José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasRua Camilo Pessanha [dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ublicado no artigo anterior a parte inicial do discurso do então Presidente do Senado, Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, que com “breves e sentidas palavras” falava a 3 de Março de 1926 na secção do Leal Senado da Câmara de Macau. Nessa reunião camarária, propôs um voto de profundo pesar pelo passamento de Camilo Pessanha e dar o nome desse ilustre cidadão a uma rua. Em homenagem, “dando-se o caso de o ter conhecido e convivido com ele longos anos, primeiro como seu aluno e depois, colega durante o percurso deste como professor e advogado”. Discurso que aqui continuamos, após ter descrito a acção do advogado dos advogados, versa agora sobre as outras facetas do distinto poeta. “Como juiz, foi Pessanha de uma austeridade e de uma probidade inconcussas. Lembro-me de que uma vez um nababo chinês tinha uma questão cível pendente da sentença de Pessanha: esse litigante foi visitá-lo algumas vezes, e da última, ao despedir-se, deixou-lhe um envelope sobre a mesa… Pessanha deu pela incorrecção do homem e, obrigando-o a recolher o vil metal, correu-o à bofetada até à porta da rua. Foi assim que Pessanha castigou aquela tentativa de corrupção. Era intransigente em pontos de honra profissional, mas temperava a sua austeridade de julgador com a bondade do seu coração. Todas as vezes que o seu dever lhe impunha uma condenação, procurava aplicar ao réu a menor pena que por lei, podia aplicar-se. Na situação de juiz substituto em exercício, teve ensejo de revelar, por mais de uma vez, os seus eruditos conhecimentos. Está ainda na memória dos seus colegas e da família judicial, uma extensa sentença por ele escrita num processo de crime por venda de menor, sustentando que, segundo a idiossincrasia chinesa, tal facto não era criminoso. Outra vez em que manifestou a pujança do seu intelecto com uma retentiva nunca vista, foi no processo de extradição do mandarim Pui-Keng-Foc, em que esteve seguramente quinze dias a ouvir as declarações do extraditando e outros quinze ditando-as, sem se socorrer dum único apontamento escrito, e sem pôr um ‘digo’ ou fazer qualquer emenda. Quando terminou o seu ditado, com tanta clareza e fidelidade como elegância e vernaculidade, pediu ao intérprete que traduzisse uma a uma as palavras por ele ditadas, e o mandarim Pui, que era também um literato e um poeta, ao acabar de ouvir a tradução da última linha, pediu licença ao juiz, para o cumprimentar por aquele record de assimilação e de retentiva que o fez admirar das faculdades intelectuais do juiz português. E lá da sua prisão na Fortaleza do Monte, escreveu num leque uns versos que dedicou a Camilo Pessanha. Acham-se dispersos nos arquivos dos tribunais de Macau e da Secretaria do Governo da Província, muitos trabalhos jurídicos de Camilo Pessanha, e é pena que não se faça deles uma edição in memoriam”. De jornalista a coleccionador “Pessanha foi também jornalista, e eu tive a honra de o ter tido por meu colaborador no jornal que fundei, intitulado O Macaense. Neste jornal publicou Pessanha a tradução em versos portugueses, de umas elegias chinesas, seguida de eruditas notas explicativas das passagens ou palavras mais interessantes, e por ventura menos compreensíveis da história e da literatura chinesa. Pena foi que tivesse ficado em meio, ou a menos de meio, aquela tradução, que Sua Excelência com tanto entusiasmo encetara, e que pensava remeter para Portugal para que Dona Ana de Castro Osório fizesse dela uma edição portuguesa. Porém, os bocados de ouro que ficaram arquivados em O Macaense servem para dar aos estudiosos uma ideia da erudição de Pessanha em assuntos da literatura chinesa – pois é bom que se saiba, e que fique escrito, que Pessanha, apesar de não ter tido um único exame de língua chinesa, estudara esta língua, e bem assim as fontes da sua literatura, que bem se podia considerar um bom sinólogo português. Quantas vezes, em dias calmosos, em que a maior parte da população procura nas distracções fáceis e nas brisas das praias um alívio aos calores da época, quantas vezes, nesses dias, não vi eu Pessanha, com o mestre china ao lado, aprendendo os caracteres chineses e repetindo com o professor os tons e sons da língua sínica! E que Pessanha só se recreava com coisas de espírito, e a civilização chinesa era para ele uma fonte inexaurível de estudo e de recreação do espírito. Pessanha foi, ainda, um coleccionador de coisas de arte chinesa, as suas salas eram uma exposição permanente de muitos objectos artísticos da China, e na aquisição deles, consumiu Pessanha, estou certo, a maior parte dos seus proventos da advocacia. Várias vezes, fez Pessanha doação ao Governo Português, do que melhor tinha na sua colecção de arte chinesa, e até ultimamente, um mês antes de morrer, doou ao Estado mais objectos artísticos. Eu lembro-me muito bem de ter visto em Lisboa, no Museu das Janelas Verdes, várias pinturas chinesas, doadas por Camilo Pessanha ao Governo Português. Nestas sucessivas doações, manifestou Pessanha o seu patriotismo”. Nome para uma Rua “Enfim, a morte de Camilo Pessanha veio, como disse, abrir uma lacuna entre os advogados de Macau. O país inteiro o pranteará, porque perdeu um poeta, um jurisconsulto, um artista, e um patriota. Proponho, pois, que, além do voto de sentimento na acta e da remessa de uma cópia deste parágrafo a seu filho, Sr. João Manuel de Almeida Pessanha, se dê o nome do grande cidadão a uma das vias públicas de Macau. Tenho dito”. Após a sentida homenagem do Dr. Luiz Gonzaga Nolasco da Silva, seguiu-se o Vice-Presidente do Leal Senado que se associa “com a maior dor e comoção à proposta de sentimento pela morte da grande individualidade que, em vida, se chamou Camilo de Almeida Pessanha. Já Sua Excelência, o Presidente, no admirável discurso que acabou de pronunciar, pôs em relevo as altas e inconfundíveis qualidades morais e intelectuais que caracterizaram o divino autor da Clepsydra, poema que foi com certeza idealizado num daqueles momentos de êxtase em que o espírito de Pessanha se evolava às mais belas regiões do sonho, envolvido pelo fumo do veneno destilado das rubras papoilas. Só lhe resta, pois, prestar o culto da sua homenagem a quem foi alguém na vida terrena”. Após o vereador Damião Rodrigues dar o apoio às propostas do Presidente do Senado, associam-se também os outros vereadores, como Jacques Gracias e Pedro Lobo, que reside nesta colónia há bem pouco tempo. Assim aprovada por unanimidade, nesse dia 3 de Março de 1926 assenta-se mudar o nome da Rua do Mastro para Rua Camilo Pessanha, o que deverá acontecer para breve. Com a construção entre 1910 a 1915 do primeiro lanço da Avenida Almeida Ribeiro, do Largo do Senado ao Porto Interior, a Rua do Mastro ficara dividida e assim o seu nome na parte Norte passava a chamar-se Rua Camilo Pessanha, o que terá ocorrido a 8 de Março de 1926, segundo Beatriz Basto da Silva e do lado “da Rua da Felicidade mantém a designação do Mastro, reduzida a Travessa”.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs derradeiros momentos de Pessanha [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Macau os relógios eléctricos estão parados desde 27 de Fevereiro devido à necessidade de proceder à limpeza dos instrumentos, quando, às 8 horas da manhã de 1 de Março de 1926 o autor da Clepsidra, Dr. Camilo de Almeida Pessanha faleceu na sua casa situada no número 75 da Rua da Praia Grande. A poucos metros de distância, nesse dia ia ser inaugurado o novo edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Avenida Almeida Ribeiro, fazendo o edifício esquina com a Rua da Praia Grande. Professor liceal, distinto advogado e admirável poeta, o Dr. Camilo de Almeida Pessanha residira em Macau durante aproximadamente 25 anos, tendo feito quatro viagens a Portugal, algumas por motivos de doença. Se o normal era em Macau se quedar entre oito a dez meses, já na penúltima, a temporada foi mais longa, acima dos cinco anos. Nascera em Coimbra a 7 de Setembro de 1867 e chegara a Macau na primeira vez em 10 de Abril de 1894, sendo a última a 21 de Maio de 1916, de onde não mais saiu. Viera como professor de Filosofia para o Liceu que iria ser inaugurado e como bacharel, muitos outros cargos aqui desempenhou, como refere sintetizando-os Beatriz Basto da Silva: “Camilo Pessanha veio a ser Conservador da Comarca (posse a 23 de Junho de 1900), Juiz Substituto do Tribunal Judicial (1904), Conservador servindo de Juiz e Presidente do Tribunal do Comércio (1911), Conservador do Registo Predial (1913), 1.º Substituto do Juiz de Direito da Comarca (1919), Auditor do Tribunal Militar, Professor do 4.º Grupo, efectivo no Liceu Central, sendo ali nomeado com Manuel da Silva Mendes como Director de Classe (1919). Foi ainda Juiz do Tribunal Privativo dos Chinas, como substituto (1919); juntamente com Fernando de Lara Reis e por desistência de Humberto Severino de Avelar, foi eleito Vogal do Conselho Administrativo do Liceu Central e, em 1920, Director da área de Geografia no mesmo Liceu, para onde foi nomeado Reitor Interino em 1925. Foi substituto do Juiz de Direito da Comarca (1920).” Nos últimos tempos de existência, Camilo Pessanha fora nomeado por despacho de 17 de Setembro de 1924 para exercer o cargo de Director das classes 3.ª, 6.ª e 7.ª (letras) do Liceu Central de Macau e como Reitor a 15 de Julho de 1925. No dia seguinte saiu a sua nomeação como director da quarta e sétima classes do Liceu para o próximo ano lectivo. Em 11 de Agosto de 1925 requereu como professor efectivo do quarto grupo do liceu que lhe fosse aumentado o vencimento de categoria por diuturnidade de serviço a contar de 16 de Julho de 1924, nos termos do disposto no artigo 217 do Regulamento da Instrução Secundária de 18 de Junho de 1921. Segundo Daniel Pires, a 4 de Setembro de 1925 Camilo Pessanha pede a exoneração do cargo de Reitor e a partir de 28 desse mês, está de licença por motivos de doença. A 10 de Fevereiro de 1926 solicitava como professor do 4.º grupo do Liceu Central uma licença de trinta dias, que ainda não tivera despacho quando faleceu. Os últimos desejos “Há longo tempo que a doença lhe vinha minando o corpo deixando-lhe, todavia, em plena vitalidade aquela sua prodigiosa inteligência que todos lhe reconheciam e que até aos seus últimos momentos de existência na vida o não abandonou. Espírito altamente filosófico e amplamente liberal, alma aberta a todas as dores e infortúnios, encarava a vida desprendidamente, sem os preconceitos vãos e mentirosos que por aí pululam a contaminar tudo e todos. Alma sempre propensa ao Bem, praticava-o sem ostentação, gozando o prazer da sua consciência satisfeita – e por isso lhe bastava – ao saber que a sua benéfica acção, singelamente praticada, ia concorrer para a debelação de uma angústia ou de um infortúnio”, como escreve o jornal O Combate a 4 de Março de 1926, que finaliza dizendo, “Advogado de rara envergadura, perdeu o foro um dos seus mais inteligentes ornamentos; professor distintíssimo, perderam os seus alunos um bom, devotado e carinhoso mestre; e maçon por convicção, sofreu a Maçonaria e os ideais de liberdade que defende, e sofremos todos nós, a perda de um dedicado irmão e fervoroso defensor dos humildes e desprotegidos”. “Os últimos momentos passou-os falando do enterro. Não queria ser transportado no carro funerário de Macau: embirrava com essa carripana. Desejava ser conduzido num armão de artilharia e por soldados, o que dizia, talvez não fosse difícil de conseguir visto ter sido frequentemente auditor no Tribunal Militar de Macau. Pobre Camilo Pessanha, bem fácil foi dar satisfação ao seu desejo! E sobre dois pequenos armões, de peças japonesas, assim se efectuou a última jornada de um dos mais curiosos espíritos, de um dos maiores e mais preciosos poetas portugueses”, segundo refere A. de Albuquerque. Já João Gaspar Simões complementa, “Certo de que teria um enterro oficial, professor do liceu que fora e seu reitor, juiz de Direito, advogado no foro local, prestigioso sinólogo e habituado a assistir ao saimento pomposo das outras personalidades locais, quis precaver-se pelo menos contra um dos números obrigatórios do programa. Eis porque, depois de consignar no testamento que pretendia que o seu enterro fosse o menos dispendioso e aparatoso possível, exige que não seja acompanhado de música. Porquê tal recomendação? Porque fazia parte de todos os funerais solenes de Macau a banda dos alunos do colégio católico da província. Ora o poeta, fina sensibilidade musical, preferia o silêncio ao fungagá dos metais soprados pelos meninos chinas. Obrigado a ouvir ainda, nessa pátria ideal onde o melhor enfim é não ouvir nem ver, os discursos oficiais, pelo menos não ouviu a desafinação agressiva da charanga implacável”. O Padre António Maria de Morais Sarmento assistiu ao último sopro de vida de Camilo Pessanha, que antes de finar pronunciou calmamente “está tudo a acabar… tudo podridão… tudo matéria…”, e referiu mais tarde, “tê-lo encontrado num estado de espírito que jamais verificara em qualquer moribundo.”
Hoje Macau China / ÁsiaHong Kong | Bairro evacuado por causa de bomba da II Guerra Mundial [dropcap]M[/dropcap]ilhares de pessoas foram ontem retiradas do bairro de Wanchai, em Hong Kong, devido ao perigo de rebentamento de uma bomba de 450 quilos dos tempos da Segunda Guerra Mundial, encontrada numa zona de construção. Segundo relatos das autoridades locais, dezenas de especialistas estão a tentar desactivar o engenho explosivo, o que levou à retirada forçada de mais de quatro mil pessoas no distrito comercial e financeiro de Wanchai, um dos mais movimentados da cidade. No espaço de quatro dias é a segunda bomba dos tempos da Segunda Guerra Mundial que é encontrada naquela área urbana, onde decorrem escavações no subsolo. Uma primeira bomba de 450 quilos dos tempos da Segunda Guerra Mundial provocou na quarta-feira o encerramento de várias ruas importantes e a suspensão de serviço de balsas no bairro. “A bomba está numa situação perigosa. O mecanismo do fusível está gravemente danificado e a sua posição impede que a nossa equipa trabalhe de uma maneira eficiente”, disse ao jornal South China Morning Post o especialista em desativação de engenhos explosivos Alick McWhirte. Segundo as autoridades locais, ambos os engenhos explosivos foram lançados pela aviação militar americana durante a Segunda Guerra Mundial, ficando “incrustados no solo” sem explodir até agora.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAno Cão embrenhado numa montanha de problemas [dropcap]N[/dropcap]o próximo Domingo, 4 de Fevereiro, celebra-se a Festa da Primavera (Li Chun, 立春, Princípio da Primavera), que para os geomantes do Feng Shui é o dia da mudança na regência do signo do ano, quando termina o do Galo Solitário e se dá início ao do Cão na Montanha. Em 2018, pelo calendário lunar, na China o primeiro dia da primeira Lua do ano será a 16 de Fevereiro e assim começará o ano do Cão na Montanha ainda sem ter ocorrido a celebração do Ano Novo Chinês. No último dia da décima segunda Lua, a 15 de Fevereiro, dar-se-á um eclipse solar. No ciclo de 60 anos (60 Jia Zi, 六十甲子), encontro do Céu com a Terra, este ano Cão na Montanha terá o número 35 e o nome Wu Xi (戊戌), pois corresponde ao Caule Celeste Wu (戊, associado ao elemento yang da terra) conjugado com o Ramo Terrestre Xu (戌 representado no carácter do animal Cão). Sendo Xu (戌) sempre terra e o Caule Celeste corresponde este ano a Wu, elemento Terra yang, teremos para 2018 terra sobre Terra, o que levará a ampliar os dois elementos a si associados: o fogo que cria a terra e a água que é cortada pela terra (pelos elementos água e fogo se criou a Terra). O fogo do Verão, alimentado pela madeira na Primavera, sem água para o cortar, amplia a terra e coloca-nos num dos extremos previstos para ocorrer este ano. Nesse período haverá tremores de terra e os vulcões expelirão magma, terra fortalecida que corta a água e, com esta seca, facilmente se dá a ignição, originando grandes incêndios. Com o fogo a criar mais terra, irá esta ocupar o lugar da água, mas com o metal no Outono a sulcar a terra, a água no Inverno provocará grandes inundações. Calamitosas condições a originar também doenças, epidemias e distúrbios na mente humana, que a poderão levar a enlouquecer. Organizada no caos, já sem compreender as imagens mentais que controlam a intervenção humana, está a mente predisposta a insanos extremismos, com apologia à descriminação e à guerra. Quando pelo semelhante, o desequilíbrio é levado a atitudes trazidas por fundamentalistas razões criadas pelas individuais verdades. Devido à liberdade de escolher que temos dentro da forma do pensar, cremos serem essas verdades produto do nosso pensamento. Alia-se a isso uma ciência positivista que, enquanto Religião, escolheu como modelo a máquina e assim realiza-se no Deus do Imperfeito. A conjugação de todos estes elementos torna-se um vulcão pronto a expelir a terra que tem dentro de si e serão os efeitos dessas catástrofes a dar folga à mente para vislumbrar de novo o Espírito da Terra. Desde esse Espaço, que dá os significados à matéria, consegue-se reflectir o subconsciente com que materialmente formatamos as realidades, podendo conseguir assim limpar as poeiras projectadas no espelho. Individual ou do Universo. Terra sobre terra Ano que vai ser de extremos: ocorrerão grandes mudanças com variações entre boas e más situações, consoante a Visão de cada um. É pelas bordas da História que consciencializamos e reconhecemos o lugar por nós ocupado. Por isso, quem olha as realidades, sem necessidade de nelas se impor, e pelo envolvente espaço se coloca como meio, vê-se a ganhar consciência das imagens mentais com que criamos o Universo e o ano servirá de grande aprendizagem e agudeza sobre o que viemos ao mundo fazer. Para quem parte já com verdades, pois ao entrar na realidade logo pela memória se projecta nas materiais formas que alimentam o seu observar subconsciente, não dá espaço ao que fora de si está e o envolve num todo e, por isso, apenas se irá encontrar pelo individual pensar, mantendo-se assim num ano embrulhado em caos e ruído. Prevê-se com um grande segurança, e todos inconscientemente sentimos, que não será um ano fácil, pois não haverá meio-termo. Tudo acontecerá de repente e, descontrolando a mente, valerão essas calamidades para acalmar a loucura propícia ao brotar do vulcão que é a mente humana. Esta, educada no cartesiano sistema de projecção, com o Erro de Perspectiva a empurrá-la para o caos, sem a consciência na Geometria Sagrada da Natureza, só vinga formalmente pela autoridade estatutária. Estruturada num caminho rectilíneo e uniforme, tudo começa e acaba no Eu individual, que é o fim, sem espelho no ondulatório criar ciclos, para alimentar as imagens mentais. Caótico labirinto, sem enredo para levar à saída do subconsciente e, nesse estado Superior de adulto, por que julgamos ser, somos juízes das verdades adquiridas no ouvir dizer e nas narrativas relatadas até à exaustão como notícias, acompanhadas por imagens de televisão que, qual S. Tomé, se tornam verdades. Do vazio, as fontes de informação e educação estruturam o espaço das nossas imagens mentais, transfigurando-as em formais Verdades, pelas quais cegamente lutamos. Veja-se o valor para as nossas vidas que as máquinas têm e lhes damos. A luz da máquina de encontro aos nossos olhos, poderosamente coloca na mente as verdades do ter visto. Com o suporte a receber a luz do meio ambiente, permite reflectir o que os nossos olhos vêem: espaço entre os objectos e a mente. É perante esta balança que o ano vai oscilar, sendo por isso diferente consoante o espaço dado. Em reflexão pelo nosso interior ou no continuar a esquecer o Erro da Perspectiva, crendo conseguir viver sem estar e a projectar, observa-se de fora revertido ao ponto de fuga. Por que se julga, com o estatutário poder do ser, fazemos o julgamento. Sabe-se pela História, a existência de personagens que, pela autoridade natural e do saber, conseguiram resolver difíceis problemas surgidos e evitaram guerras. São milénios a usarmos a Natureza, sem lhe dar o respeito ao que dela retiramos pois, se somos nós a finalidade, é pelas nossas verdades que a tomamos. Vale ser o cão um animal fiel e emocionalmente sentir o tratamento ético que lhe é dado por quem com ele coabita, entregando-lhe com amor a sua fidelidade. Terá sido o primeiro animal que se deixou domesticar pelos humanos, o que ocorreu há 17 mil anos. Só a partir do vazio se volta a criar ordem, para conseguir sair desse fosso onde já há dois milénios estamos atulhados, sem a ancestralidade proveniente do inconsciente Céu. O fogo controla a terra e esta, aumentando, será inundada pela água; catástrofes poderosas, provocadas pela Natureza que, descontrolando a mente, poderão levar alguns dirigentes a entrar na loucura, valendo a grande neve ou os enormes incêndios para os acalmar. Assim, o poder é entregue naturalmente à solidariedade das pessoas para juntas enfrentem as adversidades. O que temos a esperar para este ano, positivo ou negativo, está na vontade ou desejos colocados por cada um. No Próprio do Todo Um onde nos encontramos inseridos ou, individualmente, no cada um por si.
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasA emergência da China (II) “New China’s was not a capitalist economy on the basis of private ownership, as in European and American countries, nor was it a socialist economy on the basis of public ownership, as in the Soviet Union and Eastern Bloc countries. It was something altogether novel: a new-democratic economy, with both a capitalist sector and a socialist element. The regime of the new democracy was a system of democratic centralism designed by the National People’s Congress. It was totally different from the parliamentary system of the former democracy, and belonged to the classification of the representatives’ conference of the socialist Soviet Union. However, it was also completely different from the Soviet system, because it eradicated class, while the Chinese system was based on an alliance of all revolutionary classes.” “Characteristics of the Common Programme Draft by the Chinese People’s Political Consultative Conference, September 22, 1949” – Zhou Enlai [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, apesar do seu motivado discurso em Bandung, e das suas negociações com Kissinger, não era visto pelo Ocidente como um diplomata. A sua visita a África, em 1963, deixou-o muito desiludido quando os africanos rejeitaram o seu pensamento sobre a revolução, pois era o última ideia que os recém independentes países africanos procuravam. Tais países desejavam estabilidade. A China talvez tenha cometido erros com a África, assim como esta cometeu muitos erros consigo mesma, dado que o continente ficou dividido em cinquenta e cinco países e com duas mil subdivisões históricas, culturais e linguísticas. A China aprendeu como ser um estado o mais rápido possível, especialmente com os poderes coloniais que foram enfraquecidos pela II Guerra Mundial e que começaram a sair com mais avareza sem preparar as estruturas governativas e a administração pública dos estados que rapidamente se tornaram independentes. A Nigéria teve a sua sangrenta guerra civil no final da década de 1960. O Congo desmoronou-se desde o início da década de 1960. Nos países onde as potências coloniais se recusaram a sair, e ressalve-se a situação de Portugal que se recusou a descolonizar Angola, guerras sangrentas de libertação entraram em erupção, traduzidos em conflitos originados por movimentos competitivos de libertação. A China, em Angola, apoiou o movimento errado, ou seja, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no poder desde a independência, em 1975, foi apoiado pelos soviéticos e cubanos. A China apoiou no Zimbábue a luta armada de Robert Mugabe contra o governo da minoria branca conservadora que, em 1965, declarou unilateralmente a independência como Rodésia, e liderado por Ian Smith. Robert Mugabe tornou-se primeiro-ministro, em 1980, ao ganhar as primeiras eleições democráticas. Em Abril desse ano, é declarada a independência, passando o país ter o nome que actualmente ostenta, e a partir de 1982 Mugabe começa a liderar o país como ditador, até 21 de novembro de 2017, quando renuncia a favor de Emmerson Mnangagwa que tomou posse como presidente, a 24 de Novembro de 2017. O apoio da China a Robert Mugabe significou não só amizade duradoura, como o Zimbábue sempre manteve com a China desde a independência em 1980, um rápido e ardiloso trabalho diplomático para reparar as relações com os países que não tiveram a ajuda chinesa, como foi o caso de Angola. Ainda que a China tenha começado a fornecer assistência ao desenvolvimento de África pouco depois de Bandung, é facto que iniciou uma nova fase dessa ajuda de forma mais aguerrida, muito ligada a futuras parcerias comerciais e exploração de recursos, após a era da libertação da maioria negra na década de 1990, quando a África do Sul finalmente alcançou o domínio da maioria negra sob a liderança de Nelson Mandela (prémio Nobel da Paz de 1993) e líder do Congresso Nacional Africano (CNA na sigla inglesa), fundado em 1940. Nelson Mandela foi presidente do país de 1994 a 1999. As parcerias comerciais e a exploração de recursos começaram em boa verdade, dez anos após a enunciação formal de Deng Xiaoping sobre as “quatro modernizações”, em 1978, de forma a que sua máquina industrial funcionasse e pudesse fabricar mercadorias para o comércio, que exigiam recursos minerais e petrolíferos em grande escala e que a África poderia fornecer. A remoção das tensões políticas com os Estados Unidos, juntamente com a plenitude de todas as liberdades diplomáticas, foram igualmente importantes para o sentido chinês de globalização que, desde esse período, começou a alarmar o mundo ocidental, e com o assento no Conselho de Segurança da ONU, percebeu o seu significado, o que aplacou todos os seus presentimentos sobre ser o “império do meio”, apesar do longo período de marginalização. Apesar da caducidade da “Teoria dos Três Mundos”, a aspiração a um papel de liderança nunca desapareceu completamente da China, que entendeu que devia ser realizado pela diplomacia económica e não pela diplomacia política. Mesmo assim, a enunciação da teoria, conjuntamente com o reconhecimento diplomático da China pelos Estados Unidos, que conduziram a ter o referido assento no Conselho de Segurança da ONU, e ao sucesso das “Quatro Modernizações”, estabeleceu uma era de prosperidade e uma forma peculiar de globalização chinesa, pois o seu poder começou a estender-se a todos os cantos do planeta. O papel da África foi crucial, embora seja de enfatizar que o alarme ocidental sobre a compra chinesa de tanta influência económica no continente nasce de análises muito fracas. Em primeiro lugar, a influência foi literalmente adquirida. A China não forçou a colonização da África, como a Europa o tinha feito. A China não apoiou o racismo por causa da expropriação mineral, como os Estados Unidos o fizeram e acima de tudo, a África não é um continente negro tolo e inocente que não podia fazer escolhas por si e em seu benefício. A China sempre teve que negociar as portas de entrada para a África e apareceu com um novo modelo económico, que poderia ser chamado de “modelo de Xangai”, em oposição a um “modelo de Washington” baseado nos imperativos políticos e na condicionalidade económica do Ocidente. O “modelo de Xangai”, era a condição leve, com um generoso carregamento de liquidez, projectos de desenvolvimento e fundos, que precederam a exploração de recursos minerais e petrolíferos. Se os africanos muitas vezes conduziram negócios difíceis, apesar dos medos ocidentais de inocência e da ingenuidade africana, os chineses geralmente, configuravam a África de forma condescendente e superior, e que foi especialmente real para as empresas privadas chinesas que poderiam ser terrivelmente ingénuas e racistas nas suas ideias acerca da forma de operar em um contexto africano. A difícil gestão chinesa das minas da Zâmbia, por exemplo, levou a muitas mortes de trabalhadores locais sem condições adequadas de saúde e segurança, no quase inexistente sistema nacional de saúde do país. Tal situação alargou-se a um sistema de valores que sustentava o modelo oficial chinês. A experiência e os ganhos de trabalhar na África ajudaram os chineses nos seus planos para o futuro. A África trouxe um novo amanhecer para a China. O Ocidente sempre desfilou, ao lado da sua generosidade, às vezes como condição para receber benefícios, valores de democracia, pluralidade e transparência. A generosidade chinesa foi retratada como suborno e sem valor. O que provavelmente está no trabalho realizado é a ética confucionista de “guanxi”, que descreve a dinâmica básica de redes de contactos e influências pessoais, e que constitui um conceito central da sociedade chinesa. No entanto, é uma reciprocidade em uma cadeia de hierarquias verticais. Enquanto os valores ocidentais na sua forma mais pura são horizontais, como em uma democracia, os valores confucionistas não o são. O respeito e a obediência fluem, desde a pessoa ao imperador. Todavia, a provisão e cuidados devem fluir para baixo, caso contrário, o imperador perderia o mandato do Céu. Além disso, a personagem superior não deve apenas causar um fluxo de valor, deve fazê-lo primeiro e, se o destinatário abaixo for particularmente fraco (ou subdesenvolvido), o fluxo para baixo deve ser generoso, o que revela a visão chinesa do destinatário africano, que é (talvez inconscientemente) de uma entidade mais fraca e comprovadamente menos desenvolvido. O provimento chinês de acordos com adoçantes abundantes, pode ser visto como parte da responsabilidade chinesa em um arranjo hierárquico, mesmo quando toda a retórica é sobre parcerias iguais. Tal, como na “Teoria dos Três Mundos”, o ethos subjacente era uma liderança chinesa e, implicitamente, de superioridade. Tal senso de liderança era, em um sentido mais verdadeiro, uma expressão do realismo chinês como uma abordagem das relações internacionais. A China considerou que era impotente e foi um grande choque psicológico, após milénios de poderio. Actualmente considera-se livre para voltar a ser novamente uma super potência, mas por causa da era de humilhação, teve um genuíno e confucionista senso de solidariedade com os outros que emergiam da mesma condição. Era um idealismo empático com realismo, o mesmo sentimento de afastamento cultural que levou a China a um perigoso estádio um século antes. É de considerar que desta vez, com grande parte dos recursos do mundo em seu poder, está certa de que ganhará em parte a batalha da globalização. O caso chinês sugere que a apreciação cultural se torna importante para a compreensão da política externa, de forma que o “stress” da escola inglesa sobre a história e o “stress” da escola de Copenhaga sobre as formações discursivas, devemos acrescentar o “stress” nas formações culturais. No que concerne à China, o “stress” seria confucionista, mas também no sentido preconizado pela escola inglesa, totalmente histórico, dada a memória íntima e a recordação do século de humilhação pelos poderes imperiais. O comportamento dos Estados Unidos após a II Guerra Mundial em relação à China não teria sido mais que um eco contínuo dessa situação. O avanço nas relações com os Estados Unidos, ocasionado em grande parte pelos esforços de Kissinger e Zhou, foi intuitivo e, na medida em que um actor intuitivo pode ser racional, lideraram sem a panóplia de ambos os lados do aparelho de formulação governamental de política externa, com toda a sua organização burocrática, e sem as respostas de repertório. Simplesmente não havia um repertório nesta situação. Há um outro exemplo em África, no qual o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, entrou em negociações com Frederik Klerk (presidente da África do Sul de 1989-1994 e vice-presidente de 1994 a 1996, sendo no último período presidente, Nelson Mandela) acerca do racismo sul-africano em 1989, sem qualquer preparação racional, resumos de políticas ou biográficos. O presidente Kaunda, desconsiderou o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu pessoal da Casa do Civil, entendendo que era uma racionalidade formada inteiramente pela intuição e fé na força moral da igualdade e no desejo pela paz. A China, no caso da África, estabeleceu um longo namoro, e está a receber o retorno à medida que os acordos de longo prazo de exploração de recursos naturais se concretizam. O sentimento nasceu de uma empatia chinesa pela humilhação de África nas mãos dos poderes coloniais e Zhou Enlai, em 1956, criou como marco da política chinesa, o princípio da não-intervenção nos assuntos internos dos outros países. Esta foi simultaneamente uma observação do princípio fundamental do vestfalianismo, e também um compromisso com a África, de que a China não seria como as grandes potências que foram ao continente nos séculos XVIII e XIX. A reforma da Organização da Unidade Africana (OUA), em 2000, viu a adopção do princípio da não-indiferença. É um princípio que tem sido irregular e selectivo, talvez simplesmente convenientemente observado, diante da turbulência e das matanças que continuam em certas partes da África até ao presente. Os chineses, associados com uma posição do século XX, nada têm a dizer à formal posição africana do século XXI. Talvez, e uma vez mais, olhando para trás se poderia negar à China a possibilidade de olhar o futuro que lhe pertence. Todavia, deve haver a consideração sobre a formulação da política externa chinesa que está a ser sujeita ao impulso e à tracção, nos termos que Graham Tillett Allison, Jr. descreve no seu livro “Reaking Foreign Policy: The Organizational Connection”, de diferentes organizações na ordem ideológica, económica e política chinesa, em que todos procuram adquirir posições em matéria de relações externas. Existem as estruturas organizadas do governo, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Gabinete do Primeiro-ministro do Conselho do Estado. Podemos dizer que as estruturas de pesquisa, particularmente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, têm sido até agora menos fortes, pois há os órgãos de política externa do Exército de Libertação do Povo Chinês, e acima os comités de política externa do Partido Comunista Chinês. As instituições financeiras chinesas, cada vez mais, têm uma grande palavra a dizer em toda a conjuntura. Todavia, os órgãos do partido são os mais importantes em matéria de tomada de decisões e ninguém sabe como funcionam. Na ausência de uma figura como Zhou Enlai, que foi correctamente e propositadamente impenetrável, pela sua sobrevivência política, poucos líderes existem com carácter ou personalidade, que se possa dizer terem carregado um poderoso ethos pessoal para o domínio global, como foram os casos de Zhou Enlai e Kissinger.
Andreia Sofia Silva Manchete SociedadeDocumento refere que Portugal queria transferir a soberania de Macau só em 2004 Documentos oficiais revelados ontem pelo portal Hong Kong Free Press revelam que Portugal pretendia transferir a soberania de Macau em 2004 e não em 1999. O historiador Jorge Morbey acredita que essa seria uma “vontade pessoal” de Mário Soares, tendo em conta o processo da Fundação Oriente. Carlos Gaspar, ex-assessor de Jorge Sampaio, garante que essas datas “são meras fantasias”. Camões Tam, académico, questionou as fontes de Donald Tsang e David Akers-Jones [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uito antes de se assinar a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa, em 1987, Portugal e a China fizeram uma ronda de negociações para decidir as questões relacionadas com Macau. O modo como esse processo decorreu levou o então vice-secretário do governo britânico, Donald Tsang, a discutir o assunto durante um almoço com Barbra Schrage, do consulado-geral dos Estados Unidos em Hong Kong. Assinado pelo punho de Donald Tsang, ex-secretário das Finanças de Hong Kong, e datado de 1986, o documento que era confidencial fala deste episódio de uma alternativa à data da transferência da soberania de Macau. “Durante um almoço com Barbra Schrage conversámos sobre Macau. Schrage disse-me que estava entusiasmada pela forma como os portugueses levavam a cabo as negociações com os chineses. Uma curta agenda – a Igreja Católica, o estatuto dos macaenses com passaporte português e a data de 2004 em vez de 1999”, pode ler-se num dos dois documentos ontem divulgados pelo portal de notícias Hong Kong Free Press. Em Portugal cabem todos Mas há mais. Segundo a missiva de Tsang, Portugal poderia ter aceite toda a população que Macau tivesse na altura, caso fosse pressionado para tal. “Os chineses terão, aparentemente, reforçado a sua presença em Macau colocando novas caras na [empresa] Nam Kwong. Schrage também afirmou que os portugueses, caso sejam pressionados, estarão preparados para admitir a totalidade da população de Macau, incluindo os que não são cidadãos portugueses, em Portugal! Não perguntei a Schrage a origem da sua fonte, mas ela falou com convicção”, escreveu Tsang. A data de 2004 surge num outro documento assinado por David Akers-Jones, governador de Hong Kong entre Dezembro de 1986 e Abril de 1987. “Uma fonte disse-me que teve um jantar com o presidente Mário Soares e que Portugal mantinha-se firme na data de 2004, tendo frisado as diferenças entre Hong Kong e Macau, nomeadamente quanto à localização dos funcionários públicos”, pode ler-se. Contudo, as autoridades chinesas mantinham-se firmes na convicção de receber Macau antes de 2000, pois era o ano em que o Grupo de Ligação Sino-Britânico deixaria de operar. “[A China] afirma que seria muito difícil explicar a data de 2004 aos britânicos quando eles foram tão insistentes face a 1997.” Os documentos foram tornados públicos em Janeiro e Abril deste ano e estão disponíveis nos arquivos nacionais de Londres. Vontade de Soares? Contactado pelo HM, o historiador Jorge Morbey considera que a data de 2004 seria uma vontade do próprio presidente da República, Mário Soares. “Não tenho documentação, mas ouvi dizer que a data de 2004 se prende com a vontade pessoal de Mário Soares, [pois este] desejaria que todos os fundos destinados à Fundação Oriente (FO) saíssem de Macau e só depois é que deveria ser feita a transferência de soberania. Parece que houve uma intervenção pública de Mário Soares já depois de deixar a presidência, em que terá explicado isso, mas não assisti”, recordou. Ainda assim, “o que vislumbro em termos de negociações entre as partes é que a data de 1999 foi marcada de forma consensual entre Portugal e a China”, apontou Jorge Morbey. Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau (IIM) e, à data, secretário adjunto da Administração, Educação e Juventude do Governo de Rocha Vieira, afirmou que não confirma nem desmente esta versão dos acontecimentos. “Não confirmo, não sei, pode ter acontecido”, disse ao HM. “Tivemos 12 anos para fazer uma transição e, evidentemente, com mais tempo algumas das coisas que estavam a ser tratadas poderiam ter tido mais tempo para serem concluídas.” “O que ficou acordado foi que tínhamos 12 anos e durante esse tempo a transição foi considerada concluída, tivemos de concluir as várias tarefas que tínhamos em curso, como a formação de quadros, os arquivos, a localização de leis”, lembrou. Rangel acredita que “terão sido abordadas várias datas nas conversas”. “Depois de muitas reuniões decidiu-se que seria no dia 20 de Dezembro de 1999. Não era a questão de Portugal querer uma data e a China querer outra. Esta data resultou de um acordo que foi conseguido no decurso das negociações.” Carlos Gaspar, assessor do ex-presidente da República Jorge Sampaio, em 1999, garantiu ao HM que as datas citadas nos documentos são “meras fantasias”. “As indicações contidas nos documentos citados são meras fantasias. Desde o inicio das conversações bilaterais em 1986, Portugal indicou que não aceitava que a transferência de soberania em Macau coincidisse com a data prevista para o fim da administração britânica em Hong Kong. No mesmo sentido, a parte portuguesa conhecia perfeitamente a data do fim do século fixada nos documentos oficiais chineses e não tinha nenhuma ilusão sobre os limites da flexibilidade de Pequim nessa matéria.” “Pecados originais” Há muito que a questão dos fundos financeiros entre Macau e Portugal é discutida e foi, aliás, abordada recentemente na biografia de Jorge Sampaio, presidente da República portuguesa em 1999, em que este afirmou estar contra a criação da Fundação Jorge Álvares. Esta acabaria por ser constituída a dias da transição. Jorge Morbey recorda que “em matéria de fundações, quer a FO, quer a Fundação Jorge Álvares têm pecados originais muito graves”. “Julgo que quando se mete na política interesses de grupos ou negócios as coisas não podem ficar certas. O aparecimento da FO foi algo que perturbou bastante as relações entre Portugal e a China. Na visita que Mário Soares fez à China, nos anos 90, a China não aceitava que o presidente da FO [Carlos Monjardino] fosse na comitiva.” Contudo, Monjardino acabou por embarcar no avião. “Não sei que voltas houve na altura, tenho ideia que o embaixador de Portugal em Pequim se terá portado muito mal nos diálogos que teve com a parte chinesa.” Para o historiador, a dar aulas na Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau, o processo de entrega de Macau à China “não é coisa de que Portugal se deva orgulhar muito”. “Foi a sabedoria milenar da China que nos levou a portarmo-nos bem na questão da transferência de soberania de Macau, embora tenham sido criadas fundações de uma forma menos ortodoxa”, defendeu. “Feitas as contas, e a esta distância, não valeu a pena esse grão de areia nas relações entre Portugal e a China, tendo em conta aquilo que a FO fez e faz por Macau. Também me parece que houve uma certa imprudência na criação da Fundação Jorge Álvares, a dias de Portugal transferir a soberania”, acrescentou o académico. A visão de Camões Tam Em declarações ao Hong Kong Free Press, o académico Camões Tam, que escreveu a sua tese de doutoramento sobre a transição de Macau, disse que Portugal apenas levantou a possibilidade da transferência se fazer em 2007, “uma vez que se celebravam o 450º aniversário da presença portuguesa”, lê-se na notícia. “Desde [as negociações de 1986] até 1987, quando a Declaração Conjunta foi assinada, as informações relativas a Macau ficaram seladas…esta informação tornada pública pode não ser válida, uma vez que não é informação em primeira mão”, apontou. Camões Tam lembrou que os funcionários do consulado-geral dos Estados Unidos em Hong Kong não dominavam o português nem o cantonês, o que os pode ter levado a erradas interpretações. “Donald Tsang pode ter citado fontes de forma incorrecta, e David Akers-Jones pode ter ouvido mal”, rematou. As várias datas Além de 2007, terão sido discutidas várias outras possibilidades. Camões Tam referiu ao Hong Kong Free Press que os chineses queriam que a transição de Macau se fizesse em 1997, tal como Hong Kong, mas os portugueses recusaram. “Portugal disse que nunca invadiu a China, que pagaram uma renda anual e que tentaram devolver Macau duas vezes mas que nunca foi aceite. Eles teriam devolvido a soberania de Macau logo em 1985, quando as negociações começaram, mas isso assustou o lado dos chineses”, explicou Tam. Morbey recorda que o presidente da República Ramalho Eanes, numa visita à China nesse ano, terá lançado os dados mais depressa do que os chineses esperavam. “A China contava que, no seu devido tempo, iriam colocar a questão de Macau na agenda para ser negociada.” Camões Tam adiantou também que Portugal tentou devolver o território em 1975 e 1977, após a revolução do 25 de Abril, uma tese também defendida por Jorge Morbey. O que falhou? A existência de quezílias políticas. “É preciso ter em conta de que o Partido Comunista Português (PCP) era de obediência soviética, e o comunismo chinês era alérgico ao comunismo soviético do tempo de Estaline. A última coisa que o Partido Comunista Chinês queria para Macau era negociar com o PCP. Isso complicava bastante o programa do doutor Cunhal”, concluiu Morbey. Num país que, após o 25 de Abril, “parecia um manicómio sem psiquiatras”, as colónias portuguesas, como Cabo Verde, Angola ou Guiné-Bissau “foram sendo entregues aos partidos apoiados pela URSS”. Em Macau, assinou-se o Estatuto Orgânico, ainda o Conselho da Revolução governava em Portugal, e prolongou-se a transição. “Garcia Leandro fez o que pôde para equilibrar a situação em Macau. Esse estatuto foi o empenho de Garcia Leandro.” Finalmente, a cerimónia de transferência de soberania de Macau realizou-se no dia do último solstício do milénio. Se é que isso quer dizer alguma coisa. Notícia actualizada em relação à versão impressa: inserção do comentário de Carlos Gaspar, que respondeu ao HM depois do fecho da edição
Andreia Sofia Silva Eventos MancheteManuel da Silva Mendes | Clube Militar recorda legado artístico [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s 150 anos do nascimento de Manuel da Silva Mendes vão ser hoje recordados com uma palestra proferida por António Conceição Júnior no Clube Militar. Das inúmeras facetas do advogado e intelectual que viveu em Macau nas primeiras décadas do século XX, Conceição Júnior vai falar do seu legado artístico. Deixou Vila Nova de Famalicão e chegou a Macau em 1901, tendo morrido no território já na década de 30 do século XX. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, como era comum à época, e aqui foi advogado, intelectual, presidente do Leal Senado. Manuel da Silva Mendes nasceu há 150 anos e o seu contributo para o território será hoje recordado por António Conceição Júnior com uma palestra no Clube Militar. Das inúmeras facetas de Silva Mendes, o artista macaense optou por abordar o seu legado artístico. “Irei destacar a sua colecção de arte. Silva Mendes foi um intelectual multifacetado e, como tal, um personagem de grande interesse. Contudo, convivi mais de perto com o seu legado artístico e é dele que irei falar”, contou António Conceição Júnior ao HM. Mais do que ser uma figura que interveio intelectualmente em Macau, Silva Mendes foi, aos olhos de Conceição Júnior, “um cidadão interventivo, no sentido de um homem verdadeiramente livre”. O coleccionador de arte conseguiu transpor para as páginas dos jornais da época a sua visão sobre os meios político e administrativo que vigoravam em Macau. “Para compreender como funcionava a Administração portuguesa no início do século XX em Macau, julgo ser [importante] a sua contribuição em artigos de jornais e revistas, que revelam uma acutilância, lucidez e coragem pouco comuns.” Manuel da Silva Mendes dedicou-se também a estudar partes da cultura chinesa, tendo chegado a fazer amigos junto da comunidade chinesa, como recordou António da Conceição Júnior. “Foi sobretudo um estudioso do Taoísmo e do Tao Te Qing, não descurando porém o Budismo. A sua importância enquanto cidadão que amou Macau foi a de ter cimentado diversas amizades com membros da comunidade chinesa, fazendo a ponte com o Outro, sendo nisto acompanhado por muito poucos, entre os quais José Vicente Jorge.” O advogado português foi, portanto, uma das primeiras figuras a tentar estabelecer, pela via da cultura, uma ponte entre chineses e portugueses. “Julgo que através de jornais e revistas, bem como de conferências, tentou transmitir aos seus contemporâneos a riqueza da cultura chinesa. No entanto, infelizmente, o seu exemplo não vingou verdadeiramente.” O “ressurgimento do interesse” Esta palestra acontece tempos depois da publicação da primeira biografia de Manuel da Silva Mendes, da autoria do jornalista João Botas. Na visão de António Conceição Júnior, esta e outras manifestações têm “mobilizado estudiosos de Macau”. Além disso, “o anúncio de uma reedição da Nova Colectânea de Artigos de Manuel da Silva Mendes constitui [também] um indeclinável reconhecimento do interesse que constitui, no seu todo, o legado de Manuel da Silva Mendes. Deste modo, torna-se absolutamente impossível, a meu ver, eleger uma faceta em relação a outra”. No ano em que também se celebram os 150 anos do nascimento de Camilo Pessanha, António Conceição Júnior considera que começa a existir “um ressurgimento do interesse” pelas duas personalidades. “Há um ressurgimento do interesse pelos dois, mas mais ainda pelo esquecido Silva Mendes. É um nome certamente pouco lembrado, mas creio que com o encontro em S. Miguel de Seide [em Portugal], com os trabalhos do professor António Aresta e a recente publicação a biografia por João Botas, está-se a operar o resgate de Silva Mendes”, rematou António Conceição Júnior.
João Luz VozesCamilo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om passos de chumbo, esforçados, San Ma Lo acima, persigo a custo o elusivo dragão, fustigado pela agonia da carência. O meu corpo tem-se evaporado com o tempo como uma nuvem narcótica em direcção à dissolvência, sou a rarefacção de barbas negras mas arrasto, determinado, todo peso do universo nos pés. Procuro outro santuário, enfastiado pelos dias fechado em casa. Dirijo-me para a Hospedaria On Iok Iun, onde um familiar cachimbo me retornará à comatosa paz que anseio, às pupilas minguantes e aos sonhos indefinidos. Resfastelo-me na acolhedora esteira de Tánatos, onde morrerei mais um pouco, por mais um dia. Consolo-me neste exílio físico de não me sentir presente, de ser todo ausência, de me tornar matéria sublime, etérea, fora desta terra e deste cárcere de carne que me encerra. Sinto um indomável desejo de sucumbir e ceder ao doce abismo de um lugar onírico. Por aqui me quedo, mergulhado em fantasia, esquecido do enfado das minudências tacanhas de uma cidade que desgasta mais o espírito que todos os cachimbos do Oriente. Macau é o meu túmulo, soube-o desde que atraquei. Fui desde o berço desterrado, perfilhado tardiamente, desde sempre consumido tanto por febril paixão como por profunda misantropia. Fruto do adultério, nunca me senti amado, desde que fui arrancado do útero. Joguei-me ao mar com o coração nas mãos, pronto para o alcançar o longínquo destino oriental, sedento de esquecimento, teria ido para a Lua se me fosse permitido. Cheguei a esta terra, cultivei amizades vitalícias e escrevi, quase em segredo, as paisagens do meu banimento, os hinos da minha melancolia. Deixei-me ferir pela cruel boçalidade saloia e bebi, consciente, o veneno oferecido por conterrâneos que sempre me olharam como se fosse o mais extravagante dos estrangeiros. Rapidamente deixei-me seduzir pela musicalidade tonal do mandarim, pela lisura dos lacados com que a Europa saliva desde os tempos do emproado Rei Sol, pela profusão de dourados e vermelhos. Rendi-me aos recantos abrigados da mais míope diáspora e abracei o inteiro continente chinês que se espraiava para mim depois das Portas do Cerco. Coleccionei arte, mulheres e manhãs de agonia, encontrei familiaridade no exotismo. A Macau que conheci era um pequeno pedaço de China onde reinava um conservadorismo de aldeia isolada, era como viver numa sacristia a céu aberto onde se espalhavam condenações e penitências generosamente a quem ousasse ser diferente. Macau coleccionava pequenas pessoas carregando enormes fardos morais cimentados pelo dinheiro, tornando em coros os cochichos de maledicência e acefalia analfabética. Felizmente fiz amigos que duraram a vida inteira, que floriram como o lótus deste lamacento canteiro civilizacional. Empreguei o labor que o devaneio me permitiu às minhas obrigações profissionais, emaranhei-me em burocracia enquanto a possessão estética me deu descanso. Mas esses labores apenas me trouxeram agastamento e uma imensa vontade de tudo largar. Hoje vivo na memória de poucos, como um vulto cuja sombra se projecta gigantesca no exterior e minúscula na cidade madrasta que faz por me esquecer. Tentei resistir até onde pude, para finalmente tudo largar, sempre com a imagem dela a trazer-me mares salgados aos olhos. Ana, minha perdição, meu eterno amor, minha rosa bravia florida fora da estação. Abismo de mim, vento agreste nas velas do batel do meu exílio, minha Cleópatra, minha Czarina, minha A-Má, minha Rainha. Passo dias inteiros a tentar reconstruir a tua voz. Por muitas concubinas que me tenham passado pelos lençóis, serás sempre a mais doce das negações, a ausência pela qual queimo sacramental sândalo no incensador da minha devoção. Arderei para sempre por ti. Sou teu antes de ser o quer que seja, é a ti que anseio retornar, a minha dor de ti é a única pátria que conheci.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias MancheteOs primeiros passos [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo Pessanha veio para Macau “na sequência do seu desencontro amoroso com Ana de Castro Osório”, como refere num dos iniciais estudos Daniel Pires. Contudo, já na Fotobiografia do poeta, usando como fonte Francisco de Carvalho e Rego, afirma ser Madalena Canavarro a única paixão que se lhe conhece e como o seu amor não foi correspondido. Com a alma combalida, “uma grave doença nervosa impede-o de se matricular na Faculdade de Direito, neste ano lectivo” de 1888-89. Por uma carta ao primo José Benedito percebe-se como pode esse episódio ter marcado o salto do seu génio de escritor: “nas férias grandes passadas me luziu a ideia de duas séries, uma de prosa outra de verso, que deixavam a perder de vista todos os meus feitos de até então.” Ao mesmo primo escreve, já em 1893, dizendo encontrar-se extremamente deprimido “com esta tristeza que me vem das pequeninas misérias, das restrições deprimentes da vida, e da minha própria fraqueza, que me condena a um isolamento, em que por mim próprio me vou afundando sem remédio”. Assim, se o estado de alma de Camilo Pessanha, já de si uma figura amargurada, ao chegar de Portugal com uma mágoa de amores não correspondidos, o espírito daquele início de Verão, sem chuva e de um calor sufocante, ainda mais o atormenta, ampliando-lhe a depressão. Como se não bastasse, apenas com doze dias de Macau, recebe uma carta do pai a dizer que a mãe está a falecer. Camilo entra em desespero e desabafa as suas amarguras em carta ao amigo Alberto Osório de Castro, que deposita na Repartição do Correio, a funcionar desde 12 de Janeiro de 1885 na Praia Grande, no edifício contíguo ao Hotel Hing Kee. Aí conhece o director Ricardo de Sousa que, desde 1869, acolhera na sua casa, situada na Rua do Campo, nº. 1, o serviço dos Correios. Contudo, após a mudança em 1885, passou a contar também com uma estação postal na Ilha da Taipa. No tempo de Camilo Pessanha, há outras duas caixas postais distribuídas pela cidade: uma no edifício da Junta de Fazenda e a outra na Capitania dos Portos, cem como caixas postais móveis, colocadas a bordo dos vários vapores da carreira Macau-Hong Kong, fazendo-se já o serviço de permuta das malas postais com Hong Kong e directamente com Cantão. As depressões de Pessanha poderão ter inspirado Ricardo de Sousa, que exercera pequena clínica em Hong Kong, a ser um dos sócios fundadores da Pharmacia Popular, inaugurada a 8 de Dezembro de 1895, na Rua da Praia Grande. Nessa altura, está Camilo Pessanha a deixar o Hotel Hing Kee. Em Macau não existe luz eléctrica e a noite é iluminada pelas lanternas alimentadas a azeite (azeite de luzes, de várias qualidades e por vezes também usado na comida), ou a petróleo, que começa a ser mais utilizado devido ao preço barato. Está o assunto sobre o monopólio do petróleo na ordem do dia, apesar de este ter sido entregue no dia 1 de Abril de 1894. Ainda não passara quinze dias e já os compradores se queixam dos abusos do arrematante e pedem às autoridades para o obrigar a entrar no caminho da legalidade, pois serve-se de estratagemas muito ousados para aumentar os seus lucros, sem olhar a meios. Um dos expedientes conhecidos é o de trazerem para Macau latas de petróleo sangradas em Hong Kong, que continham menos quantidade de produto do que as anteriormente vendidas ao público. Tomada de posse Quatro dias depois da chegada a Macau de Camilo Pessanha, por Portaria do Governo provincial de 14 de Abril de 1894, é nomeado Reitor do Liceu o sr. dr. José Gomes da Silva, Chefe do Serviço de Saúde desta província e professor da 6.ª cadeira (Física, Química e História Natural) do mesmo liceu que, além de médico, é um homem cultíssimo. Fica também determinado que lhe seja entregue o edifício do extinto Convento de Santo Agostinho para aí ser instalado esse estabelecimento de ensino secundário e é marcada para 16 de Abril a tomada de posse dos professores e funcionários do Liceu. No dia seguinte, Domingo, realiza-se no Seminário Diocesano um sarau literário e musical em homenagem ao Reverendo D. António Joaquim de Madeiros (desde 1884 Bispo Diocesano de Macau, que engloba Timor, fora Reitor do Seminário de S. José e virá a falecer em Timor em 7-1-1897) tendo estado presente nessa festa o Governador Horta e Costa, com sua esposa, o subalterno Governador de Timor, José Celestino da Silva, com esposa e filhas, os vereadores da Câmara, os Juízes de Direito, o Procurador dos Negócios Sínicos e Delegado da Comarca, Coronel António J. Garcia, bem como os professores do Liceu Nacional, os do Seminário e da Escola Central, Administrador Pacheco, Major Costa Campos e outras pessoas. Seis dias após chegar a Macau, a 16 de Abril, vê-se Camilo Pessanha a sair do hotel: figura franzina e esguia, aprumada e trajando a rigor para a cerimónia de tomada de posse, (com tamanho calor levaria colete e casaca?), rosto resguardado pelo chapéu e na mão (traria já a bengala?). Caminha pela Rua da Praia Grande até ao Palácio do Governo, projecto do arquitecto macaense José Agostinho Tomás de Aquino, construído em 1849 pelo Barão do Cercal e, desde o Governador Tomás de Sousa Rosa (1883-1886), sede do Governo de Macau. Conhecido por Palácio da Praia Grande, com o Governador Januário Correia de Almeida (1872-74) foi acrescentado um corpo central saliente à residência oficial dos governadores, que mais tarde veio a ser o Palácio das Repartições – Economia, Fazenda, Tribunal e Administração Civil e hoje representado pelo edifício do antigo Tribunal, em frente à estátua de Jorge Álvares – que aí apareceram, já toda esta história há muito acabara. Nesse dia o Governador Horta e Costa dá posse aos professores e funcionários do Liceu, excepto a João Pereira Vasco, um dos quatro professores do Liceu que vieram de Portugal e o único que não chegara ainda a Macau. O Dr. Gomes da Silva substitui, no Conselho Inspector de Instrução Pública, o Director da Escola Central, o Sr. Patrício José da Luz, cargo que passa a pertencer ao Reitor do Liceu. Ali se encontram, talvez pela primeira vez, o poeta Camilo Pessanha e o prosador Wenceslau de Moraes. Dois dias depois, o Echo Macaense, junto das notícias oficiais do acto, refere: “Mandou-se entregar ao Leal Senado da Câmara de Macau os edifícios, mobílias e mais pertences das escolas da instrução primária do sexo feminino e dos chineses”. O período lectivo vai já muito adiantado e, por isso, as aulas só irão começar em Setembro: “todavia os professores não estão em ociosidade, porque foram incumbidos de elaborar o regulamento, indispensável para se determinarem os diversos detalhes quanto ao ensino e as atribuições dos empregados”, como refere O Independente de 21 de Abril de 1894. Camilo Pessanha ficou de elaborar o regulamento do Liceu, que virá a ser aprovado a 14 de Agosto. Em carta de 28 de Maio, confidencia ao pai que nos primeiros três anos não deverá ter nenhuns alunos. A sua adaptação consolida-se: “Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente. A vida, por aqui, é cheia de impressões novas cada dia, ou eu me finjo que é, em um delírio artificial de grandezas, que me serviu de coragem para partir, e ainda me vai servindo para não esmorecer de todo”, segundo a transcrição de Daniel Pires que observa: “Especial ênfase deve ser dado à sua empatia pela civilização chinesa, em sincronia com outros escritores europeus do século XIX, que mistificaram o Oriente” e, ainda não decorrera um mês de estadia, já Camilo Pessanha tem um professor chinês para lhe ensinar a falar e escrever a língua usada pela maioria da população de Macau, que andará pelas 76 mil pessoas, sendo 3500 portugueses. Durante as trovoadas de Maio, os advogados da cidade mostram não ver com bons olhos Camilo Pessanha exercer aqui advocacia. A Colina de Sto. Agostinho No início, quando hospedado no Hotel Hing Kee, o percurso para o Liceu é curto, mas íngreme, até ao cimo da Colina de S. Agostinho, o pólo cultural de Macau. Camilo sai do hotel e, pela Rua da Praia Grande, segue até à Calçada de Sto. Agostinho que, numa árdua subida em linha recta, o leva após cruzar a Rua Central a chegar à Rampa de Sto. Agostinho. De um lado vislumbra o Teatro D. Pedro V, em frente encontra-se o Liceu. Outro possível trajecto seria caminhar até à esquina do edifício do Hing Kee, entrar logo na Calçada do Governador (actual P. Luís Fróis, S.J.) e subindo o morro, chegar a um cruzamento de quatro ruas. Em frente, descer pela Rua do Gonçalo leva ao Largo do Senado. Para Norte, pelo morro alonga-se a Rua da Sé, ao nível da natural muralha qual osso do dragão, a dar para o Largo da Sé, onde a Catedral e o Paço Episcopal têm por trás o jardim a prolongar-se, descaindo para a Rua Formosa e Pátio das Flores. A Rua da Sé acaba onde começa a Rua Central, no cruzamento com a Calçada do Governador e Rua do Gonçalo (hoje Beco, pois a rua ficará mutilada com a abertura de Almeida Ribeiro) e daí, início da subida, a Rua Central termina na Igreja de S. Lourenço, construída entre 1558 e 1560 e conhecida pelos chineses por Fong Son Ton. Então a principal artéria de comércio da cidade, a Rua Central, que os chineses designam por Lông Sông Cheng Cái (Rua Central do Cume do Dragão), serve de divisória: para Leste a zona rica europeia, a Baía da Praia Grande onde também já alguns chineses moram e, virada para Oeste, uma vasta área no Porto Interior aterrada, onde se concentra o Bazar chinês. As Zonas Baixas, como no livro A Diocese de Macau, compilação de D. Domingos Lam refere, “a Baía da Praia do Manduco (Há Van), ou Baía Baixa onde se encontravam as pontes-cais para os pescadores, a Praça de Ponte e Horta (Si Ta Hau, i.e., a Entrada da Alfândega) e a parte central da Rua do Visconde Paço de Arcos, onde ficavam as pontes-cais para os vapores que ligavam Macau a Hong-Kong, Guangzhou (Cantão) e outros portos no Rio das Pérolas”. Nesse percurso, ainda sem horário para chegar ao Liceu, a atenção de Pessanha distraí-se no exotismo e diversidade, encontrada igualmente por Adolfo Loureiro em 1883 quando escrevia: “Entrei em muitas boticas, como ali se chamam as lojas e casas de comércio, para fazer aquisição de diversos objectos, papel, fatos brancos de linho ou de seda…”. O interesse de Pessanha pela arte chinesa poderá ter surgido nessas lojas de parses, muçulmanos, cristãos e chineses, com um comércio de produtos a captar-lhe a atenção, pois até então, muitos deles nunca os vira. Assim, com ligeiras mudanças às impressões de Adolfo Loureiro sobre o burgo macaense, onze anos depois, Camilo Pessanha encontra ainda os chineses a trabalhar ao domingo e “nus da cintura para cima, se entregavam com ardor aos trabalhos da sua profissão, tomando de vez em quando a sua taça de chá. Pelas ruas encontrava-se muita gente, mas quase tudo chineses, que se parecem todos e vestem quase da mesma forma. Os europeus eram em pequeno número e trajando quase todos uniformes militares. O nosso militarismo manifestava-se ali pela farda, pelas fortalezas, pelas sentinelas, e pelos toques de corneta. Parecia uma verdadeira praça de guerra!”, como refere Adolfo Loureiro. Em frente à Calçada de Santo Agostinho, numa volta de 180º começa a Rampa de Santo Agostinho com degraus, que virá a ser a Calçada do Teatro e logo de frente, o antigo convento dos frades agostinianos a preparar-se, numa solução provisória, para albergar o Liceu. Chega Pessanha ao topo da colina, onde se encontra o Largo de Santo Agostinho, dividido entre as paróquias de S. Lourenço e da Sé. Ao lado do edifício do antigo Convento, a Igreja de Nossa Senhora da Graça, ambos ali edificados em 1591, tendo sido a igreja reconstruída em 1875, de onde vem a estrutura actual. No largo, Pessanha pode apreciar o Teatro D. Pedro V, cujo risco do projecto e a direcção da obra iniciada a 1859 é de Pedro Germano Marques, sendo a fachada, projectada pelo Barão do Cercal e edificada entre os anos 1873 e 1879. O Conde de Arnoso, nas Jornadas pelo Mundo, referiu-se ao Teatro D. Pedro V, indicando que em 1887 era uma pequena mas elegante sala de espectáculos, onde os europeus tinham instalado o Clube União. Havia ainda um prédio, pertença desde 1872 de Francisco Manuel da Cunha e cujo registo o dava no Campo de Santo Agostinho, conhecido por Horta Superior, situado a Leste do Teatro, que Luís Gonzaga Gomes questionará se não seria a actual entrada do Clube. O Clube União, fundado para organizar festas no teatro, teve os estatutos elaborados pelo seu presidente, Pedro Nolasco da Silva, aprovados por portaria de 13 de Abril de 1887. Mais tarde, sem dinheiro para festas, a direcção do Clube União pretendeu hipotecar o edifício do Teatro, mas os sócios fundadores tal não permitiram, o que os levou a criar uma nova Associação, a dos Proprietários do Teatro D. Pedro V, enquanto os outros membros formaram a Associação do Clube União. Pessanha terá comentado ainda no salão do Hing Kee a subdivisão do Club União em duas Associações distintas, pois esta só é aprovada em 1896. Já em 1902, durante uma festa dançante, um tenente porta-se indignamente e, ao ofender a Sra. Canavarro, levanta um tal problema que se fecha o União e surge o Clube Macau. Na vertente do Mato Mofino, encontra-se o Seminário de S. José, fundado em 1728 pelos Jesuítas, com a função de preparar missionários para a China e então a albergar também o secundário da Escola Comercial; a casa de Sir Robert Ho Tung a ser (em 1894) construída (actual Biblioteca) e a antiga casa da missão espanhola, nessa altura Procuradoria da Missão Dominicana Espanhola e hoje a Casa Ricci, onde se encontra a Caritas. Após as aulas, Camilo Pessanha tem três vias para se aventurar pela cidade. Voltar à Rampa de Santo Agostinho e pela Rua Central seguindo para Sul passar à Colina do Bom Jesus e ir até à Penha ou, descendo pela Calçada de Sto. Agostinho, desmbocar na Praia Grande, junto ao Palácio do Governo. Se, à saída do Liceu virar para a direita, encontra a Rua dos Cules, por onde entra no Bazar chinês. Já pela Rua do Tronco Velho, (nome ligado à prisão existente até 1754 numa casa ao lado do Convento de St. Agostinho), logo à entrada apresenta-se um edifício que, mais tarde reconstruído, albergará a Escola Comercial, actual sede do Banco Delta Ásia. Descendo-a, entronca com a Rua da Alfândega, entra na Rua da Cadeia, (que em 1937 receberá o nome de Rua Dr. Soares), para chegar ao centro municipal da cidade, o Largo do Senado.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA viagem de Camilo Pessanha até Macau Camilo Pessanha chegou pela primeira vez a Macau no dia 10 de Abril de 1894 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo de Almeida Pessanha, em Coimbra onde nascera, formou-se em Direito em 1892 e após um breve período de advocacia em Óbidos, seguiu para Macau nomeado, por Boletim Oficial de 10 de Fevereiro de 1894, professor do Liceu dessa cidade no Extremo Oriente. Fora um dos 39 professores a concurso, aberto a 19 de Agosto de 1893 pela Secretaria do Ministério da Marinha e Ultramar, para leccionar no Liceu Nacional de Macau ainda por inaugurar pois fôra fundado a 27 de Julho desse ano. No Echo Macaense de 29 de Agosto de 1893, com o título Echos da Metrópole, refere-se terem as Cortes encerrado a 15 de Julho e depois disso mandado proceder ao concurso para provimento dos lugares de professores do Liceu de Macau. O sr. Silva Bastos, secretário particular do Ministro das Obras Públicas concorreria à cadeira de História, sendo possível vir a ser nomeado secretário do mesmo liceu. Mas esta era uma notícia prematura, escreve o jornal, porquanto a escolha do ocupante desse posto dependia do corpo docente e tinha de ser aprovada pelo Governo de Lisboa, ainda sobre proposta do respectivo Governador de Macau. Desabafa o redactor: “Oxalá que na escolha dos professores não predominem os empenhos, recaindo a nomeação em indivíduos que não possuem outros merecimentos senão o de serem afilhados deste ou daquele trunfo político.” José Horta e Costa, então deputado por Macau, advogara a criação do liceu nessa cidade e José Azevedo foi informado que se Pessanha não tivesse participado numa reunião do Partido Progressista (na altura encontrava-se no poder o Partido Regenerador, mas tal não era grave já que os dois partidos tinham um pacto e governavam Portugal alternadamente sobre orientação de Inglaterra) a sua nomeação estava garantida, como conta Daniel Pires. Ainda assim conseguiu, a 18 de Dezembro, ser um dos quatro escolhidos. Com 26 anos, Camilo Pessanha parte então de Portugal, contratado como Professor do Liceu Nacional de Macau, estabelecimento de ensino que ia abrir as portas para colmatar o espaço vazio das Humanidades, num tempo em que a educação escolar apenas se destinava a preparar os jovens para o mundo do trabalho na área comercial. Outra notícia do Echo Macaense, de 29 de Agosto de 1893, refere o que se diz em Lisboa acerca do provimento do Governo de Macau, mas as informações não são concordantes pois constara há tempos que ia ser nomeado para Governador o sr. Ferreira de Almeida. No entanto, uma outra versão garantia que “este sr. vai ser nomeado para Macau, mas para dali ser transferido para Cabo Verde e ocupando o seu primeiro lugar o sr. Horta e Costa”. Este último pertencia nessa altura a uma comissão que estudava as causas da depreciação da moeda de prata na Índia e em Macau. Formularam-se quesitos respeitantes a Macau e Timor para se adoptar como unidade monetária a pataca, subsidiária em prata e cobre, sendo daí calculados os vencimentos dos funcionários públicos. Já quanto à Índia, “não se tomou resolução, aguardando-se o parecer de Inglaterra com respeito aos efeitos da crise da prata nas suas colónias ultramarinas”. A viagem, a bordo do navio espanhol Santo Domingo, iniciara-se a 19 de Fevereiro de 1894. Depois de cinco dias em Barcelona, o navio levou apenas mais dois até atracar em Port-Said, no Egipto. Cruzando os 162 km do Canal do Suez (inaugurado a 17 de Novembro de 1869), desembocava agora no Mar Vermelho onde, nos umbrais do Oceano Índico, aportou em Adém (na Arábia Feliz, actual Iémen, então na dependência do Comissariado da Província Britânica da Índia). Depois atravessou o Mar Arábico até Colombo, no Sri Lanka, onde permaneceu apenas por duas horas. O vapor espanhol seguiu então pelo Estreito de Malaca até Singapura e daí para Manila. Camilo Pessanha chegou a Macau no dia 10 de Abril de 1894, mas será pela viagem feita em Janeiro desse ano pelo novo Procurador dos Negócios Sínicos, Álvaro Maria Fornelos, que conseguimos desfazer a dúvida sobre o percurso dos barcos desde Manila até Macau: iam primeiro a Hong Kong e, noutra embarcação, seguia-se até ao porto de Macau, que sofria de um adiantado estado de assoreamento. Com apenas cinquenta anos, Hong Kong era já o principal porto dos vapores provenientes da Europa. Viagem de Hong Kong para Macau Camilo Pessanha, às duas da tarde de 10 de Abril de 1894, embarcara muito provavelmente no vapor Heungshan para Macau. Este barco da Hong Kong, Canton & Macau Steamer Co. Ltd., capitaneado pelo inglês William Edward Clarke, já por várias vezes ficara encalhado no Porto Interior devido ao assoreamento e por isso nos jornais da época era publicada pelo secretário da Companhia, T. Arnord, a tabela das horas de partida de Hong Kong para Macau nos meses de Maio a Agosto do referido vapor. Para se perceber o insólito e excepcional procedimento que a companhia Hong Kong & Macau Steam Boat tinha com os habitantes de Macau, o jornal político e noticioso O Independente, cujo redactor principal era José da Silva, apelava a 25 de Julho de 1891 que esta reconsiderasse a sua atitude: “Já não é pouco a elevada tarifa de passagem entre Macau e Hong Kong, uma distância de 38 milhas, por 3 patacas, se a compararmos com o mesmo preço para a passagem entre Hong Kong e Cantão, que é mais do que o duplo da distância. (…) Note-se que entre Macau e Hong Kong o principal elemento servido pela companhia é português, enquanto no outro trajecto não o é. Este tratamento diferencial é já por si só injustíssimo e repugnante. A companhia é inglesa. Como regra, paga aos seus empregados portugueses menos do que aos empregados ingleses. Se quisermos fazer sobressair esta grande diferença, basta lembrar que pagava ao seu secretário português, Costa, umas 300 patacas por mês, enquanto ao seu sucessor, o inglês Arnhold, que não vale mais do que valia o Sr. Costa, paga 700 patacas mensalmente. Assim a poderosa companhia quando paga a um português, paga menos, quando recebe de um português, exige mais, com a circunstância agravante de que ela sabe muito bem, até pelos jornais da colónia, onde tem a sua sede, que se fartam de o dizer que os portugueses estão pobres. É talvez por isso que os explora, porque, em geral, é à custa dos desgraçados e infelizes que os avarentos argentários se opulentam. Sobre esta injustíssima exploração lembrou-se ainda de proibir aos seus empregados o encargo de pequenas encomendas, como é uso fazer-se em todos os navios mercantes que traficam na China, para cobrar, ela, em seu proveito, uns 10 avos por cada pequeno pacote. Ainda neste caso foi só em Macau e portanto, e especialmente, no elemento português que a companhia quis acertar, o que é sobre maneira revoltante. (Não esquecer que os mais antigos aliados de Portugal, os ingleses em 11 de Janeiro de 1890 tinham-lhe feito um Ultimatum, o que provocara um protesto nacional pelo roubo das terras africanas entre Angola e Moçambique.) Não pedimos aos directores portugueses, que há na companhia, que exerçam a sua influência a fim de que se acabe com este procedimento injusto e até vexatório, porque bem sabemos que, em se tratando dos seus compatriotas, são aqueles senhores directores lusitanos os primeiros a atacá-los e amesquinhá-los…” Macau à vista Pessanha mergulha nas primeiras imagens de Macau: são de montes e são de praias que, num iniciático momento, se misturam, pois ainda desconhece os nomes do que avista do barco ao contornar a península. Mais tarde saberia o nome daqueles lugares e assim, apresentando a primeira visão, apareceu-lhe, ao passar pela Enseada das Portas do Cerco, a Praia da Areia Preta, então usada para piqueniques pela nata da sociedade macaense. Uma escondida e pequena ilha demarcava-se, enquanto o barco seguia a Sul e se postava o forte edificado, em 19 de Fevereiro de 1852, na Colina de D. Maria II, sobranceiro à Praia de Cacilhas. Vagueando o olhar e terminada a praia, situada na base do Ramal dos Mouros, dava agora pelo Monte da Guia e, sempre a trepar, até à parte mais alta do cume, dentro da Fortaleza depara com a plataforma onde um provisório farol de madeira aproveita o antigo aparelho de iluminação, enquanto espera ser um dia reconstruído e retomar a sua traça original. Em baixo, sob a Praia da Guia, a Chácara do Leitão, onde por vezes Pessanha, na companhia do proprietário, Francisco Filipe Leitão, haveria de espairecer. Levantando os olhos, no alto da Colina de S. Januário, observa o Hospital Militar Conde de S. Januário, inquilino recente a ocupar o lugar do Baluarte de S. Jerónimo, construído por volta de 1622 pela muralha proveniente da Fortaleza do Monte e que nesse local fazia uma mudança da trajectória para Sul. Então já demolido, restava parte da muralha a descer até à Fortaleza de São Francisco (a ocupar o lugar do convento franciscano demolido em 1864), ao nível do mar. À sua frente e sobre as águas, a Bateria 1.º de Dezembro, construída em 1872 e remodelada em 1888. Continuando a estibordo, apresenta-se-lhe a belíssima baía, enfeitada de um elegante casario. Alguém aponta em direcção a um fortim, chamado de S. Pedro, erguido na altura em que se construíram as muralhas da cidade e demolido, tal como a Bateria 1.º de Dezembro, por razões urbanísticas, em 1934, sempre presentes no quotidiano das cinco estadias em Macau de Camilo Pessanha. À direita do Fortim de S. Pedro está o hotel onde se irá hospedar e, recuando um pouco, a moradia que muito mais tarde virá a ser a sua alugada residência e onde viverá até à morte. Após a passagem da Baía da Praia Grande, que termina na Fortaleza de Nossa Senhora de Bom Parto, aparece a enseada com a Praia do Tanque dos Mainatos, seguindo-se por entre penedos a Baía do Bispo, e contornando a parte Sul da península navegava o vapor bem próximo da Fortaleza da Barra. No entanto, outras fontes referem que a seguir à Baía da Praia Grande havia outras duas, a do Bom Pastor, que da curva de Bom Parto chega à ponta da Santa Sancha e na Praia do Bispo, onde os ingleses do Hotel Bela Vista nadavam, por isso reconhecida também pela formosíssima Praia da Boa Vista. Na ponta Sul da península, a Fortaleza da Barra ou de São Tiago, e à entrada da Barra do porto interior o antiquíssimo Templo de A-Má, divindade protectora dos mareantes. Por fim, antes do vapor atracar numa das três ponte-cais de madeira, surge a Praia do Tanque do Maniato. Sobe agora o barco pelo Porto Interior, um canal do Rio Oeste entre a Ilha da Lapa e a península de Macau, “por entre uma infinidade de grandes lorchas e de pequenos tankás, entre os quais se via um único vapor, o da carreira de Cantão” – observação de Adolfo Loureiro, seguramente não muito diferente da presenciada por Pessanha, que assim chega, aparentemente, são e salvo a Macau. Os companheiros de viagem Entre os perto de quatrocentos passageiros que com Camilo Pessanha viajaram no vapor Heungshan, provenientes do reino, vinham para trabalhar na colónia os senhores António Augusto de Almeida Arez, como delegado do Procurador da Coroa e Fazenda desta Comarca, e Hermano de Castro, farmacêutico, e sua Senhora. Dos nove professores de Liceu nomeados para esta província, chegavam os srs. dr. Horácio Afonso da Silva Poiares, para a 1.ª cadeira, de Língua e Literatura Portuguesa, dr. Camilo de Almeida Pessanha para a 8.ª cadeira, Filosofia Elementar, e o engenheiro civil Mateus António de Lima, para a 2.ª cadeira, Língua Francesa. Este último, pouco tempo depois seria também nomeado Condutor das Obras Públicas, após a exoneração do condutor de segunda classe, o Tenente António Mendes da Silva. Já o quarto professor do Liceu para leccionar a 7.ª cadeira, Geografia e História, João Pereira Vasco, só chegou a Macau a 12 de Maio de 1894, tomando posse dois dias depois. Os restantes cinco professores encontravam-se em Macau pois, pelo Artigo 7.º, “Os lugares de professores das 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª e 9.ª cadeiras serão providos em indivíduos, funcionários do Estado em Macau, de reconhecida aptidão para as disciplinas que hajam de professar, sendo preferidos os que tiverem já prática do magistério das mesmas disciplinas”. Viajava também com os três professores do Liceu o Cónego Francisco Pedro Gonçalves, ex-reitor do Seminário de S. José, mas este, oito dias depois, a 18 de Abril seguiu para Singapura no cargo de Superior das Missões. Após três horas de navegação, encosta o vapor no cais ponte da carreira de Hong Kong. Haveria alguém à espera de Camilo Pessanha e dos outros dois professores? É provável que sim, mas desconhecendo esse facto, pois que ninguém a isso se refere, terão sido tratados do modo como ocorreria ao comum passageiro.
Isabel Castro Entrevista MancheteJoão Guedes, jornalista e investigador: “A memória perde-se muito rapidamente” Quando chegou a Macau, a cidade era feita de segredos, um passado irresistível para João Guedes. Apaixonado por história desde cedo, porque ela apareceu no quintal da casa de infância, o jornalista é o responsável por uma palestra marcada para o próximo sábado, que marca os 12 anos da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau. O autor do único livro em português sobre as seitas no território promete outras obras para breve. Para que o passado não desapareça no vai e vem de pessoas [dropcap]S[/dropcap]ão quase 40 anos de Macau. Veio viver para cá em 1980, num contexto bastante diferente. Como é que foi a chegada? Cheguei num momento muito interessante da história de Macau, o momento em que a imprensa se começava a profissionalizar. Havia, na altura, dois jornais: a Gazeta Macaense, com um senhor que se dedicava muito ao seu jornal, o Leonel Borralho, mas não era um jornalista profissional; o outro era O Clarim, da Igreja Católica, que tinha também belíssimos colaboradores. Por outro lado, tínhamos uma rádio com um profissional, o Alberto Alecrim, mas que vivia sozinho na sua rádio. Era o director e era o resto. Tinha colaboradores que, normalmente, vinham em comissão de serviço para Macau. Gostavam de falar na rádio, de fazer programas, de pôr discos. Era assim. Cheguei no momento em que se estava a pensar fazer a televisão em Macau. A rádio deu um salto qualitativo muito importante e, por arrastamento, os jornais. “Quando nos interessamos pelos becos e pelos sítios que não conhecemos, começamos a gostar, mesmo que os becos sejam feios e a realidade seja, muitas vezes, pouco agradável” Foi uma altura em que vieram para Macau vários jornalistas profissionais. Vim eu, a Judite de Sousa, que hoje está na TVI, o José Alberto de Sousa da RTP, que faleceu há uns anos, o Fernando Maia Cerqueira, da RTP também, o Afonso Rato, que era o chefe da equipa, o Rodrigues Alves, um dos fundadores de O Jornal, que é hoje a revista Visão, e o Gonçalo César de Sá. A Rádio Macau transformou-se, de um momento para o outro, de uma emissora oficial que dava os comunicados do Governo e que punha música numa rádio normal, com noticiários de hora a hora, o que era uma coisa espantosa, nunca se tinha feito isso em Macau. Eu fui o crucificado, porque fui encarregado de ler os intercalares, fui literalmente lançado aos bichos. Tudo isto era para a criação da televisão, mas a rádio ainda ficou bastante tempo a ser dona das ondas hertzianas, porque o projecto da televisão demorou bastante tempo a ser concretizado. Houve percalços políticos, alterações de Governo. Os governadores em Macau costumavam ter um prazo de validade médio de mais ou menos dois anos. Com a mudança de Governador, não era só o ajudante de campo que mudava também – toda a Administração ia embora para Portugal e vinha um novo Governador com os chefes de repartição. Quando o PSD estava no poder, o PS vinha para cá exilado. Quando era o PS no poder, o PSD vinha exilado para cá. Finalmente, em 1984, ficaram reunidas todos as condições para a televisão poder avançar. E avançou com um projecto muito profissional a todos os níveis – técnico, da qualidade dos jornalistas, da qualidade da informação que se fazia. Foi um abanão muito grande no “status quo” de então em Macau. Foi nessa altura que se verificou uma transformação na imprensa. A Gazeta Macaense deixou de deter o monopólio das notícias da imprensa e surgiram dois jornais novos: a Tribuna de Macau e o Jornal de Macau. A Tribuna de Macau, sob a batuta de José Rocha Dinis, e o Jornal de Macau com João Fernandes, que acabou por ir embora. Deu-se então a fusão entre os dois. Ambos os jornais trouxeram equipas de redactores também profissionais. Por aqui se pode ver a profundíssima alteração que ocorreu na década de 1980 no jornalismo em Macau. De lá para cá, houve outros momentos de grandes alterações na comunicação social local. Como é que olha para o jornalismo de língua portuguesa que hoje se faz em Macau? Há muitos profissionais que vieram depois da transferência de administração, para um território que já não pertencia a Portugal e às suas extensões. Foi outra alteração tão profunda como a que acabei de referir, ou talvez ainda mais profunda. Vivi numa colónia portuguesa. Por muito que se diga que não era colónia, porque o poder económico esteve sempre na mão dos chineses, o espírito era esse. Quem mandava era Portugal. Surgiu 1999 e deu-se uma alteração do panorama que teve que ver principalmente com um factor: antigamente, a comunicação social ignorava o mundo chinês, os mais de 90 por cento da população, tratava das notícias e das análises sobre o que se passava com a comunidade ocidental que aqui vivia, com a comunidade portuguesa, que nunca ultrapassou as 10 mil pessoas. De repente, começou a tornar-se importante ouvir o deputado chinês na Assembleia Legislativa. Antes, quem ouvia os deputados chineses eram os repórteres chineses, não éramos nós que os íamos ouvir, porque quem contava politicamente eram os deputados portugueses. Aqui está uma alteração completamente radical. Hoje, Ng Kuok Cheong, Mak Soi Kun e todos esses nomes estão presentes nos diários. Isto representa a tal alteração estatutária de Macau que, de repente, passou a ser um local de emigração. O que vejo hoje é que as pessoas que vieram depois estão aqui como emigrantes. Às vezes custa-me perceber essa nova forma de estar em Macau, porque não me sinto emigrante e até posso ser considerado passadista. Mas leva-me muitas vezes a considerar a minha função de jornalista e a ter em conta a imagem do meu país. Hoje, o jornalista que está aqui, não precisa de ter isso em conta: tem em conta as regras da profissão e já lhe chega. O facto de não se sentir emigrante faz com que encare o exercício da cidadania de outra forma? Sim, talvez, porque gosto de Macau. Gosto de Macau por duas razões: primeiro, porque estou cá há muito tempo; e depois porque gosto muito de história, sempre gostei de saber o que se passava, e quando nos interessamos pelos becos e pelos sítios que não conhecemos, começamos a gostar, mesmo que os becos sejam feios e a realidade seja, muitas vezes, pouco agradável. É uma forma de estar bastante diferente da de um emigrante que está aqui, com toda a honestidade, a fazer o seu trabalho, mas que não tem quaisquer obrigações morais para com o sítio onde está. Como é que surge o interesse por história? Vem de longe. Nasce porque sou de uma aldeia do Alto Douro, muito pequenina, que hoje só já tem 22 habitantes. Lá no alto da aldeia há um monte que é um crasto antigo, romano. No meu quintal, encontravam-se muitas coisas que vinham com as enxurradas. Lembro-me que tinha uma colecção de moedas com vários sestércios romanos. Encontrei um anel árabe, várias coisas. E isso despertou-me o interesse. Andavam por ali arqueólogos da Universidade de Coimbra, que era na altura a única universidade que fazia esses estudos. E como é que esse interesse se materializou em Macau? Pouco tempo depois de cá ter chegado, apareceu-me uma pessoa que me entregou muito discretamente um documento sobre uns acontecimentos que, dizia, tinham sido terríveis aqui em Macau: os tumultos de 1922. Foi um caso grave na história de Macau porque houve uma greve geral que durou um ano, estiveram aqui os anarquistas em força a agitar as massas, houve tiroteios, os militares saíram para a rua, houve 70 mortos e mais de 200 feridos. Deram-me esse papel por acharem que daria uma boa história. Antes, esses assuntos não eram tratados, eram praticamente segredos. Olhei para aquilo: o documento que me foi entregue não era uma carta privada. Era um Boletim Oficial de 1922 que relatava os acontecimentos. Achei piada porque, na altura, em Macau era tudo secreto. Caí que nem peixe na água, porque aí comecei a investigar tudo o que era secreto. Mais secreto ainda do que 1922 – uma data tão remota que não percebia por que tinha algum grau de secretismo –, era 1966, o chamado “1-2-3”. Esse era ainda pior, ninguém falava e muito menos publicava alguma coisa sobre isso. Tudo isto me despertou para a história de Macau, que verifiquei ser muito interessante. Macau estava cheio de história, cheio de histórias, que se desconheciam, por estes preconceitos agravados pela ditadura e pelo monopólio da inteligência do clero local. O clero constituía a intelectualidade de Macau e exercia uma censura férrea a todos os níveis. Temos um exemplo muito interessante, o do Padre Teixeira. Foi o homem que escreveu sobre tudo quanto havia para escrever, mas havia determinados temas sensíveis em que não hesitava em adulterar por completo o que se passou, para se coadunar com aquilo que ele pensava ser correcto – e ele era um salazarista, um homem da extrema-direita, com todos aqueles preconceitos muito antigos, um reaccionário. Macau, apesar de já estarmos muito para lá do 25 de Abril, continuava envolto neste ambiente de censura, embora já não existisse censura. Tudo isto me impeliu a ir vasculhar, para saber quais eram as outras histórias que não sabia e que tinha obrigação de dar a conhecer. A partir daí começa também a investigar as seitas, numa altura em que não havia em português nada escrito sobre este tipo de organizações. Sim, mas pior: continua a não haver. O meu interesse pelas seitas não começa aqui, mas sim quando pertencia à Polícia Judiciária, em Portugal. Por qualquer razão, tudo quanto dizia respeito a Macau acabava por vir parar à minha secretária. Tive de começar a estudar. Ainda me lembro que o primeiro processo que me caiu era de um homem da 14 Kilates, de maneira que tive de ir ver o que era a 14 Kilates. Não encontrei nada em português porque ninguém tinha escrito sobre isso, a não ser um pequeno livro que pouco ficou na história da literatura portuguesa, de um autor de viagens chamado António Maria Bordalo. Fez aquela que, estou convencido, será a primeira novela policial escrita em português. Era sobre as seitas em Macau na sequência da explosão da Fragata D. Maria II, em 1850. Era a única coisa que existia. Depois disso, escrevi o livro “Histórias do Crime e da Política em Macau – As Seitas”, e estava à espera de abrir caminho a outros interessados. Mas não, infelizmente continua a ser o único livro sobre as seitas em Macau. Ao contrário do que previ, Macau tem mais jornalistas do que tinha antes da transição. Pode ser que algum se interesse por esse tema, porque mesmo entre gente da universidade ninguém se interessou até ao momento. O tema é demasiado sensível? Se calhar. Ou as pessoas pensam que é demasiado sensível. Eu acho que não é. É um tema cultural, como qualquer outro. Por exemplo, Sun Yat-sen, o primeiro Presidente da República da China, era um homem das seitas e nunca omitiu esse facto na sua biografia política. As seitas oscilam entre mergulharem na criminalidade comum e depois em ciclos políticos de transformação. Por isso é que são importantes. Não é um assunto tão sensível como isso. “Macau, apesar de já estarmos muito para lá do 25 de Abril, continuava envolto neste ambiente de censura, embora já não existisse censura” Nos últimos anos, tem feito muito trabalho de levantamento histórico para programas da TDM. Fazem falta mais exercícios de explicação do sítio onde estamos, até pela falta da escrita da história de Macau? O problema de Macau foi sempre a população mudar muito rapidamente, e não só a portuguesa. Se virmos as estatísticas, temos uma percentagem altíssima de pessoas que têm menos de sete anos de residência em Macau. A memória não fica preservada. Como disse, os governadores mudavam de dois em dois anos, com toda a Administração, pelo que se perdia a memória daqueles dois anos. Lembro-me de ser repórter e de chegar um Governador, anunciar que ia fazer um estudo sobre determinado assunto, e dois anos antes tinha sido feito um estudo sobre o mesmo tema. A memória perde-se muito rapidamente. Se calhar, as pessoas que agora vêm de Portugal ficarão mais de dois anos mas, de qualquer maneira, não permanecem aqui muito tempo. Quanto ao meu trabalho, porquê pequenos programas? Não pretendo fazer um compêndio da história de Macau – isso é a Universidade de Macau que deve fazer. O que pretendo é divulgá-la, da melhor forma, de maneira a que as pessoas se interessem. Quanto à feitura da história de Macau, acho que não existe uma história de Macau, de facto, mas também não sei que história se poderá fazer. A rádio, a televisão e os jornais são efémeros. Há possibilidade de passar esses apontamentos para livro? Sim, porque só depende da minha disponibilidade. Como estou na reforma, já tenho bastante mais tempo. Há muitos temas que são tratados de uma forma na rádio ou na televisão mas que, em livro, podem ser abordados de uma maneira mais profunda e elucidativa, e menos efémera. Podemos então esperar mais livros de João Guedes? Com certeza que sim. Quase 40 anos depois de ter chegado, gosta da Macau que temos? Gosto, gosto disto. Tem muitos problemas. Estou a ver a Ponte Sai Van e a quantidade de trânsito que tem. Depois a poluição. Há uma série de coisas terríveis e é preciso fazer pressão para que isto melhore. Mas, apesar disso, gosto muito de Macau e não sou nada saudosista dos tempos em que havia as casas baixinhas da Praia Grande. Gosto muito de ver essas gravuras, mas Macau não podia parar no tempo. Já teria desaparecido, obliterado por Hong Kong. Eu e quem achar que sim tem a obrigação de fazer os possíveis por corrigir estas coisas caóticas, torná-las melhor e transformar esta cidade para que dê gosto viver nela, sem tantas obras, sem tantos carros e outras coisas que não são boas.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasRiquexós, meio de transporte de Macau [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s jinrichshas surgiram em Macau na primeira metade do ano de 1883 (informação proveniente do jornal O Macaense de 12 de Julho) e dez anos mais tarde, em 1893 o assunto dos Jinrickshas estava na ordem do dia, pois o Leal Senado preparava-se para entregar a um monopólio os cerca de 280 carros de vinte proprietários então existentes. Puxado em cadenciada corrida por cules, vencida a conquista do cliente, o resto do dia era trabalhar para refeição e jogo. Envergando uma cabaia gasta, qual solas dos pés de calcarruar/percorrer travessas estreitas e íngremes ruas, faz o cule o transporte de pessoas e bens, agora ajudado por duas rodas. Quando Adolfo Loureiro chegou a Macau a 15 de Setembro de 1883, já existiam, como se pode constatar, os riquexós, os carros japoneses ou jinrickshas. No entanto, durante a sua estadia de seis meses na cidade não os menciona no seu diário, que veio a dar o livro No Oriente – De Nápoles à China. Refere sim: “Ninguém em Macau anda a pé. Há as cadeirinhas de praça, com tarifas aprovadas pela Câmara, que em Macau se apelida de Leal Senado. Uma pessoa que se preze tem, porém a sua cadeirinha, com os seus dois cules uniformizados. A minha devia ser esplêndida, com vidraças e stores, e os meus culis teriam cabaias e calções brancos, orlados de azul e branco, com os seus grandes chapéus de palha de bambu também pintados de azul e branco”. (…) “Este serviço custar-me-ia: a boa cadeirinha 10 patacas; o fardamento dos dois culis, outras 10; e o salário destes dois homens não passaria também de 10 patacas por mês, e a seco!…” No Projecto de postura municipal aprovado pelo Conselho de Província ao consultar o Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 42 de 20 de Outubro de 1883 demos conta terem os condutores de jin rik sha, ou riquexó, da praça de tirar uma licença no Senado para os conduzir, custando essa uma pataca. Tinham também de ter a tabela de preços em português e chinês e o número atribuído pela secretaria do Leal Senado afixado ou pintado num lugar visível. Na licença que se passar a cada jin rik sha será designado o local em que deverá estacionar, e a onde deverá estar colocado por modo que não cause embaraço ao trânsito público, alertando para as ruas que tenham menos de cinco metros de largura, nenhum jin rik sha, embora alugado, poderá estar postado à espera de alugado. Transitando dois em sentidos opostos, cada um dá a sua direita, mas de modo que se não toquem. Têm de se apresentar devidamente asseados, e todo o jin rik shas estando na estação, ou sendo encontrado na via pública desocupado, é obrigado a receber e transportar qualquer pessoa, que se apresentar para esse fim, a qualquer hora do dia ou da noite, pelo preço marcado na tabela, devendo circular à noite com uma lanterna acesa. O cule pode recusar transportar pessoas alcoolizadas. No Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 2 de 12 de Janeiro de 1888 refere-se às alterações do regulamento de 1883, entre elas o aumento da licença para 5 patacas e terem os jin rik shas os números escritos tanto na forma portuguesa, como em chinês. Foi neste B. Oficial que ficou proibido os jinrikshas de subirem ou descerem ladeiras ou calçadas íngremes, a não ser se forem conduzidos por dois condutores e estes devem ser homens robustos, que se devem apresentar decentemente trajados. Já quanto à tabela de preços a praticar é a mesma de 1883, isto é, pela primeira hora $0,05 e por cada meia hora mais, $0,05, mas se o percurso de uma hora for para fora da cidade o preço é de $0,10. A única diferença que existe após cinco anos é no transporte de duas pessoas, que em 1883 era aberto mediante o entendimento entre as partes e em 1888, o preço para dois condutores é o dobro. Para o Projecto do Liceu Se a palavra jinricksha não chamou a nossa atenção ao passarmos uma vista de olhos por alto aos dez anos de jornais desse período, a partir de meados de 1893 ela tornou-se uma constante, continuando pelo ano seguinte os artigos sobre esse assunto. Aqui deixamos escrito o que neles recolhemos. O semanário Luso-Chinês Echo Macaense, cujo proprietário e responsável era Francisco H. Fernandes, no dia 1 de Agosto de 1893 publica um artigo com o título Uma Explicação onde refere, “Apresentamos primeiro os motivos que levaram o Leal Senado a dar o passo que deu em monopolizar as licenças para este ramo de indústria que dá uma avultada verba para o orçamento municipal. Há também uns 4 meses o vereador Victorino propôs à câmara o monopolizar essa indústria, se assim se pode chamar, fundando-se nas seguintes razões: 1.º Os carros actuais já estão bem estragados, e a maior parte deles já deviam há muito ter sido condenados. 2.º Estando essa indústria à responsabilidade de um só indivíduo, o serviço de polícia seria mais bem feito. 3.º Os lucros serão o duplo do que actualmente. Essa moção do ilustre senhor foi posta à discussão, e, sujeita à votação, foi julgada ainda inoportuna alegando o presidente que não via grande necessidade de aumentar os impostos, e por conseguinte que ficava essa moção para ser renovada quando fosse necessário. [O Leal Senado rejeitou a proposta para a concessão do exclusivo das licenças de jinrickshas, mas autorizou a elevação da taxa das mesmas, que passou a ser de $15 anuais, o que resultava o aumento da receita que o LS tinha em vista; era Presidente o secretário-geral Alfredo Lello, sendo o Delegado interino do procurador da Coroa e Fazenda Câncio Jorge, o secretário do Conselho Francisco Filipe Leitão e faziam parte também Domingos Clemente Pacheco e Pedro Nolasco da Silva.] Passado tempo, apareceu o projecto do Liceu, a câmara foi convidada a dar um subsídio, e o Leal Senado deliberou dar 5000 patacas; foi então que o ilustre presidente o Sr. Comendador Basto, disse numa das sessões que chegou a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre os jinrickshas, e assim se fez. Nessa ocasião se espalhou por fora que o Leal Senado ia avançar as licenças dos carros jinrickshas e logo apresentou-se um requerimento pedindo a avença das referidas licenças oferecendo à câmara a quantia de $6000 por ano, por tempo de cinco anos, sob as condições que o Leal Senado apresentasse. O Leal Senado demorou ainda o despacho desse requerimento dando assim tempo para que se fizesse um estudo mais profundo sobre o pedido. Uma semana depois apresentou-se um outro requerimento dos actuais proprietários dos carros que são uns 20 indivíduos, alegando que lhes constava que a câmara ia monopolizar os carros jinrickshas e pedia que assim não fizesse, porque isso ia prejudicar os seus interesses, e alegou mais, que muitos para adquirir esses carros venderam e empenharam os seus filhos (chamo para esse período a atenção do delegado da coroa) e que conservassem os carros no statu quo; esse requerimento não chegou a ser apresentado por lhe constar que um dos vereadores sabendo desse requerimento tinha dito que o único despacho sério era mandar com visto ao ministério público.
Hoje Macau EventosExposição conta história da travessia marítima no território [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] exposição “Viagens de Outros Tempos” é uma mostra que faz a retrospectiva das ligações marítimas entre Macau e as Ilhas. Em meados do século XX, a península de Macau e as ilhas da Taipa e Coloane estavam separadas por mar, sendo as lanchas um importante meio de transporte entres estes pontos do território. De acordo com o Instituto Cultural, “em dias de mau tempo, vários residentes e turistas experimentaram os atrasos e suspensões temporárias do serviço, mas tais inconvenientes não impediam as pessoas de as usar”. Com o passar do tempo, este tipo de transporte tornou-se desnecessário, tendo o serviço de travessia marítima sido interrompido após a conclusão da Estrada do Istmo e da Ponte Nobre de Carvalho. “Viagens de Outros Tempos” apresenta pela primeira vez várias colecções ao público, incluindo documentos originais tais como o “Registo de Carga da Companhia de Transporte Marítimo de Passageiros Un Fat que Ligava Macau a Coloane” e o “Contrato de Locação de Lanchas a Motor”. A exposição integra ainda fotografias, bilhetes, jornais e publicações comemorativas relativas às lanchas que faziam a travessia entre Macau e as Ilhas. Faz também parte desta mostra pioneira a apresentação de “A Evolução da Topografia de Macau”. Feita através de um ecrã, a iniciativa explora as linhas costeiras do território e as rotas das lanchas de diferentes épocas. Outros horizontes Paralelamente são exibidos vídeos de entrevistas a residentes que recordam as viagens que fizeram. Porque o tempo não pára e a tecnologia pode ser aliada da história, o espaço de exposição tem reservada a possibilidade de experimentar um passeio de lancha virtual em 3D, baseado no modelo da “Kuong Kong”. Por outro lado, o evento tem ambições académicas. Tendo uma componente de conhecimento em que são reflectidas as transformações sociais que se deram no território durante o período abordado, a ideia da organização é “disponibilizar material para futuros estudos sobre tráfego marítimo. “Viagens de Outros Tempos” está patente ao público até 5 de Outubro, na Casa de Nostalgia das Casas da Taipa.
Andreia Sofia Silva Manchete Sociedade25 de Abril | Data é celebrada com a realização de três jantares [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]elebrar Abril em Macau continua a ser uma realidade. A data que marca o fim do Estado Novo e o começo da democracia em Portugal é todos os anos lembrada com a realização de várias actividades, e este ano não é excepção. Grupos diferentes compostos por membros da comunidade portuguesa promovem hoje três jantares de celebração do 25 de Abril, sendo que não há o objectivo de politização desses encontros. “Havendo três jantares, há sempre o risco de poder ser interpretado como sendo actividades divisionistas. Mas essa não é a minha leitura”, começa por dizer João Pedro Góis, organizador de um convívio na zona do NAPE. “Há diversos grupos de pessoas que, por comodidade ou maior aproximação, acabam por organizar jantares distintos. Mas não são contrários, nem contraditórios. Todos eles têm a mesma missão, que é celebrar a liberdade. Não me parece grave haver mais do que um jantar, porque isso significa que, em diversos focos e espaços, há pessoas a celebrar esta data”, contou ao HM. João Pedro Góis costuma organizar todos os anos um jantar via Facebook, convidando o círculo de pessoas que conhece. Ainda assim, aponta, “este jantar não é institucional, mas sim transversal, aberto a todos os que gostam da liberdade, sejam de direita, esquerda, católicos ou monárquicos”. Também Tiago Pereira partilha do mesmo pensamento. É secretário-coordenador do Partido Socialista em Macau, mas não é nessa qualidade que ajuda a organizar o jantar que decorre hoje no Clube Militar. “Este é um jantar informal, uma festa, no fundo. Vamos ter o convívio com música e poesia, até porque o lema do jantar é ‘traz um poema e um amigo também’”, contou ao HM. “Queremos mesmo que seja um jantar em que esteja presente o espírito de Abril. O jantar está a ser organizado por um grupo de cidadãos de diferentes cores partidárias e que resolveram celebrar o 25 de Abril à sua maneira”, acrescentou Tiago Pereira. A Casa de Portugal em Macau organiza o jantar habitual. Amélia António, presidente da associação, fala da importância de celebrar o 25 de Abril. “É uma data em que prestamos homenagem aos que lutaram para que o país se tornasse mais alegre e democrático. Estamos também a lembrar às nossas gerações que é preciso estar sempre atento e defender esses valores.” Comunidade atenta Mesmo à distância, a comunidade portuguesa em Macau nunca deixou de celebrar o 25 de Abril. António Katchi, jurista, lembra os habituais jantares e as actividades da Escola Portuguesa de Macau, a título de exemplo. “Tem havido iniciativas importantes e, às vezes, vêm aqui personalidades a convite, ou são exibidos filmes. Penso que o facto de aqui não ser feriado diminui a presença de pessoas nessas actividades. Mas, de qualquer modo, nunca foi esquecido”, observou. Para Amélia António, “há pessoas que se mantém indiferentes à data, mas há muita gente que reconhece a sua importância e a comemora com grande empenho”. “Graças ao 25 de Abril, toda a gente pode ter as suas opções e fazer as suas escolhas, e comemorar ou não conforme os seus sentimentos e convicções”, disse ainda a presidente da Casa de Portugal em Macau. João Pedro Góis acredita que “a globalidade da comunidade portuguesa residente em Macau celebra esta data e considera-a importante”. Já Tiago Pereira destaca a importância do 25 de Abril ser celebrado no mundo inteiro. “Independentemente de estarmos em Macau, o 25 de Abril ganha uma importância maior visto estarmos a assistir ao crescimento do populismo e de movimento segregacionistas na Europa. Não é o caso em Portugal, mas temos visto os partidos de extrema direita a ganharem força”, concluiu.
António Conceição Júnior Entrevista MancheteIsabel Machado e a escrita histórica: “Há em Macau uma constância surpreendente” Isabel Machado não é uma estranha a Macau. Muito pelo contrário, aqui trabalhou na TDM entre 1989 e 2000, tendo sido igualmente professora de português no ensino secundário e de português como língua estrangeira, em Lisboa Regressou a Portugal no final de 2000. Depois de oito anos a trabalhar no Canal Parlamento, na Assembleia da República, em 2012 lançou o seu primeiro romance histórico “ISABEL I DE INGLATERRA E O SEU MÉDICO PORTUGUÊS”. Seguiu-se “VITÓRIA DE INGLATERRA, A RAINHA QUE AMOU E AMEAÇOU PORTUGAL”. Sempre na mesma editora, Isabel lançou o seu terceiro romance histórico, “CONSTANÇA, A PRINCESA TRAÍDA POR PEDRO E INÊS”, em 2015 e, recentemente, a sua última obra, “A RAINHA SANTA”. Pelas redes sociais pude aperceber-me do primeiro, depois segui o percurso do segundo e, finalmente, comprei o terceiro cujo conteúdo saboreei. Na sua breve visita à RAEM, foi possível conversarmos sobre alguns aspectos do seu percurso como autora de romances históricos. [dropcap]Q[/dropcap]uais as suas impressões de Macau depois de 10 anos de ausência? As minhas impressões de Macau são sempre, em primeiro lugar, emotivas. Desta vez não foi diferente. A estranheza pelo excesso de construção, de gente nas ruas ou de ruído foi muito rapidamente subjugada pelo encanto de voltar a casa, é sempre um voltar a casa, do odor característico e de que sempre gostei, da textura. Macau é, para mim, uma sensação física de textura, que é boa porque é familiar, mesmo que não goste nada da humidade… Sobrepõem-se muito rapidamente as sensações boas, as recordações maravilhosas prolongadas no presente porque tudo mudou mas há em Macau uma constância surpreendente também, pelo menos no mundo português de Macau. E há os amigos que são o melhor de tudo. É por eles que voltarei sempre. São as pessoas e o que vivemos com elas que fazem os sítios e as memórias e o mais emocionante do regresso é senti-los aqui, no mesmo sítio onde estavam há 10 anos, isto é, sem que o tempo beliscasse a nossa intimidade, a cumplicidade que vivemos juntos num tempo muito marcante. A Isabel Machado começou por chamar a atenção de quase todos os telespectadores da TDM pela sua beleza física. Porém o tempo deu a conhecer uma mulher sensível, delicada e inteligente. Sente que a beleza física pode ser um anátema? Pode. Porque há uma pré-avaliação que, idealmente, nunca deveria ser feita sobre os outros. E essa avaliação imediata, que se sobrepõe a qualquer critério racional sobre a pessoa em causa, é, muitas vezes, injusta e preconceituosa. Quem é, num primeiro momento, avaliado pela aparência tem sempre de provar mais do que os outros. Mas, claro que não é tudo mau. A beleza também pode abrir portas. Como é lidar com o êxito, com os sucessivos lançamentos? Já estão na calha outros romances? Não sei se posso chamar êxito. É muito importante para mim que o que escrevo chegue às pessoas, nunca me esqueço que estou a contar uma história e isso é que é uma sensação extraordinária: saber que vamos partilhar muitas horas de muitas vidas de que não sabemos nada, mas a quem podemos levar encanto, conhecimento, desfrute, alheamento dos problemas ou das tragédias que as afligem. Os leitores escrevem-me coisas muito bonitas. Eu gosto de críticas construtivas também, mas de tudo o que já me disseram o que mais me emocionou foi uma carta escrita à mão, enviada por uma jovem, aluna de Mestrado de Literatura, que me disse: os seus livros curam. Isto abalou-me profundamente. Esta jovem tinha estado com um problema grave, internada durante muito tempo e, por acaso, foi um dos meus livros que a acompanhou na fase mais crítica. Saber que aquela história lhe levou esperança ou a fez afastar-se da gravidade da sua situação durante umas semanas foi uma coisa que nunca esquecerei. Sim, já comecei a trabalhar num novo livro, não necessariamente um romance, desta vez… Como surgiu na sua escrita o romance histórico e quanto de investigação cabe em cada obra e quanto de criação nela se incorpora? Surgiu por acaso, como quase tudo tem acontecido na minha vida. Através de um amigo de há muitos anos, recebi um desafio de uma editora, A Esfera dos Livros, para fazer um romance histórico sobre um tema da minha escola. Disse logo que sim. Sempre gostei de escrever, a minha área de formação é a literatura não o jornalismo, ao contrário do que muitas pessoas pensam, sempre adorei História também e achei imediatamente que me sentiria bem naquele registo. Mas foi brutal. Chegava a acordar sobressaltada a meio da noite a pensar na loucura em que em tinha metido e isto só passou a partir do terceiro romance! A investigação é fundamental e é sempre a primeira parte do trabalho, embora nunca a abandone totalmente, mesmo quando já estou em pleno na escrita. Passo meses inteiros a estudar, a pesquisar documentos, cartas, se as houver, livros, testamentos, tudo é importante. Para ser credível, a ficção histórica tem de estar assente numa boa pesquisa e não estou a falar apenas dos factos. Falo de tudo. Dos costumes, da alimentação, do vestuário, do mobiliário, da linguagem… A partir daí, construo a ficção, seguindo a estrutura que estabeleci, o fio condutor que quero dar ao romance. No fundo, segundo a minha história dentro da História. Romance, em português, significa ficção e o romance histórico deve ser, acima de tudo, ficção. Por isso, o espaço para a criação é imenso, inesgotável, sem freio, o que é maravilhoso. No entanto, gosto de respeitar a História e tenho imenso cuidado com isso. É notório que nos seus livros existe uma decidida preferência por personagens femininas. Esta escolha pode significar também o que se vem designando como escrita no feminino? Nunca tenho uma resposta convicta para essa pergunta. Não sei se a escolha pode significar exactamente isso, é certo que o mundo feminino é-me, naturalmente, menos enigmático…Tenho optado por personagens femininas mas isso não quer dizer que rejeite a ideia de ter uma personagem principal masculina, aliás já tive. No meu primeiro romance, a minha escolha recaiu numa mulher que eu sempre admirei, Isabel I Inglaterra, e nas suas ligações com Portugal na época na perda da independência, mas tinha como segunda figura, uma segunda figura muito importante, um homem, um médico judeu português fugido à Inquisição e que acabou na corte de Isabel I, como médico e espião. Esta pessoa existiu, não há quase nada sobre ele, teve uma vida fascinante e trágica, e quase metade do livro é na pele deste português praticamente desconhecido em Portugal, Rodrigo Lopes. Há quem diga que o meu romance mais feminino é Constança… Não sei, prefiro deixar essa avaliação para os leitores. Macau poderá ser cenário para um próximo romance? Haverá alguém aqui nascido ou radicado que a possa motivar a criar um personagem? Claro que pode, mas não é ainda o próximo! Há muitos aspectos da História de Macau que me seduziriam para escrever um romance. E pessoas aqui nascidas também.
João Luz Entrevista MancheteCelina Veiga de Oliveira, historiadora: “Aqui ainda se respira um aroma português” Viveu quase 20 anos em Macau e, quando regressou a Portugal, Celina Veiga de Oliveira levou o Oriente consigo. A historiadora guiou o HM por três séculos do “ténue equilíbrio” das relações sino-portuguesas, que culminam nos dias de hoje. Traz na bagagem um livro sobre uma figura histórica de Macau, intitulado “Carlos D’Assumpção – Um Homem de Valor”, que apresenta no Albergue SCM no próximo sábado [dropcap]P[/dropcap]rivou de perto com Carlos D’Assumpção. Descobriu alguma coisa nova sobre o homem durante a pesquisa para o livro? Esta pesquisa já foi feita há muito tempo. Conheci muito bem o Dr. Assumpção, ele morreu em 1992, eu cheguei cá em 1980 e nesse período de 12 anos ele era, sem dúvida alguma, a figura mais prestigiada de Macau. Era presidente da Assembleia Legislativa. Era um senhor, ao estilo daqueles conservadores britânicos, sempre muito bem vestido. Uma pessoa muito elegante fisicamente e também de cabeça. Era um cavalheiro. Quando cá cheguei, fui professora de liceu e dei aulas ao João, o seu filho, uma pessoa pela qual tenho um afecto especial. A Dr.ª Nini Assumpção, a sua mulher, foi médica das minhas filhas desde pequeninas, isso também nos aproximou um bocado. Conheci o Dr. com alguma proximidade, frequentava a casa dele, fui a muitos jantares. Ele, normalmente, jantava tarde e gostava muito de estar rodeado de amigos. Era um grande conversador, com muito sentido de humor, apesar de ser uma figura muito respeitada. Como todos lhe tinham muito respeito, nem toda a gente pôde aperceber-se dessa faceta bem-humorada que tinha. Era uma característica da sua personalidade e uma prova da sua inteligência. Como é que Carlos Assumpção, um político conservador, viveu a década de 60 com a revolução cultural em plena ebulição aqui tão perto? Os anos 60 em Macau foram de grande turbulência. Quando foi o 1,2,3, o Dr. Assumpção ainda era novo e foi um terramoto político muito grande. Os ecos da Revolução Cultural chinesa sentiram-se cá. O Governador Nobre de Carvalho, coitado, tinha acabado de chegar, e quando uma pessoa chega a Macau é muito difícil apreender logo toda esta diversidade de ideias. O Dr. Assumpção participou nas negociações mas teve de as abandonar, porque tinha uma posição de firmeza e, provavelmente, devem ter considerado essa postura perigosa. Era necessário uma pessoa mais consensual. No entanto, o consenso, que é uma característica da personalidade do Dr. Assumpção, depois veio a manifestar-se toda a vida, até ao fim. Ele foi uma pessoa que serviu sempre de mediador entre as duas comunidades. Como explica não ter havido nessa altura, e noutras, derrame de sangue? Isto nunca foi uma colónia, a situação de Macau e Hong Kong têm um processo histórico diferente. Há uma frase, que talvez não consiga citar bem, de Franco Nogueira que diz que isto é uma espécie de condomínio. Macau sempre foi uma coisa especial, desde a altura em que cá chegámos, no século XVI. Nunca tivemos plena soberania, era sempre partilhada, houve sempre um equilíbrio ténue com alguma capacidade diplomática. O século XVIII talvez tivesse sido o período mais frágil do poder político português. Isto porque a China atravessou um período forte, com os três grandes imperadores chineses do século XVIII. Aqui havia dois pontos de poder. O poder dos mandarins de Cantão e o poder imperial, e muitas vezes esses poderes não eram, propriamente, coincidentes. Mas houve forma de ir equilibrando os pratos da balança. Tivemos sempre uns diplomatas fantásticos, os jesuítas. Muitas vezes quando Macau tinha proximidade mais directa com Pequim, isso não era muito bem visto pelos mandarins. Esta proximidade de Pequim em relação a Macau, por vezes, entrava em conflito com os interesses de Cantão. Ao contrário, se tínhamos ligações mais estreitas com Cantão, esvaziava-se um bocadinho a nossa proximidade ao Império. O século XVIII foi difícil porque sentiu-se muito o poder mandarínico, através de legislação e restrição do comércio. O porto de Macau só podia ter um contingente de 25 barcos, se algum de estragasse e fosse necessário um novo, tinha de ficar com o registo do antigo. Era tudo muito controlado. Entretanto, o cenário muda de figura. O século XIX foi diferente. Por razões conjunturais, que não têm propriamente que ver com Macau, os portugueses puderam assumir um certo controlo. Houve a Guerra do Ópio, que acabou com a derrota humilhante da China e que culminou com a cessão de Hong Kong aos britânicos. Certo é que os portugueses aqui de Macau, por estarem perto de uma ilha ocupada por europeus, sentiram algum conforto. Em caso de necessidade podiam pedir protecção. Nessa conjuntura, era preciso que Macau ficasse munido de certas condições que Hong Kong tinha, para não desaparecer completamente. Então, D. Maria II implantou o porto franco de Macau, à semelhança do porto franco de Hong Kong, e as mercadorias podiam circular. Hong Kong sugou muita da energia económica de Macau, tivemos de mudar alguma coisa. Depois veio para cá o Governador Ferreira do Amaral que resolveu aplicar o domínio, a soberania portuguesa aqui em Macau, e pagou caro por isso, tendo sido assassinado. Isso fez, outra vez, tremer a posição de Macau. Mas continuámos cá, a presença portuguesa nunca teve interrupções. Este ano é o aniversário do primeiro Tratado entre Portugal e a China sobre a situação de Macau, que legitimava uma soberania limitada. O Tratado de 1887 trouxe uma alteração do estatuto político, que nos deu um bocadinho de alívio, apesar de continuarem os problemas quanto delimitações de Macau. Entretanto, chega o século XX, a turbulência política e as guerras. O século XX foi a afirmação do Partido Comunista Chinês, mas houve sempre aqui na parte sul, sobretudo em Cantão, uma afirmação nacionalista. Os próprios jornais de Cantão falavam sempre que os estrangeiros de Macau deviam sair, que isto era território chinês. Apesar do Tratado, Macau ficou sempre a ser um foco de conflito e reivindicação. Como é possível, em plena Revolução Cultural, a China permitir um território ocupado por um país com um regime fascista? Para já porque não lhes interessava, na altura, criar outro foco de conflito. Eles são muito pragmáticos. Mas havia algo sempre latente, subliminar. Mas o pragmatismo chinês também vem de uma noção de tempo diferente. Nós, ocidentais, temos a noção de tempo diferente de um chinês, somos muito impacientes. A questão de Macau teria de ser resolvida de acordo com o tempo e o modo que eles definissem. A Revolução Cultural, claro, tinha de ter ondas de choque aqui. Nessa altura, isto tremeu de facto. Mas depois, com alguma cedência da parte do poder português, a coisa, de certa forma, apaziguou-se. Mas as pessoas lúcidas daquela altura tinham a certeza de que a isto teria de ter um estatuto diferente num futuro próximo. Era inevitável e seria irreversível. Em 1999 regressa a Portugal. Presumo que se lembre bem do momento da partida? Lembro-me perfeitamente. Trabalhei tanto naqueles últimos tempos que tinha alguma vontade de regressar a Portugal, estava um bocadinho cansada de tanto trabalho. Mas em termos emocionais foi terrível. Tive de pensar: “Tens de pôr em prática alguma lucidez oriental, vive o dia de hoje, não penses muito no que vai ser amanhã, não penses muito que tens de te ir embora e procura esconder a emoção, procura amuralhar a emoção”. Preparei-me durante meses para que nos últimos momentos a minha emoção, o meu coração, estivesse preservado de emoções, porque tinha receio da minha reacção. Preparei-me psicologicamente para esse momento. Procurei vivê-lo, sempre muito desperta, mas sem interferência emocional, que depois veio em Portugal. Lembro-me de dizer, há muitos anos, que nunca mais poderia ser só de um sítio. O nosso coração fica dividido e tem de dar afecto a Macau, mesmo depois de regressar a Portugal. Por que regressou a Portugal? Tinha lá as minhas filhas e alguns problemas familiares para resolver. Não sei se foi boa opção. Estou em Portugal mas, sem querer exagerar ou ser piegas, não há um dia que não pense em Macau. Sou membro da Sociedade de Geografia de Macau, que está dividida em comissões, e eu sou vice-presidente da comissão asiática. Estou sempre com o pezinho no Oriente, sempre. Durante 13 anos, tive uma editora, a Tágide, e os temas fulcrais, a linha editorial que prevaleceu, era sempre o Oriente. No sentido inverso, como é regressar a Macau? Regressar é sempre uma emoção. Chego e aqui e fico espantada com as coisas novas que apareceram. Havia ali na Doca dos Pescadores uma espécie de um vulcão, até achava aquilo um bocado feio. Já lá não está. Noto que aquela parte junto ao mar está em completa e em contínua actividade, com mais terrenos conquistados ao mar. A primeira vez que regressei a Macau foi em 2000, poucos meses depois ter partido. Nessa altura, senti um ambiente um bocadinho estranho, embora os meus amigos chineses me tivessem acolhido muito bem. Mas, por exemplo, ao ver a fachada do Leal Senado fiquei triste por não ver o escudo português, mas temos de compreender. O que é que podemos fazer? Não podemos estar a chorar sobre as pedras da calçada, porque isto era natural. Sente que a mudança foi assim tão grande? Houve muita coisa que a RAEM preservou. Apesar de ter mudado a ordem da toponímia mantiveram os mesmos nomes, assim como a calçada portuguesa. Aqui ainda se respira um certo aroma português. No entanto, estamos a aproximar-nos de 2049. De acordo com a Lei Básica, a língua portuguesa é uma das línguas oficiais. Neste capítulo, a realidade não é assim tão forte como aquilo que está no papel. Esperemos que o bom senso prevaleça. O povo chinês e o poder político que vem de Pequim têm mostrado bom senso e respeito. É complicado o português sobreviver, mas vamos ver, enquanto estiverem cá portugueses, jovens que queiram cá ficar, isso é muito bom. É uma maneira de se continuar a falar a língua de Camões em Macau. Isso é que é bom, gente nova! Aproveitou para matar saudades de Macau? Tive oportunidade de ir passear com amigos, alguns que nunca tinham cá estado, pela Macau que eu gosto. Sem nostalgia, também gosto de movimento. Mas aquela Macau romântica, em que ainda há partes da velha muralha que dividia a cidade cristã. Fartei-me de andar e foi uma tarde muito boa. Andámos pelos becos e ruínas dessa Macau, que ainda é a do nosso tempo. Está cá e tem um lugar muito privilegiado no coração dos portugueses.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa arte de contar uma história [dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]alter Benjamin diz que os contadores de histórias se podem dividir, fundamentalmente, em dois tipos cujas raízes são tão antigas como a própria necessidade de contar uma história: aquele que, por opção ou por destino, não tem como sair do seu sítio de origem e conta as histórias, tradições e mitos locais, e aquele que, viajando mundo fora – sendo o expoente máximo dessa figura o marinheiro – vai contando, por onde passa e, sobretudo, quando regressa de onde partiu, aquilo que viu. Já nos cruzamos de algum modo com uma destas duas figuras. Mais: cada um de nós tem, em quantidades desiguais, uma destas perspectivas de estar no e de ver o mundo. Somos, naturalmente, contadores de histórias. Estas servem o propósito de constituir um património comum de experiências, lendas e mitos que nos ligam e nos situam enquanto identidades sociais. Os gregos representavam a linha do tempo – e a marcha de um homem nela – como alguém virado para o passado que anda, inexoravelmente, em direcção ao futuro, de costas. A imagem, para além de adequada, é honesta. O futuro é o atractor universal que confere direcção – e, por isso, sentido – à caminhada. Mas é desconhecido. A única coisa a que temos acesso (ainda que o estatuto desse acesso não seja de todo claro) é o património de experiências que amealhámos. E neste património incluem-se as histórias que vivemos e que ouvimos e ambas, de certo modo, nos definem. Segundo Benjamin, a arte de contar uma história está em declínio (o texto no qual o afirma data de 1936 e chama-se “The Storyteller – Reflections on the Works of Nikolai Leskov”). A massificação da informação e do seu formato específico (o de abarcar quase tudo e de ser plausível) é o oposto daquilo que alimenta a arte de contar uma história. Como diz Benjamin, quando abrimos um jornal ao calhas, de manhã, e apesar da multiplicidade de notícias de todos os cantos do globo, a quantidade de histórias dignas de relevo é incrivelmente diminuta. Isto porque, na explicação benjaminiana, tudo quanto nos chega pela via do relato e, sobretudo, do relato noticioso, já vem acompanhado de uma explicação. E a arte de contar uma história, prossegue o autor, é a de libertar a própria história da tentação de explicá-la de alguma forma, de remover quaisquer ligações psicológicas e subjectivas entre os acontecimentos da história. Um dos autores que melhor faz isso e que me vem imediatamente à cabeça é a Flannery O’Connor. A elisão a que nos vota relativamente às motivações psicológicas das suas personagens será talvez um dispositivo pelo qual faz ressair a natureza moral das mesmas. De qualquer modo, e independentemente da razão pela qual Flannery (e os contadores de histórias, na generalidade) escolhe suprimir das histórias que contam as ligações subjectivas de carácter psicológico ou explicativo acaba por dotar a história de uma miríade de ângulos que a explicação, pela sua própria natureza, tenta obviamente reduzir a um único apenas. Numa época em que a informação se tornou o meio de transmissão de conhecimento por excelência (e que, por acréscimo, deixou de ter a verdade como fundamento axiológico) e, com isso, minou a nossa capacidade inata de trocar experiências, mirrando-a como um membro que não se exercita, era importante percebermos quais as formas que subsistem de produzir as ligações invisíveis que entretecem as estruturas sobre as quais assenta a própria noção de comunidade. Ou a solidão contemporânea deixará de ser uma metáfora simplista para passar a ser um modo de vida sem alternativas.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO macaense Albino de Paiva de Araújo na Europa [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]emos vindo a escrever sobre a história deste boémio e no último artigo tratamos já sobre uma das principais protagonistas, Blanche Lachmann, a tal Madame Paiva que em segundas núpcias casara com Albino de Paiva de Araújo, para em Paris conseguir um nome e uma dignidade equivalente à sua opulência. Falta agora apresentar o próprio Albino Francisco de Paiva de Araújo, que nasceu em Macau na freguesia de S. Lourenço a 19 de Maio de 1824 e suicidou-se em Paris em 1873. Estas são as datas referidas pelo padre Manuel Teixeira, mas Jorge Forjaz dá outras e se a de 1832 para o nascimento parece estar errada, a da morte, em 8 de Novembro de 1872, cremos ser a ajustada. No entanto, o ano de 1873 é referido pela maior parte dos autores que sobre esta história escreveram e a que Camilo Castelo Branco indica, mas mais à frente diz, “até que em 1873, li nos jornais portugueses que Paiva Araújo se suicidara em Paris”. Segundo Jorge Forjaz, o pai deste, Albino José Gonçalves Araújo nasceu no Rio de Janeiro (Candelária) em 1797 e faleceu em Macau, na freguesia da Sé, a 24 de Janeiro de 1832 (apesar de Manuel Teixeira referir 1842) e a mãe, Mariana Vicência nascera em Macau a 22 de Julho de 1802. Camilo Castelo Branco dá “uns ligeiros traços do perfil do sujeito. Paiva Araújo nascera em Macau e era filho único de um negociante rico, ali falecido por 1842. Quando o pai morreu, Paiva Araújo estava em Paris em um colégio. A viúva veio para a Europa, e para residir escolheu o Porto, onde não conhecia alguém. Mandou edificar uma casa perto da alameda da Aguardente [hoje desaparecida e que se situava no topo da rua do Bonjardim], mobilou-a com muito gosto e selecta riqueza de baixela d’ouro e prata, jarrões japoneses e porcelanas antigas. Fechou-se com o misterioso luxo de fada, sozinha, quase desconhecida de nome e de pessoa. Chamavam-lhe a Macaense. O seu nome era D. Mariana de Paiva Araújo. Sabia-se apenas que era viúva, muito rica e tinha um filho a educar em França. A casa arquitectada pelo risco burguês, trivial no Porto, era de azulejos amarelos com muitas janelinhas de estores brancos, sempre descidos. Tem um jardim com vasto portal gradeado para a rua, tufado de bosquetes de árvores exóticas e miniaturas de montanhas que punham na alma saudades das florestas do Buçaco e Senhor do Monte. Paiva Araújo não frequentou curso algum nem adquiriu noções vulgares em algum ramo de ciência. Aos dezoito anos veio para a companhia da mãe. Sobejava-lhe riqueza à mãe extremosa que dispensasse o seu filho único dos fastios de uma formatura inútil. Por 1845 apareceu Paiva Araújo no Porto curveteando garbosamente o seu cavalo árabe por aquelas sonoras calçadas. Era um galhardo rapaz trigueiro, alto, com um buço preto encaracolado nas guias, elegante, sem as farfalhices coloridas da toilette dos casquilhos seus coevos. Tinha poucas relações, e dava-se intimamente com Ricardo Browne, o árbitro da moda. Ricardo Browne era tão poderosamente iniciador que até, pelo facto de ser muito surdo, contagiou de surdez fictícia muitos rapazes em condições as mais sanitariamente fisiológicas das suas grandes orelhas. Estes rapazes, assim cavaleiros, figurinos, lovelacianos, esgrimidores, mais ou menos surdos, chamavam-se simplesmente janotas, ou em nomenclatura mais culta – dandys. Não se conhecia ainda em Portugal o peregrino vocabulário de sport, de turf, de sportman, de high-life, de sporting, de gommeux. Ignoravam-se estas inglesias e francesismos da actualidade mascavada de idiomas com que um qualquer modesto noticiarista da travessa de Cata-que-farás, 4.º andar, lado esquerdo, parece que nos está conversando num salão de Regent-Street, a marinhar com as pernas pela espalda de um carmezim, as suas emoções pessoalíssimas de Hyde-Park e Jockey-Club. O Porto e a vida reclusa de sua mãe deviam ser intoleráveis a Paiva Araújo. Browne saiu para Paris, e ele para Lisboa, onde se notabilizou facilmente pelas prodigalidades das suas despesas. Bulhão Pato, em um dos seus escritos entristecidos pela saudade daqueles tempos, fala do cavalheiro Paiva Araújo. Dava jantares aos rapazes da alta linha, a colmeia do Marrare do Chiado, parte dos quais ainda vive mais ou menos pintada; e, feito o último brinde, quebrava a louça do toast, voltando a mesa como quem ergue a tampa de um baú. Pagava generosamente o prejuízo. O seu vinho, além de reduzir os cristais a cacos, não tinha mais funestas consequências. Assim que perfez a idade legal, pediu o seu património paterno à mãe, e foi viajar. Recebeu letras no valor de cento e tantos contos. Conheceu então em Baden-Baden a deslumbrante mulher que chegara da exploração dos lords com um pecúlio que lhe permitiu construir um palácio”, segundo Camilo Castelo Branco. Jorge Forjaz dá uma achega dizendo, “Blanche Lachmann deitou as mãos a Albino Araújo e não passou muito tempo estavam a casar, a 5.6.1851, na Capela dos Irmãos da Doutrina Cristão em Passy, Paris”. E continuando com Camilo: “Casou. Se ela morresse de 72 anos, segundo o cômputo de algumas folhas francesas, teria casado aos 39 anos com o nosso compatriota. Deveria ser, portanto, extraordinária e bestificadora a formosura de uma mulher que, em tal idade, ainda viçava flores com frescor e perfume, tendo sido tão cheiradas e mexidas! O certo é que ela tinha 25 anos quando casou em segundas núpcias, 46 nas terceiras, e 58 quando morreu no seu palácio de Newdeck, de uma febre cerebral consequente a um reumatismo cardíaco. Depois de ter entesourado no seu largo peito vinte pródigos conhecidos com os patrimónios correspondentes, ainda lhe restava espaço no coração para alojar um reumatismo! Valente e elástico músculo de polaca! Paiva Araújo, casado, visitou Lisboa e a mãe, com a esposa. A polaca no Porto, no topo da fétida rua do Bomjardim, com a nostalgia de Paris!… Certas mulheres que viveram em Paris, nas máximas condições de horizontalidade, só lá podem viver”. Interrompemos a crónica de Camilo Castelo Branco que já vai longa, mas acerca da vida em Portugal desta personagem é quem melhor está documentado. Jorge Forjaz adita, “Ainda estiveram juntos em Lisboa, onde ela teve algumas dúvidas sobre o real fundamento da fortuna dele, já então seriamente abalada. Conta Pinto de Carvalho que estando no Hotel Victor em Sintra “. E concluindo com Camilo Castelo Branco, “A polaca regressou a Paris, e como o seu marido constituía um empacho aos seus embelecos e astúcias, requereu a separação e regressou ao exercício profissional do galanteio>”. Encontramo-nos agora com as personagens principais apresentadas.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO que tem a Primavera chinesa a ver com Picasso? 毕加索的山水画 Pois, realmente o que será? Vou começar por uma pessoa que quase ninguém conhece [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uo Xi 郭熙 (1020 – 1090) foi um pintor chinês shanshui que viveu durante a Dinastia Song do Norte. Era um cortesão, um literato, um pintor culto que desenvolveu um sistema incrivelmente detalhado de pinceladas distintivas. Este sistema veio a revelar-se importante para artistas que vieram depois dele. Guo X- “Árvores velhas, distância nivelada” (1080) O que é uma pintura Shanshui. As pinturas Shanshui retratam montanhas e temas aquáticos e implicam um grande rigor na criação de um equilíbrio quase místico entre uma série de requisitos complexos, a composição e a forma. Todas as pinturas shanshui devem ter três componentes básicos: Os Trilhos – Os trilhos nunca devem ser a direito. Devem ser sinuosos como um curso de água. Este truque ajuda a dar profundidade à paisagem conferindo-lhe vários planos. O trilho, ou passagem, pode ser um rio, o caminho que o ladeia, ou um raio de sol que atravessa o céu sobre o dorso da montanha. Prevalece o conceito de nunca criar padrões inorgânicos, mas sim de mimar os padrões criados pela Natureza. O Limiar – Os trilhos devem conduzir a um limiar. O limiar está lá para nos receber e para nos dar umas especiais boas vindas. O limiar pode ser uma montanha, a sua sombra projectada no solo, ou o seu recorte contra o horizonte. A ideia é que a montanha, ou o que a contorna, sejam definidos claramente. O Coração – O coração é o ponto focal da pintura e todos os elementos devem conduzir-nos a ele. O coração define o significado do quadro. Cada quadro deve ter um único ponto focal e todas as linhas desenhadas devem levar-nos directamente para lá. Uma verdadeira pintura shanshui não deve representar a paisagem que o pintor viu, mas sim a paisagem que o pintor “pensou”. Ninguém quer saber se as cores e as formas do quadro são parecidas com a realidade. A pintura shanshui vai contra as ideias feitas sobre o que um quadro deve ser. Os quadros não são uma janela aberta aos nossos olhos, são uma janela aberta à nossa mente. A pintura shanshui é um veículo para a Filosofia. Guo Xi – “Primavera Antecipada” (datada de 1072)Colecção do Museu do Palácio Nacional, Taiwan Uma das obras Shanshui mais famosas de Guo Xi é a Primavera Antecipada, datada de 1072. Nela podemos ver as técnicas inovadoras na criação de múltiplas perspectivas, que ele designava por “ângulo da totalidade”, mas que também ficou conhecida por “Perspectiva Flutuante,” uma técnica que faz deslocar o observador e o seu olhar. As montanhas de Guo e os seus cursos de água primaveris são luminosos e sedutores como um sorriso… O jardim do Templo Ditoku-ji em Quioto, construído originalmente em 1509, é uma cópia viva das pinturas de Guo Xi, inspirado na estética da Perspectiva Flutuante. Para apreciar cada canto e cada pedra do jardim, o visitante deve deslocar-se à sua volta e mudar de posição. Aqui, o jardim passou a ser um modo de vida. Muitos anos mais tarde, quando ainda estava na China e andava no Liceu, vi pela primeira vez rostos e corpos femininos de Picasso e aí compreendi, de repente, o significado do “ângulo da totalidade” de Guo Xi.
Andreia Sofia Silva Manchete Reportagem SociedadeLai Chi Vun | As histórias de uma indústria que morreu Na pequena povoação de Lai Chi Vun, em Coloane, vivem-se dias de incerteza. Os rumores são muitos e a única certeza é a de que os estaleiros não podem ser deitados abaixo de um momento para o outro. Com a primeira fase da demolição prestes a arrancar, os moradores questionam a ausência de concurso público para esse processo e garantem que, sem os estaleiros, Lai Chi Vun perde a sua alma [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara chegarmos ao lugar onde ainda cheira a mar é preciso descer umas escadas e andar no meio de casas construídas com folhas de zinco, onde os mais velhos descansam. Em Lai Chi Vun a história teima em manter-se viva através de velhas estruturas onde, outrora, foram construídas centenas de barcos por ano. Numa altura em que a primeira fase das demolições dos estaleiros de construção naval se prepara para arrancar, o HM foi conhecer as histórias de quem não quer apagar o passado. Há, pelo contrário, uma vontade de reconstruir um novo presente e futuro, com outras soluções. Para Lei Kam Seng, não resta hoje mais nada para fazer a não ser garantir a segurança dos estaleiros. Vai a casa num instante para mostrar, orgulhoso, a licença, encadernada a vermelho, que obteve para trabalhar na área. Era um adolescente quando começou uma vida de trabalho árduo. “Tenho 67 anos, mas ainda tenho o meu certificado. Já não se fazem licenças destas”, conta ao HM, enquanto mostra a sua juventude a preto e branco. O estaleiro onde trabalhou tantos anos é um dos que será demolido pelo Governo, situado logo no inicio da rua. “Há mais de 20 anos que não construo barcos, trabalhei durante 40 nesta indústria. Quando era jovem eram tempos muito bons, agora é mais duro. Estava a trabalhar, toda a minha família estava ligada a este negócio. Éramos quatro filhos e, graças à indústria da construção de barcos, conseguimos aguentar-nos.” Numa altura em que o jogo não dominava a economia, construir barcos era uma opção para muitas famílias. “Na altura esta era a indústria com melhor desenvolvimento. Quando era aprendiz, quando os barcos chegavam tínhamos de os pintar e reconstruir e pô-los de regresso ao mar. E podíamos fazer também barcos muito grandes. Só havia um casino nessa altura”, recorda Lei Kam Seng. Na pequena povoação, a agitação do dia-a-dia era muita. “A povoação foi criada para a construção dos barcos de pesca e para trazer os barcos do mar para terra [para reparações]. Cortavam-se grandes pedaços de madeira que depois eram trazidos para aqui. No tempo em que fui patrão havia muita gente a trabalhar aqui, e havia sempre alguém a fazer comida para nós”, contou Lei Kam Seng. João Pedro Ho, que mora uns metros mais à frente com a sua mulher, nunca construiu barcos mas, durante anos, esteve numa fábrica de materiais e produtos para este tipo de embarcações. Com oito ou nove anos lembra-se de ir com o pai para a vizinha aldeia de Ka-Ho, onde se faziam trabalhos de carpintaria. Desse tempo, só restam memórias. “Fazia tudo o que era necessário para os barcos. Agora estou reformado. Quando deixou de haver trabalho, reformámo-nos. Antes vivia em Macau. Comecei com 14 anos, até que tudo isto acabou”, disse. Durante a entrevista com o HM bebemos um chá verde enquanto olhamos para a frágil estrutura que permanece bem ao lado da sua casa. A mulher mostra-nos as cordas que eles próprios colocaram para segurar algumas estacas de madeira. “Há cerca de três ou quatro anos fiz queixa sobre a falta de segurança da estrutura, mas como ninguém se preocupou, decidimos colocar estas cordas como suporte.” Apesar da insegurança, João Pedro Ho não quer deixar o cantinho de uma vida. A mulher acrescenta de imediato que uma operação recente à perna, feita em Hong Kong, não o vai permitir mudar-se para outro lugar. “Disseram-nos para sair daqui, porque é perigoso [a demolição], mas se eu me mudar onde vou viver? Na rua? Não vou sair e vou ficar aqui a olhar para o que vão fazer. Vou prestar atenção.” Demolição por convite As notícias sobre o futuro da povoação e dos estaleiros chegam a Coloane a conta-gotas. Os jornais e as televisões ajudam a transmitir informações, mas muitos moradores assumem não fazer a mínima ideia do que se está a passar e do que está para vir. “A povoação foi criada para a construção dos barcos de pesca e para trazer os barcos do mar para terra [para reparações]. Cortavam-se grandes pedaços de madeira que depois eram trazidos para aqui.” LEI KAM SENG, ANTIGO CONSTRUTOR DE BARCOS Um dia, João Pedro Ho viu responsáveis de vários departamentos do Governo, como da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) e da Direcção dos Serviços para os Assuntos Marítimos e da Água (DSAMA), a inspeccionarem o estaleiro ao lado da sua casa. Como tinha dúvidas, resolveu intervir. “A maior parte das pessoas que vieram aqui não nos disse nada. Vinham aqui olhar para os estaleiros, então fui eu lá falar com eles. Não estão a ser transparentes. Naquele dia calhou eu estar aqui na rua e fui directamente falar com eles. Se não estivesse aqui a prestar atenção ninguém sabia o que se estava a passar”, explicou. Foi aí que João Pedro Ho soube que as demolições serão feitas através de um convite a uma empresa e não por concurso público. “Eles estavam a ver como iriam demolir a estrutura, e aí eu perguntei: ‘Vai haver concurso público?’ Disseram-me que não, que iria ser por convite directo, porque são necessários pelo menos três meses para preparar um concurso público, e os trabalhos têm de ser feitos antes que chegue a época dos tufões. Disseram-me que o processo seria assim para garantir a nossa segurança.” O HM tentou confirmar esta informação junto da DSAMA, bem como o nome da empresa que irá fazer a demolição, mas o organismo apenas referiu que todas as informações disponíveis constam nos comunicados de imprensa já divulgados, que não fazem nenhuma referência às informações pedidas. João Pedro Ho tirou fotografias aos rostos, guardou recortes de jornais. As dúvidas são partilhadas pela esposa e pela vizinha, que entretanto se junta à conversa. “É evidente que alguém vai fazer dinheiro com estas demolições. Se não fosse para fazer dinheiro, porque o fariam? Não há sequer concurso público para isto. Vai ser um construtor privado”, aponta. Também o antigo construtor de barcos Lei Kam Seng tem as suas queixas, que não são apenas dirigidas ao Governo. “Há muitas pessoas na associação [Associação dos Construtores de Barcos de Macau-Coloane-Taipa], mas esta deveria ser mais activa.” “A associação nunca falou connosco. Nunca foi feita uma consulta pública, nunca falaram com quem mora aqui. Não sabemos absolutamente nada. Vivemos aqui e continuamos a não saber nada”, acrescenta Lei Kam Seng. Nos diversos comunicados emitidos, a DSAMA afirma que muitos dos estaleiros não foram mantidos pelos próprios construtores dos barcos, declaração rejeitada por Lei Kam Seng. “Isso não é verdade. Deveriam deixar as pessoas investir e dar diferentes utilizações aos espaços. Se o Governo permitisse às pessoas investirem, então as pessoas iriam fazê-lo.” Este antigo construtor afirma que muitos dos que têm falado à comunicação social sobre este assunto já não fazem parte das primeiras gerações de construtores navais e que, por isso, não percebem a essência de Lai Chi Vun. “Só há uma ou outra pessoa que originalmente fez parte desta indústria, mas todos os outros são só empresários que não compreendem este lugar.” A China ganhou barcos Para João Pedro Ho, não foi só o jogo que arrastou consigo todas as outras indústrias. Os estaleiros localizados em Zhuhai, China, começaram a fabricar mais barato e com menos burocracias. “É uma pena que tudo isto tenha acabado. A partir de uma certa altura a China continuou com a sua indústria de construção de barcos. Não havia trabalho aqui, então muitos foram para a China para continuarem a sua carreira. Além de ser mais barato construir lá, o Governo de Macau manteve uma série de procedimentos que dificultavam a vinda dos barcos para aqui. Deixaram de aparecer, então não havia mais nada para fazer.” “Queria trazer os estudantes aqui para tirarem fotos e preservarem esta memória. Porque depois já não haverá nada, serão apenas terrenos.” KOU, PROFESSOR DE HISTÓRIA João Pedro Ho sabe que, actualmente, há pelo menos um estaleiro em Zhuhai onde ainda se constroem juncos de madeira. “Continuam a construir barcos em Zhuhai e há uma lista de espera. O Governo de Macau não ajuda nesse aspecto e também começou a aparecer muita sujidade no rio, muita areia. Antes o Governo não deu apoio, e antes de tantas mudanças ao nível dos solos, com as obras, era fácil mover os barcos aqui nesta zona.” O HM chegou a contactar uma das fábricas de construção de barcos na cidade chinesa, mas a promessa de retorno do contacto, com mais detalhes sobre a construção naval do lado de lá da fronteira, não chegou a concretizar-se. Por estes dias muitos têm aproveitado para visitar o local para verem de perto algo que, em breve, já não deverá existir. Foi o caso de um professor de História, de apelido Kou, que levou a sua turma a conhecer o lugar onde um dia se construíram barcos de madeira. “Este é um sítio com história e os estaleiros vão ser demolidos, então decidi vir aqui com os meus alunos”, contou ao HM, enquanto segurava um mapa que ele próprio fez da zona. “Queria trazer os estudantes aqui para tirarem fotos e preservarem esta memória. Porque depois já não haverá nada, serão apenas terrenos.” Kou é mais uma voz que está contra a decisão da Administração. “Gostava que os estaleiros fossem preservados para as próximas gerações. O Governo desenvolveu Macau e a Taipa, então poderia garantir a preservação de Coloane para as próximas gerações, mantendo um espaço verde.” João Pedro Ho não tem dúvidas. “Estas coisas devem ser mostradas às pessoas”. “A indústria de construção naval em Macau tem uma longa história, e se tudo for demolido vão destruir tudo e já não haverá mais nada”, frisa. O HM quis confirmar com a DSAMA a data certa para o arranque das primeiras demolições mas, até ao fecho desta edição, não foi obtida uma resposta. O porta-voz dos moradores de Lai Chi Vun, David Marques, acredita que os trabalhos poderão começar entre hoje ou amanhã, mas ontem à noite nenhum sinal de demolição pairava sobre a povoação. Lai Chi Vun | A história e as razões do fim da indústria Muito antes de haver jogo e ópio, houve juncos de madeira e um intenso comércio de pescas interno e além-mar. Houve cordoarias que chegaram até à Almeida Ribeiro. Hoje só resta o estaleiro de Lai Chi Vun para contar um pedaço da história da indústria naval em Macau, mas tudo começou há vários séculos. Para o investigador Luís Sá Cunha, a construção naval e as pescas constituíram um ponto fulcral da sociedade e da economia do território. “O jogo não faz parte do genoma de Macau, só a partir de certa altura. Em 2005 li uma notícia no jornal de que o último barco a ser construído nos estaleiros tinha sido lançado ao mar. Isso foi há pouco tempo! No final dos anos 90 estava tudo a funcionar”, contou ao HM. Para o investigador, o aparecimento dos casinos está longe de ser a única razão a apontar para o fim da indústria. “Não se conseguiram adaptar às inovações tecnológicas, e aí a culpa foi dos estaleiros. Porque toda a tradição chinesa vive de memória e de tradição de pai para filho, ou de mestre para discípulo. Todas as técnicas e sabedoria eram baseadas na madeira.” “Não estão a ser transparentes. Naquele dia calhou eu estar aqui na rua e fui directamente falar com eles. Se não estivesse aqui a prestar atenção ninguém sabia o que se estava a passar.” JOÃO PEDRO HO, MORADOR Luís Sá Cunha explica também que “a construção naval não tinha planos, era feita com uma grande improvisação”. “Poucos estaleiros conseguiram fazer a implementação dos motores nos barcos. Faziam tudo aqui e os motores eram montados em Hong Kong. Muitos estaleiros na Taipa e Coloane começaram a viver das reparações.” Depois de um período áureo da indústria, a partir dos finais da década de 90 tudo começa a acabar. Nessa altura havia 19 estaleiros em Macau que faziam 94 barcos por ano, sendo que nas ilhas existiam 16 estaleiros [os que ainda persistem], que faziam 150 barcos por ano. “Um número notável”, considera Luís Sá Cunha. Além do “conservadorismo” das técnicas, na zona de Lai Chi Vun começou a existir uma grande distância entre a terra e a água, o que dificultou o transporte e recolha de barcos. Mas o fim do comércio ultramarino também trouxe a crise a Lai Chi Vun. “A partir de certa altura, depois da II Guerra, houve a cessação da emigração chinesa, e já não havia exportações para os chineses ultramarinos. Houve a concorrência do comércio de Cantão. O comércio de Hong Kong, a seguir à II Guerra Mundial, teve uma emergência enorme, e começaram também eles a fabricar barcos, mais modernos.” Houve depois uma mudança da indústria para Zhuhai. “Os preços começaram a aumentar nesta zona e por isso é que foram todos para lá.” Uma construção “misteriosa” Os primeiros estaleiros começaram por aparecer na península e não nas ilhas, e já no século XVIII os mapas faziam essa referência. Os chamados “mandarins”, olheiros da China, chegaram a decretar que não se podia fazer barcos para estrangeiros. Ainda assim, “havia estaleiros que os mandarins não viam”. Por essa razão, Luís Sá Cunha defende que a “construção naval em Macau é um bocado misteriosa”. “Não houve durante a história muitos registos escritos sobre isso, mas também havia uma certa clandestinidade dos estaleiros. Estes sempre tiveram um estatuto e uma consciência de grande autonomia.” Isso acontecia pelo facto de os construtores navais dominarem uma técnica que, à época, era bastante desenvolvida. “Eram importantes, mas muitos dos serviços eram clandestinos.” A partir da década 60 do século XIX os estaleiros começam a desaparecer da península e a ir para as ilhas, devido aos planos de urbanização do governador Ferreira do Amaral. “Criou-se uma zona de epidemias, porque as aldeias não tinham qualquer higiene, as casas eram improvisadas, e as pessoas viviam em barcos que estavam sempre encostados uns aos outros. Albergava também ilegais e piratas, porque a polícia não ia lá. [Até que] entraram em vigor as novas políticas de urbanização de Macau, a partir dos anos 60 do século XIX até ao final do século.” Permaneceram as estâncias de madeira e alguns estaleiros na península, e quando Ferreira do Amaral mandou construir uma fortaleza e levar a polícia para Coloane, “os estaleiros começam a ser desviados” para as ilhas. Anos 30, época dourada Luís Sá Cunha não consegue apontar uma data concreta sobre o arranque da indústria de Lai Chi Vun, que já tinha alguns habitantes e piratas. Na década de 30 do século XX, começa a “época áurea” da indústria. “Dá-se um grande surto da construção naval em Taipa e Coloane, e um desenvolvimento da principal indústria extractiva de Macau, que era a pesca.” As emigrações dos chineses para países como a Austrália ou Estados Unidos dinamizaram o comércio e as exportações. “O peixe fresco não era o produto mais procurado, mas sim o peixe seco e as conservas.” Em 1937, “dá-se algo ainda mais importante, que dá mais força a Taipa e Coloane: passam a fazer-se ligações diárias de barcos a motor a óleo, e instala-se o telefone”. É então que, segundo o investigador, as ilhas se tornam ponto atractivo de turismo para as famílias de Macau. Nos anos 60, a península voltou a ter estaleiros junto à zona do Patane, “com melhores condições”, tendo chegado a existir um total de 40, fora dez cordoarias que se espalhavam pelas ruas. Preservar é preciso Para Luís Sá Cunha, a preservação dos estaleiros é importante para lembrar que, um dia, Macau teve uma vida socioeconómica intimamente ligada ao mar, que se traduz até pela toponímia das ruas. O investigador defende que poderia “haver um estaleiro a construir miniaturas que as pessoas poderiam comprar”. “E porque não estar lá a construir um barco, um junco pequeno, para andar nas águas com os turistas? Havia a necessidade de juntar isto tudo, a toponímia, fazer um percurso marítimo, um itinerário, com todos estes elementos e explicações”, conclui.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasBoémio macaense suicida-se em Paris [dropcap]C[/dropcap]om um tal título, penso não faltarem leitores interessados na história, hoje aqui com o seu início, mas não se apresse a concluir que tal aconteceu há pouco tempo. Não, o suicídio de Albino Francisco de Paiva de Araújo ocorreu a 8 de Novembro de 1872 e irá servir-nos para mais tarde podermos introduzir algumas famílias macaenses do século XVIII e XIX. Neste artigo, ainda não iremos focar esta personagem, que em Paris se suicidou, carregado de dívidas e rechaçado pela sua esposa, Madame Paiva. Nascera ele em Macau a 19 de Maio de 1824, segundo o Padre Manuel Teixeira, sendo filho único de um português nascido no Brasil e a mãe, proveniente de uma família rica macaense. Esta história mereceu a atenção de alguns escritores portugueses, como Camilo Castelo Branco, Bulhão Pato em ‘Memórias’, Dr. José de Campos e Sousa no opúsculo ‘O marido de Madame de Paiva’, Pinto de Carvalho em ‘Lisboa de Outros Tempos’ e do historiador Padre Manuel Teixeira, que se focou mais na mãe de Albino Francisco de Paiva de Araújo. Não faltaram ainda estrangeiros, caso de Voltaire, que levado pelo Fr., o crê frade saído da sua comunidade religiosa e lhe chama Fr. Araújo de Paiva. Também jornais estrangeiros sobre ele e a esposa escreveram fantasiosas histórias, assim como muitos são os livros que tratam acerca da vida de Mad. Paiva. Camilo Castelo Branco usou este título, Mad. Paiva, na crónica que dá início ao livro Boémia do Espírito. Pelas palavras deste grande escritor português, nascido em 1825 na antiga freguesia dos Mártires, actual Santa Maria Maior em Lisboa e se suicidou no ano de 1900 em S. Miguel de Seide, hoje freguesia de Seide, concelho de V. N. de Famalicão, ficamos a saber sobre a atenção com que foi seguindo a vida de Branca Lachmann. A tal Madame Paiva, marquesa, mais tarde, após o terceiro casamento, condessa Henckel de Donnesmark e que fora casada em segundas núpcias com Albino Francisco de Araújo. Refere Camilo, “Eu conhecia dos escritores de há vinte e cinco anos a opulência de mad. Paiva.” O facto é que Paiva de Araújo era de família rica e com esta polaca e outras como ela dissipou toda a sua fortuna Eug. Palletan na sua Nouvelle Babylone, derivando com falsa dedução a magnificência das meretrizes em sorte da corrupção de Paris, cita como exemplo a escada de onix do palácio de mad. de Paiva na praça de S. Jorge. Arséne Houssaye, em um dos tomos das Courtisanes du Monde, diz, com estas ou equivalentes palavras, que as senhoras honestas paravam deslumbradas quando viam passar no seu break mad. de Paiva, ao sol de Bois, faiscando as suas constelações de brilhantes. Ele, como era sua visita, disfarçava-se com um pseudónimo. Certo jornal conta que os seus palácios eram o confluente dos homens mais celebrados em artes e letras, velhos e moços, o bibliófilo Jacob, Emile Girardin, Theophilo Gautier, etc.. Não sei se algum destes era um dos grisalhos académicos que bebiam champanhe da tina em que ela se lavava. Não admiro. O asceta Lamennais beijava as plantas de G. Sand, e parece que ela, agradecida, descalçava as meias de seda neste acto devoto.” A madame Paiva Camilo Castelo Branco, na crónica Mad. Paiva publicada pela primeira vez no Jornal da Manhã de 13 de Julho de 1885, inicia-a, “A imprensa jornalística parisiense, menos atarefada nos assuntos grávidos da política, da indústria e da sã moral, comemorou, há dias, o trespasse de uma mad. de Paiva, marquesa de seu apelido, e em terceiras núpcias condessa Henckel de Donnesmark. Condensando a necrologia encarvoada de sujos episódios, dizem que esta dama Branca Lachmann, polaca de nascimento, deixara em Moscovo o marido, um alfaiate discreto que lá se ficou na sua terra alinhavando fundilhos de astrakan, enquanto a esposa airada, em Paris, penetrava nas opulências da vida dissoluta pela porta da miséria, que desculpa muitas dissoluções. Ligada primeiro a Herz, pianista célebre, sob a falsa estampilha de esposa, chegou a sentar-se entre as duquesas nos saraus de Luís Filipe. Depois, desvelado o segredo da sua concubinagem, foi expulsa afrontosamente dos círculos também falsamente carimbados de honestidade, e fugiu para Londres, deixando ou levando o pianista. Aqui, ameaçada por uma segunda catequese de fome, ajuntou a sua fulminante formosura um vestuário de espaventos, sentou-se langorosamente num camarote de Covent-Garden, e fez que o rio Pactolo, representado por alguns milords, lhe lambesse os pés com as suas ondas de ouro. Enquanto a onda não fazia a ressaca do costume, deixando-lhe sobre os pés as suas salsugens (N. detritos que flutuam próximo dos portos) imundas, a aventureira de New York regressou a Paris, aí por 1850, e, no ano seguinte, matrimoniou-se, já viúva do alfaiate, com um marquês da primeira fidalguia portuguesa, Fr. Araújo de Paiva, diz o Voltaire. Este marquês que pelo Fr. parece também ser egresso, suicidou-se daí a pouco, afirma outro jornal. A viúva, 40 vezes milionária, casou em terceiras núpcias com o conde Donnesmark, em 1875, ano que saiu de Paris para o seu castelo na Silésia, onde morreu, há dias, com 72 anos, dizem uns, e com 58, diz o marido.” Quem era Branca Lachmann? Com este título o Padre Manuel Teixeira refere, “O romancista encontra-se aqui de mãos dadas com o historiador. Que diz a história sobre esta aventureira? Branca Lachmann era filha bastarda do Grão-duque Constantino, da Rússia, sendo uma judia polaca. Foi favorita do Sultão de Constantinopla, espia da Alemanha e veio a casar com o alfaiate Francisco Hyacinthe Villoing. Abandonando o marido, amancebou-se com o célebre pianista Herz, começando então a frequentar a corte de Luís Filipe. Descoberta a sua mancebia, refugiou-se em Londres, onde a sua beleza fascinou os nababos britânicos, que lhe fizeram a corte, entre os quais o famoso Stanley. Tendo falecido o seu marido Francisco Villoing, Branca consorciou-se religiosamente, na capela dos Irmãos da Doutrina Cristão, em Passy, em Paris, com Albino Francisco de Paiva de Araújo, a quem ela apresentava como Marquês de Paiva. Alegava que este gentil-homem, decaído do seu primeiro esplendor de melhor aristocracia portuguesa, a procurara no Palácio de Pont Chartin. O facto é que Paiva de Araújo era de família rica e com esta polaca e outras como ela dissipou toda a sua fortuna. O casal de boémios desfez-se. Tendo obtido do Santo Ofício a anulação do seu casamento com o <Marquês> de Paiva a aventureira consorciou-se pela terceira vez com o Conde Henckel de Donnesmark, rei do cobre da Silésia.” Esperamos ter despertado a curiosidade para o próximo artigo e até lá uma boa semana. Para quem quiser aproveitar e ler o livro Boémia do Espírito (Porto, 1886) de Camilo Castelo Branco, saiba existir apenas um exemplar nas bibliotecas de Macau e esse encontra-se na do Leal Senado e pertenceu ao antigo Liceu de Macau.
João Luz Entrevista MancheteManuel Porto, professor de Direito: “O mundo nunca esteve tão bem como agora” Vivemos tempos de mudança de paradigma, tanto em termos económicos, como políticos. O HM falou com Manuel Porto, especialista em assuntos europeus e antigo eurodeputado, sobre os principais desafios que se avizinham [dropcap]M[/dropcap]acau é tida como a ponte entre a China, o mundo lusófono e a Europa, através de Portugal. Acha que esta ponte é real, que é um papel assim tão importante ou mero protocolo? Realmente, não parece ser preciso, porque nada impede que haja mesmo uma relação entre Pequim e Lisboa. Mas é bom que haja uma entidade como Macau, com a História que tem. Vale a pena lembrar que os dois países do futuro vão ser a China e a Índia. Neste momento a China ainda está a crescer 6,7 por cento ao ano, enquanto a Índia cresce 7,7 por cento. Pouca gente presta atenção a isto, mas o último país da Europa a deixar de estar na China e na Índia, as duas grandes potências do futuro, foi Portugal. A Índia tornou-se independente da Inglaterra em 1947, mas Goa, Damão e Diu só foram integrados na Índia em 1961. O caso de Macau é um caso extraordinário. Quando se deu o 25 de Abril, a ideia proposta pelo MFA era imediatamente entregar a independência de Angola, Moçambique e todos os territórios ultramarinos. Na altura, o chefe de Estado da China era um senhor chamado Mao Zedong, muito conhecido cá no sítio. Na sequência da vontade expressa por Portugal, Mao mandou um recado para Lisboa a dizer que nós saíamos quando ele quisesse. Acabámos por ficar cá mais 25 anos. Vivemos tempos interessantes, de mudança de paradigmas. Considera que estamos numa era perigosa? Há uma tendência para achar que o mundo está pior, o mundo nunca esteve tão bem como agora. Hoje não morre ninguém de fome na Índia, por exemplo. Conheço muito bem a Índia, aliás, a minha mulher é indiana, a obra da Madre Teresa de Calcutá em Bombaim foi montada na paróquia de um tio meu, um irmão do meu sogro, o tio Paulo. Vou sempre passar uma semana, ou duas, à Índia nos últimos 30 anos, desde 1987, e posso-lhe dizer que não se pode comparar a pobreza de Bombaim há 30 anos e agora. A China também teve um progresso incrível. Sei que estes dois países não são o mundo inteiro, mas, o facto é que têm um terço da população mundial. Parece que o século XXI traz uma nova ordem mundial. Sim, dentro deste quadro global estamos a entrar num mundo diferente, há muitos poderes. O mundo do século XX era relativamente simples, era um mundo tripolar economicamente. Tínhamos os Estados Unidos, a Europa no seu conjunto e o Japão. Militarmente era bipolar, com os dois grandes blocos da União Soviética e dos Estados Unidos, a Europa não contava neste âmbito. Este mundo que se avizinha será multipolar, temos de ter noção disso, não haverá uma nação prevalecente, em vez disso teremos várias, seis ou sete. Agora, o problema que se põe é dentro dos países haver um certo sentimento de rejeição dos outros. Acho que o maior problema é a xenofobia e a falta de acolhimento. Por exemplo, com a crise dos refugiados na Europa, isso era algo que não era próprio da Europa, e é talvez aquilo que mais me preocupa. Como vê a inoperância europeia em relação à crise dos refugiados? Não é drama nenhum acolher aquela gente, eles podem, perfeitamente, ser integrados. Neste plano era de esperar maior abertura dos países da Europa. Se pensarmos no caso particular dos refugiados sírios, eles são pessoas que se integram com facilidade, não são assim tão diferentes de nós, assim como as pessoas provenientes dos países todos ali da zona. Acho que Europa aí não está a andar bem e está-se a criar uma tremenda má vontade contra os refugiados. Porque, apesar de tudo, somos um continente muito rico. Enfim, sempre temos as nossas limitações, o desemprego é grande, mas está na casa dos seis, sete por cento. Ainda assim, penso que temos todas as condições para assumir uma posição de abertura. Claro que a melhor solução seria resolver o problema na origem, evitar a existência de refugiados. A Europa até tem uma história recente de integração, por exemplo, um dos êxitos da política europeia foi a forma como lidou com a emigração dos países da periferia para o centro. Algo que, praticamente, deixou de haver, começando por Portugal e Espanha. Emigraram de Portugal, entre 1960 e 1976, 1,5 milhões de pessoas, grande parte para a Europa, e houve esse acolhimento. Aí, mais uma vez, Portugal deu ao mundo um belo exemplo, não sei se na história da Humanidade há algum caso como o português de 1975, quando vieram do Ultramar português 800 mil pessoas para uma população de nove milhões. Nessa altura não havia tanto emprego como isso e esse fluxo, quase dez por cento da população, foi integrado. Portugal tem muitos méritos na história, creio que este é um deles. Como vê o crescimento do populismo na Europa? A eleição de Donald Trump e o Brexit são sinais preocupantes. O eleitorado americano e britânico não votou em função dos candidatos, ou da pergunta do referendo. Em vez disso, exprimiram através do voto um sentimento de revolta, de angústia, de mal-estar. Nesse domínio é de salientar que há um país na Europa que não permite referendos, a Alemanha. A ilustre Alemanha, que dominou a cultura europeia no século XX, teve uma experiência desastrosa, a pior que há no século XX, nascida de um referendo. Isto é horrível de se dizer, em particular para um democrata convicto, mas uma pessoa começa a ter medo quando o povo vai todo votar desta forma. Votaram para se verem livres dos emigrantes, porque não querem acolher pessoas, com um profundo sentimento xenófobo. A eleição de Donald Trump foi a mesma coisa. Como é que ele ganhou aquilo? A senhora Clinton é uma pessoa sensata, com experiência dada, fez um bom lugar na administração Obama. É preocupante. Como chegámos a este estado? Olhe, eu vivia na Inglaterra quando foi o referendo de 1975 e, na altura, o voto foi de 67 por cento a favor da integração europeia, ou seja, mais de dois terços a favor. Na altura, um discurso de um antigo primeiro-ministro inglês, Macmillann, onde falou, celebremente, do “efeito de chuveiro frio”, motivou muita gente a votar pela integração na Europa. A ideia é que o isolamento faria o Reino Unido perder competitividade mundial, mesmo face à Alemanha e a França. Ou seja, a entrada na Europa seria preponderante para estimular a economia. O problema agora voltará a ser esse. Como é que a indústria inglesa compete? Neste momento, o Reino Unido tem o maior deficit na balança de pagamentos correntes de toda a Europa, 146 mil milhões. Apesar de ter superavit nos serviços bancários, os saldos das transacções de mercadorias são um desastre. Nesse aspecto interessa à Europa estudar o êxito orçamental alemão, que tem o maior superavit do mundo, acima do chinês. Isto apesar de ter uma mão-de-obra muito cara. Poderá o ambiente de instabilidade política ser consequência de grandes desigualdades económicas? É evidente que há muita desigualdade na China, por exemplo, até porque antigamente viviam sob o signo da grande igualdade. Fui educado a sofrer por ver pobres a morrer de fome, penso que estamos muito melhores hoje em dia. Quanto às desigualdades económicas, elas são naturais, mas depois do crescimento virá o equilíbrio. Basta ver quais são os países com maior igualdade do mundo, os nórdicos europeus, que são, actualmente, os melhores países do mundo em vários indicadores socioeconómicos. Por exemplo, há uma indicação das Nações Unidas para que seja afectado ao apoio ao desenvolvimento 0,7 por cento do PIB. Ora, os únicos países do mundo que cumprem esse desiderato são os países do Norte da Europa, Suécia, Noruega, etc. Com possibilidade de ganhar, Marine Le Pen já ameaça com um referendo à permanência de França na União Europeia. Como vê esta possibilidade? Isso seria o fim da União Europeia. A Europa tem, com os seus 500 milhões de habitantes, sete por cento da população mundial, com alguns países na casa dos 400 mil habitantes, como é o caso de Luxemburgo e Malta. Se não nos unirmos como é que podemos competir no mundo do futuro? Mas deixe-lhe contar uma estória interessante. Nunca conheci a Marine Le Pen, mas fui colega do seu pai, Jean-Marie Le Pen, no Parlamento Europeu, até tínhamos gabinete no mesmo andar. Um dia estava com o meu neto em Estrasburgo, e cruzámo-nos com o Le Pen, quando íamos a passar, ele fez uma festa na cabeça do meu neto e disse: “Il est mignon, Il est mignon”, ou seja, “ele é doce, ele é um doce”. Como vê as relações que se avizinham entre os Estados Unidos e a Rússia? Confesso que tenho dificuldade em prever algo nesse aspecto porque não consigo perceber a lógica das atitudes do Sr. Trump. É muito preocupante, porque os Estados Unidos são uma potência militar impressionante. Até há pouco tempo, agora não sei, a América tinha mais potência militar que todo o resto do mundo junto. Muitas vezes disse “oxalá que o país que tem mais de metade da potência militar continue a ser uma democracia”, porque existe uma ponderação institucional, as decisão têm de passar pelo Senado. Mesmo em caso de escalada bélica, nem consigo imaginar contra quem. Não sei quem são os inimigos do Sr. Trump. Depois existe todo aquele amor ao Putin. Ter o apoio do Sr. Putin é algo que não abona a favor de ninguém. Aquele homem perpetua-se no poder, vai ficar a vida toda. Como é que é possível criar estas situações? A Rússia, em termos de população, nem é um país assim tão grande quanto isso, tem 120 milhões de habitantes, menos que o Brasil. Mas, voltando ao Donald Trump, como é que é possível um homem destes chegar a Presidente dos Estados Unidos? Ainda por cima depois de um bom Presidente, que vai ficar na história, com actos políticos históricos como, por exemplo, a abertura com Cuba.
Isabel Castro PolíticaO casaco preto [dropcap]L[/dropcap]embro-me tão bem. Estava frio, muito frio, e eu usava um casaco preto, o primeiro que comprei cá em Macau. Tinham-me dito que aqui estava sempre calor e, quando fiz a mala, só coube lá dentro o Verão. Na altura a Internet era uma coisa pequena e Macau, Macau tão longe, eram alguns textos sobre acontecimentos históricos e pouco mais, sem qualquer meteorologia. As televisões em Portugal, Portugal tão longe, mostravam ainda uma terra com uma água de tancares e tancareiras. Naquela manhã de frio, tanto frio, ouvi o hino da mãe pátria e assisti a bandeiras a subir ao vento, rostos cinzentos em vermelhos palanques, o verde RAEM, a festa sem sorrisos. As coisas oficiais não se prestam à felicidade. E eu estava ali porque me tinham dito para estar, porque estava a trabalhar, a pensar que chego sempre atrasada a tudo porque não nasci a tempo. A RAEM fazia dois anos. Eram tempos ainda de alguma incerteza, como de incertezas tinham sido alguns dos livros que se tinham publicado na antecipação de 1999. Em 2001, as incertezas eram já diferentes, conseguia perceber que eram outras, mas isto tudo era frio, mesmo quando o Verão cabia na cidade. Havia um vento agreste que soprava de algumas bocas mais dadas a esgares do que a considerações políticas de alto nível. Entretanto o tempo passou e toda a gente se esqueceu de tudo, do medo, da novidade, dos primeiros dias, dos dias que seguiram aos primeiros dias. Eu, que tinha cá chegado sem saber ler nem escrever, tentava aprender as palavras da terra, quantas vezes em vão, com a sensação, no entanto, que podia deixar o casaco preto em casa, que o tempo estava a mudar, que agora era tudo mais normal. Que éramos todos mais normais. Macau tem pressa em chegar a 2049, quer tudo ao mesmo tempo e não quer nada, não se sabe bem quem lhe traça o destino, quem lhe toca no rosto Os dias na cidade fizeram-se, à semelhança dos dias noutras cidades do mundo. Os anos atropelaram-se, a terra cresceu, eu nunca tinha visto terra a crescer, só conhecia terra onde crescem coisas. Eu ainda à procura de saber ler e escrever, numa cidade tão arrebatadora, que nos esmaga na pequenez que se sente nos prédios, nas ruas, nas luzes. Em tudo o que, de um dia para o outro, se ergue em direcção ao céu. Um território que constrange de pequeno que é, mas que não pára, não deixa descansar, não deixa pensar porque tudo é demasiado rápido, era para ontem se faz favor. E de repente chegámos aqui, com certezas acumuladas sobre o que queremos e o que não queremos. E com dúvidas acumuladas também. Macau tem pressa em chegar a 2049, quer tudo ao mesmo tempo e não quer nada, não se sabe bem quem lhe traça o destino, quem lhe toca no rosto, quem lhe dá a mão. Macau não está quase a entrar em 2017, já voou no tempo, os 17 anos do passado são muitos mais, a memória é fraca, tão fraca, há quem fale na RAEM como se ela fosse Macau, a RAEM não é Macau, é sé a RAEM. Temos certezas acumuladas e devidas acumuladas também. Das dívidas nem vale a pena falar: ninguém paga o que deve aos mortos, sobretudo quando fazem parte de um passado distante. O presente, de certa maneira, também já lá vai. Está tudo de olhos postos no que vai acontecer daqui a dois anos, quem são eles, quem é ele, mandas tu ou mando eu, 2049 está já aí e ninguém quer saber, o futuro pertence sempre a quem acha que manda mais.
Hoje Macau Manchete PolíticaÀ beira da maioridade: Trânsferência de Administração foi há 17 anos Faz hoje 17 anos que Rocha Vieira entregou a administração de Macau a Pequim. Fê-lo abraçado a uma bandeira portuguesa, numa transição emocionada. O HM ouviu vários testemunhos que nos fizeram o balanço da vida da RAEM [dropcap]O[/dropcap] início eram as descobertas. O espírito aventureiro dos navegadores portugueses chegou aos Mares do Sul da China, e aqui ficaram a administrar o território durante mais de quatro séculos. Até 1999, quando se deu a transferência de administração para a República Popular da China, nascendo a Região Administrativa Especial de Macau. Em dia de aniversário, ouvimos as opiniões de quem aqui vive, para um balanço destes 17 anos. O designer Manuel Correia da Silva considera que podemos olhar para a idade da RAEM como olhamos para o crescimento de uma pessoa. Houve uma infância e, hoje em dia, estamos à beira da maioridade mas ainda a atravessar uma fase tardia da adolescência. “Espero que a maturidade chegue a todas as figuras de poder desta cidade, não só ao Governo local, mas também à sociedade civil”, comenta. “Espero que a maturidade chegue a todas as figuras de poder desta cidade, não só ao Governo, mas também à sociedade civil.” MANUEL CORREIA DA SILVA, DESIGNER A ideia de chegar à idade adulta é intimamente ligada a um sentido de autonomia, “já podemos sair sozinhos”, como comenta Correia da Silva. A ideia é uma maior capacidade de auto- gestão que permita a internacionalização, o envolvimento com a região. O designer não se refere apenas a factores comerciais. Nesse aspecto houve, realmente, maior abertura ao exterior, mas a um novo olhar político, uma nova forma de pensar o território. Nesse sentido, considera que a RAEM devia “olhar para as lusofonias como um bom canal de internacionalização”, na forma como a marca Macau se pode instituir lá fora. Para tal, será necessário projectar uma imagem mais graúda, “e isso tem que ver com responsabilidade”. Hoje em dia, Macau é uma cidade mais cosmopolita, que oferece maior liberdade de movi- mentos aos cidadãos, mais ligada ao que se passa em seu redor. “Nós já estávamos envolvidos neste Delta, uma zona do mundo especialmente activa nestes últimos 10 anos”, algo que melhorou com “as políticas de abertura da China para o resto do mundo”. Factos políticos com impacto, e que forçaram a competitividade e inovação. BOOM VERTIGINOSO Portugal entregou Macau à China com os cofres em situação modesta. “Quando passou a administração tínhamos apenas um fundo de 10 biliões de patacas, o que não dava para alimentar sequer um ano de Orçamento”, lembra o economista Albano Martins. Neste momento, o Governo tem os cofres cheios. Facto que é incontornável neste balanço de aniversário, assim como os números do desemprego. Aquando da transferência, Macau tinha uma taxa de mais de sete por cento, hoje em dia está abaixo dos dois por cento, um número que representa pleno emprego. Au Kam San, deputado à Assembleia Legislativa, aponta a óbvia “liberalização do jogo de grau limitado e a política de visto individual oferecida pelo Governo Central”, como “factores decisivos para o desenvolvimento a grande velocidade”. Estes foram os pilares que enriqueceram a administração da RAEM, e que possibilitaram o investimento numa série de infra- -estruturas que enriqueceram o nível de vida dos habitantes de Macau. “As comunidades portuguesa e macaense continuam dinâmicas, são partes fortes do sistema, e merecem o reconhecimento devido pelos Governos Central e local.” CARLOS MARREIROS, ARQUITECTO Albano Martins acrescenta que “os grandes desenvolvimentos se deram durante a administração de Edmund Ho que foi, de facto, a grande dinamizadora”. O economista considera que durante esse período houve coragem para tomar decisões mas, infelizmente, o segundo mandato ficou manchado pelo escândalo Ao Man Long. “Nesta última administração pouca coisa se fez, tirando uma ligeira acção neste último mandato, embora sempre com um atraso que não era expectável dadas as capacidades financeiras que a administração de Macau hoje tem”, comenta o economista, que vive há quase 40 anos no território. O arquitecto Carlos Marreiros reforça este ponto, acrescentando que “a administração não soube acompanhar a dinâmica do investimento, a uma escala gigantesca, à qual não estávamos acostumados”. Também no panorama regional, a inacção governativa levou à perda de competitividade. A inércia administrativa é algo palpável, a que a população reage. “A população tem um relacionamento muito crispado com a administração. O que a administração faz é sempre mau, o que não é verdade, também há coisas muito positivas”, acrescenta. Nesse aspecto, salienta a classificação pela UNESCO do centro histórico de Macau como património mundial e o investimento recente na educação. “O acesso ao ensino melhorou bastante, é gratuito e estendido a todas as idades com um apoio pecuniário para quem queira continuar a estudar.” Apesar destas melhorias, a apatia generalizada do poder local é sentida pelo povo, levando a “um processo de pré-divórcio, como uma comunicação impossível, alicerçada no conflito que não resulta em consenso, mas numa sociedade fracturante”. “Isso não é bom numa terra pequena, é mau para a criação de soluções e para o diálogo”, acrescenta o arquitecto nascido em Macau. Para a deputada Melinda Chan, “uma das vantagens que vieram com a transição foi a melhoria na segurança”. Chan elenca ainda nos aspectos positivos o reconhecimento da RAEM ao nível internacional, “que se sentiu com a entrada de grandes empresas e investimento, e com o aumento de turistas”. NEM TUDO SÃO ROSAS A prosperidade trouxe por arrasto alguns problemas, particularmente no que diz respeito à poluição, ao crescimento desordenado, ao trânsito e à habitação. Este último capítulo é destacado por Lam U Tou que considera que, anterior- mente, “a população mais pobre conseguia com algumas poupanças ter as suas próprias casas”, algo que o boom no mercado do imobiliário veio dificultar. Para o membro do Conselho Consultivo dos Serviços Comunitários da Zona Central, esta é a maior falha do Executivo e o factor de maior desagrado da população. Já o deputado Au Kam San vê na corrupção o pior efeito secundário do boom económico, com consequências muito nefastas para a sociedade. “Durante a administração portuguesa havia problemas de corrupção, mas eram de menor dimensão. Hoje, o problema cresceu à medida que o Governo ficou mais rico, como exemplificou o caso Ao Man Long”. O pró-democrata acha que a promiscuidade entre o ciais da administração e grupos empresariais atinge maiores proporções. Uma das razões apontadas por Au Kam San prende-se com o défice de democracia, com os quadros governativos a ocupar muito tempo o poder. Este é um problema que “sacrifica o interesse dos pequenos cidadãos”, acrescenta. “Durante a administração portuguesa havia problemas de corrupção, mas eram de menor dimensão. Hoje, o problema cresceu à medida que o Governo ficou mais rico, como exemplificou o caso Ao Man Long.” AU KAM SAN, DEPUTADO No rol de aspectos negativos, Albano Martins destaca a ausência de “um sistema de reformas digno desse nome, adequado aos rendimentos do Governo”, não esquecendo as problemáticas questões do trânsito, cultura e a poluição. Para o economista, é como se a administração da RAEM não soubesse lidar com o crescimento exponencial. “A solução encontrada parece ser parar esse crescimento.” Carlos Marreiros olha para este quadro socioeconómico com alguma preocupação, num panorama em que “as pequenas e médias empresas têm dificuldade em se imporem”. Para tal, tem contribuído um desenvolvimento mal distribuído, “nem sempre para benefício do povo”. Mas o arquitecto também vê o copo meio cheio, e faz “um balanço globalmente positivo”. “As comunidades portuguesa e macaense continuam dinâmicas, são partes fortes do sistema, e merecem o reconhecimento devido pelos Governos Central e local. Nestes 17 anos não deixámos de participar, fomos fazedores do passado de Macau, um passado com mais de quatro séculos, estamos a fazer o presente e a projectar o futuro de todos nós”, comenta o arquitecto. Neste aspecto, o sabor diferente que a portugalidade oferece à região torna Macau num local diferente do resto da China, sendo que “uma das principais razões é a existência desta universalidade que é a cultura portuguesa, miscigenada localmente a vários níveis, e que cria originalidade na ponta desta enorme China”. Foi há 17 anos que o Governador Vasco Rocha Vieira levou a bandeira ao peito e partiu para Portugal Não obstante os 17 anos da transferência de administração de Macau para a China, a alma lusitana ainda se faz sentir na universalidade de que Carlos Marreiros fala. Um bom exemplo desse aspecto fluido culturalmente é a própria vida de Manuel Correia da Silva. Há três anos, o designer viu-se na iminência de ter de mudar de cidade, empurra- do pelo desconforto que sentia, pela deterioração da qualidade de vida e a subida vertiginosa da in ação. As circunstâncias empurraram-no para lá das Portas do Cerco e a procurar outra vida em Zhuhai. “Para mim isto também já é Macau, apesar de existir aqui uma fronteira administrativa que é preciso ultrapassar. Macau vem comigo para este lado da fronteira e o mesmo acontece no sentido inverso. É uma fronteira um bocado orgânica, ela vai e volta comigo”, explica. Uma fluidez que parece ser a metáfora perfeita para simbolizar Macau.