Inês Rodrigues acaba de publicar livro sobre investigação acerca do massacre de 1953, em São Tomé e Principe

A obra da professora Inocência Mata, da Universidade de Macau, foi fundamental para Inês Rodrigues quando decidiu fazer o seu doutoramento sobre o Massacre de 1953 ocorrido em São Tomé e Príncipe. Doutorada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Inês Rodrigues fala sobre a sua investigação transformada agora em livro, intitulado “Espectros de Batepá. Memórias e narrativas do ‘Massacre de 1953’

[dropcap]N[/dropcap]um dos seus artigos afirma que o “massacre de Batepá” é um acontecimento praticamente desconhecido em Portugal. Como teve o primeiro contacto com este acontecimento e porque decidiu investigar este assunto?
O primeiro contacto foi fortuito e deu-se quando li, pela primeira vez, a poesia da Conceição Lima, onde as referências ao massacre são recorrentes. A obra pioneira da académica são-tomense Inocência Mata [docente da Universidade de Macau], a quem devo muito intelectualmente e que tem três livros sobre a literatura são-tomense que são importantíssimos. Lendo estes textos, que são incontornáveis, apercebi-me que havia dimensões menos problematizadas deste evento histórico que poderiam ser iluminadas por uma pesquisa sistemática e global, a partir do campo dos estudos culturais, focada no «Massacre de 1953» ou «Massacre de Batepá», como também é conhecido.

Diz também que em Portugal “se recusa a discussão de um evento perturbador”. Fala da comunidade académica, dos media? Neste sentido, ainda há muitos pudores em Portugal relacionados com o passado colonial?
Em anos recentes, têm emergido muito mais espaços onde discutir e problematizar estes temas, sobretudo promovidos por associações de afro-descendentes e pela academia, mas também por alguns meios de comunicação social e jornalistas. Todavia, julgo que ainda há um longo caminho a percorrer. Considero que existe uma narrativa mestra, muito perceptível em certos discursos políticos e comemorações nacionais, por exemplo, que persiste em considerar o colonialismo português como tendo sido mais harmonioso e pacífico do que outros colonialismos europeus.

Continua a não se aceitar muito do que aconteceu?
Creio que ainda subsiste uma dificuldade em lidar criticamente com o passado colonial em certos núcleos nacionais e sectores da população, nomeadamente, no reconhecimento de que o colonialismo português compreendia dimensões de violência física e simbólica estruturais na administração, manutenção e gestão dos territórios e populações colonizados. No caso específico do «Massacre de Batepá», temos o facto de apenas em 2018 um Presidente da República português ter visitado um dos seus dos lugares emblemáticos (Fernão Dias), em visita oficial ao arquipélago, tendo aí reconhecido, a faceta ‘menos boa’, como disse Marcelo Rebelo de Sousa, da história de Portugal. Recordo, ainda, a actual proposta de construção de um eventual ‘Museu das Descobertas’ em Lisboa, que, felizmente, tem gerado uma profícua discussão. Estes ‘lugares de memória’ (estátuas, museu, toponímia, etc.) transportam significados simbólicos, transportam um passado de silenciamentos, exclusões e opressões várias que não podem ser ignorados. Daí que o manifesto publicado no jornal Público, e assinado por cem afro-descendentes portugueses, contra a edificação deste museu, nos moldes como foi apresentado e contra o que ele representa, seja um movimento importante para se perceber que estes processos de materialização da memória a partir do Estado têm que envolver a sociedade civil e não podem ser projectados desgarrados dos sujeitos.

Estabelece uma ligação ao relato literário deste massacre, feito pelos poetas Alda Espírito Santo e Conceição Lima. Até que ponto a literatura foi importante para preservar a memória deste acontecimento?
O corpus literário do massacre é muito heterogéneo e, por isso, é importante ter em conta os contextos de produção desses textos uma vez que a partir deles emergem valores estéticos e ideológicos diferenciados. Nesse sentido, na minha pesquisa, defini três períodos histórico-sociais e políticos específicos a partir do qual analisei as representações de Batepá. A dita ‘literatura colonial’ em que, na maioria das obras, são reproduzidos vários estereótipos associados às populações colonizadas. A literatura de testemunho, produzida sobretudo durante a luta de libertação no arquipélago e nos anos imediatamente posteriores à conquista da independência, a 12 de Julho de 1975, que constrói o ‘herói da liberdade da Pátria’. Por fim, a literatura da ‘pós-memória’ (seguindo o conceito proposto por Marianne Hirsch), isto é, as obras de escritores e escritoras que não viveram o massacre, mas que dele se apropriam criativamente como se de um passado vivido se tratasse – os herdeiros e as herdeiras de 1953. É esta literatura mais recente, sobretudo, mas em particular a poesia de Conceição Lima, que mais tem contribuído para complexificar as narrativas históricas do massacre, demonstrando que quadros teóricos e causais simplistas e categorias estanques como vítimas e perpetradores não são suficientes para se pensar este episódio, os seus actores ou para perceber como ele se desenrolou. De qualquer modo, e agora respondendo à questão mais directamente, a literatura, sobretudo a de testemunho, foi muito importante, à época, principalmente em certos segmentos da população são-tomense, para resgatar este acontecimento do passado, para construir uma comunidade próxima a partir dele e para fixar o sucedido numa narrativa que fosse passível de transmitir a ‘gerações’ vindouras.

Faz também uma ligação com o termo “fantasmagorias”. Quer isso dizer que este massacre existe, sobretudo, no imaginário dos são-tomenses, existindo várias versões do mesmo?
O fantasma, neste livro, é uma figura a que recorro de modos distintos: por um lado, enquanto elemento de imaginação e representação de um passado que continua muito presente na sociedade são-tomense e cujos legados ainda se fazem sentir no arquipélago e, por outro, enquanto elemento material e sujeito que produz conhecimentos. Isto significa que o massacre é um ‘fantasma’, no sentido da dialéctica visibilidade/invisibilidade, de que pouco se quer falar em Portugal; um ‘fantasma’ metafórico que, de modo marcante, paira no imaginário dos são-tomenses. Mas significa também que o massacre é reencenado de modo performativo por acção de espectros no sentido literal da palavra, como, por exemplo, no caso do Senhor Nove Nove, espírito de um sobrevivente de Batepá que ‘monta’ (para usar uma das expressões empregues localmente) o curandeiro Nijo e age como testemunha da violência persistente do colonialismo. Sobre Nijo e o Senhor Nove Nove há um documentário muito interessante e que recomendo vivamente, de Inês Gonçalves – ‘Na Terra como no Céu’. Estes fantasmas e seus significados simbólicos vão, por sua vez, contar diferentes versões dos acontecimentos de 1953. 

Este massacre foi muito importante do ponto de vista político, pois fundou o nacionalismo são-tomense. Acredita que foi fundamental para formar a sociedade actual de São Tomé e Príncipe?
Não há evidências concretas ou factuais da relação entre o massacre e a criação do CLSTP (Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe) ou, mais tarde, do MLSTP (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe). Contudo, há uma narrativa nacionalista que, durante os anos 1960 e 1970, resgata este evento como fundador do nacionalismo são-tomense. Como o momento do despertar político dos são-tomenses para a necessidade da independência. Na ausência de luta armada no território (como sucedia em Angola, Guiné e Moçambique) ou de lugares de violência carcerária como o Tarrafal, São Nicolau ou Ilha das Galinhas, é o massacre de 1953 que congrega em si a resistência dos são-tomenses ao colonialismo, a heroicidade e o sofrimento destes homens e mulheres, a vontade da população em não mais se subjugar às arbitrariedades e brutalidade do sistema colonial, etc.

Legitimou também o “Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe”, que afirma que institucionalizou a memória de uma forma não consensual. Pode especificar?
Como conta detalhadamente Gerhard Seibert numa obra notável sobre o percurso político e social do país desde o colonialismo até à independência – Camaradas, Clientes e Compadres. Colonialismo, Socialismo e Democratização em São Tomé e Príncipe (2002, ed. revista e aumentada) –, nos anos 1960 e 1970, quando a narrativa nacionalista são-tomense se ancorou simbolicamente no massacre para as suas reivindicações de autodeterminação, optou por destacar alguns forros – grupo etno-cultural dominante no arquipélago e que designa os descendentes de ‘filhos-da-terra’ e de escravos alforriados – como os ‘heróis e mártires’ da resistência no arquipélago ao domínio colonial. Excluindo, por conseguinte, as acções e desejos dos trabalhadores contratados ou de forros de segmentos socioeconómicos vulneráveis do processo de imaginação e construção da nação. Esta narrativa, mobilizada, como disse, com maior ênfase, durante a luta de libertação e nos primeiros anos da independência ainda vai tendo algum lastro nos dias de hoje e falha em reconhecer adequadamente as muitas tensões e nivelações de estatuto presentes na sociedade colonial de São Tomé e Príncipe, constituídas não apenas com base em signos como a cor da pele, mas também em factores como classe social, diferença sexual, geografia, entre outros. Para se compreender o massacre é preciso, então, perceber primeiro os modos como o colonialismo português desempenhou um papel preponderante na categorização da sociedade do arquipélago, profundamente hierarquizada, instituindo, especialmente através do trabalho, relações de poder muito complexas entre portugueses, colonizadores de outras origens europeias, forros, angolares e trabalhadores contratados de várias geografias.

Publicado este livro, que é o resultado do seu doutoramento, que projectos pretende desenvolver no futuro?
É inevitável sentir que fica sempre imenso por dizer e explicar numa pesquisa deste género, acima de tudo porque se refere a um massacre colonial repleto de nuances e porque o meu lugar de enunciação é, inevitavelmente, Portugal… Elenco algumas das interrogações em aberto que avanço na conclusão do livro: por exemplo, serão a fantasmagoria e a figura do ‘espectro’ elementos profícuos de análise se ampliados às representações literárias de outros massacres fundadores, como, entre outros, Mueda, Wiriamu ou Pidjiguiti? Quais são as possibilidades de se construir uma memória pública crítica do massacre em Portugal? O que espero, na verdade, é que este arquivo da ‘imaginação do massacre’ possa permanecer um processo em aberto e que seja discutido e retrabalhado, suscitando novas interpretações críticas individuais e colectivas sobre o passado comum de Portugal e São Tomé e Príncipe.

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