir, que deu em estar, o nómada dos homens do Mar. A Rota Marítima Pelos Caminhos Terrestres para Oeste, abertos no século II a.n.E. desde Chang’an (Xian, Shaanxi), ou dois séculos antes, de Sichuan pelos do Sudoeste, via Norte da Índia, os produtos, como a seda, chegavam à Ásia Central, onde os partos depois os vendiam aos romanos. Mas quando estes dois caminhos terrestres ficavam interrompidos, rejuvenescia a movimentação pela água e o comércio marítimo ganhava grandeza. Se no início, pelos portos de proximidade os produtos eram trocados e levados depois para paragens cada vez mais longínquas, atravessando do Pacífico para o Índico chegavam ao Mar Arábico. Usando a Rota do Incenso daí eram transportados por terra para o Mediterrâneo, o mar do Império Romano. Estonteados com tais produtos, para fugir aos partos, vão os romanos, com a ajuda do saber grego nos conhecimentos fenícios, navegar pelo Mar Vermelho e entrando directamente no Oceano Índico, usando as monções cruzaram-no até ao Sul do Subcontinente Indiano, onde, em contacto directo no século II comercializaram com juncos de mercadores chineses. Estes, navegando em sentido contrário, provinham do Pacífico, e em trato se fizeram as transacções; marfim, vidro, prata, ouro e pedras preciosas, trocadas por laca, seda,… Este período narrado corresponde na China às dinastias Zhou do Leste, Qin (221-206 a.n.E.), Han (206 a.n.E.-220) e ao Reino Wu (229-280), até que em meados da dinastia Tang (618-907), devido ao fecho dos caminhos terrestres para Oeste, investiu-se na abertura de estaleiros navais e portos ao longo da costa chinesa onde chegavam cada vez mais comerciantes árabes, persas, indianos e de toda a costa e ilhas do Sudeste do Oceano Pacífico. Com o comércio marítimo em geométrico incremento, os piratas infestavam o mar ao redor de Lin’an (Hangzhou) quando em 1138 para aí se mudou a dinastia Song do Sul (1127-1279). Contava-se agora com a bússola marítima para navegar sem terra à vista e novos juncos, produto do desenvolvimento na construção naval, sendo criada uma poderosa força naval imperial, que patrulhava as costas, servindo muitos outros barcos para serem fretados pelos mercadores estrangeiros, fazendo assim o transporte via marítima dos produtos adquiridos na China até ao Golfo Pérsico. Com os mongóis, a paz voltou a abrir os Caminhos Terrestres do Oeste e pelos portos muitas famílias Han fugindo, emigraram para as costas do Oceano Índico, sendo nas administrações provinciais e locais substituídas por uigures e estrangeiros. Como o povo mongol não é do mar, quem tomou conta oficial dos barcos e do comércio pelas costas marítimas foram os persas e árabes, crentes do Islão. Navegações transoceânicas Já o primeiro imperador da dinastia Ming (1368-1644) investindo nos camponeses, retirou durante trinta anos a China do mar e proibiu todas as embarcações de saírem do país. Desde a fundação desta dinastia Han “a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan e por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang. Com o fim da dinastia dos mongóis, a China perdeu a estrada que a ligava pelo continente euro-asiático ao outro lado do mundo. E foi mais uma vez pelas rotas marítimas, que também a dinastia chinesa Ming conseguiu reabrir-se ao mundo entre 1405 e 1433. Directamente, sem terra à vista, usando a bússola marítima navegou milhares de milhas náuticas até à costa Leste de África. Às ordens de Yong Le (o Imperador Zhu Di, o terceiro da dinastia Ming) ocorreram seis, das sete viagens marítimas transcontinentais da armada do Almirante Zheng He, eunuco muçulmano que para a primeira viagem contou com uma tripulação de 27800 homens, distribuída por sessenta e dois grandes juncos, os barcos do Tesouro e 255 embarcações mais pequenas, transportando mais de um milhão de toneladas de mercadoria, desde tecidos de seda, porcelana, chá e moedas de cobre. Entre essas trezentas embarcações havia barcos jardins onde as hortas eram cuidadas para fornecer alimentos frescos à tripulação imperial. Era uma visita de anúncio da nova dinastia na China aos tributários reinos e países suseranos, que se reconheciam vassalos pelo poder da erudição e qualidade artística dos produtos chineses. Apesar de haver algumas comunidades chinesas espalhadas até à Índia, Rui Manuel Loureiro refere que por volta de 1430, a dinastia Ming desencorajou “abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”. Após as Sete Viagens Transcontinentais do Almirante Zheng He, a dinastia Ming voltou a fechar-se para o interior e abateu a sua armada costeira. Desprotegidas as costas marítimas, os mares da China voltaram a encher-se de piratas ainda antes dos portugueses entrarem no Oceano Pacífico. A questão de Macau Os portugueses chegaram à China em 1513 e vieram integrados como mercadores tributários provenientes de Malaca, suseranos do Imperador da China, enquanto era sultanato. Episódio, que mais tarde actuará como lenha para a Embaixada de Tomé Pires, aliado aos desmandos de alguns portugueses, que sem se importar onde se encontravam, como piratas actuavam e assim engrossavam com os wako (piratas japoneses) a pirataria do Mar do Sul da China. Após duas batalhas navais em que os barcos portugueses são derrotados pelos chineses, fica-lhes interdita Cantão, local das feiras de seda. Segundo Victor F. S. Sit, “Em 1522, o governo da dinastia Ming voltou a decretar a interdição do comércio marítimo. Foram fechados os portos, destruídos os navios e proibidas quaisquer saídas ao mar.” Nos primeiros anos da década de quarenta do século XVI, completamente fora de lei passaram os portugueses a navegar pelo Mar do Leste e aí, entre Zhejiang e Fujian, encontravam-se a negociar as sedas com os chineses e a transaccioná-la por prata aos japoneses, tendo a 23 de Setembro de 1543 os portugueses chegado pela primeira vez ao Japão, mais propriamente a Tanegashima. Desde 1550, o comércio português com o Japão tornou-se monopólio régio, feito pela Nau Preta, assim conhecida pelos japoneses. Para aí se realizava a viagem da Nau do Trato a partir de Goa, via Malaca e nas ilhas da província de Guangdong abastecia-se de seda. Trato ainda fora de lei, com chineses pelos deltas dos rios Xi e Zhu, ou nas ilhas de Sanchoão (Shangchuan) e como entreposto último, Lampacau (Langbai) de onde os mercadores portugueses se mudaram definitivamente para Macau em 1557. Já com a feira de Cantão aberta aos portugueses, chegava a seda a Macau e em preciosos tecidos era daí embarcada, para o Japão, ou Portugal. Assim “Macau começou a ser (em 1557) um entreposto para o comércio português entre Malaca e o Japão”, como referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “o desenvolvimento desse comércio traria, mais cedo ou mais tarde, a praga da pirataria a Macau e a Guangdong. Após a repressão de alguns grupos de piratas chineses nas águas de Guangdong e instalados os Portugueses em Macau, as autoridades de Guangdong começaram a tentar resolver o problema dos Japoneses. Antes de mais, uma autorização de residência concedida aos Portugueses em Macau poderia obrigá-los a não se associarem publicamente aos piratas japoneses. De facto, sem os fixar num lugar, como se poderia sujeitá-los à legislação chinesa? Mais tarde, seriam tomadas medidas legais para proibir os Portugueses de ter Japoneses ao seu serviço. Através desta medida de acomodação dos Portugueses em Macau, foram conseguidas, a nível militar, duas vitórias: a rápida repressão dos piratas chineses e o impedimento de qualquer ligação pública entre os Portugueses e os piratas japoneses”.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeTurismo Cultural | Agnes Lam pede aposta na História de Macau Agnes Lam, membro do Conselho para as Indústrias Culturais, defende uma aposta no ensino da História local para que se possa promover o turismo cultural. Tereza Sena, historiadora, diz que sem História “não se pode oferecer turismo cultural de qualidade” [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]História de Macau continua afastada dos currículos das escolas e esse facto levou Agnes Lam a defender uma aposta no seu ensino para que o turismo cultural se possa desenvolver em Macau. Falando na qualidade de membro do Conselho para as Indústrias Culturais no programa Macau Talk, da Rádio Macau, Agnes Lam disse que sem essa aposta será difícil atrair os turistas que estão interessados no lado histórico do território. A também docente da Universidade de Macau (UM) referiu que os anteriores governos não se preocuparam com os arquivos históricos e que as indústrias culturais estão ainda numa fase inicial. “Se o Governo não se preocupar com o estudo da História do território teremos apenas uma acumulação de memórias colectivas sem uma História completa. Quando viajamos na Europa podemos visitar castelos e ter um tipo de turismo cultural, mas aqui é difícil que isso exista.” Si Wun Cheng, coordenador de projectos do Armazém do Boi, acrescentou que tem aumentado o número de pessoas que se dedicam a estas áreas, mas que ainda não é suficiente. Si Wun Cheng disse ainda que as escolas locais promovem a área da cultura de forma superficial. Mais qualidade Ao HM, a historiadora Tereza Sena disse concordar com a ideia de Agnes Lam, garantindo que a aposta na História vai levar a um melhor turismo. “Obviamente que os guias turísticos têm de ter conhecimento da História de Macau para poderem levar os turistas aos locais e promoverem essa vertente cultural do turismo. Mas não são apenas os guias, temos de começar pelo ensino da História de Macau junto das escolas e da sociedade, com uma aposta na vertente patrimonial para as pessoas perceberem onde é que estão inseridas. Claro que sem isso não se pode estar a oferecer um turismo cultural ou a promover indústrias culturais de qualidade.” Tereza Sena adiantou que não há necessidade de manter antigos “bloqueios” que levaram a que o ensino da História de Macau quase não exista nas escolas. “Pensa-se no assunto, fazem-se reuniões, mas isso tem a ver com os currículos das escolas , com quem as dirige e a capacidade do Governo de impor determinado tipo de programas. Entre os historiadores também não há uma vertente consensual sobre a História local. Penso que hoje haverá mais, mas ainda somos herdeiros de uma História muito tradicional, do lado português, e depois do lado chinês de uma História muito centrada e nacionalista e isso deixou marcas nos manuais escolares e na forma como os dirigentes das escolas olham para esse assunto, talvez com um pouco de receio. Houve sempre bloqueios.” “Macau é um caso muito especial em termos históricos. Tudo isso gera visões diferentes, mas já foi sanado com a Lei Básica. Hoje em dia nos meios académicos não faz sentido continuarem a existir esse tipo de bloqueios”, rematou a historiadora.
José Simões Morais MancheteEspecial 24 de Junho | A mãe de todas as batalhas Decidiu-se nesse dia a sorte deste território. Para o bem e para o mal. Os holandeses perderam. E lá se foram as socas, o calvinismo e as tulipas. Ficou o vinho, o bacalhau, os jesuítas e o macaense. Foi um milagre [dropcap]P[/dropcap]ara falar do dia 24 de Junho de 1622, ninguém melhor que C. Boxer com esta excelente síntese: “A ideia dum ataque holandês contra Macau datava já de muito antes de 1622. Pondo de parte as visitas hostis feitas por naus ou galeões holandeses em 1601, 1603 e 1607, que não eram, afinal, destinadas para ocupar a colónia à mão armada, a malograda tentativa de 1622 tinha a sua origem no estabelecimento dos holandeses no Japão, doze anos antes.” A Companhia Holandesa das Índias Orientais, a VOC (Verenigde Oost-Indische Compagnie) foi criada em 1602, dois anos depois de formada a Companhia Inglesa das Índias Orientais e tinha sede em Amesterdão, onde em 1609 foi criado o Banco de Amesterdão para apoiar o comércio colonial. A Companhia cria o conceito actual de acções quando em 1610 divide o seu capital em quotas iguais e transferíveis em Bolsa. O objectivo era excluir os competidores europeus daquela rota comercial e o alvo eram então os portugueses, que se encontravam sob domínio espanhol e eram detentores dos melhores portos estrategicamente colocados na Rota Marítima da Seda. Entre 1609 e 1621, houve um período de tréguas entre holandeses e a Espanha, embora mal guardadas no Oriente, pois nunca os holandeses abandonaram a ideia de conquistar Macau. Quando os doze anos de tréguas expiraram em 1621, o então Governador-Geral holandês em Batávia, o celebrado Jan Pieterszoon Coen, resolveu fazer uma grande expedição, destinada a pôr termo à questão, pela tomada da Cidade de Santo Nome de Deus na China. A Macau chegava a seda crua comprada na feira de Cantão e tão necessária aos holandeses para conseguir no Japão substituir os mercadores portugueses. Por isso era local apetecível e preferencial para dominar o Mar da China, pois Malaca, praça que controlava a passagem dos barcos do Índico para o Pacífico, estava bem fortificada com a Famosa. As praças portuguesas estavam todas em sobressalto com a possível chegada das armadas, ou inglesas ou holandesas. Invasão Holandesa, petisco na mesa Sabiam os holandeses que se conseguissem conquistar Macau, acabavam com a presença portuguesa no Extremo Oriente, ficando ainda numa posição privilegiada para interceptar os juncos chineses que navegavam para Manila, nas Filipinas. Através de uma carta conseguida durante a tomada de um barco português, sabia-se a cidade mal guarnecida tanto de homens, como deficitária em fortificações. A maioria dos homens de Macau encontrava-se na feira de Cantão e restavam na cidade apenas cinquenta mosqueteiros e uns cem moradores capazes de pegar em armas. A esquadra holandesa foi organizada em Batávia para atacar Macau, sendo constituída por oito navios e mil tripulantes e capitaneada pelo Almirante Reijersen. Após partir desse porto a 10 de Abril de 1622, a ela se reuniram os barcos a viajar pelas águas do Mar da China e quando chegou à vista de Macau em 21 de Junho de 1622 a armada holandesa, composta por treze navios, encontrou as quatro naus vindas de Manila, onde participavam no bloqueio. Os dois barcos ingleses não chegaram a intervir na conquista de Macau, devido à carta de Coen a avisar que os ingleses apenas poderiam dar apoio no mar, mas nunca desembarcar em Macau e em tempo algum lhes fosse permitida a participação na construção da fortaleza que, após a conquista, os holandeses deveriam aí erguer. Como traziam já à partida a vitória assegurada, recusaram aos ingleses a participação no assalto à cidade, tendo estes se retirado antes do início dos combates. O reconhecimento da península de Macau foi feito por três espiões e no dia seguinte, a 23 de Junho por Reijersen, que desde o barco analisou a cidade e vizinhança. Resolveu desembarcar no dia 24 na praia de Cacilhas, o ponto mais favorável. Ainda nessa tarde, três dos navios holandeses travaram um renhido duelo de artilharia com o baluarte de São Francisco. Dos barcos gritavam dizendo aos do baluarte que no outro dia seriam senhores de Macao. Retirando-se ao pôr-do-sol, houve nessa noite grandes festas nos barcos holandeses, o que levou o Capitão-mor Lopo Sarmento de Carvalho, a quem estava entregue o governo militar da cidade, mandar aos dos nossos baluartes responder com idênticos festejos de vitória. A batalha decisiva Ao romper do dia de São João Baptista, de 24 de Junho de 1622, duas horas depois do nascer do sol, saíram das naus da armada holandesa trinta e duas lanchas, transportando a força de desembarque até à praia de Cacilhas. Entretanto, duas naus holandesas começaram um intenso bombardeamento ao baluarte de São Francisco, ao que a guarnição do forte respondeu. Espreitando por detrás de um pequeno banco de areia, preparado para a defesa da praiazinha de Cacilhas, estava António Rodriguez com 60 portugueses e 90 filhos da terra. Desembarcaram sem dificuldade os oitocentos homens das forças holandesas, sendo duzentos japoneses, índios e malaios holandeses e, formando os seus esquadrões em terra, marcharam para o entrincheiramento dos portugueses, havendo grandes cargas de mosqueteria de parte a parte. O Almirante Reijersen, ainda mal tinha pisado terra, foi ferido por uma bala de mosquete na barriga, tendo de ser levado logo para o barco. Sem outras baixas de ambos os lados, foi conquistada a enseada, após os homens de António Rodriguez recuarem e logo em formação os holandeses continuaram o seu avanço, sob o comando do veterano capitão Hans Ruffijn. Na praia deixaram duas companhias para cobrir a retirada, e seguiram pela campina que torneava a Colina de Nossa Senhora da Guia. Foi então que da fortaleza de S. Paulo, ainda por acabar, os padres jesuítas atiraram três bombardas, tendo uma bala acertado no barril de pólvora de um dos barcos, que se encontrava no meio do esquadrão. Tiro fatal, para o sucesso do dia, foi calculado pelo grande matemático padre italiano Jerónimo Rho S.J., chegado a Macau nesse mesmo ano. Com o inesperado estrondo nas bandas da sua esquadra, os holandeses pararam e perdida a confiança ao olhar para um bambual pensaram estar perante uma cilada. Então decidiram pelo lado do Oriente ocupar a Colina da Guia, que dominava sobre a cidade e praia de Cacilhas. Mas aí, na ermida encontrava-se Rodrigo Ferreira com oito portugueses e até vinte topazes e cativos, que lhes foram dando cargas e os fizeram parar. Apercebendo-se das intenções, João Soares Vivas com 50 mosqueteiros e Lopo Sarmento de Carvalho, que vinha carregando desde a parte da cidade, aí chegaram para ajudar. Com o cume do monte ocupado pelos portugueses, o esquadrão inimigo de oitocentos mosqueteiros então capitaneados por Ruffijn, ficou em posição desprotegida e quando este capitão caiu em combate, os holandeses desordenados puseram-se em fuga, tratando só de salvar as vidas. Com o ânimo empolgado, o povo aproveitando a debandada perseguiu-os com tanto ímpeto que os fazerem embarcar a nado, mesmo às companhias que na praia ficaram. Deixaram mortos no campo, na praia e afogados no mar até 700 homens e por despojo oito bandeiras, um canhão, cinco tambores, muitas armas, e alguns prisioneiros, de que até ao seguinte dia só viverão sete. Logo após a vitória, no próprio local da batalha, os vencedores deram a liberdade aos seus cafres, em prémio da sua lealdade e coragem. Os moradores acorreram à Sé, onde se celebraram solenes ofícios em acção de graças pela vitória que acabavam de obter. Aí, nessa altura, o Senado e o povo prometeram idêntica comemoração todos os anos na véspera de São João, voto que foi escrupulosamente cumprido até agora e assim, o dia de S. João Baptista é festejado em Macau na Calçada da Igreja de S. Lázaro.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasPortugal existe desde o século V [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] remoto nome poético das Curvas (Cale) do Rio ligadas ao porto, de onde provém o Condado Portucalense, criado sem independência em 1097, coloca-nos em questão o existir já no século V, na margem esquerda do Rio Douro, uma vila cujos romanos davam o nome de Cale, sendo esta conhecida desde então pelo nome de Portugal. No actual concelho de Gaia, confrontando com Mafamude e Coimbrões, tem a povoação de Portugal a sua História associada à representação da formação de um território, feito por conquistas, povoamento e conversões. De povoação, a território elasticamente expandido desde o Rio Douro até Coimbra, qual respiração tinha Portugal no Mosteiro de Crestuma o seu centro de poder de condado no início do século X, então integrado no reino de Leão (910-1037). A Galiza estava dividida em diversos condados, sendo um deles o Condado de Portucale, o único situado para Sul do Rio Douro. Pouco mais de um século faltava para como país aparecer Portugal. Aprendemos na escola que a palavra Portugal vem da junção de Porto Cale, de onde foi formado o Condado Portucalense. Para a palavra , todos sabemos significar local de costa onde as embarcações se abrigam e dá passagem para terra; já para , o dicionário refere vir do latim canale, que significa rego de água. No entanto, no tempo de Jesus, Estrabão, que percorreu a Península Ibérica nos primeiros anos da era de Cristo, mencionava Cale, assim chamada pela sinuosidade de curva, porque as curvas dos rios costumavam assim chamar-se na linguagem dos lugares. Também por essa altura, segundo Plínio, no século I os túrdulos encontravam-se na cale do Rio Douro e fala deles como estando ainda espalhados por todo o litoral Atlântico, do Douro ao Anas (Guadiana), sendo da sua autoria a estruturação viária pelo litoral, que atravessa o território de Norte a Sul e perdura há dois mil anos. Estrebão refere-se a eles como os túrdulos antigos (turduli veteres), com escrita própria e leis registadas em verso, eram descendentes dos tartéssios. Império Romano na Península “Em tempos remotíssimos, o rio Douro, pela sua margem esquerda, limitava a antiga Lusitânia; e nas eminências presentemente denominadas Serra do Pilar e Castelo, existiram castros em épocas passadas. Com efeito, no antigo monte da Meijoeira – a actual Serra do Pilar – foram achadas moedas gregas do século III a.n.E. e comprovam, que, em tão importante cerro, existiu um castro helénico. Mais a poente, no sítio denominado Castelo, também existiu um Castro, onde, mais tarde, os romanos levantaram uma fortaleza e, consequentemente, fundaram uma povoação a que deram o nome de CALE. Esta povoação foi-se tornando muito florescente, não só por estar próxima à foz dum rio importante, como também pela pequena enseada, que lhe servia de porto. Calçada romana Quando estes povos construíram a estrada de Lisboa para o norte, com terminus em Braga, o porto de CALE, ficou a constituir o ponto obrigatório da passagem dos viandantes que, do sul, pretendessem seguir para as terras Minho-Galaicas; e aos que, destas, desejavam ir para as terras situadas entre os rios Douro e Tejo. Naqueles tempos, na margem direita, e fronteira a Cale não havia nenhuma povoação, consoante se prova com o Itinerário de Antonino (livro elaborado no século II)”. Estava a Península Ibérica dividida em três províncias separadas: Lusitânia (a Oeste), Baética (a Sul), Tarracones (no Leste e Norte). O actual território de Portugal correspondia a uma boa parte da província romana de Lusitânia, nos territórios entre Douro e Minho e governada desde Eremita Augusta, agora Mérida em Espanha, e alguns dos territórios da Boetica habitados pelos celtibérios. Os Romanos dominaram a Península Ibérica até ao século V da era cristã, altura da sua decadência, coincidente com a chegada dos Bárbaros a invadir as terras Ocidentais. No século V, o Bispo Idácio de Aquae Flaviae (Chaves) na sua Crónica falava do porto de Calem e dizia que Braga era a cidade mais ao Sul do reino da Galécia, que terminava no Douro. Reino criado no século III, era dividido pelo Rio Minho, tendo a Norte os lucenses e a Sul, os bracarenses. Os restantes dois reinos da Península Ibérica eram a Bética, a Leste do Guadiana (Anas) e a Lusitânia, do Douro ao Guadiana. Da Resenha Histórica de CALE Vila de Portugal e Castelo de Gaia, na separata de Comunidades Portuguesas de 1970, onde não aparece o autor, diz-se, “O mesmo Idacio (c.395-468), quanto à povoação de CALE, mencionou-a, como o Castro chamado Portucale. Pela primeira vez, entre os mais antigos documentos, aparece o nome de Portucale, dado por este cronista, à povoação de Cale. Idacio, que viu Cale, antepôs-lhe, ao designá-la, o substantivo porto, alatinando para portu, bem certamente pelo facto de, naquele tempo, o porto de Cale ser muitíssimo conhecido. Na margem direita e fronteira a Portugal, continuava a ausência de qualquer burgo ou povoação, porquanto, se existisse, não deixaria de ser referida por este cronista, consoante o fez sobre Castrum Novum, que verificou existir no cerro de Penaventosa, do Porto. Visigodos e o Reino das Astúrias Os visigodos, vindos das margens do Danúbio e do Mar Negro, atravessaram a Europa e chegaram à Península Ibérica em 412. Como tropas federadas ao serviço de Roma vieram para expulsar os alanos, suevos e vândalos, que tinham acabado de ocupar a Península Ibérica. Após dominar toda a Espanha, este povo germânico pela força das armas em 476 tomou Roma, acabando com o Império Romano do Ocidente, tendo promulgado a “Lex Romana Visigo-thorum” em 506. “Em Lugo, no ano de 568, realizou-se um concílio, que determinou quais as igrejas que ficavam a pertencerem à Sé de Coimbra: «a Sé Conimbricense tenha a mesma Coimbra, Eminio, Selio, Roma, Antuana e Portugal – o Castelo antigo dos romanos>, segundo Pinho Leal. Por este documento, comprova-se que a povoação de CALE, ou Portugal, estava sujeita, eclesiasticamente, à Sé de Coimbra, a qual, jamais, superintendeu em igrejas além da margem esquerda do Douro”, Resenha Histórica de CALE. Entre 568 e 586, o rei visigodo Leovigildo expulsou os funcionários imperiais e procurou unificar a Península. Foi o fim do Império Romano na Península Ibérica. Mas no início do século VII, o reino Visigodo (410-711) entrou em crise, com rebeliões a Norte, nas Astúrias e com os bascos, encontrando-se o Sul sob domínio bizantino. Batalha de Guadalete (31 de Julho de 711) Em 711, acabou a guerra civil no reino visigodo, já que, com a chegada à Ibéria do exército muçulmano comandado por Tariq ibn Ziyad, numa só batalha deu-se a decapitação do reino visigodo. Pelágio, um príncipe godo, refugiou-se nas montanhas das Astúrias, e resistindo daí com um grupo de cristãos lutou entre 718 a 725 contra os maometanos. Refere Bernardo Vasconcelos e Sousa: “Tradicionalmente, a vitória dos cristãos sobre os muçulmanos na Batalha de Covadonga, no ano de 722, foi considerada como o início da chamada Reconquista, isto é, do processo militar pelo qual os cristãos recuperaram os territórios ocupados pelos seguidores do Islão. Mas mais do que um decisivo confronto bélico já no contexto de uma reconquista, Covadonga foi um recontro entre tropas muçulmanas que haviam penetrado na região montanhosa da Cantábria e uma força constituída por naturais daquela zona que reagiram para defenderem a sua autonomia, sob o comando de Pelágio, um membro da nobreza goda. A apropriação ideológica desta vitória, feita bastante mais tarde pelos clérigos asturianos, acabaria por conferir à batalha a importância de um facto transcendente, associado ao que se considerava ser a missão da monarquia asturiana, de libertação e de salvação de uma Hispânia que tombara perante os inimigos da fé cristã”. E nos três séculos seguintes a progressão dos Cristãos concentrados nas Astúrias reduziu o território dos Mouros, com isto surgiu os reinos de Oviedo, Leão, Galiza e Castela que ocuparam os territórios da antiga Lusitânia. Portugal no Reino das Astúrias O porto de Calem no século V foi referido pelo Bispo Idácio de Aquae Flaviae (Chaves), que diz ser Braga a cidade mais a Sul do reino da Galécia, que terminava no Douro. Rio, obstáculo de difícil atravessar, era por isso de fronteira. A localização desse porto gera assim controvérsia, pois sem haver ainda na margem direita, o que viria a ser a cidade do Porto, pugna a margem esquerda do Rio Douro e próximo da foz, o lado de Gaia, o povoado mais antigo dessas cales, Portugal. Em 711 o último rei visigodo, Rodrigo (Roderico 710-711), tentou repelir a invasão muçulmana mas foi derrotado. Avançaram estes para Córdoba e Toledo, a capital visigoda, cercaram Mérida, que caiu em Junho de 713 e na Primavera seguinte, um exército muçulmano comandado por Musa ibn Nusair marchou para Saragoça, León e Astorga e dois anos depois caía Évora, Santarém e Coimbra. Em 716, após cinco anos, os muçulmanos tinham conquistado e ocupado toda a Península Ibérica, ficando sob domínio cristão apenas as Astúrias no Nordeste, na região montanhosa da Cantábria. O Reino de Astúrias (718-910) teve como primeiro chefe Pelágio (718-737), um nobre visigodo que em 725 e após a batalha de Covadonga, fundou esse pequeno reino. O terceiro rei das Astúrias, Afonso I (739-759), o Católico, reconquistou terras até ao Douro. Sucedeu-lhe Fruela I (757-768) que valorizou as terras galegas, mas a região para Sul do Rio Minho até ao Douro ficou esquecida e entregue a si própria. De salientar como refere Matoso, “que a expansão asturiana para a Galiza não foi, de modo algum, um movimento pacífico e que os chefes galegos que dominavam a região aceitaram com dificuldade a nova ordem política”. “No século oitavo vieram os árabes dominar uma grande parte da península ibérica; e, da sua permanência nas terras da antiga CALE ou Portugal, há a citar-se os nomes de Mafamude (freguesia), Almeára e Aldariça, povoações das freguesias de Canidelo e Santa Marinha e perto do oceano Atlântico, estabeleceram uma almenára – hoje lugar de Almeára – onde, de noite, acendiam fogueiras para guia das embarcações”, segundo José Matoso. Quanto à povoação Portugal, os maometanos também não substituíram a sua antiga designação, apesar de nela residirem as autoridades que superintendiam no governo das terras sob a sua jurisdição. A vila de Portugal estava separada a Poente da vila de Mafamude e daí pelo monte abaixo, desde o termo Norte de Coimbrões (de fundação anterior à romana) até Gaia. Quanto ao nome de Mafamude é de origem árabe e supõe-se advir dos finais do século VIII, quando Afonso II realizou “uma expedição que chegou até Lisboa em 798 e acolheu no seu reino o caudilho Mahamud, natural de Mérida, que se tinha revoltado contra o emir. Há quem pense que ele se fixou em Mafamude,” da História de Portugal coordenada por José Matoso. É com o Rei Afonso II (793-842), o Casto, que começou verdadeiramente a luta com o Islão, ocorrendo o assalto a Lisboa com a ajuda dos francos. O reino das Astúrias, com o seu centro político mais importante em Oviedo, valoriza as terras entre Douro e Minho, iniciando os asturianos “a actividade repovoadora na bacia do Douro, então uma espécie de no que respeitava ao controlo por parte de cristãos ou de muçulmanos”, segundo Bernardo Vasconcelos e Sousa. Mas com o Rei Ramiro (842-850) de novo, as terras entre Douro e Minho são esquecidas, ficando entregues aos chefes locais. Ordonho I (850-866) fez a Galiza prosperar, havendo pela primeira vez uma efectiva incursão ao que virá a ser território português, “durante o qual se repovoou a cidade de Tui, antiga sede episcopal, com jurisdição até ao rio Lima. Aqui, os representantes régios tinham não só de tentar impor a sua autoridade, mas também de reprimir novos ataques normandos, a que acresciam agora, no litoral, os roubos e destruição de piratas sarracenos, mencionados pela primeira vez por esta época”, José Matoso. Segundo Vasconcelos e Sousa, “No reinado de Afonso III (866-910, o Magno), os cristãos chegaram à linha do Rio Douro, sendo um dos mais importantes marcos desse avanço a tomada e o povoamento de Portucale, em 868, por Vímara Peres. Com centro em Portucale, junto à foz do Rio Douro, viria a constituir-se, a partir de finais do século IX, uma entidade político-administrativa cuja área se estendeu de sul do Rio Minho até à chamada Terra de Santa Maria, já a Sul do Douro”.
António Conceição Júnior Contos e histórias h | Artes, Letras e IdeiasA bica de duas bocas [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]brisa marinha é sempre diversa. Com ela vem o sussurrar da proa, apartando as águas, e o ranger da madeira e do cordame que segura as velas enfunadas pelo vento. Os ouvidos e a experiência ditavam a rota no escuro da noite. Wong Siu Ieng, deitada no convés, já há muito deixara de sentir a maresia e o cheiro do peixe. Olhava o céu. A seu lado, Lai dormia a sono solto. Estavam no convés, em baixo fazia demasiado calor. Olhando as estrelas não encontrava as da sua aldeia. A memória era vaga, curta. Lembrava-se que dormia na barraca palafita quando uma vozearia estalou e, subitamente, agarrada por braços poderosos e coberta por um grande lenço foi levada para um baloiçante bote, enquanto outras vozes chorosas se lhe juntaram. Após curta viagem, ainda coberta, foi içada para uma amurada de onde a levaram. Ainda ouviu tiros e o estalar do fogo nos bambus. Era a sua aldeia, pensou. Depois, um vazio de memória, um breu como o da noite que atravessava. Lembrava-se de uma pequena praia onde, à vez, fundeavam juncos e onde contemplava, à distância, um perfil longínquo, habitado. Numa gruta, ao fundo da pequena praia, tinha o seu catre. Aí aprendera a manejar facas e espingardas. Os homens davam ordens, mandavam cozinhar peixe e arroz. Por vezes havia carne de porco ou galinha. Descobrira a existência de outras grutas, fendas na rocha banhadas pelas águas do rio. A maioria das outras crianças não crescera com ela. Por razões que desconhecia, fora adoptada por Lai Ma (mãe Lai) que, de cartucheiras à cintura mandava nos homens. Lai Chói Sán (Lai Montanha de Fortuna) tomara-a sob sua custódia e assim crescera. Os homens murmuravam que Lai Ma, ainda adolescente, tinha sido abusada por um bando e, como vingança, se tornara pirata, usando os seus homens quando a ela lhe apetecia, que era seca do útero. Talvez por isso a tivesse adoptado. “Wei”, sussurrou a sentinela, “estamos a chegar!”. Wong Siu Ieng interrompeu os pensamentos. Com os outros, levantou-se, pegou mecanicamente na espingarda, afivelou a cartucheira e dois tanka foram descidos. Primeiro desceram os homens, depois Lai Ma e Wong Siu Ieng. O junco seguiu caminho. O azul nascia no horizonte e aos poucos os olhos foram-se habituando. Estavam na nesga de rio de onde se acedia ao templo de Avalokiteshvara Kun Iam. Meteram-se os oito por uma rua traseira que dava para a vila de Coloane. Esgueiraram-se para dentro de uma casa na Rua do Meio. Bastou um toque no portal para, do outro lado, se ouvir a tranca de madeira correr. Entraram para um pátio cheio de plantas, seguindo por um curto caminho de pedra que dava acesso à casa de tijolo cinzento que despertava com o raiar do dia. Lao Wing Man mandou servir canja numa enorme mesa redonda de tampo metálico. Os convivas, em silêncio, sorveram a sopa e comeram vorazmente o que traziam, fosse soi kau ou nabo frito. De quando em vez, olhavam para fora, o pé marítimo em cima do banco. Lao Wing Man, reclinado, fumava ópio. De olhos semicerrados, esperava que acabassem o pequeno almoço. Lai Ma limpou os lábios com as costas da mão, pulso ornado de pulseira de jade e boca de dentes de ouro, e levantou-se. “Tim-a Lao Sôk?” (então tio Lao?), interrogou a mulher pirata, dirigindo-se ao velho que lhe respondeu com um sorriso desdentado, lançando uma baforada de fumo: “Sempre o mesmo”. Virou-se e chamou A-Weng. O empregado curvou-se. “Traz as coisas”, disse o velho. A-Weng dirigiu-se a outro compartimento fora do olhar dos visitantes e voltou, entregando a Lao um conjunto de envelopes chineses e uma cesta de vime. Lai Ma tirou de um dos envelopes notas enormes que verificou. Abriu a cesta de vime e espreitou para um montão de moedas. “Muito bem, Lao Sôk, bom trabalho. Ficas com as moedas” disse a mulher, perguntando de seguida “todos pagaram?”. O velho riu-se. “Claro, eles sabem que tem de ser assim” disse com a forma arrastada de quem quer, à maneira cantonense, vincar uma afirmação. Lai Ma virou-se para o grupo, mas dirigiu-se à rapariga. “A-Ieng, vamos dar uma volta. Traz o incenso”. Tirou os sapatos e ficou com o aspecto indistinguível de uma pescadora, pés chatos habituados a agarrar a teca do junco. Wong Sio Ieng desfez-se também da cartucheira, alisou a cabaia curta, manteve os sapatos de pano e ei-las, decididas, a encaminharem-se para o portão. Saíram de mãos dadas, os pauzinhos de incenso na mão e, na roupa interior, um bolso com sapecas. Caminharam sorridentes, seguindo em frente, passando por um templo ocidental. A aldeia ganhava vida à medida que crescia o dia. Passaram para a beira rio, onde palafitas davam para um terreiro arredondado. No chão, peixes secavam com sal. Um cão ladrou quando se cruzaram com um soldado sonolento, saindo de uma das barracas, ainda abotoando a farda. No terreiro vazio, um pequeno altar no chão. Lai Ma acendeu o incenso, agachou-se e iniciou, muito baixo, uma cantilena em língua estranha, inspirando repetidas vezes enquanto balanceava o tronco para a frente e para trás. Depois, espetou os paus de incenso entre os outros e ergueu-se, levando A-Ieng consigo. Esta nunca se atrevera a perguntar o que tudo aquilo significava, para além da oração a um tou tei (deus do lugar). Tomaram o caminho de regresso à casa de Lao Wing Man. Lai Ma reuniu os oito à volta da mesa e, sorvendo chá, anunciou que nessa noite partiriam para Macau. Um olhar de espanto invadiu os restantes. “Mas… o que vamos fazer?”. Lai Chói Sán olhou para o que tinha feito a pergunta e, enigmaticamente, respondeu: “Retribuir…”. Recolheu-se a um catre, com Lao a dormir o sono do opiómano. Os outros também se acomodaram aqui e ali, preparando-se para a saída nocturna. À hora combinada, pelo mesmo caminho, regressaram ao junco, que contornou a ilha. Do grupo, quatro passaram para outra embarcação de pesca, devidamente registada, que ancorou no Porto Interior, já passava das nove da noite. Num bote, chegaram a terra. Por baixo das arcadas, dirigiram-se a um homem que fumava cachimbo de água. Lai Ma falou em hakka, o homem ergueu-se indolentemente e dirigiram-se para o templo de A-Ma. No largo, o homem entregou às duas mulheres um varão de bambu e duas cestas. Lai Ma entregou o tam kón a A-Ieng, que o poisou sobre as cestas, atando-o com cordas. Subiram a rampa do Quartel dos Mouros, cestos ao ombro, desafiando as autoridades ali estacionadas. Foram subindo a estrada de terra batida, falando em hakka. A-Ieng procurava discernir alguma palavra, olhando o sentinela barbudo, que pouca importância deu ao trio. Avançaram até ao fim do caminho, subiram e desceram outro, e ei-los chegados a um templo ocidental com uma escadaria. Viraram à esquerda e entraram num casinhoto. O homem acendeu uma lamparina de óleo. Havia apenas um catre e uma mesa. Ao fundo, uma banca, um fogareiro a carvão e um abano. “Kan Sôk (tio Kan), preciso de ir até I Long Hâu (bica de duas bocas)”. Aquilo era zona guardada por fei tchâu lou (africanos, landins), avisou o homem. Lai Chói Sán sabia disso, “há vinte e um anos mataram o meu homem em Lu Wan (Coloane)…”. E por aí se ficou. Kan Sôk, meditabundo, insistia que era muito perigoso. “A ousadia é sempre inesperada”, respondeu-lhe a mulher, olhando-o nos olhos. Acabou por concordar. Foram-se pelo escuro da noite. A manhã daquele dia de 1931 rompeu demasiado cedo. Junto à bica de duas bocas, na zona da Flora, ao pé do Palacete da Flora, residência de Verão do Governador, uma forte explosão acordou a cidade. Num raio de 300 metros tudo ficou destruído. Registaram-se 41 mortos. Às 5:35 da manhã, inexplicavelmente, trinta toneladas de pólvora explodiram. Muito se especulou sobre as verdadeiras causas deste terrível acidente, aventando-se até ter sido obra de pirataria. As autoridades porém, negaram. Nota do autor: este texto, embora baseado em factos e personagens reais, é inteiramente ficcionado.
Carlos Morais José A outra face VozesMaravilhoso, não é? Exótico, no mínimo [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stive fora de Macau a maior parte deste Inverno. Depois voltei para uma terra onde o ex-Procurador fora preso, surgira o projecto de um arranha-céus no pulmão da cidade e os taxistas continuam a impor a sua lei no espaço público. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo. Lá fora, na distante e fria Europa, sofrem-se atentados terroristas; nos fanáticos Estados Unidos debate-se a possibilidade de um homem estranho ser presidente; na aldeia global, emergem os Panama Papers: o capitalismo mostra a sua garra. O mundo discute o racismo, o islamismo, o terrorismo, as fugas de capitais, guerra, refugiados, a poluição. Aqui o homem que nos protegia dos bandidos vai dentro e o Governo hesita em pôr na ordem os carroceiros porque “eles têm um lóbi antigo, do tempo da Revolução Cultural, com ligações ao Governo Central” (???!!!), porque tudo está bem enquanto se puder construir em toda e qualquer parte. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo. A desadequação desta cidade à realidade chega a dar ternura. “Só em Macau”, expressão incensada, está a ganhar dimensões novas, feéricas, audazes. Infelizmente, que nem sempre por bons motivos. Mas, suspendamos os julgamentos e apreciemos o grau de Espanto a que continuamente somos sujeitos. Como muito bem definiu Descartes e outros sábios, o Espanto provém de um aparecimento súbito de algo inesperado. Na verdade, para o filósofo francês, o Espanto é filho da Admiração: ficar espantado também é admirar se lhe acrescentar o seu carácter de inesperado. Só que, dependendo da causa do Espanto assim ele se pode transformar em outras e diversas emoções. Pode, eventualmente, despertar o riso ou uma contemplação estética. No piores casos, quando a causa do Espanto é algo de ameaçador, pode transformar-se em Medo. Cada um de nós lidará à sua maneira com os factos espantosos que Macau em catadupa nos proporciona. Tal depende do grau de consciência cívica, do sentido de humor, da paciência e de muitos outros factores que seria fastidioso enumerar. Basta termos esta certeza: será muito difícil encontrar outro abençoado lugar onde tantas vezes nos sintamos assaltados pelo espanto. Cuidei ser a Índia, talvez, e para lá viajei; mas depois de duas semanas nada por ali se comparava com a capacidade feérica de Macau que há 26 anos me espanta. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo. Não percebemos bem de que se queixam os residentes. Esta cidade está cheia de surpresas, de milagres de unicórnios. Poste-se o cidadão numa paragem de autocarro e constatará que existem três (!) companhias de transportes públicos para servir 35 km2. Contudo, o mais sofisticado neste serviço é o facto dos autocarros com o mesmo número ou que fazem a mesma linha teimarem em andar sempre juntos, uns atrás dos outros, como os elefantes da cauda da mãe. Não gostam de andar sozinhos, é o que é. Tem que se compreender. Depois passa um tempo interminável até que voltem a passar. É um estilo, pronto. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo. Outro fenómeno interessante, que talvez alguns considerem bizarro, é o aglomerado de empresários nas ou junto das principais cadeiras do poder. Feitas as contas, Macau deve bater recordes. São, literalmente, mais que as mães, porque muitos deles têm irmãos. Já para não falar nos primos, nos filhos e nos cadilhos. Trata-se de uma clientela educada que, com honrosas excepções, prefere comer pela calada. Ainda por cima, esta exagerada concentração serve de alimento aos “opositores do regime” que nela encontram tribuna alta para lançarem os seus protestos e imprecações. É, de facto, espantosa e fascinante esta dialéctica política que, à parte de ser sensaborona (o que lhe acrescenta chique), remete a população para um estado de inércia bovina, o garante imprescindível da harmonia. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo. E, como se não bastassem as acções e as não-acções dos nossos queridos governantes têm também surgido nos últimos tempos várias reflexões sobre a comunidade portuguesa aqui residente. Mas atenção: não se trata de coisa fácil visto esta comunidade estar intrinsecamente dividida, à partida, na sábia opinião dos analistas, entre os reinóis (os que nasceram no reino) e os macaenses. Ficámos então a saber que os primeiros se dividem entre os dinossauros e os neo-tugas; e os segundos entre tantas categorias e castas, às quais não é indiferente o bairro de nascimento, que não seriam suficientes as páginas deste jornal. E cada um de nós cultiva a sua ilha, ouve a sua música e esconde ciosamente o que tem. Fantástico! Longe do paraíso original, reinóis ou macaenses ou lá o que nós somos, temos esta capacidade única, espantosa, de nos preocuparmos sobretudo em levantar a pele das nossas próprias costas, sem acinte nem maldade. Maravilhoso, não é? Exótico, no mínimo.
Hoje Macau EventosDaniel Pires lança Dicionário Cronológico da Imprensa Periódica de Macau [dropcap]O[/dropcap] investigador português Daniel Pires apresenta, no dia 15, o “Dicionário Cronológico da Imprensa Periódica de Macau do Século XIX (1822-1900)”, um trabalho iniciado há 26 anos e que se debruça sobre uma “fundamental fonte histórica”. Cerca de 80 periódicos – a maioria em Português, mas também alguns em Inglês – foram publicados ao longo do século XIX em Macau, abrindo uma janela para a “sociedade, economia, política, educação” da época, considera Pires, que participa no Rota das Letras. Estes jornais eram importantes pela informação comercial que disponibilizavam numa cidade cuja principal função era ser um entreposto comercial. “As pessoas precisavam de saber que vinha aí a seda, quanto custava o metro, tinham de saber os câmbios, as datas de chegada e partida dos barcos”, explicou à Lusa. Eram também jornais marcadamente políticos – divididos entre os da oposição e do Governo – apesar da forte censura. “Mesmo quando não havia censura em Portugal, a censura aqui existia. Era uma cidade pequena, não tinha Taipa e Coloane, era a foz do Rio das Pérolas e acabou. Imagine-se o que era em termos de lutas, conflitos de interesses.” Os conflitos “resolviam-se com uma repressão forte”, que tinha a censura como aspecto fundamental mas também outros: “As pessoas que não obedeciam eram espancadas, enviadas para o degredo, Timor”. Esse foi o destino de alguns “jornalistas de grandíssimo valor e grandíssima coragem” que “fizeram frente ao poder discricionário”, como foi o caso do médico Francisco da Silva Magalhães, director do Gazeta de Macau. “Era um idealista, queria participar na construção da sociedade e era crítico – ser crítico nesta altura pagava-se caro, foram dois anos de castigo no degredo em Timor”, disse, lembrando um homem “muitíssimo inovador a vários níveis”. Ser jornalista em Macau no século XIX “não era fácil” e a pressão surgia de todos os lados. “Havia formas de dissuadir. Dizia-se ‘És director do jornal, cuidado com o que escreves ou o teu filho pode não ter emprego’”, exemplificou Pires. Passado marcado Entre os temas mais recorrentes nos periódicos da época, o investigador salientou, além do comércio, a relação entre portugueses e chineses – “uma relação difícil” –, a luta entre o Leal Senado [câmara] e o governador, a Guerra do Ópio e o tráfico de cules, emigrantes chineses que vinham para Macau e eram depois enviados para trabalhar na América Latina, “eram contratados, com mentiras à mistura, na China”. “Em Macau era-lhes dado um passaporte português, tornavam-se cidadãos portugueses sem saberem contar até três, e depois eram levados para o Peru e para Cuba, onde eram exploradíssimos. A primeira coisa que lhes faziam era retirar o passaporte”, contou. Para o investigador, que viveu três anos em Macau e publicou obras relacionadas com Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes e Bocage, “os jornais são absolutamente fundamentais como fonte histórica, talvez até sejam a principal fonte”. “Pode ter havido uma censura tal que as pessoas estivessem amordaçadas e houve muitos momentos em que estiveram, mas ali está tudo o que foi possível publicar”, conclui. O “Dicionário Cronológico da Imprensa Periódica de Macau do Século XIX (1822-1900)”, editado pelo Instituto Cultural de Macau, é lançado no dia 15 pelas 18h30, na Academia Jao Tsung-I.
Hoje Macau EventosFestival Literário | Pacheco Pereira na sessão abertura [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]historiador José Pacheco Pereira alertou para o perigo da desvalorização crescente das humanidades e matérias consideradas “não úteis”, no arranque da 5.ª edição do Festival Literário de Macau. “A aparente inutilidade das humanidades é um recuo civilizacional muito significativo”, afirmou ontem, no debate inaugural do Rota das Letras, sob o tema “Para que serve a cultura na vida do homem comum”. “Quando propus este tema foi também porque no meu país há uma discussão sobre o valor das humanidades, das matérias que ‘não são úteis'”, como o latim, a literatura clássica ou a filosofia, começou por explicar. Para Pacheco Pereira, “há uma certa ironia na maneira como se discute hoje a cultura e as humanidades por parte das pessoas dos negócios, que pressionam as universidades a ter cursos que sirvam as suas empresas”. No entanto, mais tarde, são estes mesmos empresários, já bem sucedidos, que “oferecem a si próprios e aos seus colaboradores cursos na Suíça em que vão aprender filosofia”. “Percebem que há uma série de conhecimentos que são importantes até no mundo empresarial”, comentou. Por vezes essa crítica às humanidades “é feita nas universidades”, que se mostram cépticas em relação até a “ramos da ciência que não parecem ter utilidade imediata”. Há, assim, “uma perda da ideia da universidade”, tornando as instituições “como se fossem marcas, empresas”, lamentou. “Não quero ser um apocalíptico mas (…) houve momentos na história em que se perdeu conhecimento. Não temos a certeza que a história corre sempre de maneira a que o futuro seja melhor do que o passado”, alertou, chamando a atenção para a importância de as sociedades “lutarem por um determinado tipo de vida e cultura” que valoriza o conhecimento, sob o risco que a sua “relação com o mundo fique mais pobre”. Pacheco Pereira, que dividiu a mesa com a escritora taiwanesa Lolita Hu, argumentou que a cultura tem um papel importante na vida do homem comum – que definiu como alguém para quem “o trabalho intelectual não é central” – porque o ajuda a compreender o mundo. Os exemplos, indicou, estão em todo o lado: “As séries televisivas têm tido um grande sucesso. É importante saber que o principal bandido do The Wire é uma espécie de Édipo porque apesar de tudo o que faz não consegue ultrapassar o próprio destino? É útil ou não é útil?”. A resposta surgiu afirmativa. “É útil, dá mais liberdade às pessoas e torna-as mais capazes de intervir à sua volta, quer na sua intervenção junto de amigos, quer na intervenção cívica e na sociedade”, afirmou. Historicamente a cultura é importante “para resistir à opressão”, mas é também essencial mesmo que se viva “numa sociedade democrática e livre”. “Precisamos de cultura para compreender o mundo, para compreender o que se passa”, defendeu. Tal não significa, no entanto, “que ser culto nos defenda da barbárie”, ressalvou, lembrando que “alguns dos guardas dos campos de concentração faziam parte dos quartetos de música.