Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vida vai ao cinema e o António Cabrita também [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos viajar por um livro muito especial. Um livro que parte de um personagem de cinema para levantar voo numas reflexão e diversão acerca do nosso contemporâneo, com os pólos no cinema em geral e João César Monteiro em particular, e arte e literatura em geral e Fernando Pessoa em particular. É assim como que um livro que vai ao cinema, com toda a confluência de artes que o cinema tem. E antes de entrarmos neste texto de António Cabrita, talvez até em todos os outros que ele escreveu, convém não trazer consigo a realidade. Deixemo-la à porta. Mas se a realidade não é para aqui chamada, também não é menos verdade que ela pode ver-se reflectida aqui. Não que o texto seja ou não um reflexo da realidade, mas que esta pode ver-se reflectida nele, se tentar espreitar. Assim, e para ser conforme a António Cabrita, que é prolixo de intertextualidades, diria mesmo que é um mestre nas intertextualidades, pois não usa outros textos para se mostrar, mas para mostrar o que está a fazer, também eu vou tentar aproximar-me de outros textos para melhor mostrar aquele que estou aqui a fazer. No seu célebre livro, Ou-Ou. Um Fragmento de Vida, a um dado momento Kierkegaard debate-se com uma tentativa de nos mostrar que o Don Juan de Mozart é a obra das obras, o clássico dos clássicos. Depois de várias páginas, reconhece que não pode apresentar prova e escreve: “Contudo, desisto de toda esta investigação. Está escrita apenas para apaixonados. E tal como uma criança com pouco se alegra, também assim acontece, como é sabido, que uma coisa amiúde muitíssimo estranha pode alegrar os apaixonados. É como uma calorosa disputa de amor sobre coisa nenhuma, e não deixa, contudo, de ter o seu valor – para os amantes.” (p. 94) Sem dúvida, também nós ao falarmos acerca deste texto de Cabrita, deparamo-nos com o mesmo paradoxo dos amantes: o mínimo gesto tem um valor absoluto, mas ninguém repara nele sem estar apaixonado. Um pouco mais adiante, Kierkegaard escreve aquilo que dará, agora sim, entrada à nossa leitura deste livro de António Cabrita: “Qualquer leitor que ache que brincar é uma maçada, não é obviamente cá dos meus, não lhe atribui qualquer significado e, contudo, aplica-se aqui como em toda a parte: as crianças parecidas brincam melhor.” (p. 95) Ora para Cabrita, brincar é tudo menos uma maçada. Podemos até ir mais longe e dizer que, para o autor, brincar é a verdadeira dimensão do humano. O humano aprende para poder brincar melhor. Mais: tudo no humano tem como finalidade um brincar melhor. Todo o esforço humano vai nesse sentido, mesmo que ele não se dê conta disso. Porque a brincar, o humano não só se descobre a si mesmo, como também se melhora a si mesmo. E não foi Fernando Pessoa quem melhor nos ensinou isto? Não é o jogo da heteronímia pessoana um enorme jogo que ele construiu para poder brincar melhor, para poder ser melhor, inventando outras crianças com quem brincar, porque as “crianças parecidas brincam melhor”? Pois e a verdade é que a raiz literária de Cabrita é Pessoa, ou pelo menos uma das raízes. E isto podemo-lo ver bem neste livro. Reparemos nisto: João César Monteiro faz de João de Deus um heterónimo seu – embora lhe chamem alter-ego – e Cabrita faz dos dois e dele mesmo heterónimos de si mesmo. Sim, porque em Cabrita – se não em todos nós – a memória é sempre heteronímica. Em Cabrita, tudo vale a pena se a brincadeira não for pequena. “Eu, João de Deus, um dos homens mais espertos da minha pessoa, estava entregue à paródia (…)” (p. 63) O jogo de Cabrita com Pessoa – crianças parecidas brincam melhor – começa logo no início e percorre o livro todo. Aliás, A Paixão de João de Deus começa com alguém a tocar realejo e a recitar o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Mas leia-se, literalmente, como se inicia o livro: “Numa amolecida manhã de domingo de 2004, de malas já aviadas para o Báltico, flanava pela Baixa. Despedia-me dos lugares e murmúrios de meia vida; esquecido de ser lince, diluído no branco imponderável do Verão; sonâmbulo, sem pressa ou rumo. Desperta-me, algures, a repetida ladainha de um realejo. O Anacronismo levou-me até à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Aí, um homem magro, meio encurvado, narigudo, de óculos escuros e rosto bexigoso, dava à manivela num realejo velho poisado sobre uma caixa de electricidade, ao mesmo tempo que, quase em surdina, recitava algo. Apurei o ouvido: era a Tabacaria, de Pessoa.” Daqui até cairmos num anúncio de jornal para tentar encontrar a rapariga suja que comia chocolates na “Tabacaria” de Pessoa, é uma estação de metro. O livro convida-nos a aceitar tratar-se de uma entrevista, ou do que resultou dela, a um personagem chamado João de Deus. E a primeira frase que este personagem diz, ainda antes do livro começar, ainda quando entrevistador e entrevistado estão em negociações, é uma citação de Fernando Pessoa: “Morrer é não ser visto.” Por conseguinte, a partir daqui, se aceitarmos brincar, vamos entrar num escorrega quase infinito pela contemporaneidade e as suas incongruências. O narrador a partir daqui é João de Deus / João César Monteiro / António Cabrita / Memórias de António Cabrita / Sombra Fantasmática de Fernando Pessoa. E a técnica preferencialmente utilizada é a da aglutinação frásica de mundos completamente distintos, que exige do leitor conhecimentos prévios vários, do mesmo modo que quando se vai brincar às Escondidas ou ao Amocha (Cá vai alho!) ou à Cabra Cega tem de se saber as regras do jogo. Aqui a regra é ter estado exposto à intempérie cultural do século XX, como por exemplo na cena entre o narrador e uma loura, ao balcão de uma tasca, em que ele, de modo a impressioná-la, vai antecipando as cenas do filme que passa na televisão, The Maltese Falcon (Relíquia Macabra, em Portugal, e O Falcão de Malta, no Brasil, que é como aparece no livro do Cabrita). Como é sabido, é um filme icónico de John Huston, com o Humphrey Bogart e a Laureen Bacall, que ainda não eram um casal, mas passaram a ser, durante anos e anos, até à morte de Bogart. E a célebre frase do filme, dita por Bacall, aparece escrita no livro: “Já sabes, se precisares de alguma coisa é só assobiares… sabes como se assobia? Põe-se assim os lábios e sopra-se…” O leitor não precisa de ter visto o filme, mas ganha em tê-lo visto, evidentemente. Assim como em relação ao compositor Robert Gerhard, bem menos conhecido do que o filme atrás mencionado. Ou em relação aos inúmeros livros, autores, quadros (estou a lembrar-me, por exemplo, da Ofélia, de John Everett Millais). Poder-se-á objectar com a célebre tautologia de que não é um livro para todos? É evidente que não! Mas quem é que quer escrever um livro para todos? Somente um deste dois: ou Deus ou um imbecil. Por outro lado, e de um modo mais modesto, poder-se-ia ainda perguntar se todas estas intertextualidades são necessárias. Mas então, para sermos honestos connosco e com a escrita, devemos também perguntar se o que um homem vive é necessário à escrita da sua biografia. Ora, o personagem de Cabrita viveu o século XX até ao tutano do que lhe foi possível – e é sabido que o tutano do século XX tem muitos outros séculos –, espremeu os limões do cinema, da literatura, da pintura e da música como pôde. E a vida dele não é possível de ser contada apartada disso. Um homem não é apenas aquilo que come e que bebe, é também aquilo que lê e que ouve. E cá temos outra vez o fantasma de Pessoa. Não percamos mais tempo com tautologias e adiantemos um exemplo daquele que é o recurso maior e mais característico da escrita de Cabrita: “Falta à miniatura japonesa a gordura que faz da picanha um menu e que entreabre o barroco ao infinito.” Ainda que esta frase nos chegue aqui fora de contexto, e independentemente de estar certa ou errada – como se houvesse certo ou errado numa brincadeira, a não ser tentar prolongá-la até ao infinito, até que nunca se volte a cair na hora da sesta –, veja-se os três mundos que nos abre: Haiku (a miniatura japonesa a que o autor se refere é essa forma poética); a gordura da picanha; barroco e infinito. Ou seja, passamos da arte à sensualidade da mesa e desta à estética (enquanto reflexão sobre a arte) e à filosofia. Uma só frase dá de comer a muita gente. É um festim. Fosse eu outro, e diria que é uma frase extremamente sinestésica. Uma frase cheia de sinestesia, que nos desperta todos os cinco sentido que temos, e mais alguns. Mas reparemos melhor nesta técnica, que não é “apenas” a junção de quatro realidades distintas (haiku, picanha, barroco e infinito). Para além da metáfora, que veste esta frase, cada um dos elementos deste quarteto aparecem ainda com os ornamentos da metonímia e da sinédoque. Por exemplo, o haiku, que nos mostra não apenas a si mesmo, mas também o bonsai e por arrasto todo o Japão; ou a gordura da picanha que nos leva para a América do Sul e para um churrasco, o calor das brasas e o barulho da gordura sobre o fogo; ou o Barroco, que nos leva para o passado e para a exuberância do detalhe, viagem que nos é imediatamente contrariada com a ideia de infinito, que aparece como que em forma de antítese. Assim, e numa mesma frase, pequena, vamos do Japão ao infinito, passando pela picanha, com uma pequena paragem na América do Sul e no barroco. E julgo que estamos aqui diante do que podemos chamar de tipicamente cabritiano: uma sinestesia metafísica. Ou, de um outro modo, muito mais cabritiano: o mundo de calções a cavalo numa trotineta, a descer para a praia com o Louvre, Hollywood e um quarteto de cordas no bolso, e a mascar pastilha elástica Gorila. Diz o narrador para a loiraça, sentado ao balcão da tasca: “O cinema é a vida e a vida sabe-se de cor.” Se antes nos aproximámos daquilo que é a arte de Cabrita, agora aproximamo-nos do que é o Leitmotiv deste livro. Do mesmo modo que podemos dizer que ler não é apenas ler, ler é viver, pois cada um de nós lê com o que põe na sua leitura, quer seja leituras anteriores, quer seja amores perdidos, braços partidos ou um filho morto, também o cinema não é apenas o que se vê, naquele momento em que se abrem as imagens diante dos olhos. No fundo, aquilo que perpassa por todo este livro de Cabrita é que o nosso ponto de vista existencial é hermenêutico, isto é, tudo chega até nós pela interpretação que fazemos. E tanto faz que seja através de um filme, como através de um livro, ou de um quadro, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Nós estamos sempre a ler, a interpretar, a calcorrear o mundo e nós mesmos com pés de Hermes. O livro é absolutamente estonteante, repleto de episódios, a um mesmo momento divertidos e reflexivos, como o do hotel com o chinês Min Lau e a evocação de Genet, ou os sucessivos episódios de Porto-Sudão, onde se lê esta pequena passagem tão distante da pacata Lisboa: “Nesta vertigem, senti: a vida humana vale menos do que a de um cachorro e senti-me a perder a linguagem.” (p. 77) E, por falar em linguagem, aproveito a deixa para terminar com esta frase enigmática: “Se contar se fundisse com o que aconteceu seria proibitivo pois as retinas dos leitores seriam respigadas de cal viva.”
Hoje Macau EventosActriz de “Twin Peaks” Pamela Gidley morreu aos 52 anos [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] actriz norte-americana Pamela Gidley, conhecida por interpretar o papel de Teresa Banks, a vítima de homicídio em “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, morreu aos 52 anos. Morreu “pacificamente” em casa, em Seabrook, New Hampshire, no dia 16 de Abril, revela o obituário divulgado pela família no Domingo. A causa da morte não foi revelada, acrescenta a BBC, que noticiou a morte da actriz. Pamela Gidley, ex-modelo, chegou a ser considerada a “rapariga mais bonita do mundo” pela Agência Wilhelmina Modeling, em 1985. Começou a representar um ano mais tarde, contracenando com Josh Brolin e com a futura co-protagonista de “Twin Peaks” Sherilyn Fenn, em “Thrashin’”. Num tributo publicado na rede social Instagram, Brolin recordou “memórias incríveis e inocentes” de Gidley. “Era uma pessoa irascível e verdadeiramente divertida”, acrescentou. Nascida em Methuen, Massachusetts, Pamela Gidley estudou no Conservatório Stella Adler, em Nova Iorque, antes de se mudar para Los Angeles. O papel como a jovem problemática Teresa Banks, em 1992, “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, do realizador David Lynch, mostrou a sua transformação. Em 2016, durante uma entrevista sobre Twin Peaks, Gidley contou que Lynch a abordou pessoalmente para fazer aquele papel, apesar de, na altura, ela estar a filmar “The Crew”, nas Caraíbas. “Ele ofereceu-me aquele papel, mas havia ali um conflito de interesses”, disse, acrescentando que David Lynch queria tanto que ela ficasse com o papel que garantiu ao outro filme que pagaria todas as viagens e seguros. “Eu ia literalmente das Bahamas para Seattle, de Seattle para as Bahamas, praticamente a cada dez dias. Para mim era tipo ‘Wow, queres-me assim tanto? Não consigo imaginar ninguém a querer-me tanto”. Gidley apareceu na televisão e em filmes, incluindo no clássico de culto de ficção científica “Cherry 2000” e na série dramática da CBS “Angel Street”. A última vez que apareceu no cinema foi em 2005, no filme independente “Cake Boy”.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e Ideias250 filmes de Todos os géneros num festival [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] bertura oficial do 15º Festival Internacional de cinema de Lisboa Carlos Ramos, Miguel Valverde, Nuno Sena, apresentam a 15 edição como “continuar a fazer do IndieLisboa uma grande festa à volta de um cinema permanentemente aberto à descoberta formal, à singularidade autoral e às convulsões do mundo contemporâneo.” Afirmam que a programação aposta numa selecção que promove o encontro entre nomes consagrados do cinema de autor mundial e novos cineastas. A característica mais distintiva do festival é a mistura, a hibridez de géneros, e duração. No cartaz estão curtas e longas. A secção do Herói Independente é, como sempre, incontornável. Este ano faz-se com o cinema de Jacques Rozier , nome da vanguarda da modernidade cinematográfica europeia desse tempo de mudança conhecido como “nouvelle vague”. Jacques Rozier é um dos mais desconhecidos cineastas desse movimento. A sua obra vai poder ser descoberta ou revisitada numa das mais completas retrospectivas fora de França, nas salas da Cinemateca Portuguesa. O segundo herói nesta edição, chega da Argentina e tem nome e corpo de mulher, é a cineasta Lucrecia Martel. Vai ter uma retrospectiva alargada da sua obra, desde a curta até ao filme Zama. Martel vai estar no Festival e fazer uma MasterClass onde partilhará a sua visão do cinema. A longa metragem de André Gil Mata, ARVORE, foi título escolhido para a cerimónia de abertura do festival do realizado. O filme chega ao ecrã do cinema S. Jorge depois de ter estreado na Berlinale Forum. Uma SOLIDÃO PÓS-UTERO. O filme tem uma belíssima fotografia assinada pelo João Ribeiro, o trabalho de som é do António Figueiredo e a montagem do Tomás Baltazar. O filme é um claríssimo tributo ao cinema de Bela Tárr e também do soviético André Tarkovsky. Retoma a ancestral estrutura de todas as tradições das literaturas orais e escritas nas histórias dos povos do mundo, em que estão presentes a iniciação, a demanda do herói e o regresso. O cinema desde sempre se apropriou das estruturas narrativas presentes na literatura e da tradição iconográfica e pictórica e aqui, no filme de André Gil Mata querendo e procurando uma ideia radical de cinema, é essa tradição oral e pictórica que o filme sobretudo afirma. Aqui temos um infante que olha o mundo através da janela perto da proteção da mãe. O homem que sobe o rio carregado de garrafas vazias para encher na fonte da água inicial. O encontro do homem com o infante e o regresso à fala da mãe, esse lugar único e protetor no mundo gélido e lunar do habitar humano, ainda mais quando a memória da guerra e o e a neve do inverno se instala. A infância, esse lugar primeiro da singularidade do humano, é sobretudo a marca de um tempo onde o calor da casa e o quente e protetor afecto da mãe protegem do exterior. O bafo quente contra o vidro embaciado da janela, olhar a neve e frio perto do calor do fogão da movimentação da mãe. Há depois um tempo de confronto com o mundo sempre hostil, é preciso esforço sacrificial na procura da água da fonte não poluída e a metáfora instalasse por um tempo largo. Um homem caminha na terra coberta de neve e sobre com o esforço dos braços que remam o pequeno barco as águas do milenar rio que atravessa Sarajevo na direção da fonte da água limpa onde possa encher as garrafas vazias. É necessário lembrar que Saravejo é/foi recentemente na história da europa esse lugar da humilhação e do horror sangue e dólares sempre presentes nas no tabuleiro do poder do geopolítico. Fantasmas, que são afinal o que resulta desta vontade de acumulação e fixação do animal homem, ainda que efémera no habitar do tempo. Em Saravejo é um rio que assiste e lava a dolorosa memória, na atualidade na Síria são areias e pó de cimento e em muitas outras geografias muros electrificados de arame farpado, o horror, tal como a beleza, é universal. É por isso que crescer é também este confronto com o horror, e que a criança inicial foge do homem adulto que regressa da fonte e olhado da sua perspectiva como o fascista. Crescer é difícil, e os perigos são muitos. Mas crescer é alimentar a curiosidade, dar respostas ao deslumbramento perante o espanto e a natureza do mundo. O Homem diz-lhe que sabe um segredo, é quanto basta para apaziguar os medos da cabeça do infante. Um segredo que passa por esse lugar inicial do amor da mãe como talvez o único lugar capaz da proteção e conforto perante o mundo, o mundo natural e o mundo humano. Estamos num cinema que trabalha a materialidade, as marcas do tempo impressas no corpo das coisas, um cinema tempo de compridos travellings, e planos sequência, do escuro e da luz, da procura da revelação. Uma obra que retoma linhas e posicionamentos formais dos grandes mestres Tarkovsky e Bela Tárr. Aliás André Gil Mata, que é Mestre em Dramaturgia e Realização pela Escola Superior de Teatro e Cinema teve uma passagem na film.factory, escola dirigida por Bella Tárr. Macau no Indie 2018 Uma curta e uma longa, o programa foi organizado para mostrar a diversidade géneros produzidos no território. BETWEEN THE LIES de Lou Ka Choi, Leong Kin. Animação. ILLE GALIST de Penny Lam Ficção , 26 minutos , preto e branco O primeiro filme de ficção da Penny Lam , tem como tema a imigração do continente, um para trabalhar nas obras e uma nas atividades comerciais do sexo. Mas nada é propriamente fácil. PASS ON , de Benz Wong Documentário que trabalha a educação no núcleo família e como pode a educação em casa influenciar o mundo. THE LAST ROAR OF A MOTHER BEAR de Marble Leong e Zachary Fong , 80 minutos, ficção. Dois homicídios com onze anos de distância afectam profundamente dois estranhos. Ele levou um tiro na cabeça e desenvolveu uma perturbação de Identidade Dissociativa que não conhecia. Ela foi mentalmente ferida e a sua retaliação é a única coisa que a faz, perigosamente, continuar. Cine-performance epistolar, entre o passado e o presente. Num registo autobiográfico, um homem partilha cartas, imagens e sons que trouxe de Macau, onde viveu. Um português longe de casa mas a sentir-se em casa no meio da China. “… a cleverly-imagined, impressionistic, well-executed and ultimately touching show.” (Peter Gordon/Asian Review of Books) Este filme – performance teve a sua primeira exibição no território de Macau, surge aliás de um convite The Script Road – Festival Literário de Macau. António Pedro coloca no ecrã textos selecionados a partir das 194 cartas que recebeu quando viveu em Macau. Das 194 restaram 21. António Pedro tinha em 1994, 24 anos, a questão mais central que se lhe colocava e que queria dar resposta era “ O que quero fazer com a minha vida, o que não quero fazer”. Um trabalho entre o passado e futuro com imagens captadas em diferentes suportes lidas e musicadas pelo próprio . Concepção e direção artística António-Pedro Apoios The Script Road – Festival Literário de Macau, DGArtes, Fundação GDA, Fundação Oriente, Bazar do Vídeo, Câmara Municipal de Lisboa
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias“Belarmino” de Fernando Lopes, uma nova figura mítica [dropcap style =’circle’] F [/dropcap] ilmado em 1964, um ano depois da apresentação de O Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira – filme ao qual todos os cineastas em Portugal ficaram a dever, de um modo ou de outro, como escreve João Mário Grilo em O Cinema da Não-Ilusão, “esta obra [O Acto da Primavera] explica toda a relação do cinema português com a realidade e esse espaço de relação entre a representação e o real. Todos nós, os que viemos a seguir, só repetimos esse conceito de modos muito diversos” –, o filme começa com as imagens de vários pugilistas a treinar nas instalações do Sporting Club de Portugal, e Belarmino Fragoso equipado a caminho do treino. Por fim, escuta-se a voz off [de Baptista Bastos] a dizer: “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios leves, e agora é quase um punching ball [saco de porrada]: Belarmino Fragoso.” Anuncia-se, portanto, logo no início do filme, que iremos assistir à derrocada de um homem. Ficamos a saber que foi bi-campeão nacional da sua categoria, mas a corda que tange na nossa sensibilidade é a frase “poderia ter sido o melhor”. E não foi, porque se perdeu. Como é que um homem, que ganha no ringue a todos os outros, perde para si mesmo? Esta é a pergunta fundamental, um dos vários golpes de génio de Fernando Lopes nesta sua obra prima. O que leva um campeão a tornar-se um saco de pancada? O que leva um homem a voltar a ajoelhar-se junto aos sapatos sujos dos outros (a outra profissão dele era a de engraxador)? É isso que vamos tentar entender ao longo do filme. E em busca dessa resposta, Fernando Lopes invade-nos de solidão, de solidões. A solidão é um baixo contínuo que percorre o filme de grade a grade. Em O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal – Belarmino (Novembro de 2007), José Neves diz: “O filme começa com uma grade – um grupo de pugilistas treina sozinho atrás de uma grade, de uma rede, como se fosse uma prisão ou uma jaula. (…) E o filme acaba também com grades (…)”. Entre a grade inicial e grade final, a liberdade. A existência de Belarmino, um homem marcado para se perder. Este olhar o filme como uma tensão entre liberdade e prisão, entre cidade e interior é outra das leituras legítimas. A solidão filmada no Hot Club, com a música e a banda de Manuel Jorge Veloso, que carrega as cores negras e nostálgicas da solidão em que todos se encontram nas noites do filme. Ninguém está com ninguém. Ninguém fala com ninguém. As pessoas amparam-se. Amparam-se umas nas outras (não umas às outras), como se se amparassem à morte que trazem dentro de si, como um segredo ou o dinheiro que escondiam nas meias. Escuta-se e vê-se, a um terço do filme: “Voz Off: Olha lá, tu já passaste fome? / Belarmino: Fome, fome, fome, não é fome de três dias… Muitas vezes quero jantar não tenho, muitas vezes quero almoçar não tenho. Mas não quer dizer que isso seja fome, é mais um estado de fraqueza que existe em Portugal.” E aqui o filme alarga claramente do individual para o colectivo, do existencial para o social e político. E há também muitas leituras feitas ao filme através destes prismas sociais e políticos, com propriedade e justeza. Mas não é esta a leitura que aqui se faz. Aqui e agora o tema de Belarmino – embora haja outros, como temos estado a ver – é a solidão. Está-se só na vida como se está só no ringue. E aqui está outro dos golpes de génio de Fernando Lopes, pois este filme não poderia ser feito com um jogador de futebol ou de hóquei patins, tinha de ser um boxeiro, como Belarmino dizia. No final do filme, Belarmino diz: “Se fosse engenheiro ou fosse médico ou fosse um arquitecto não ia pó boxe, fui pró boxe por honestidade. Porque dentro do boxe, ou de qualquer desporto, não há engenheiros ou arquitectos que vão pró desporto e que levam porrada na cabeça por gosto, são homens como eu, vadios.” Também na antiga Grécia, o desporto era sempre a expressão física da solidão. Sempre um homem só contra outro ou contra outros, ainda que representasse uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Belarmino está só no ringue, como está só frente aos sapatos de alguém que engraxa e está só nas noites, que Fernando Lopes filma magistralmente, como se a noite fosse não um mar, mas um Adamastor que nos impede de chegar a nós, que nos impede de afastar a inquietação, o desencanto, a “desalegria”. A vida de Belarmino é à sua revelia. E é assim que nos é exposta pela realização de Fernando Lopes, que faz deste filme uma tragédia, no sentido clássico do termo. Belarmino aparece, desde logo de início, como aquele que poderia ter sido o que não foi ou que não chegou a ser. Mas o que agudiza o carácter trágico é que ele chegou a ser o que poderia ter sido. Por breves instantes ele foi o que poderia ter sido. Isto é, ele foi bi-campeão nacional de boxe. Durante um pequeno período de tempo ele foi o que poderia ter sido. E este ter sido o que poderia ter sido, apenas por instantes, que torna este filmes numa metáfora da existência de cada um. Todos nós fomos, por instantes, jovens. Todos nós fomos, por instantes, alegres. Todos nós fomos por instantes aquilo que poderíamos ter sido, mas que o tempo acaba por nos tirar. Belarmino, aquele que poderia ter sido o que chegou a ser, não é um personagem de cinema, é uma nova figura mítica. Como se o seu destino já tivesse sido traçado antes dele ter vindo à existência, volta à sua caixa de sapatos, ajoelha-se de novo aos sapatos sujos dos outros. Tu, humano, nunca serás aquilo que poderias ser; nunca serás aquilo que poderias ser e foste por um instante. Tu, humano, tu Belarmino.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e Ideias“O que resta?” [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito. Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial. A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos! Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução. Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante. Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada. Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira. Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”. A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”. Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível. A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico. Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas. A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?) Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental. “What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra. Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia. Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!! “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.” José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasChavela Vargas – Santa Pecadora [dropcap style=’circle’] C [/dropcap] hega esta quinta-feira às salas de cinema em Portugal, distribuído por Paulo Branco, o filme documentário de 93 minutos que teve estreia no festival de Berlim de 2017 na secção Panorama. Foram muitas as noites que terminaram no anexo da moradia em Stª Cruz de Benfica onde vivia o escritor/poeta José Agostinho Batista, para quem o México tem uma mística e um encanto muitíssimo particular, com a voz da Chavela, já antes de ali chegados ouvida no El Salsero na Rua de Buenos Aires à Lapa e, anos mais tarde, no Mezcal, na travessa da Água da Flor no Bairro Alto. Foi numa outra vida, num quotidiano de noites tequila e whisky. O filme de Catherine Gund e Daresha Kyi, são 93 minutos com esta mulher santa e pagã, e as suas muitas vidas, e em todas elas sempre essa luminosidade telúrica incandescente, dolorosa e ardente de quem em nenhum momento nega a alma que consigo transporta em paixão ardente e solitária, mesmo quando em amor acompanhada. Chavela Vargas pertence aquela qualidade especialíssima de seres dotados de talento e beleza inatos, capazes de surpreender o mundo, de arrastar e seduzir quem com eles se cruza. A sua voz quando canta abre rasgos no peito de quem ouve, os olhos molham-se perante a força e singularidade única de uma respiração intensa e habitada a sangue de tragédia e a paixão. Chavela Vargas nasceu na Costa Rica em 1919, o nome de registo é Maria Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano , morreu no México em 2012. A sua vida atravessa um século, conheceu e viveu a época clássica do cinema do México e de Hollywood, é ela que no filme nos diz que no casamento da Elizabeth Taylor, num dos primeiros porque foram oito no total, quando a noite deu lugar à privacidade da cama, foi com Ava Gardner que dormiu. Chavela Vargas é, foi, uma amante predadora, e muitas foram as mulheres de políticos e da elite artística do México que se renderam à sua paixão. A carreira deste ser telúrico deve-se em parte ao compositor e cantor José Alfredo Jiménez, com quem estabelece uma relação pessoal e artística total. O filme é uma entrevista em que Chavela Vargas nos fala em voz própria montada com depoimentos de quem com ela se cruzou e viveu, e momentos de palco. A vida desta mulher ícone da música Mexicana não foi uma viagem pacífica nas luzes do palco. Ainda em criança era escondida dos olhares de terceiros pela sua mãe por não corresponder à imagem da menina criança esperada e desejada. Na família em que nasceu o que os outros pensam ou possam pensar determinava os comportamentos e afectos que entre si se estabeleciam. Com o divórcio dos pais foi viver com uns tios. Aos 17 anos estava sozinha na cidade do México. Era bela, era diferente, era única, a sua singularidade levou-a a outras representações da mulher, foi ela quem pela primeira vez cantou vestida calças e poncho e não com os vestidos de folhos e rendas como era uso na época. Os palcos dos grandes teatros só se abriram para ela na segunda fase da sua carreira, depois de uma dezena de anos sem cantar nem editar discos. Esta fase terrível, deve-se ao excesso de álcool e também à perseguição do poderoso empresário Emilio Azcárraga por lhe ter seduzido a namorada. É Pedro Almodovar quem a resgata e conduz aos palcos de Madrid e Paris. O cineasta tem por ela um amor espelho, adora-a. A qualidade humana e artística Chavela Vargas prendem-no por inteiro. Este filme mostra-nos a mulher de corpo inteiro, que viveu com e sem tequila, de pistola por perto, solitária e apaixonada, que com a voz inteira diz sem tremer frases pouco apaziguadoras e radicais: “Eu sempre soube. Não existe ninguém que suporte a liberdade alheia; ninguém gosta de viver com uma pessoa livre. Se você for livre, esse é o preço a ser pago: a solidão”; “Ninguém morre de amor, nem por falta nem por excesso”; “O amor não existe, é um invento de noites de bebedeira”. São várias os personalidades intervenientes neste documentário, o já referido Pedro Almodóvar, Laura Garcia Lorca, Miguel Bosé, entre outros. Um filme que faz permanecer viva a grande diva da canção rancheira Mexicana.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasBlow Up de Antonioni e Hermenêutica [dropcap style = ‘circle’] E [/dropcap] m Blow Up, de Antonioni, ficamos depostos no sentido daquilo que é o acto hermenêutico. O filme mostra a vida do fotógrafo Thomas, em Londres, em 1965-6, o período áureo da chamada swinging pop. Período em que Londres era considerada a mais avant-garde cidade do mundo. Nesse mesmo filme, quase no fim, podemos assistir a uma actuação da célebre banda Yardbirds, por onde passaram os guitarristas Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page (fundador dos Led Zeppelin). Nesta actuação já não está Eric Clapton, mas o seu substituto Jimmy Page. E o filme começa com o fotógrafo a entrar no seu carro descapotável, de manhã, depois de passar uma noite a tirar fotos de objectos para uma revista de arte, dirigindo-se para o seu estúdio, onde estão modelos à espera para serem fotografadas. Vemos também duas raparigas que insistem com ele, para que as fotografe (uma delas é a jovem Jane Birkin), mas ele pede que venham mais tarde. Vai então fotografar a top model da época: Veruschka (é ela a fazer de si mesma). E esta parte do filme já foi considerada por várias revistas como a cena mais sexy de toda a história do cinema. Depois destas fotos, Thomas vai ainda fotografar outras quatro modelos, que acaba por despeitar e retira-se do estúdio para espairecer. Ficamos com a sensação de estar diante de alguém superficial e, sem margem para dúvidas, alguém que fazia parte do mundo da moda e da sociedade da época. Aliás, se o filme é baseado num conto de Júlio Cortázar “Las babas del diablo”, o protagonista, Thomas, é baseado no fotógrafo David Bailey, que era o maior e mais badalado fotógrafo da Swinging Pop, com inúmeros trabalhos para as maiores revistas do mundo da moda. Ele é responsável pela própria cultura pop londrina da época, que misturava pela primeira vez celebridades, modelos e músicos pop nos mesmos lugares, fomentando assim grandes eventos mediáticos. É esta pessoa que, à procura de espairecer, vai dar consigo num parque nos arredores da cidade e vê um casal aos beijos, de pé, no meio da relva. Começa a fotografá-los, de vários ângulos, enquadrando também nessas fotografias as árvores e os arbustos limites. Por fim, a rapariga apercebe-se da presença do fotógrafo e corre até ele, que vira costas e desce as escadas que levam a uma das saídas do parque. Ela consegue apanhá-lo e pede-lhe o rolo. Ele não lho dá, mas diz que lhe envia depois as fotos. Ela tenta à força conseguir tirar-lhe a máquina, sem sucesso, e ele vai-se embora. Durante todo este tempo não se vê aparecer o homem que estava com ela, que era mais velho, e quando a câmara volta a mostrar o parque, e o mesmo enquadramento de câmara que antes apanhava o casal, não se vê mais o homem, como se ele tivesse fugido. A rapariga volta para o parque, atravessando toda a parte da relva onde antes estava com o homem e Thomas volta a trás e fotografa-a a correr, indo embora. Mais tarde, quando o fotógrafo chega ao estúdio, a rapariga está lá à porta, o que muito surpreende Thomas, pois não lhe tinha dado nenhum endereço. Ela insisti nas fotos, que as quer. Entram ambos no estúdio. Depois de alguns jogos, Thomas decide dar-lhe um rolo, como se esse fosse o rolo das fotografias da rapariga aos beijos. Não se vê eles a fazerem amor, mas fica implícito na montagem do filme. E ela vai embora deixando-lhe um número de telefone (que se irá revelar falso, mais tarde). Depois disto, ele finalmente entra na câmara escura e vai revelar as fotos. Nesta revelação depara-se com algo estranho, como se a rapariga num dos abraços ao homem estivesse a olhar à procura de algo ou de alguém. Volta à câmara escura e revela novamente as fotos mas partes aumentadas das mesmas. Com isso consegue vislumbrar o cano duma pistola entre os arbustos, que estaria evidentemente na mão de alguém. De imediato telefona a um amigo, que já antes aparecera no filme como sendo editor de uma revista de arte, falando da sua descoberta e dizendo que tinha salvo a vida de alguém, pois se não tem aparecido naquele momento para tirar as fotos, provavelmente ele teria sido morto. O outro não lhe dá atenção nenhuma e desliga o telefone. Thomas volta para a câmara escura, faz mais ampliações das fotos e descobre, numa das fotos últimas que tirou quando a rapariga corria, aquilo que julga ser um corpo caído entre a relva e perto dos arbustos. Já é de noite, mas ele volta assim mesmo ao parque e encontra o corpo caído junto aos arbustos. Não tinha levado a câmara com ele e regressa ao estúdio. Quando regressa, o estúdio tinha sido assaltado. Estava tudo remexido, faltavam inúmeros rolos e as fotos que ele tinha revelado desapareceram. Aquilo que está em causa aqui é o poder da revelação. À medida que Thomas vai revelando as fotos, ampliando mais as partes que lhe importam, mais se vai vendo acerca do que parece ter acontecido. O que parecia ser apenas arbustos, com o exercício do aumento da revelação, deixa ver que há entre os arbustos o cano de uma pistola. E isto é o que Heidegger faz em relação aos textos que lê da Grécia Antiga. Por exemplo, quando a tradição filosófica traduzia alethéia por verdade, Heidegger, no seu exercício de revelação, de aprofundamento da leitura, vai dizer que alethéia é uma palavra composta “a” (negação) + “lethe” (esquecimento) que quer dizer “desvelar” (des + velar); ou seja, a palavra quer dizer des-tapar, des-cobrir. Alethéia quer dizer que algo que estava antes encoberto, passa a ficar a des-coberto. Por conseguinte, Heidegger vai revelando mais, vai indo mais fundo na análise que faz, fazendo com que se veja o que não se conseguia ver antes, sem essa revelação. E a isto chama-se hermenêutica, o exercício de interpretar ou de revelar o texto. Podemos ver de modo muito mais alargado no texto “O dito de Anaximandro” (in Os Caminhos da Floresta, pp. 371-440, na edição da Gulbenkian, 2014, 3ª edição), onde Heidegger começa por colocar o excerto de Anaximandro em grego, seguido da tradução levada a cabo pelo jovem Nietzsche, em 1873, para depois nos “revelar” aquilo que ainda, segundo ele, ficara escondido. O exercício de pôr a descoberto aquilo que o texto esconde, mas que está lá como essencial, sem o qual ficamos apenas a ver arbustos onde estava escondido alguém prestes a assassinar outrem. Voltando ao Blow Up, se Thomas não faz esse exercício de revelação, não ficaríamos a saber o que na realidade se estava a passar no parque. Pois aquilo que parecia ser um casal de amantes num tempo idílico, era afinal uma emboscada, um plano maquiavélico para assassinar uma pessoa. Pôr a descoberto ou revelar aquilo que não se deixa ver por si mesmo é o que se chama acto hermenêutico por excelência.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasAparição, desvio e paixão [dropcap style= ‘circle’] O [/dropcap] filme é protagonizado por Jaime de Freitas e Victória Guerra e foi rodado na cidade de Évora, onde Vergílio Ferreira foi professor. Chegou a esta cidade em 1945 na qualidade de professor de Português após a licenciatura em Filologia Clássica na Universidade de Coimbra em 1940. O filme que agora chega às salas de cinema teve o galardão para o melhor filme português no Festival Internacional de Cinema Fantástico do Porto 2018, e não foi aceite em Veneza, Cannes e Berlim. Alberto Soares, é o nome do personagem e é professor no colégio Espírito Santo, nome atual do na época Liceu de Évora.. A história passa-se nos anos 50, num Portugal onde uma burguesia rural tinha evidentemente assento e vida na cidade, mas em que cidade e campo eram realidades muito diferenciadas. Évora, cidade milenar, vivia em adormecimento uma anemia do sangue onde as vontades tem normas a cumprir. P “status quo” é o de uma ordem a manter em que nada se questiona, mas, como sempre e mesmo sem que saiba porquê, é impossível estancar a curiosidade, estancar da vontade, estancar o desejo, estancar a dor. O abismo pode chegar da forma mais inesperada, pelo crime ou pelo suicídio. Por vezes, demasiadas vezes, alguém decide o tempo do fim. É uma cidade que habita uma planície onde a força telúrica da terra e o excesso do sol encontram caminho, de certa forma paradoxalmente, no gélido território da morte. Não raras vezes alguém se abraça em excesso à corda e o corpo quando impedido de respirar não vive. O Alentejo telúrico e suicidário, é nos anos 50, um lugar distante, de contrastes fortes de sol e sombra, de sonhos por vezes indizíveis, onde o desejo caminha por vezes demasiado próximo da morte. Neste Alentejo de espaço e sol a opção do realizador foi por um tempo de inverno, nuvens e chuva, uma outra forma da dimensão trágica dos céus. Há na postura em aula de Alberto Soares, professor, e na relação que estabelece com a turma de alunos de português, que o aproxima desse grande sucesso cinematográfico que foi, é, o “ Dead Poets Society” de 1989 , escrito por Tow Schulman, realizado por Peter Weir e genialmente interpretado por Robin Williams, um filme que aproximadamente custou $ 16 400 000 e que fez um encaixe de $ 140 000 000 . A aproximação é tímida, a relação entre os alunos e o professor e entre o universo poético e a rigidez institucional do programa escolar é um apontamento, e não o corpo do desenvolvimento narrativo do filme. APARIÇÃO também outro orçamento, não anda longe dos € 700 000 se acumularmos os diferentes apoios nas diferentes fazes do filme e o seu box office, se cobrir se vier a cobrir esse custo já será um enorme êxito, uma aparição de sucesso na cinematografia nacional. Contingências de um cinema produzido num país que tem a sua maior distribuidora focada no “grande universo “ doméstico, e onde muito provavelmente toda a cultura é mais uma chatice do que uma área de trabalho para os ilustres governos da nossa não menos ilustre democracia. O caminho escolhido pelo realizador e que é também o caminho da obra literária escrita em tempo anterior ao filme referido note-se, tem o enfoque noutras relações “desviantes” não só literárias. O dos corpos habitados pela tensão de Eros. No quadro dos comportamentos ordenados, submissos e em regra com as leis da igreja e códigos civis, quais os comportamentos que resultando da força do sangue nas enzimáticas sinapses do cérebro, capazes de alterar a cor, a dureza e a liquidez da carne, o não são? É por isso que há uma moralidade volátil que acompanha o que de alguma forma se poderia chamar alter ego dos tempos se o tempo for também metafísica, prova-o código civil de hoje não ser igual igual ao de ontem, nem ao do próximo século, e também nunca o mesmo em todos os lugares e culturas. No filme APARIÇÃO, Alberto Soares é o Virgílio Ferreira, há uma cena já na resolução do filme em que surge como o autor, e tem na relação com a jovem Sofia, filha do médico da cidade, o Dr. Moura, amigo do pai do Alberto Soares. A aproximação acontece no decurso de explicações de Latim , língua clássica Indo-Europeia derivada do alfabeto Etrusco e Grego e um dos mais importantes instrumentos do poder do Império Romano. À jovem Sofia as línguas mortas causam pouco entusiasmo, é mais aborrecimento mesmo do que a excitação do conhecimento, e a presença do professor, homem bem parecido e com autocontrole, – enfim o possível- das emoções e pulsões eróticas, e as aulas particulares são um momento em que o tédio dos dias pode ser anulado pela agitação do sangue no exercício da sedução, jogo sempre com perigos, mas com os prazeres do flanar nos territórios do pólen e do mel. Despertam-se outras línguas, as línguas que se tocam, e nesse toque falam e tecem a volúpia doce e húmida do prazer dos corpos. A aparição surge nos caminhos dos territórios não inteiramente coincidentes com a vida higiénica , mas também insalubre, da vida inteiramente civilizada e normativa, da vida útil, do casamento, da igreja e dos filhos, da acumulação de património e da sucessão dos bens. A vida esperada numa cidade rural dos anos 50 em Portugal, e em tantos outros lugares no mundo. Sofia, é uma personagem luminosa, inquieta, representada pela Victoria Guerra, com aquele ancorar movediço nas emoções do contemporâneo estou aqui mas também não estou, quero e não quero, sou poço que incendeia, fujo para me agarrares, sou livre? do amor líquido sociologicamente caracterizado pelo Zygmunt Bauman no seu ensaio sobre a fragilidade dos laços humanos. Neste sentido a Sofia é uma personagem que habita mais este nosso tempo do que os idos anos 40 e 50 na Évora das pedras caladas. Esse jogo em que vê reflectida a beleza que encontra quando se olha no espelho, bem como os caminhos usuais dos laços sociais e económicos que os laços entre os filhos constroem nos patrimónios das famílias, leva-a um namoro com um futuro latifundiário, agora adolescente e aluno de liceu na turma do professor escritor. É o Carolino, – numa interpretação convincente e subterrânea do João Cachola-, jovem desperto para dimensões perigosas do ser nas elevações do espírito nas aulas de Português. Há um combate entre um proto-fascismo em que se percebe a presença das correntes da força futurista do inicio do séc. XX e o existencialismo que na época , e também hoje, tinha em Sartre o nome mais visível. Vergílio Ferreira, Alberto Soares, acolhe e é expressão desse existencialismo, por vezes com forte apego ao hedonismo dos sentidos, mas sempre atento ao mistério e deslumbramento. É uma batalha que vai ter um final de tragédia. Em que a violência final é uma vez mais exercida no corpo da mulher. Confrontado com a cegueira do poder e do ciúme, com afastamento da experiência do habitar o corpo do mel, CAROLINO preso a uma iluminada cegueira mata. E mais, mais uma vez, a tragédia anunciada desde o início dos tempos tem lugar, desta vez como em demasiadas outras vezes, no corpo feminino. APARIÇÃO é uma sucessão de confrontos e descobertas onde uma certa sabedoria atávica presente no discurso do reitor, personagem interpretada por João Lagarto, quando aconselha o recente professor a outros temas nas suas redações, tipo caridade, bons costumes, bons filhos e bons pais, diz essa personagem que com esses temas tudo fica bem, os pobre os ricos e os remediados, pode parecer ter sentido. E na verdade tem, o da anemia do sentir. A aproximação do actor Jaime Freitas ao personagem, foi segundo o próprio, muito orgânica e apaixonante dado o mergulho no universo do Vergílio Ferreira ter sido uma comunhão de sentidos e interrogações. Victoria Guerra, a protagonista, entregou-se também, como ela própria o disse, de forma aberta e orgânica à personagem, à direção do Fernando Vendrell e ao jogo próprio da representação com os atores com quem contracena, em particular com Jaime Freitas. Há referencias cinematográficas totalmente explicitas como é o caso do desenho do enforcado que nos chega vindo do filme JAIME, do António Reis e da Margarida Cordeiro, realizado em 1974 ano do golpe de Estado que mudou a hegemonia dominante a ocupar o aparelho do governo em resultado do necessário acompanhar o movimento do mundo, coisa em se continua por aqui sempre com várias passadas de atraso, não por virtuosismo, mas por incapacidade. É sempre interessante falar do JAIME, filme surpreendente na sua materialidade completamente ao lado da agitação social da época e na sua expressão formal onde se joga a contaminação do documentário e da ficção, é como que um cometa a atravessar o céu no cinema por cá produzido nesse momento. É talvez a uma forma, de o realizador Vendrell, afirmar o seu alinhamento com a denominada escola portuguesa de cinema. Esta “Aparição”, teve inicio com uma proposta de escrita de argumento do João Milagre e Fátima Ribeiro, professores na Escola Superior de Teatro e Cinema, ao Produtor Fernando Vendrell. A proposta foi a concurso no ICA para apoio à escrita em 2005, teve dinheiro, e o filme foi escrito. Esteve posteriormente num concurso em que o realizador era o Mário Barroso, nesse concurso não teve apoio, e mais tarde, num novo concurso, obteve o necessário apoio para a produção. Filme conseguido, menor que a obra literária, mas com um notável e esforçado trabalho da equipa técnica e artística. Para outros voos o filme precisaria de um segundo acto mais desenvolvido permitisse novas contaminações e folgo narrativo, isso implicaria necessariamente maior orçamento e mais tempo do que as 5 semanas de rodagem. Foi montado em 6 semanas e teve inicio conceptual em 2005, em 2018, esta semana, chega às salas de cinema em Portugal. Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no concelho de Gouveia, distrito da Guarda, a 28 de janeiro de 1916 e morreu em Lisboa a 1 de março de 1996. É considerado um dos mais importantes escritores do século XX, estando a sua produção literária dividida em dois períodos: neorrealismo e existencialismo. Enquanto adolescente estudou num seminário e mais tarde na Universidade de Coimbra sendo que da sua experiência no seminário resultou uma das suas mais importantes obras, Manhã Submersa, publicada em 1953 e adaptada para filme em 1980 por Lauro António. O autor trabalhou a maior parte da sua vida como professor em escolas por todo o país e recebeu vários prestigiantes prémios, entre eles o Prémio Femina em 1990 – um dos mais importantes galardões literários franceses – o Prémio Europália em 1991 pelo conjunto da sua obra e o Prémio Camões um ano mais tarde. A sua ligação a Évora começou, em 1945, altura em que chegou à cidade para dar aulas no então Liceu Nacional, atual Colégio do Espírito Santo – o principal edifício da Universidade de Évora – onde foi professor até 1959, o ano em que publicou Aparição. Para além do contexto autobiográfico, na criação deste livro o autor extrapolou a sua vivência pessoal de forma a aprofundar a narrativa e os temas da obra, utilizando pessoas suas conhecidas como modelos para as personagens do romance. Escrito na primeira pessoa, Aparição transporta teorias filosóficas relacionadas com o existencialismo. A partir deste momento, Vergílio Ferreira constrói uma história que dificilmente pode ser esquecida e confirma o sucesso internacional de um livro que é considerado um dos dez romances portugueses mais importantes.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e Ideias“O Grande Domador”, de Dimitris Papionnou Um dos primeiríssimos talentos da dança contemporânea, esteve no grande auditório do CCB no 2 e 3, integrado na programação DE ZEUS A VARAUFAKIS – A Grécia nos Destinos da Europa. Neste séc. de reorganização geopolítica do mundo, que confirma o que desde os anos 60 do séc. XX se tornou a cada dia mais claro: “A path for redefinition and strengthening of diplomacy is assumed, in order to structure and consolidate active presence in the reformulation of World Governance; this implies the expansion of and independent Chinese policy towards the consolidation of peace”1 cuja liderança é cada vez mais a RPC, confirmando o que a 14 de Setembro de 2005 no discurso das Nações Unidas, o Presidente Hu Jintao, afirmava ; a adesão da diplomacia Chinesa ao multilateralismo, abandonando a diplomacia cautelosa e defensiva dos contactos bilaterais e pouco atuante nos fóruns internacionais que desde 1978, quando a RPC decidiu abrir-se ao mundo vinha praticado, a Europa precisa de forma urgente e decida de se repensar. Cronos, filho de Urano – o céu estrelado e de Gaia – a terra, é de facto o grande domador e também aquele que na sua forma mais traumática representa o problema da terra do humano. É dito que Cronos, o mais iniciático e arquétipo edipiano, incitado pela mãe castrou o pai. A Terra é desta forma separada do Céu. Podemos ver aqui um paralelismo com a expulsão do Paraíso, aí não pela castração, mas pela vivência do prazer e a ousadia da interrogação ficando para sempre impossibilitada a bem aventurada e pacata felicidade dos pobres de espírito. Cronos vive ele próprio um conflito entre a força do novo e a potencia que encerra e o saber e poder que não sendo néscio a permanência no discurso do tempo permite. Torna-se o canibal que devora os próprios filhos, o mais temível e repulsivo, mesmo que a clareza do espírito afirme que o crime não é menor se o sangue tiver outra filiação. Zeus, seu filho, foi dele escondido, cresceu, combateu o pai, expulsou-o do Olimpo e obrigou-o a vomitar os irmãos. Mas ser expulso do Olimpo por mais doloroso que possa ser não é igual à morte. Cronos está ele próprio condenado ao tempo, outros, os Deuses não expulsos do Olimpo, tem outra imortalidade, um outro eterno, onde os lábios das abelhas é generoso no sugar e na produção do mel e o sol, é sempre quente, e no sangue nunca a anemia impede a ereção dos corpos, presume-se. Talvez vidas desocupadas em demasia. Mas deixemos os deuses dado que não temos outra possibilidade que não a de sermos homens. Já avancei por algumas vezes a ideia da Europa pós-modernista, num modelo que retome a maturidade do pensamento clássico no contemporâneo, não um regresso ao renascimento, tempo maior na história recente da Europa com os erros hoje mais fáceis de reconhecer de um exagerado positivismo, mas um Pós- Renascimento, em que o eurocentrismo definitivamente de lugar a um olhar mais próximo do olhar de deus sobre o mundo, ou se quisermos uma referencia tecnológica, um olhar a partir do satélite, global, mas com as referencias humanistas da Grécia Antiga, sem desperdiçar toda a escola filosófica, artística, cultural científica, com que se materializa este enorme e imaterial património mundial que é o espaço europeu. O Mestre Almada Negreiros, esse Português sem mestre, como a si próprio se definiu, viu na Ibéria a cabeça da Europa. Talvez que seja tempo de ultrapassar fantasiosas barreiras dos corpos, afinal pernas sem cabeça não passam de desenhos animados. A Europa constrói-se com o mediterrâneo no seu centro e não como hoje, com o mediterrâneo lugar de fronteira. A Europa, ou melhor, os europeus, precisam com urgência de perceber que o tempo do Eurocentrismo terminou algures antes do meio do séc. XX , e que ser Europeu é um diálogo permanente com o mundo todo, e quanto mais em igualdade, mais feliz e produtivo. O Grande Domador, The Great Tamer, é uma criação a todos os níveis notável. O trabalho performativo com os atores/bailarinos é um plano sequência brilhante onde o tempo é matéria e os corpos se reinventam e interrogam. Uma maquinaria cénica invisível cria a existência de 3 planos, a superfície ou crosta espaço da representação, o em baixo ou potencia de onde surgem corpos, terra, artefactos humanos, e o acima, o manto do ar respirável onde por vezes se voa e até a outros planetas de ar mais rarefeito e outra força de gravidade. A relação entre os três territórios é permanente, fluída e mágica. Tudo acontece como num plano cinematográfico em sequência, sem cortes, numa sucessão continua de imagens que fluem com o encantamento de um discurso alicerçado na poética da imagem, construída na acção e respiração dos corpos na relação tridimensional com o espaço e o tempo da música de John Straus. De alguma forma o que é dado a ver, continua a mais famosa elipse temporal da história do cinema, quando Kubrick, na abertura do 2001 Odisseia no Espaço, (1968), transforma o osso de fémur humano em artefacto, ferramenta e arma, em nave espacial. É uma elipse cinematográfica com o tempo da civilização, o tempo da descoberta e realização do humano. Aqui, em The Great Tamer, o maravilhamento e a interrogação sobre o próprio, o outro, sobre o lugar, o território onde pode acontecer o maravilhamento, permanece e continua em sucessivos quadros de visualidade poética que convoca signos e quadros da história da pintura, e do cinema, como já referido. Os corpos experimentam outras possibilidade de corpo, o género questiona-se a si mesmo, reinventa-se em novas possibilidades. O uno e o múltiplo é um movimento imparável, e o espanto, os caminhos em potencia, múltiplos. Somos confrontados com um criação artística rigorosa na execução de uma maquinaria cenográfica, na ocupação e desenho do espaço pelos corpos , na imagética conceptual performativa. Johann Strauss, na adaptação de Stephano Droussiotis, cria a dinâmica sonora perfeita para esta metamorfose e fluidez continuada dos corpos. Duas horas de grande fruição estética que terminaram com a sala do grande auditório do CCB em pé e em entusiásticas palmas. Concepção e direcção por Dimitris Papaioannou Com Pavlina Andriopoulou, Costas Chrysafidis, Ektor Liatsos, Ioannis Michos, Evangelia Randou, Kalliopi Simou, Drossos Skotis, Christos Strinopoulos, Yorgos Tsiantoulas, Alex Vangelis Cenografia e direção de arte em colaboração com Tina Tzoka Colaboração artística para os figurinos Aggelos Mendis Desenho de luz em colaboração com Evina Vassilakopoulou Colaboração artística para o som Giwrgos Poulios Desenho e operação de som Kostas Micholoupos Música Johann Strauss II, An der schönen blauen Donau, op. 314 Adaptação musical Stephano Droussiotis Design de escultura Nectarios Dionysatos Pintura de figurinos e adereços Maria Ilia Produtora criativa executiva e assistente de direção Tina Papanikolaou Assistente de direção Stephanos Droussiotis Assistente de direção e ensaiadora Pavlina Andriopoulou Direção técnica Manolis Vitsaxakis Manager de palco Dinos Nikolaou Engenheiro assistente de som Nikos Kollias Assistente do cenógrafo e do pintor de cenários Mary Antonopoulou Assistentes do escultor Maria Papaioannou, Konstantinos Kotsis Assistente de produção Tzela Christopoulou Manager da digressão e relações internacionais Julian Mommert Assistente executivo de produção Kali Kavvatha Produção Onassis Cultural Centre – Atenas Coprodução CULTURESCAPES Greece 2017 (Suíça), Dansens Hus Sweden (Suécia), EdM Productions, Festival d’Avignon (França), Fondazione Campania dei Festival – Napoli Teatro Festival Italia (Itália), Les Théâtres de la Ville de Luxembourg (Luxemburgo), National Performing Arts Center-National Theater & Concert Hall | NPAC-NTCH (Taiwan), Seoul Performing Arts Festival | SPAF (Coreia do Sul), Théâtre de la Ville – Paris / La Villette – Paris (França) Produtor Executivo 2WORKS Com o apoio de Alpha Bank
Hoje Macau EventosProdutora de cinema Weinstein Company vai declarar falência [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] empresa norte-americana Weinstein Company, de produção e distribuição de cinema, vai declarar falência depois de terem falhado negociações para venda de ativos a um grupo de investimento. A decisão da administração foi revelada pelo jornal Los Angeles Times, depois de goradas as conversações para tentar salvar os ativos e os postos de trabalho da empresa, fundada em 2005 pelos irmãos Harvey e Bob Weinstein. Harvey Weinstein foi afastado da empresa em outubro do ano passado no seguimento de várias denúncias públicas de assédio e abuso sexual por dezenas de mulheres no meio cinematográfico. Segundo o Los Angeles Times, em discussão estava um acordo de 500 milhões de dólares que permitiria a um grupo de investimento, liderado por Maria Contreras-Sweet, ter o controlo total da empresa, alterar-lhe o nome e ter uma administração com um maior participação de mulheres. O acordo incluiria ainda a criação de um fundo de 40 milhões de dólares para a empresa compensar as mulheres que acusaram Harvey Weinstein. As negociações falharam no início de fevereiro depois de o procurador-geral de Nova Iorque ter apresentado uma ação judicial contra a empresa e os seus fundadores. Os irmãos Bob e Harvey Weinstein, que em 1979 fundaram os estúdios Miramax, produziram dezenas de filmes e séries de ficção e entertenimento premiadas. Entre os filmes com maior sucesso de bilheteira contam-se “Sacanas sem lei” (2009) e “Django libertado” (2012), ambos de Quentin Tarantino, “O discurso do rei” (2010), de Tom Hooper, “Guia para um final feliz” (2012), de David O. Russell, e “O mordomo” (2013), de Lee Daniels.
Hoje Macau EventosRealizador Guillermo Del Toro preside ao júri do próximo festival de Veneza [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] realizador mexicano Guillermo Del Toro vai presidir ao júri da próxima edição do festival de cinema de Veneza, anunciou a organização. Del Toro foi o vencedor, em Veneza, do Leão de Ouro no ano passado para melhor filme com “A forma da água”, filme que conta, nas categorias dos Óscares de Melhor Guarda-Roupa e Melhor Montagem de Som, com dois nomeados de origem portuguesa. Segundo comunicado do festival de Veneza, onde Nuno Lopes venceu o Leão de Ouro para melhor actor em 2016, Del Toro disse que a presidência do júri da 75.ª edição do evento é “uma imensa honra e responsabilidade” que aceitava com respeito e gratidão. “Veneza é uma janela para o cinema do mundo e uma oportunidade para celebrar o seu poder e relevância cultural”, acrescentou. Por seu lado, o director do festival, Alberto Barbera, disse que Guillermo Del Toro “personifica a generosidade, um amor pelos filmes passados ou futuros e uma paixão pelo tipo de cinema que pode acender emoções, afectar pessoas e, ao mesmo tempo, fazê-las reflectir”. “A forma da água” lidera as nomeações da 90.ª edição dos Óscares, que serão entregues a 4 de Março, em Los Angeles, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Actriz. “A forma da água” disputa a categoria de Melhor Filme com “Chama-me pelo teu nome”, “A hora mais negra”, “Foge”, “Lady Bird”, “Linha Fantasma”, “The Post”, “Dunkirk” e “Três cartazes à beira da estrada”.
Miguel Martins PolíticaEntre Zelig e Maigret Pulvis et umbra sumus. HORÁCIO [dropcap]C[/dropcap]onforme prometido na semana passada, seguem-se algumas histórias, historietas e reflexões avulsas. Creio que, a par das que há já alguns meses vos venho confiando, serão reveladoras de um aspecto da minha personalidade no qual, modestamente, emulo o grande Comissário Maigret, criatura maior de Georges Simenon e o Zelig de Woody Allen: a vontade de ser toda a gente, de me fundir com todas as paisagens físicas e humanas com que me cruzo, o que, certamente, resulta em que seja uma pessoa de traços pouco claros, dificilmente apropriável, talvez mesmo vaga. Mas, agora, é tarde para mudar e, na verdade, não me parece que conseguisse aprender a ser de outro modo. Passemos, pois, adiante, na costumeira toada: 1 – D., arqueólogo, estava cansado de ouvir um museólogo cujo trabalho se centrava, sobretudo, nos chamados ecomuseus e cuja personalidade era, sem dúvida, algo autocentrada. Teve, então, a seguinte tirada: “É natural que te interessem os ecomuseus, porque são os únicos museus com eco: ecomuseu — eu, eu, eu…”. 2 – F., um amigo que, trabalhando para a O.N.U. e para a Cruz Vermelha, tem vivido as últimas décadas entre teatros de guerra e de fome, encontrava-se algures na Indonésia, a gozar umas miniférias da sua participação no processo de estabilização da independência timorense. Ao abandonar uma esplanada, foi abordado por um meliante local que, a cada recusa sua, lhe propunha um novo item de uma infinda ementa de iniquidades: drogas leves, drogas duras, meretrizes, mancebos, etc. Após uma última e enfática recusa, o dito malfeitor deu-se por vencido durante alguns segundos, mas, vendo, subitamente, uma luz ao fundo do túnel, aventou ainda: “Óculos escuros?”… F. não pôde deixar de sorrir face ao inesperado downgrading das mercadorias e, apesar de tudo, lá lhe comprou um par de lunetas. 3 – Ernesto Sampaio foi um dos mais interessantes escritores e críticos da segunda metade do século XX português. O seu livro “Fernanda” (editado pela Fenda em 2000, um ano antes da sua morte) é uma das mais belas elegias da língua. Ora, nos últimos meses da sua vida, tive oportunidade de beber bastantes copos com o Ernesto, num bar que então tinha no Bairro Alto (o mesmo se podendo dizer, pasme-se, de Cleonice Berardinelli, decana dos estudos portugueses no Brasil). Num texto publicado em 2013, o enorme Manuel da Silva Ramos recordaria: “(…) convidei o Ernesto para jantar n’A Provinciana, que é uma tasca ali perto do Coliseu, por detrás do Teatro Nacional. O Ernesto veio e comemos sardinhas. Ele andava cada vez mais triste mas o nosso jantar foi mais uma vez um modelo de humor, de como o riso pode ser a salvação do mundo. Rimos muito como dois desesperados absolutos e bebemos bem e no final levei-o ao Bairro Alto. Continuámos a beber e isso fazia-lhe bem. O Miguel Martins tinha nessa altura um bar na rua da Rosa e foi aí que levei várias vezes o Ernesto para ver se o trazia de novo à vida. O Miguel, grande admirador da obra do Ernesto, nunca nos deixou pagar nada. Bebíamos pois no meio da juventude, no meio da agitação geral”. 4 – Também conheci Fernando Lopes-Graça, nas comemorações de um seu aniversário na sua cidade natal de Tomar. Disse-me que, havia não sei quantos anos, não abria um piano. Para compor, bastavam-lhe a imaginação e a ciência, sem necessidade de verificação sonora. O mesmo constatei, anos mais tarde, suceder, por vezes, com António Victorino de Almeida, a meias com quem escrevi quatro canções para uma peça de Gogol encenada por Maria do Céu Guerra. Cinco linhas nas costas de um envelope ou num guardanapo de papel e a música flui. 5 – A dado momento da minha vida, após anos de audições musicais e reflexão sobre elas, decidi dedicar parte da minha limitada criatividade à “improvisação não-idiomática”, o que teve como corolário a gravação de bandas-sonoras para vários filmes e séries de televisão e, sobretudo, a edição, em 2014, do CD “Dada Dandy: A Favola da Medusa feat. George Haslam” pela prestigiada editora Slam Records, em cujo catálogo pontificam todos os nomes maiores do free-jazz britânico e, bem assim, luminárias como Max Roach ou Mal Waldron. Mas, antes disso, tocara já, por exemplo, com músicos como Anabela Duarte (dos Mler ife Dada), Beverley Chadwick (saxofonista de Robert Wyatt), Dennis González, Floros Floridis, Filipe Homem Fonseca (meu irmão siamês na música e membro do inenarrável duo Cebola Mol), Gail Brand, Jon Raskin, Ken Filiano, Patrick Brennan, Rodrigo Amado ou Wade Matthews, o que é para mim um privilégio e um prazer ímpar. Este último, no folheto do seu disco “Oranges”, escreve: “Imagine we’re eating dinner at Miguel Martins’ house. Imagine the wine is extraordinary. Miguel has brought me to Portugal to play three concerts, and I end up playing four…a real treat.” 6 – Tenho tido, também, a oportunidade de ver letras minhas registadas em disco por artistas como Marco Rodrigues, Cuca Roseta, Carla Pires, João-Paulo Esteves da Silva, Fernando Alvim ou Ciganos d’Ouro. E de ter poemas meus gravados na Sérvia e no Brasil. É uma experiência curiosa, essa de ouvi-los, em vez de lê-los. 7 – Elogio da dispersão: “Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo”, Agostinho da Silva. 8 – No meu caso, como em muitos outros, a acumulação destas actividades só é possível mediante o abandono das expectativas económicas que a maior parte dos cidadãos portugueses consideraria mínimas e pelo desenvolvimento de estratégias de sobrevivência quase sempre bastante fastidiosas. E é castrador que assim seja. Não posso deixar de pensar no que seria a produção de tantos e tão talentosos amigos caso não tivessem de debater-se com tais constrangimentos. Mas, pelo menos por cá, tarda em cimentar-se a percepção colectiva do facto óbvio de que ter gente confortavelmente dedicada à produção cultural é caro, mas que muito mais caro é não tê-la.
Carlos Morais José A outra faceUma permanente obsessão [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vejo um filme passado em Macau, independentemente da sua qualidade, fico sempre fascinado pelas imagens, quase estupidificado e, ao mesmo tempo, submerso numa catadupa inenarrável de emoções. A coisa agrava-se quando a história retrata gente de Macau e o seu quotidiano. Tenho então um prazer quase voyeurista em entrar na casa das pessoas, dar pelos seus objectos, pelas fotografias sobre móveis de fórmica, as músicas trauteadas, os restos das vidas espalhados pelas mesas, pelas cadeiras, pelo chão. Produz-se em mim um estranho reconhecimento de algo que realmente nunca presenciei, uma familiaridade com o que nunca vivi, um estranho sentimento de pertença, de partilha, meramente imaginário da minha parte. Terei alguma vez entrado num apartamento parecido com aquele? Seria tarde e agora não me lembro. Ou talvez isso nunca tenha realmente acontecido. Isto ocorreu-me ao ver o filme “Sisterhood”, da realizadora de Macau Trace Choy. Independentemente da história ou do tema, a mim bastariam as imagens para me manterem agarrado ao ecrã, invadido por uma catarata de emoções. Por quê? Afinal, os ambientes retratados não são meus conhecidos mas algo dotado de uma existência pressentida. Não são sítios onde vivi mas espaços ocultos ou inacessíveis, que fazem parte do quotidiano de toda esta gente que me rodeia, mas aos quais o meu acesso é basicamente nulo. São os milhares de vidas à minha volta, envoltas sempre no mistério da sua cultura e na abissal diferença do seus desejos. Então por que razão isto me perturba tanto? Que tenho eu a ver com isto? O filme em si é excelente, a história transporta-nos entre a cidade pré e pós crescimento desmesurado do Jogo. Existe a nostalgia do que existiu e desapareceu e um enorme vazio, unicamente colmatado pelas relações que restam do passado, mas que os novos ritmos tornam obsoletas. Tudo isto bastaria para tornar este um bom filme. Mas, para mim, é a presença da cidade, dos perfis e dos contornos, das pessoas e dos lugares, reais, imaginários e ou desaparecidos, que realmente me fascinou e com certeza me vai obrigar a rever várias vezes. Por quê esta minha tão estranha e permanente obsessão, que me faz ir da lágrimas ao riso, da estupefacção à euforia, da saudade à tristeza e ao desespero?
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasBiografias e paradoxos [dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]rando — nalguns momentos de alguns contextos, um actor absolutamente extraordinário — é uma das minhas grandes embirrações, só superado pelos seus discípulos/lacaios Anthony Perkins e James Dean. Suponho que para partilhar da minha posição baste ler a biografia “Brando Unzipped” (“Brando mas pouco”), escrita por Darwin Porter. O actor assinou, em tempos, uma autobiografia, “Songs my mother taught me”, mas, nessa, tudo é revestido por uma sobrecapa de edulcorante cor-de-rosa. Gosto de biografias. À antiga, encomiásticas ou mesmo romanceadas. Quanto a esta nova tendência, desbocada e sem freios, devo confessar que me deixa, muitas vezes, perplexo. Que move estes biógrafos? É que Porter expõe, implacavelmente, o carácter e o comportamento do actor e os efeitos nefastos destes sobre quem o rodeava. A sua homossexualidade frenética, que funcionava a par de uma heterossexualidade ora vingativa ora cosmética, são centrais à análise que realiza. Bem assim, não poupa outras estrelas de Hollywood – a pedofilia de Spencer Tracy ou o masoquismo brutal de James Dean, por exemplo, entre muitos outros homossexuais encapotados, chocará quantos, ao longo de décadas, abrigaram os seus sonhos burgueses à sombra das mistificações dos grandes estúdios. O “closet” de Rock Hudson é, à luz do que é exposto nesta obra, algo de absolutamente trivial, embora o mal-estar que isso lhe causava fosse tanto que lhe provocou um tique que lhe destruía, continuadamente, a unha do polegar direito. Outras biografias têm revelado factos deste teor: Em “De Niro: a biography”, por exemplo, John Baxter expôs a homossexualidade do pai do actor, o pintor e escultor Robert De Niro, Sr., que chegou a ter um envolvimento amoroso com o enorme Jackson Pollock. Aliás, recentemente, De Niro filho assumiu o facto, com toda a naturalidade, acrescentando que teria gostado de discutir o assunto com o seu progenitor. “Ginsberg: A Biography”, de Barry Miles, entre muitos outros factos potencialmente chocantes, aborda as relações sexuais entre o escritor beat e o irmão mais novo, deficiente mental, do seu namorado. Ao escrever estas linhas, ando a ler uma espécie de autobiografia do romeno Ion Pacepa, responsável pelos serviços secretos de Nicolae Ceaușescu, em que a homossexualidade de Yasser Arafat é revelada. Repito: Que move estes biógrafos? No caso do último livro referido, trata-se, claramente, de um ajuste de contas. Mas, quanto aos demais, os seus autores são, supostamente, admiradores dos biografados. E, contudo, parecem achar por bem expor factos que os mesmos preferiram não publicitar. Porquê? Guiá-los-á uma espécie de moralismo? Se sim, parece-me altamente imoral (como, aliás, os moralismos quase sempre são). Ou estarei a complicar o que é simples e o objectivo dessas manobras será, simplesmente, vender livros, ganhar dinheirinho, à custa da privacidade alheia? Depois destas leituras, como é bom regressar a qualquer uma das vibrantes biografias que saíram da pena de Stefan Zweig e de que fui grande leitor na adolescência. A de Erasmo de Roterdão ou a de Fernão de Magalhães, por exemplo. Ou, até, à extensa e imaginativa biografia de Camões assinada por Campos Júnior. Não há verdade que valha uma boa estória. Em minha defesa, devo dizer que nada de pessoal me move contra os referidos biógrafos. Aliás, Darwin Porter assina, com Danforth Prince, a 17ª edição (2002) do guia turístico Frommer’s relativo a Portugal e aí, a propósito de um bar que tive no Bairro Alto, afirma (e prefiro não traduzir): You don’t have to be an avid reader to enjoy this place, but the breadth and scope of literary knowledge that has been mastered by its owner might leave you deeply impressed. Miguel Martins, who’s usually tending the bar, teaches courses (…) on the history of Jazz, and welcomes everyone – from the most conservative to the most counterculture of hipsters – into his nightlife joint. Simpático. Confesso que me dá algum prazer ver-me referido em letra impressa. Apercebi-me disso bem cedo – teria uns dezasseis anos quando o South Shore Chronicle, um jornal da Nova Inglaterra, publicou uma série de artigos sobre Lisboa em que me era dado algum destaque, pois servia de guia ao jornalista, o meu amigo Leo Pilachowski. Ganhei-lhe o gosto. Bem mais divertida é a biografia do grande Robert Mitchum assinada por Lee Server e subintitulada “Baby, I don’t care”. Permito-me contar-vos dois dos episódios aí relatados: Numa entrevista, a dado momento, perguntam a Mitchum, actor da “velha guarda”, sem grandes preocupações metodológicas, acerca dos seus “registos”. Sendo que boa parte da sua carreira fora dedicada aos westerns, ele responde: “Como actor, tenho dois registos: com cavalo e sem cavalo”. Um outro episódio, de graça dificilmente traduzível, ocorreu quando Mitchum se preparava para contracenar com uma actriz muito religiosa e extremamente avessa a palavrões. Constrangido, um membro da produção abordou o actor, conhecido por praguejar muitíssimo: — Senhor Mitchum, ela instituiu uma espécie de caixa de esmolas. Se alguém disser merda tem de meter lá um dólar. Se disser porra, dois dólares. O actor interrompeu-o, perguntando: — And how much does she charge for a fuck?
Hoje Macau EventosMacau em destaque em ciclo de cinema em Lisboa [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] ciclo “Cinema Macau, passado e presente” é o evento que pretende levar à tela da Fundação Oriente um conjunto de filmes acerca do território. O objectivo é “desvendar a pluralidade de olhares sobre Macau durante o século XX bem como após a transição para a administração do território pela China”, lê-se em comunicado enviado à comunicação social. Neste ciclo, com a curadoria da jornalista e crítica de cinema Maria do Carmo Piçarra, são revelados filmes do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), da Rádio e Televisão de Portugal (RTP) e do Centro de Audiovisuais do Exército (CAVE). Em sete sessões temáticas, entre 7 de Janeiro e 18 de Fevereiro, a programação começará por apresentar a percepção, durante o Estado Novo, de realizadores portugueses – tanto amadores (Antunes Amor) como profissionais que serviram a propaganda (Ricardo Malheiro) – sobre Macau, contrapondo imagens fixadas por cineastas estrangeiros ao serviço do regime, como Miguel Spiguel e Jean Leduc. A mostra inclui o olhar de Manuel Faria de Almeida, um dos fundadores do Novo Cinema português que, posteriormente, ajudou a criar a Televisão de Macau, sobre a antecipação das angústias dos residentes no território com a perspectiva da transição da soberania. Os dias de hoje Em contraponto a estas visões, apresenta-se a perspectiva contemporânea de jornalistas e das novas gerações de realizadores portugueses, que viveram ou visitaram (Guerra da Mata / João Pedro Rodrigues) ou vivem (Ivo Ferreira) no território, e o de uma realizadora sérvia (Nevena Desivojevic), que filmou, em Lisboa, a rememoração da vivência em Macau. O ciclo integra ainda investigações filmadas, assinadas por jovens jornalistas portugueses (Filipa Queiroz e Hélder Beja), que relevam traços da presença portuguesa durante o século XX. “Cinema Macau” fixa, finalmente, as inquietações, as aspirações e a sensibilidade da primeira geração de realizadores de Macau. Recorrendo a linguagens que vão do ensaio visual à animação, e usando sobretudo o formato da curta-metragem, os novos filmes feitos em Macau, entre outros, por Albert Chu, Leong Kin, Cobi Lou, Hong Heng Fai, Cheong Kin Man e Tracy Choi – de quem será apresentada também a longa-metragem “Irmãs” (Sisterhood) – reflectem as mudanças na paisagem, física e humana. De acordo com a organização, “aqui, os vestígios coloniais servem um certo onirismo e nostalgia, e evidenciam o paralelismo entre o crescimento da ilha e a multiplicação das imagens desta – e do mundo – numa sociedade de ecrãs”.
João Santos Filipe Manchete PolíticaAgnes Lam arrasa Festival Internacional de Cinema A deputada atacou o Festival Internacional de Cinema e defendeu que promoção da cultura vai além do convite para que as estrelas internacionais para passeiem na passadeira vermelha. Horas depois, deixou o hemiciclo antes de ser votado o debate sobre os órgãos municipais [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] deputada Agnes Lam criticou ontem a organização do 2.º Festival Internacional de Cinema, que considerou o evento um sucesso, apesar de precisar de oferecer bilhetes para ter pessoas nas salas. Na Assembleia Legislativa, a legisladora moderada frisou que uma actividade cultural que custa 20 milhões de patacas precisas de conseguir atrair os residentes. “De acordo com informações oficiais, 10 mil dos 15 mil bilhetes [distribuídos para a cerimónia de Entrega de Prémios do Festival] eram cupões que foram distribuídos principalmente às escolas, associações e a profissionais do sector cultural e artístico de Macau e do exterior, e da comunicação social”, começou por apontar Agnes Lam. “Esta iniciativa custou 20 milhões de patacas do erário público e deveria servir para atrair turistas e criar marcas culturais locais. Se até foi difícil convencer as pessoas a comprar bilhetes, como é que se pode dizer que a iniciativa alcançou os objectivos?”, questionou. Além da questão monetária, a legisladora admite que se registem perdas com o evento, se “o objectivo da actividade for cultivar um ambiente cultural”. Porém, mesmo nesse capítulo defende que é importante que seja registada uma elevada taxa de participação. “O Governo deve definir indicadores passíveis de rastreio, tais como a taxa de participação do pessoal local do sector cinematográfico, com vista a esclarecer a contribuição desta actividade para o desenvolvimento cultural”, apontou. “Não podemos só emitir notas de imprensa e convidar alguém a pisar a passadeira vermelha para dizer que a actividade promoveu o desenvolvimento cultural de Macau”, disparou a deputada, naquela que foi a sua intervenção mais agressiva na AL, horas antes de abandonar o hemiciclo quando se debatia o debate sobre a criação de órgãos não-municipais. Bilhetes à borla Por outro lado, a membro da Assembleia Legislativa apontou o dedo à oferta dos bilhetes, que diz prejudicar os residentes e turistas que se disponibilizaram para pagar pelos ingressos. “Os membros do Governo não devem ser ambiciosos e avançar com as actividades só por avançar, nem devem oferecer bilhetes para as salas não ficarem vazias, quando a atracção dos eventos é zero”, defendeu. “A oferta de bilhetes afecta a avaliação do Governo e dos cidadãos sobre os efeitos das actividades, é um desperdício de recursos, e afecta as pessoas que pagaram bilhetes, os residentes passam a criar o hábito da oferta de bilhetes, afectado gravemente a cultura de pagar, criado pelo sector cultural, bem como o desenvolvimento do sector e do ambiente de exploração”, acrescentou. Agnes Lam terminou a intervenção antes da ordem do dia, que antecede a agenda do Plenário, deixando o desejo que “as autoridades com responsabilidades na área cultural façam uma boa gestão, utilizem racionalmente o erário público” e “adoptem uma política cultural visionária, a fim de contribuírem verdadeiramente para o sector cultural de Macau”. O Festival Internacional de Macau é organizado pelo Governo, nomeadamente pelos Serviços de Turismo, que estão sob a tutela do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam.
Sofia Margarida Mota Eventos Festival Internacional de Cinema - EspecialLawrence Osborne, escritor e júri do IFFAM: “Macau é única” O livro “The Ballad of a Small Player” passa-se em Macau e pode vir a ser adaptado para o grande ecrã. A obra é de Lawrence Osborne que está no território enquanto membro do júri do Festival Internacional de Cinema. Para o escritor britânico, Macau é um lugar único [dropcap]É[/dropcap] a primeira vez que está a trabalhar com a área do cinema. Tenciona estar mais ligado à sétima arte? Já fui muitas vezes convidado para escrever guiões e sempre disse que não. Conheço muitas pessoas do mundo do cinema e sempre achei que era um negócio muito complicado. Envolve muito tempo junto de um público e envolve muitas questões relacionadas com dinheiro, o que para mim são tudo complicações. Se se é um escritor, sentamo-nos no nosso quarto sozinhos, fechamos a porta e estamos assim todos os dias, e isso é óptimo. É a única coisa me interessa. Mas, de facto, este ano está muita coisa a mudar porque tenho vários livros que podem vir a ser adaptados e, com isso, tenho de estar envolvido com todos os problemas associados. O que é que o fez mudar de ideias? Tenho cerca de seis livros publicados e dois para o serem. Já escrevi bastante e acho que vou tirar um ano de férias para fazer outras coisas e ver o que acontece. Por outro lado, também há muito dinheiro envolvido (risos) porque faz com que não tenha de me preocupar com essa parte durante uns tempos. Quando escrevemos livros andamos sempre falidos. Qual o seu interesse pelo cinema? O cinema é um mundo muito interessante. Às vezes até gosto mais de cinema do que, propriamente, de literatura. Vejo muitos filmes. Mas o mais importante é a arte narrativa, que é sempre uma arte. Há sempre uma história. Pintura e música são diferentes. Elas existem numa outra dimensão. Mas as artes narrativas estão ligadas. Quando vejo um filme e enquanto escritor estou sempre tecnicamente interessado no que está a acontecer na história. O mesmo acontece ao ver os filmes deste festival. Estamos sempre a perguntar-nos o que vem a seguir na história e, na maioria das vezes em que conseguimos perceber isso, não nos sentimos bem. Pensamos que se o mesmo acontecer quando alguém está a ler as nossas histórias, elas perdem a imprevisibilidade, e, para nós escritores, isso significa que são fracas. Já foi abordado acerca da possibilidade de adaptar o romance “The Ballad of a Small Player”, que acontece em Macau, para cinema? É uma opção. Aliás, quando sair deste encontro com os jornalistas, vou ter a minha primeira reunião acerca de um guião desse livro. Mas ainda não pensei nessa história ainda como um filme. Já o escrevi há alguns anos, pelo que há coisas que não estão frescas na minha memória. Quando escrevi “The Ballad of a Small Player”, não tinha em mente qualquer adaptação para cinema. Era apenas literatura. Era um conto de fadas chinês. Por isso, fiquei surpreendido quando me apareceram com a possibilidade de ser adaptado. Se calhar vão me pedir para fazer o screenplay, e se calhar vou pensar nisso. Com quem se vai reunir para o efeito? Não posso ainda dizer ao certo com quem, mas posso avançar que uma das pessoas é o director do festival Mike Goodrige. Só o conheci uma vez em Londres onde o trabalho dele é muito reconhecido enquanto produtor e é uma pessoa com muito bom gosto também. Aliás, isso pode ser constatado pelos filmes que temos neste festival, que são óptimos. Por vezes, nos festivais de cinema, os filmes conseguem estar muito longe de serem bons, mas neste, a qualidade está muito alta. Acho que é uma situação muito gratificante para Macau: ter todos estes filmes de grande qualidade em competição e em exibição. Todos nós, membros do júri, estamos muito surpreendidos. “The Ballad of a Small Player” é uma história que acontece em Macau e que trata da realidade do território. Como é que lhe ocorreu escrever este livro? A forma como as histórias começam é muito interessante porque não acontece de uma forma, aparentemente, lógica. Há uma pequena passagem no livro em que a rapariga está a relembrar uma oferta que fez num templo, e essa imagem era uma situação por que passei no Tibete. Na altura estava a fazer uma viagem pela China, escrevia para a Vogue e andava acompanhado com dois fotógrafos e dois tradutores. Não sabia porque é que estava ali ao certo, mas acabámos por ir a este lugar assustador, no meio de uma grande floresta com vista para um rio enorme. Era um sitio deserto onde estava um mosteiro gigante com cerca de 30 monges. O meu condutor de carro era um tibetano e de repente parou, entrou no templo, e deixou um monte de notas. Eu achei tão estranho. Aquela imagem ficou comigo e não tendo qualquer conexão com Macau acabei por fazer uma adaptação no livro. Foi assim, por exemplo, que nasceu aquela personagem do livro. Muitos dos livros que escreve são escritos depois de viver nos sítios onde a narrativa acontece. Isso também aconteceu com “The Ballad of a Small Player”? Não. Normalmente vivo nos lugares mas não vou para nenhum sitio para fazer pesquisa para livros. O processo é o inverso. Detesto essa coisa de alguém pensar em fazer alguma coisa sobre um lugar e ir lá para pesquisar durante duas semanas. Isso é treta e não funciona. É preciso conhecer realmente um lugar e para isso é preciso lá viver, caso contrário, é falso. Não vivi em Macau mas passei muito tempo aqui em 2001, 2002, 2003 e 2004. Na altura trabalhava para o New York Times e escrevia sobre os medicamentos psiquiátricos na Ásia. Mandavam-me para a China, para o Bornéu, a Indonésia, a Papua Nova Guiné, etc. Acabava sempre por regressar ou a Hong Kong, ou a Bangkok, que funcionavam como uma espécie de base de trabalho. Muitas das viagens que fazia eram à selva e eram muito cansativas. No final, no regresso, acabava sempre por passar, pelo menos, um mês em Hong Kong, para descontrair. Acabei por me habituar a vir a Macau, porque tinha muita curiosidade. Quando percebi que era tão diferente de Hong Kong, comecei a preferir Macau a Hong Kong e a ficar cada vez mais tempo em Macau. Era uma ligação estranha a que sentia, mas foi completamente acidental. Adorava esta atmosfera que não é nem portuguesa, nem chinesa. Não se vê uma mistura óbvia, mas Macau é única. A segunda razão porque comecei a vir para Macau, teve que ver com o vinho porque também fui um dos críticos de vinho da Vogue e Stanley Ho tinha a maior colecção de vinhos que existia no Hotel Lisboa. São milhares de garrafas. Foi muito interessante para mim porque não conseguimos encontrar este tipo de colecções muito menos feitas por um chinês. Daí existirem cenas no livro que se passam no antigo Robuchon. O jogo, nunca apareceu na sua vida? Sim, apareceu mas mais tarde. Tudo acontece numa sucessão. Quando passamos muito tempo num sitio, como eu passava no Lisboa a beber bastante vinho e sem conhecer ninguém, num lugar onde toda a gente circula à noite e a ver as pessoas a jogar, começa-se a jogar também. Jogava bacarat na sua forma mais fácil. Aliás acabei por achar que era uma coisa bastante terapêutica, principalmente quando perdia dinheiro. Porquê? A nossa relação com o dinheiro é muito baseada no adquirir e guardar o dinheiro. Passam-se vidas inteiras neuroticamente obcecadas com a ideia de guardar dinheiro, de não o gastar. Se formos a um casino frequentado por chineses, que também são muito obcecados pelo dinheiro, a situação é ainda mais particular porque é um lugar onde é muito fácil perdê-lo. Quando isso acontece é como se alguma coisa dentro de nós se partisse e rendemo-nos a isso. E isso é bom. É a primeira vez que é membro de um júri? Enquanto júri de cinema, sim. É muito mais divertido do que ser júri de livros. No mundo da literatura, se um membro de um júri gosta em especial de um livro detestam se um outro membro não gosta. Mas aqui é tudo mais objectivo. Discutimos os filmes que vemos ao jantar, de forma muito civilizada. Todos temos sensibilidades diferentes mas discutimos os filmes em todos os aspectos. O que é que é um bom filme para si? Penso que a história tem de ser visceral. Se se pensar muito, se se tratar de um filme muito intelectual, já perdeu alguma coisa. Penso qua a intensidade é o que mais conta. Acho que muitos dos escritores, actualmente, são demasiado intelectuais. Pensam demais, e isso é sempre um erro. Não funciona. Mas tenho de reforçar que ainda só vi filmes bons aqui, entre os sete que já visualizamos. Considera mudar de carreira, da literatura para os filmes? Não, é demasiado tarde para isso. Nós fazemos o que fazemos e já é muito difícil fazer uma coisa bem. Não é possível fazer duas coisas bem. O que é um bom livro? Isso é mais complicado. Há muito poucos livros que são realmente bons. A literatura é tão diversa.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO clitóris e outros filmes [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando usei pela primeira vez a palavra clítoris? Certamente depois duma ida ao cinema; nessa “câmara escura” é que as coisas se passavam, em sadia troca de mãos, membros, bocas e flores carnívoras. E tendo lido num livro sobre sexologia trazido de Badajoz que estimular o clítoris fazia a diferença, isso passou a fazer parte da “conversa, clínica e técnica” que ocorria sempre depois das sessões: gostaste, tiveste orgasmo…etc., etc. Afinal, o que é um bem cultural? Se for toda a manifestação que incide directamente na consciência crítica do público e é objecto de experiência e de participação, naquele tempo o clítoris (e a obsessão analítica dos seus efeitos) era um inexcedível bem cultural. E era público: contaminava de decência qualquer discurso, como Wilhelm Reich, de resto. Um dia emperrei. Numa sessão de cine clube às 18h30, um filme antigo a preto e branco para nos abstrairmos de réstia de interesse pelo mesmo, e comprámos bilhete para o segundo balcão do Cine Incrível, um “albergue espanhol” afamado desde que uma jovem imitou no orgasmo os carrilhões de Mafra. Era o nosso jardim edénico. A luz apagou-se e a primeira poalha colorida foi projectada. E emergiu aquela voz tonitruante, hipnótica. Seguiu-se uma narração que à época julgava labiríntica e actuava como um anzol. E esqueci-me do nobre desígnio a que havíamos encomendado as almas. O filme chamava-se Citizen Kane e foi o primeiro que me arrebatou, numa viagem ao desconhecido. No fim, ela desviou-me para a garagem de uma amiga mas eu só me lembro do enigmático Rosebud. De outra vez, entrei desprevenido numa sessão da meia-noite e saí de lá vidrado por uma felina prostituta de meias verdes, a que Shirley MacLaine encarnava em Irma, la Douce. E só se atenuou quando sete anos depois fui ver Laços de Ternura e me apanhei dividido entre mãe e filha, precisamente a mesma Shirley e Debra Winger. Tenho saudades de me apaixonar no cinema. Ou de sentir que um filme ameaça a minha vida, como quando fui ver Lawrence da Arábia com a namorada e percebi no fim que a nossa relação tinha os dias contados porque ela saíra absolutamente apardalada pelo Omar Shariff, enquanto eu me aparentava ao Peter O’Toole, uma alva magreza de vela, com cabelos fulvos. Não sei o que procuram os jovens que se inscreveram no meu curso sobre Guionismo e que teve dia 16 a primeira aula. Suspeito que ao analisarmos a narrativa de Táxi Drive se estejam nas tintas para a estrutura trinitária das sequências, ou lhes passe ao lado o que quero eu dizer quando defendo que a montagem de um filme de acção é mais eficaz quando a sua progressão rítmica respeita o número de ouro no desenrolar das sequências. Não estão maduros para este tipo de informação ou para assimilarem que há uma geometria secreta na fabricação das histórias. Basta-lhes que haja miúdas e movimento, se possível um bom turning point, no fim do primeiro acto, e uma orgia barroca a marcar o clímax. Nada de revelações “estáticas” como a que ocorre no final de The Dead, de Huston, quando um homem olha do fundo da escada a sua mulher e percebe numa troca de olhares dela com um terceiro que a sua vida é uma soma de inapercebidos actos falhados. O “débacle” de uma vida há-de parecer-lhes pouco movimentado. Mas tudo tem uma segunda face. Esta semana – toujours en retard dans la vie – soube em Maputo que faz precisamente um ano que morreu Alberto Seixas Santos, para quem eu escrevi três filmes de ficção. Os equívocos pessoais e profissionais em que nos embrulhámos não retira a menor parcela à evidência de que ele me ensinou a olhar e me aguçou o pensamento analítico. Colaborei em três projectos: em Paraíso Perdido, em O Mal, e naquele que seria o projecto da vida dele mas de que ele desistiu sem nos dar cavaco, a mim e à Maria Velho da Costa, que estivemos um ano a escavar em três episódios de hora e meia sobre o Camilo Castelo Branco – visto sob o ponto de vista do dinheiro, do amor e da escrita, guião que acabei por publicar dez anos depois sob o título Inferno. O Paraíso Perdido, o primeiro filme integralmente de ficção de Seixas Santos, foi um caso descoroçoador de junção entre a total inexperiência (a minha), uma absoluta conjunção de azares, nabices, e falta de nervo, dele, e uma circunstância um pouco canalha que para ser esmiuçada daria um livro. Várias más escolhas entretanto se avolumaram, de actores e técnicos. Coitado do Seixas passava tardes a mostrar álbuns do Hooper ao cameraman que reagia a “tais arrebatamentos da sensibilidade artística” com o ar perplexo de quem nos dias de folga se maravilha com a pornografia. O Alberto não aguentava a pressão. Era excelente a discorrer “no seu território” sobre qualquer aspecto da cultura. Com tempo e vagar. Não sitiado por uma equipa e actores que rogam por respostas prontas e um planeamento eficaz que não comporte lugar para a dúvida. A sua enorme capacidade analítica não se traduzia em beat, em ímpeto criativo, sobretudo naquele ritmo e numa produção desapiedadamente industrial. Numa sequência filmada na Biblioteca Nacional a equipa técnica chegou às seis e trinta da manhã para preparar o trabalho e esteve à espera até ao meio dia enquanto ele, de bloco na mão, riscava e tornava a riscar, tentando decidir sobre a decupagem das cenas. Isto repetiu-se em inúmeros dias, o que lhe minava a autoridade diante da equipa. O talento dele cumpria-se no vagar, não na prontidão das boxes. Amanhã vou olhar de frente os meus alunos e vou tentar adivinhar qual deles daqui a vinte e cinco anos escreverá uma crónica em que me recorda como um homem cheio de talento mas incapaz de estar pronto. Um homem sem clítoris – perdido para o pique, a sensação do instante, portanto.
Hoje Macau Eventos MancheteSegunda edição do Ciclo de Cinema Brasileiro arranca quarta-feira [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Fundação Rui Cunha recebe a partir de quarta-feira um festival dedicado à sétima arte produzida no Brasil. O II Ciclo de Cinema Brasileiro em Macau, que decorre até dia 21 de Novembro, arranca com o filme “Elis”, sobre a vida e carreira de Elis Regina. O filme “Elis”, sobre a curta e intensa vida da cantora Elis Regina, vai abrir, na quarta-feira, o II Ciclo de Cinema Brasileiro em Macau, um evento promovido pela Associação Casa do Brasil. O ciclo é composto por cinco filmes que serão exibidos na Fundação Rui Cunha até dia 21. “Elis” (2016) é a película que marca a estreia na realização de Hugo Prata e aborda a carreira e vida pessoal da cantora brasileira Elis Regina, que morreu em 1982, aos 36 anos. “É um filme que conta como ela cresceu como cantora. Ela introduziu a Música Popular Brasileira (MPB), e depois teve o problema da droga que acabou com a sua vida”, disse à agência Lusa Jane Martins, presidente da Casa do Brasil em Macau. “O filme saiu do cinema há pouco tempo no Brasil e quem já gosta de MPB vai gostar muito”, acrescentou. https://www.youtube.com/watch?v=GbgVYW8pZmg A obra chegou às salas portuguesas de cinema no dia 28 de Setembro. “Elis” venceu em oito categorias no Grande Prémio do Cinema Brasileiro de 2017: melhor actriz (Andréia Horta), montagem, fotografia, banda sonora original, maquilhagem, som, direcção de arte e figurino. O ciclo de cinema vai também apresentar “O Outro Lado do Paraíso” (2014), de André Ristum, uma história que tem como pano de fundo os sonhos de um pré-adolescente “Nando” (Davi Galdeano) e a chegada dos militares ao poder em 1964. Películas premiadas “Nise, O Coração da Loucura”, de Roberto Berliner, é outro dos filmes do cartaz, que ganhou “melhor filme” e “melhor actriz” (Glória Pires), no 28.º Festival de Tóquio, em 2015, além de outros prémios internacionais na América Latina, destacou Jane Martins. O filme conta a história da médica psiquiatra Nise da Silveira que questiona a violência no tratamento de pacientes diagnosticados com esquizofrenia, num hospital psiquiátrico no subúrbio carioca de Engenho de Dentro. O cartaz do II Ciclo de Cinema Brasileiro em Macau inclui também “Que Horas Ela Volta?” (2015), de Anna Muylaert, que Jane Martins define como “um filme para a família”, sobre “a relação entre mãe e filha”, que “tem uma mensagem bonita, de que quanto mais perto você puder ficar dos filhos, melhor”. “Que Horas Ela Volta?”, que estreou em Portugal no final de 2015, foi o candidato brasileiro a uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, no ano seguinte, ganhou o Prémio do Público no Festival de Berlim, e o Prémio Especial do Júri no Festival de Sundance. Deu ainda à protagonista, a actriz Regina Casé, vários prémios de interpretação, e contribuiu para a revisão das condições de trabalho dos trabalhadores domésticos, no Brasil, na altura da estreia. A obra trata as relações, algumas vezes perversas, entre patrões e empregados, expondo o tratamento discriminatório de que são alvo, em termos de direitos. “Que horas ela volta?” conta a história de uma mulher, Val, que deixou a sua família para ir trabalhar como empregada doméstica para uma casa rica de São Paulo, perdendo o contacto diário com a sua família e a sua filha. A obra põe em evidência as diferenças de tratamento das classes sociais, o comportamento servil a que a empregada se sujeita e o vazio relacional dos patrões com o filho, que Val acaba por ocupar, com o seu trabalho diário (o título inglês do filme é “The second mother”, ou seja a segunda mãe). Em 2015, a estreia do filme de Anna Muylaert contribuiu para o debate da revisão da Constituição brasileira, que só então reconheceu a igualdade de direitos dos empregados domésticos com os dos restantes trabalhadores. Cine-palmo e meio O ciclo de Cinema Brasileiro em Macau tem ainda uma sessão infantil, com “Uma Professora Muito Maluquinha” (2011), de André Alves Pinto e César Rodrigues. “É um filme divertido, sobre educação, baseado numa história dos anos 1940, em que uma professora inova na forma de ensino”, explicou a presidente da Casa do Brasil. “É uma boa selecção. Quisemos trazer histórias diferentes para que as pessoas não sentissem que era tudo igual. Foram filmes que estiveram em cartaz muito tempo e foram muito elogiados”, disse. O objectivo da associação Casa do Brasil em Macau é tornar o ciclo de cinema brasileiro um evento anual. “Queremos ver se conseguimos fazer todos os anos. É um evento bem-vindo e as pessoas gostam, principalmente por ser em português. E todos os filmes estão legendados em inglês, para quem não fala português”, afirmou.
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasA Peregrinação – Um filme segundo João Botelho [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme é mauzinho. O João Botelho tinha pepitas de ouro entre as mãos, desbaratou-as em diálogos e flashbacks inventados, fantasiosos, redundantes, tanta vez metidos a martelo. Claro que cinema é ficção mas vejam como neste filme o mais puro, simples e excelente (tão ricamente complexo!) são as falas directas tiradas do esplendor do texto da Peregrinação. Depois, todas as figuras dos companheiros de Fernão Mendes, são, deliberadamente, feias, gente nossa, títeres fedorentos e andrajosos a entoar uma bem aproveitada música do Fausto Bordalo Dias. O filme é pesado, não há alegria, uma gargalhada, o prazer de viver que existe mesmo entre ladrões e piratas, exceptuando-se uns copos de aguardente que bebem todos juntos logo a seguir a sobreviverem a um naufrágio. No entendimento de João Botelho, os piratas infelizes (era porém verdade o sofrimento a morte, quase dia a dia!) somos todos nós, antónios de Faria, miserável gente lusa de quinhentos, a roubar, a matar, a violar. Uma visão obtusa, radical, esquerdizante da nossa expansão, da nossa História. E, no entanto Fernão Mendes Pinto, no seu espantoso e admirável texto, leva-nos também pela mão a descobrir , a avançar pelo Extremo-Oriente, com o lufa-lufa dos mercadores e a azáfama das cidades, os quotidianos, a veniaga e o pícaro das situações. No que à China diz respeito, vejam-se as suas descrições de Pequim ou da Grande Muralha, quase tudo ausente no filme. Aparece um português com uma prostituta chinesa, e Fernão Mendes Pinto a violar uma noiva chinesa, notáveis invenções de João Botelho, ou de quem o ajudou, com a originalidade de meter umas meninas chinesas, nada esbeltas mas bem despidas, no filme. Contudo, um momento brilhante desta Peregrinação cinematográfica são as palavras sábias de uma mulher chinesa endereçadas a Fernão Mendes Pinto. A recordar, a registar, a louvar. Mas repare-se, a chinesa violada é a mesma que aparece depois a dar uma lição de sabedoria ao Fernão Mendes Pinto. Isto faz algum sentido? Imagine-se a história ao contrário, uns chineses corsários de quinhentos, chegam a Setúbal. Em terra, o capitão do navio viola uma jovem e bonita noiva portuguesa. A rapariga aparece depois, meio apaixonada pelo corsário chinês, a dar uma lição de bons costumes e de cristianismo ao capitão chinês. Isto faz algum sentido? Será bom não nos cobrirmos de ridículo. O João Botelho alguma pensou que a sua Peregrinação em cinema pode passar na China, traduzida para chinês? Será vista com que olhos? O prof. Jin Guoping andou vinte anos aflito no trabalho de tradução para chinês do texto original da Peregrinação. Teve mil dificuldades. Porquê? Também porque sabia que, sem um devido enquadramento da gesta lusitana na descoberta da Ásia, era assustadora a receptividade dos textos de Fernão Mendes Pinto no mundo chinês. Prevalecia a ignorância e a xenofobia chinesa em relação aos portugueses de quinhentos. Será bom recordar o provérbio chinês: “Muitas as ervas, cada uma com a sua sua gota de orvalho.” Ora as ervas também podem estar acastanhadas por pedaços de lama. E que ideia estranha, essa de levar de barco os portugueses que assaltavam os túmulos dos imperadores China, na enseada de Nanquim, para as terras de Leshan, com o seu Buda gigante na província de Sichuan, a dois mil quilómetros de Nanquim, entre montanhas, bem no interior do Império do Meio… Nem rio, nem mar existiam para se chegar ao buda de Leshan. Curioso também o intérprete de Fernão Mendes Pinto. Fala mandarim (no século XVI na China falavam-se sobretudo os muitos dialectos locais, só no início do século XX o mandarim é institucionalizado a nível império!) e chegado ao Japão o extraordinário intérprete já fala fluentemente japonês. Coisas que só acontecem no cinema feito em Portugal… E a pequena caravela quatrocentista, de vela latina, a aparecer como junco chimês e o junco chinês a aparecer como caravela de duas velas latinas… E que final do filme tão eivado de sensaboria! Entendem-se as dificuldades da produção, mas concluir a gesta pela Ásia de um dos maiores e excelentes aventureiros de toda a nossa História com umas simples imagens da calmaria do mar, algures no Japão, de certeza em Sesimbra… Mas vejam o filme, vale sempre a pena e, apesar de tudo, apesar de muitos tropeções, João Botelho consegue levar-nos até às paragens extremo-orientais. TRAILER https://www.youtube.com/watch?v=TOFaivxbOlA
Rui Filipe Torres PolíticaDOC 2017, O mundo quase todo em Lisboa Purge This Land – Lee Anne Schmitt – 2017, EUA, 80’ [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e 19 a 29 de Outubro, as salas do magnífico S. Jorge na Av. Da Liberdade, da Cinemateca Portuguesa na Rua Barata Salgueiro, Auditórios no edifício sede da Caixa Geral de Depósitos na rua do Arco Cego, e/ou do cinema Ideal na rua do Loreto ( largo do Camões), iluminadas pela luz reflectida no grande ecrã, transportam o muito público a revelações, partilhas, a representações do mundo conhecido, pressentido, inesperado, à experiência imersiva do cinema partilhado em sala escura. Mais significante do que uma enumeração quantitativa para uma aproximação a esta edição, são as palavras dos directores Cíntia Gil e Davide Oberto , dizem eles: “A motivação mais profunda para programar filmes nasce de uma certa curiosidade, mesmo fascinação pelo que os filmes nos podem fazer. Encontrar um estranho corpo, poroso e instável, que esteja entre o que os filmes são, o que somos capazes de receber deles, e o que eles nos fazem ver e sentir quanto às vidas que vivemos e ao mundo que habitamos. Se o cinema pode ser útil, é apenas na medida em que, com os filmes, as coisas aparecem com novas cargas de sentidos que nos permitem enfrentá-las com um pouco mais de coragem, de fé ou de amor. O cinema do real só o é na medida em que os filmes nos ligam às coisas – independentemente dos métodos utilizados para tal. É-o na medida em que o real é partilhado enquanto virtualidade, fantasma e matéria, conjunto ilimitado de imagens que nos devolvem à nossa finitude. Decidimos abrir com Ramiro, de Manuel Mozos, e encerrar com Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós. Da comédia popular ao filme performático, abrimos e fechamos com dois filmes que desafiam e abrem a programação do festival, sugerindo caminhos e leituras possíveis do todo da programação. Programar este festival é para nós muito longínquo de trabalhar na eficácia, no paternalismo e no esquematismo a que a ordenação fácil dos filmes por géneros nos habituou. Os festivais não servem para confirmar as categorias em que os filmes são encaixados, mas para as inquietar e revolver. Os festivais não canonizam nem idolatram, não organizam nem explicam, antes questionam, provocam, põem lado a lado e frente a frente os filmes uns com os outros e as pessoas com os filmes. As retrospectivas são de certa forma experiências dessa espécie de filia que nasce nos e com os filmes.” https://www.youtube.com/watch?v=cVE2LeVL8-w Vera Chytilová É a cineasta a que é consagrada uma das retrospectivas nesta edição. Figura central da Nova Vaga Checa, foi a mais radical do movimento. Os seus filmes são abordagens cheias de ironia e ruptura com os códigos de representação vigentes no realismo social. Mulher lutadora e obstinada, criou uma obra provocadora e plena de atenção aos detalhes dos humanos, aos pequenos gestos, aos pequenos assuntos, trazendo-os para o lado das questões aparentemente maiores da ordem política, do trabalho, do feminismo. Outros festivais a reconheceram, Veneza, Oberhausen, Moscovo, Chicago. Foi condecorada com a medalha de mérito da República Checa e da ordem das Artes e Letras do governo francês. Em 2017 o doc. Lisboa dá a ver o seu cinema numa extensa retrospectiva. https://youtu.be/E4VAXMUsTS8 Uma outra América – O singular cinema do Quebec É assim titulada a retrospectiva do cinema que me muito é resultado das políticas do National Filme Board, entre 1960 e 1970. Boris Nelepo acompanhar-nos-á na descoberta desta filmografia. Em parceria com a Cinemateca Portuguesa, traz um conjunto de cinco filmes que nascem de encontros entre cineastas, em que cada filme parece trazer uma pulsão de vida ou morte – como em La Bête Lumineuse, de Pierre Perrault, em que a poesia convive com a dor, a violência, o confronto entre almas. O ‘Velho Mundo’ e o ‘Novo Mundo’ surgem nestas duas viagens, ajudando-nos a ver melhor de onde vimos e de onde vêm as nossas interrogações contemporâneas. “Nas competições, entre a total diversidade de formas, temáticas, linguagens, países, todos os filmes são gestos de intensidade afirmativa, procurando a justeza sem fazer justiça, experimentando de forma comprometida o universo que se propuseram, inventando para si e para nós o desejo de cinema. É também esse movimento que anima os filmes mostrados na secção Verdes Anos – um espaço em que, mais do que apresentar novos realizadores, queremos reconhecer a importância e a seriedade dos primeiros filmes e gestos. A secção Passagens foi este ano desenhada por Pedro Lapa, num diálogo com a equipa do Museu Berardo, tem como convidada Sharon Lockhart, que trabalha entre a fotografia, o filme, a instalação, convocando permanentemente os laços afectivos que vamos criando nas situações do quotidiano.” Heart Beat – Grace Jones: Bloodlight and Bami – 2017, Irlanda, Reino Unido, 120’ A enorme sala Manuel de Oliveira estava esgotada. O bilhete foi comprado fora da bilheteira, como nos grandes jogos de futebol, felizmente sem acréscimo ao custo na bilheteira. É sempre magnifico esta grande sala cheia de gente à procura de novos encontros com a vida no ecrã. Para mim é uma sala especial, recebi aqui a minha única medalha por ser um aluno a distinguir, e ainda hoje não sei se foi porque nesse dia foi à escola ( estava no 1º ano do ciclo preparatório na Francisco de Arruda – Alto de Stº Amaro) , e faltava alguém a quem medalhar, ou se lá estive porque me tinham convocado, nesse tempo tudo era novo e estava sempre em descoberta e aproximação, mas aconteceu ou seja, a tal medalha que não sei onde se perdeu e vinha numa encadernação dos Lusíadas, foi para mim. Também foi neste S. Jorge, que programei o 1º Festival Internacional de Cinema Chinês e Lusófono , que se tornou edição única, mas que serviu para que outros avançassem, com novo festival nesta relevante direção. A luz da sala desce, e Grace Jones surge no ecrã, como a recordava, de quando no final do séc. XX a ouvia e dançava nas noites quentes e eróticas de Lisboa a testar a sua movida, ao lado da de “ Madrid Me Mata”. Com ela o filme leva-nos à Jamaica, uma Jamaica de verdade, longe do marketing turístico. É à sua à família com origem étnica Africana, onde nasceu, que chegamos. Uma família onde matriarcado, patriarcado, amor, submissão, religião, tem especificidades concretas cozidas a sangue, a amores ilícitos e vínculos que ultrapassam a espuma e o efémero dos dias. É um filme com uma verdade que nos questiona sobre as configurações da dominação e o lugar sempre inesperado da emancipação. Grace Jones, é esse lugar, um corpo território poderosamente habitado pela memória afectiva e pela rebeldia lugar de emancipação. Um corpo performativo poderoso, uma voz, um som, que enche um palco, incendia a noite. Selvagem e andrógina – Grace Jones, dá-se a ver também como amante, filha, mãe, irmã e até avó, sujeita-se sem defesas ao nosso olhar e permite compreender de que é feita , a tecida a amor, dor, e prazer, a sua máscara. https://www.youtube.com/watch?v=Vyo55F44bU4
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasAL BERTO em filme versão pop gay [dropcap style≠'circle']O[/dropcap] filme AL BERTO, do realizador Vicente Alves do Ó, teve estreia comercial a 5 de Outubro de 2018. Um filme é sempre o resultado de duas coisas, o olhar de quem o filma e as condições de produção que o circunscreveram. Este axioma encerra e contém todos as variáveis, equipas artísticas e técnicas, contextos, estéticas e pensamento cinematográfico, distribuição e mercados. Este AL BERTO é o do Vicente Alves do Ó. Na nota biográfica que se pode ler na página da Assírio & Alvim, editora da obra poética do AL BERTO, prémio PEN de poesia em 1987, lê-se : “Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de Janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa. Tendo vivido até à adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, dedicando-se, entre outras atividades, ao estudo de Belas-Artes. Publicou o primeiro livro dois anos depois de regressar a Portugal. Em mais de vinte anos de actividade literária, a expressão poética assumida por Al Berto, o pseudónimo do autor, distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas) que a palavra encontra o seu poder exorcizante, combatendo o mal com o mal. É neste sentido que Ramos Rosa fala de uma “poesia da violência do mundo e da realidade insuportável”: “a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral”, mas “à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital.”, sublinhando ainda a forma como esta espécie de “grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança”, se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo “ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra” (cf. ROSA, António Ramos – A Parede Azul. Estudos Sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 120-121).” No filme do Vicente Alves do Ó, conhecemos um Al Berto nos anos de 1975, em Sines, regressado do seu exílio em Bruxelas. Importa notar que 1975 é o ano quente, o tempo de maior tensão social e cultural vivido na sociedade portuguesa depois dos anos de convulsão do final da regime Monárquico e implantação da República nos anos de fronteira do séc. XIX para o Séc. XX. O mundo estava ainda dividido em mundo livre, o mundo Ocidental de economia de mercado aberto, e o mundo para lá da “cortina de ferro” , a Europa Oriental e a sua zona de influência , de sistema comunista, mercado planificado e onde o Estado era assumido como um poder de classe, mas naquele caso, a classe dos proletários. Em Portugal sonhava-se as possibilidades do mundo. Sines avançava nos projetos já anteriormente decididos ( Estado Novo) da grande indústria da energia a partir do petróleo. Sines, a vila porto de pesca, vivia novos enxames, gente que chegava das ex-colónias e ali procurava um recomeço de vida, e mão de obra à procura do salário. A Sines chegava também o poeta. A casa apalaçada da sua família tinha, como tantas outras, sido objecto de expropriação. Desabitada, era o lugar ideal para um Maio de 68, não em Paris, mas em Sines. Este é o contexto. O filme mostra um AL BERTO em que o seu capital de transgressão pouco mais parece ser do que o desregramento e o amor homossexual . Poderá a muitos não parecer pouco. Para mim é. Pouco se percebe, para quem não o saiba já, do tempo social e histórico em que a narrativa acontece. Pouco se sabe da profunda sensibilidade estética, do homem que na sua vida e já naquele tempo teve como lugar absoluto a sua obra literária. Por essa altura, 1974/75 escreveu “ À PROCURA DO VENTO NUM JARDIM D’ AGOSTO” , em “atrium” , lê -se: “ luta de sonâmbulos animais sob a chuva, insectos quentes escavam geometrias de baba pelas paredes do quarto, em agonia, incham, explodem contra a límpida lâmina da noite, são resíduos ensanguentados do ritual. na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita. abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades, sozinho, procuro o fio de néon que indica a saída. eis a deriva pela insónia de quem se mantem vivo num túnel de noite, os corpos de Alberto e Al berto vergados à coincidência suicidaria das cidades. eis a travessia deste coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas. ardem cidades, ardem palavras, inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias, arde a paixão no esquecimento de voltar a dialogar com o mundo, arde a língua daquele que perdeu o medo. germinam fluidos mágicos por dentro da matéria contaminada do corpo, os órgão profundos gemem assustados pelo excesso, nunca mais voltámos a encontrar um paraíso. a pausa para respirar não existe, o tempo dos grandes desertos absorveu a seiva dos adolescentes dias. a insónia, essa ferida cor de ferrugem, festeja noctívagas alucinações sobre a pele. no ácido écran das pálpebras acendem-se quartos alugados onde pernoitamos. são enfim brancos esses pedaços de memória onde dávamos abrigo e sossego aos corpos. para sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo frio, perdidos no tempo, mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutámos o que há de inaudível em nossos corpos. era quase de manhã no fim do cansaço. despertava em nós o vago e trémulo desejo de escrever. … O filme AL BERTO do Vicente Alves do Ó, acontece, propõe-se acontecer no tempo desta escrita, e tem o mérito de nos permitir regressar a ela, de exigir mesmo esse regresso a todo do corpo da escrita do poeta, porque é aí, e só aí, que sentimos o batimento do sangue, o sal das lágrimas, o espanto e o horror do mundo, neste combate em que raramente se passa o estágio de aprendiz ofuscados na euforia das guitarras eléctricas e esparsos fios de mel. Vicente Alves do Ó, é um realizador inteligente, sabe o que quer, sabe onde está. Sabe também que cenas como a vandalização da livraria que coloca no filme não aconteceram. Sabe que a homossexualidade e o comportamento transgressivo da norma sexual é um dado permanente e comum, embora sempre um interdito, no quotidiano das comunidades, sejam rurais ou citadinas, agora ou ontem. Mas a associação direta do artista, da sensibilidade inerente à prática e exercício duro, solitário, feroz, radical, da arte, à homossexualidade, coisa muito vista cá no burgo, é uma falácia, como outras. Ser homossexual não é passaporte para ser poeta, ou cineasta, ou pintor, como evidentemente também não é impeditivo, nem barreira. Hoje, quando passam 20 anos ( o tempo corre veloz) , da morte do Alberto e do Al Berto, SINES vive-o como o seu máximo e justo herói. AL BERTO é património e identidade de SINES, tal como o Festival Músicas do Mundo recentemente distinguido – a 19 de Setembro- pela Plataforma Europeia de Festivais , entre os 715 festivais de todas as áreas artísticas, um dos seis vencedores desse prémio europeu. Ou a excomunhão farisaica de que nos fala Vicente Alves do Ó, de uma vila a expulsar um dos seus habitantes, não tem uma ligação assim tão direta ao real vivido pela comunidade, ou a mentalidade da comunidade mudou totalmente, e o pecador é agora o santo eleito. Inocente também não é colocar o partido comunista português como o agente principal da repressão à liberdade de costumes do poeta. É uma visão, a do realizador, e terá sempre o mérito de trazer à discussão o cinema português e o poeta Al Berto. No filme temos alguns rasgos do imaginário e do real, e em várias sequências estivemos perto de um tratamento com maior profundidade da complexidade do pulsar da realidade social nesse tempo retratado, mas quase sempre, a inquietude e o sonho do mundo, fica reduzida a um registo pop gay. O poeta AL BERTO resiste, foge, como sempre fez, arde no caminho solitário como cometa, resiste consciente da sua efemeridade, foge da tela para a obra, a palavra escrita, onde permanecerá maior e voz singular.
Hoje Macau EventosCinema | Produção local na Mongólia Interior [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] produção local “Our Seventeen” foi exibida na 26.ª edição do Festival de Cinema Galo Dourado e Cem Flores. O evento que tem lugar anualmente em Hohhot, capital da Região Autónoma da Mongólia Interior, seleccionou a película de Emily Chan para integrar a secção dedicada às produções de Macau e Hong Kong. “Our Seventeen”, é um filme sobre histórias de Macau que conta as lutas internas dos jovens entre o anseio pela idade adulta e o medo de lá chegar. O filme é também uma carta de amor dirigida à juventude. De acordo com o comunicado enviado à imprensa, a produção local “promoveu a cultura cinematográfica de Macau junto dos espectadores e do público mongol, sendo alvo de reacções encorajadoras”. A exibição contou com a presença de vários convidados de relevo como Yin Xiao, Vice-Presidente da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês de Hohhot da Região Autónoma da Mongólia Interior, Li Xuejian, Presidente da China Film Association e Crucindo Hung Cho Sing, Presidente da Federation of Motion Film Producers of Hong Kong. Da delegação de Macau presente no Festival do Cinema fizeram parte Chong Siu Pang, representante do Instituto Cultural e os membros do elenco de “Our Seventeen”, Sean Pang e Kylamary. O “Festival de Cinema Galo Dourado e Cem Flores” é um dos quatro principais festivais de cinema da China, constituindo o mais antigo evento de atribuição de prémios cinematográficos do país.
Hoje Macau SociedadeCultura | Residentes continuam a preferir ir ao cinema [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s residentes do território continuam a preferir, nos momentos de lazer, ir ao cinema. De acordo com os dados dos Serviços de Estatística e Censos, o segundo trimestre de 2017 revela uma subida, a nível anual, na ordem dos 2,1 por cento, representando uma taxa de 39,2 por cento. No total, foram ao cinema entre Abril e Junho, 173.400 residentes dos quais 36.200 escolheram ver películas produzidas no território. O crescente interesse pelas produções locais, deve-se às acções do Governo que visam promover os filmes feitos em Macau e às sessões realizadas para que sejam exibidos, refere o comunicado enviado à comunicação social. Também a frequência das bibliotecas locais aumentou no segundo trimestre de 2017. Foram às bibliotecas do território 129.500 residentes, mais 13,2 por cento do que no mesmo período do ano passado. Os museus e o património continuam a ser também o alvo crescente de visitas. Com mais de 115 mil visitantes, a percentagem aumentou em 1,4, sendo que cada visitante terá ido, em média, a mais de três locais. De entre estes, 87.900 visitaram locais que integram o património mundial e 77.600 foram a museus. Já os espectáculos tiveram uma adesão inversa. Entre Abril e Junho a afluência de público registou uma diminuição de 12,2 por cento em termos anuais. O mesmo aconteceu com os visitantes de exposições que diminuíram em 8,9 por cento. No total, 295.800 indivíduos participaram em actividades culturais do território.