Pe San Ié – o poeta de Macau

[dropcap]T[/dropcap]eve estreia esta sexta-feira na sala Manuel de Oliveira do Cinema S. Jorge em Lisboa, no segundo dia do 16ª do Festival Internacional DOCLISBOA.

Passava pouco das 18h30 m quando a sala ficou escura e a tela se ilumina num filme que se propõe trabalhar o exercício do cinema numa viagem fantasmática a uma materialidade impossível, a do corpo e olhar do poeta Camilo Pessanha no seu habitar da cidade de Macau, lugar da sua vida e do seu exílio.

O filme anuncia-se a si mesmo como filme ensaio em quatro capítulos, que se pretendem mudança de ângulo no olhar sobre o mesmo tempo e espaço. Como se sabe, o ponto de vista é no cinema a singularidade da escrita cinematográfica, a assinatura autoral.

Um corpo, um homem, um personagem, um sujeito, surge e ocupa a tela, depois de alguns momentos de imagens difusas que se fundem e vão perdendo o carácter de dissipação na afirmação cada vez mais nítida tinta no papel tornada palavra.

Da palavra escrita do poeta surge a presença revelação do homem corpo vivo, inquieto e pensante, que nos diz o que nos alerta para as dificuldades do que nos podemos esperar, anunciando uma primeira revolta impossível, porque, como afirmado por Bazin, o cinema é uma arte impura, e o cinema dos dias do agora, como toda a arte contemporânea, é também um exercício de citação, a si próprio e ao mundo de que se alimenta e que, de forma mais perene do que supomos , é por ele construído. E o que a voz off da realizadora Rosa Coutinho Cabral nos é anunciado é um exercício de cinema.

Como todo o filme vai demonstrar, ao longo do exercício de suspensão fantasmática, entre os diferentes tempos presentes na tela, esse momento de intervalo cinematográfico da criação de um tempo paralelo inexistente, onde a impossibilidade do tempo passado no tempo presente coabitam, interrogando quais os passos e onde, querendo até, inventariar os porquês desse caminho, é esta materialidade deste corpo homem, também ele escritor, também ele amante intimo da língua, também ele solitário no seu sentir a dor e a alegria do mundo, é esta dupla figuração de personagem e de homem verdade no tempo presente, que de forma plena enche o ecrã nesta viagem por uma arquitetura da cidade onde a opulência a existir é da ordem do mistério e da procura impossível do sublime.

De Carlos Morais José são já há muito conhecidos vários talentos, o da escrita, o do jornalista, o do comentador, este filme demonstra que o cinema também é feito de um carisma potencia, onde a verdade do pensamento encontra visibilidade na sonoridade da palavra que o expressa e no corpo que o habita. Talvez seja disso que o filme trata, ou queira tratar, do como é o habitar das palavras pelos poetas. É Carlos Morais José quem o afirma, nesta sua roupagem complexa e paradoxal de fantasma capaz da visibilidade e leitura do real, que no poeta está presente o verbo inicial, a matriz , o arquétipo, o sopro e marca primeira, a revelação inconsciente da esfinge, o suor e a languidez da morte no rio perpétuo do fogo do sangue. O trauma e a viagem inicial e iniciática.

O filme dá-nos ver a escrita de Camilo Pessanha e a escrita do poeta é-nos dada pela voz do actor João Cabral, uma voz é sempre uma leitura própria, uma procura que nos é anunciada. A redundância é usada como recurso estilístico, citação ao cinema ensaio do Godard, talvez nem sempre com a assertividade estética pretendida.

Se, e ainda que o cinema seja o lugar de todos os possíveis, onde se morre e permanece vivo, bola de cristal que dá a ver o futuro e o passado vivido no tempo presente em cada projeção na sala escura dos milagres, apesar da suspensão, do intervalo, a cidade é um organismo vivo que dificilmente se deixa capturar a não ser em sempre escassas parcelas da sua realidade e, filmar hoje Macau de Camilo Pessanha é sempre um exercício mais de imaginação do que materialidade , esse lugar do visível, o “terroir” do(s) cinema(s).

A palavra não é o lugar exacto da prática cinematográfica donde a definitiva relevância do corpo do actor e da materialidade dos elementos em ligação direta sináptica com cada um dos espectadores.

É Jacques Rancière, quem escreve : “no teatro, independentemente da dimensão dada ao gesto e ao espaço, o concreto reside antes de mais nada, na palavra. A conversa em torno de uma fogueira pode dispensar a fogueira, a erva o vento. Ao contrário, no cinema, seja qual for o esforço para o intelectualizar, o concreto está ligado ao visível dos corpos falantes e das coisas que falam. Daqui se deduzem dois efeitos contraditórios: um deles consiste em intensificar o visível da palavra, dos corpos que a carregam e das coisas de que falam; o outro consiste em intensificar o visível como aquilo que recusa a palavra ou mostra a ausência daquilo que de que ela fala”.

Quando o corpo produtor primeiro da fala do filme é uma ausência sem solução, resta a materialidade da campa no cemitério final que o acolheu, a palavra escrita no papel impresso, a marca do peso da mão ausente que ali esteve, e reescreveu, rasurou, escrevendo de novo o já antes escrito. Mas é sobretudo a presença da materialidade do corpo do actor mesmo quando este encena a sombra, a presença impossível do fantasma, que nos transporta ao sopro da vida do poeta. É o corpo e a radicalidade do dito pelo homem que o habita que nos transporta nesta procura de contacto com o poeta maior do simbolismo em Português.

Ainda que o destino apenas possa ter hipotética presença visível no depois e que o mistério passeie de mão dada no interior da beleza das coisas, sabemos que, se não destino, Macau foi facto e fim. Macau foi o território cidade da vida adulta do poeta. Foi em Macau que viveu, respirou, adormeceu, acordou, escreveu, desejou, sofreu, amou. Sim, foi em Macau os seus olhos foram vistos e viram os seus passos percorreram ruas, subiram escadas, seguiram sombras, pisaram nuvens em dores amansadas de ópio.

Se a língua é sempre o território maior da pátria, naqueles expatriados que em lugares tão distantes vivem, e ainda mais quando poetas, torna-se não já a pátria mas o mundo, o lugar onde se não é estrangeiro, o lugar identitário que o corpo habita.

“Camilo Pessanha, o maior poeta simbolista português, escreveu e reescreveu até morrer os poemas de Clepsidra, a sua única obra. O filme não é o seu retrato, nem a ilustração dos seus poemas, mas o ensaio da forma cinematográfica do seu exílio voluntário em Macau. Como filmar este opiómano singular? Dando a câmara de filmar a um morto, ouvindo os seus poemas, seguindo os passos e a reflexão de Carlos Morais José.” Lê-se na sinopse que apresenta o filme, tente-se isso, não é tempo perdido.

TRAILER
22 Out 2018

Nalini Elvino de Sousa, realizadora e produtora: “Macau e Goa partilham uma história com mais de 500 anos”

Nalini Elvino de Sousa vai estar em Macau no próximo domingo para inaugurar a exposição “Viagem Oriental”, que estará patente no Jardim de Lou Lim Iok até 18 de Outubro. A realizadora, que também se dedica ao intercâmbio cultural e linguístico, tem na calha projectos para promover o ensino do português em Goa, para os quais espera o apoio de Macau

[dropcap]V[/dropciagem Orientalap] começou por ser um livro e agora é uma exposição que traz ao público os objectos de Macau que ainda vivem nas casas de Goa. Como nasceu este projecto e qual foi o processo de recolha de conteúdos?
Tudo começou com a minha curiosidade ao verificar que muitas casas de amigos que visitava tinham loiça vinda de Macau. A minha própria casa está cheia de loiça e mobília de Macau. Como nunca ninguém da família esteve em Macau, comecei a investigar. Havia, até há bem pouco tempo, lojas que vendiam loiça e mobília de Macau, e recentemente voltou a abrir uma na capital em Panjim. Entretanto, e enquanto responsável pela ONG Communicare Trust resolvi, através desta entidade, criar uma competição de imagens onde pedimos aos participantes para fotografarem todos estes objectos orientais que encontrassem em casa. Com o apoio do Gabinete de Apoio ao Ensino Secundário e do Instituto Internacional de Macau, foi possível levar o projecto em frente com a criação de um livro contendo as melhores 40 fotografias e dois textos de introdução sobre a relação entre Goa e Macau. Penso que o interesse que as pessoas que vivem em Goa ainda têm por este tipo de peças está puramente relacionado com o seu exotismo. Na verdade, não acredito que alguém use por exemplo, os conjuntos de chá vindos de Macau. Os meus em casa, estão guardados dentro de um armário. Muitas outras pessoas fazem o mesmo. São elementos decorativos da casa.

Durante a sua vinda a Macau vai também participar numa palestra sobre as relações entre Macau e Goa.
Macau e Goa partilham uma história com mais de 500 anos. Começa em 1557 com o estabelecimento de Macau e a paragem obrigatória na rota da Nau do Trato que também passou a ser conhecida como Nau do Trato de Macau. Era na viagem de regresso do Japão que a Nau vinha carregada de oiro, seda e porcelanas. Muitas das antigas casas em Goa, até hoje, contêm porcelana chinesa dessa altura que é considerada exótica e valiosa: jarrões, jogos de chá variados e pratos decorativos que enchiam as paredes das casas. Também no chão das casas se encontra esta presença através de desenhos extremamente trabalhados feitos de porcelana que se partia durante a viagem de Macau para Goa. Foi a partir destes pequenos pedaços de porcelana coloridos que se criaram pavões, flores, árvores etc. Diz-se até que quando não se conseguiam as cores pretendidas para as decorações se partia uma porcelana de propósito para poder terminar os desenhos. Nos finais do séc. XVI, começaram a crescer as dificuldades para se conseguir fazer esta viagem devido à competição com os holandeses, espanhóis e ingleses. Mais tarde, goeses que vieram trabalhar para Macau também trouxeram porcelanas e outros objectos na mala. Uma ou duas lojas dedicaram-se mais a sério ao comércio destes objectos naquela altura. Actualmente, ainda existe uma que se chama Casa Macaõ. Sim, nem o acento está no lugar correcto. Vou falar sobre isso na palestra. Ter um objecto de Macau em casa é ainda hoje moda.

É responsável também por uma produtora e realizou recentemente o documentário “Enviado especial” em que retrata Aquino de Bragança, um goês que lutou pela paz em África. O que a motivou a fazer este filme?
Todo o trabalho a que me tenho dedicado, seja através da minha produtora, Lotus Film & TV Production, como com a Communicare Trust e até com o meu canal no Youtube Travel & Learn Goa, tem como base a minha relação com Goa, com Portugal e com a lusofonia. Eu sou um produto disso. Os meus pais são de Goa, foram estudar para Portugal onde eu nasci. Muitos dos meus amigos tinham vindo então de Moçambique e eram de origem goesa. Fiz parte, durante 10 anos, do grupo da Casa de Goa – Ekvat. Depois, há 20 anos atrás, resolvi viver em Goa. Talvez por isso, todos os meus documentários denotem estas relações, ou talvez eu seja atraída por este tema sem me aperceber. Aquino de Bragança nasceu em Goa mas decidiu dar a sua vida pela África. Eu admiro pessoas que largam tudo por uma causa. Deve ser o meu lado romântico.


Aquino de Bragança é conhecido pela sua oposição ao colonialismo e intervenção nos processos de descolonização tendo convivido de perto com líderes dos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, como Samora Machel. Paralelamente, pautava a sua acção pelo humanismo e por uma atitude de abertura. Este tipo de diplomacia pode ainda hoje ser um exemplo?
Aquino acreditava que só a conversar nos podemos entender. A Graça Machel chamava-lhe “o nosso submarino” porque ele nunca estava presente em conferências do partido, reuniões oficiais, etc. O discurso nesse tipo de reuniões, para ele, era sempre o mesmo. Ele encontrava-se nos corredores dessas mesmas conferências, chegando a um acordo com este ou aquele diplomata. Levava-o para casa, se possível, e a conversar, tomavam decisões importantes. Lembro-me da Sílvia Bragança (viúva do Aquino) confessar-me que ficava, às vezes, apreensiva pois o marido decidia ir a casa de diplomatas que eram completamente contra o seu pensamento. Aquino dizia: “Não te preocupes. Há que encontrar a razão da sua discórdia e com certeza haveremos de encontrar elementos em comum que nos fará chegar a um acordo”. Por vezes, chegava a reunir pessoas com mais do que uma opinião para discutir e chegar a um consenso. Isso é importantíssimo nas relações entre países, tanto na altura como actualmente. Há que ouvir ambos os lados ou não existe uma equilíbrio entre as relações sejam elas culturais, económicas ou de outra natureza.

Pretende trazer o filme a Macau?
Gostaria muito de trazer o filme para Macau. Contactei a Cinemateca, mas não obtive ainda resposta. Acho que é um filme que abre portas para muitas questões.

Tem produzido inúmeros documentários. Qual foi o que mais gostou de fazer?
Quando faço um documentário tenho de estar apaixonada pelo assunto. Então, embrenho-me de corpo e alma ao ponto de perder o sono. Perguntar qual deles gostei mais é como perguntar qual foi o meu namorado preferido. Gostei de todos, por igual.

Está em Goa, um território que teve durante muito tempo a presença dos portugueses. Em que é que esta presença ainda se sente?
A presença mantém-se na arquitectura, no nome de algumas ruas, algumas lojas que mantêm os antigos nomes portugueses, na gastronomia de Goa e na língua, claro. Hoje temos cerca de 900 alunos a aprender português como língua estrangeira. Os professores são poucos, mas vai-se fazendo o melhor que se pode. A Fundação Oriente tem feito um trabalho fantástico neste sentido. Também eu já passei pelo ensino, mas neste momento tenho outros projectos em mente. A geração dos meus pais ainda fala português fluentemente, mas no futuro não sei. Há muito nesta área que pode ser feito e estou a contar com Macau para que possamos trabalhar juntos na área do ensino. Os professores são pagos, na maioria, pela Fundação Oriente uma vez que são goeses reformados que falavam português em casa e que agora ensinam por amor à língua. Os jovens que ensinam português contam-se pelos dedos da mão. São apenas dois ou três. Nenhum dos professores fez um curso, propriamente dito, para ensinar português como língua estrangeira. A Fundação Oriente, com o apoio do Camões, tem realizado alguns workshops para poder melhorar o ensino da língua. Em Deli, a situação é completamente diferente: os professores são extremamente jovens e aprenderam português como língua estrangeira. Muitos estudam por razões financeiras. Há muitos call centers que precisam de indianos que falem português. No entanto, existem alguns que querem ensinar e é a eles que se tem de dar uma oportunidade. Uma das formas que a Communicare Trust encontrou para promover o português, como também as línguas nacionais dos países com quem trabalhamos, foi através da produção de um livro de histórias escrito e ilustrado pelos próprios alunos. O projecto chama-se: “Histórias Daqui e Dali”. O primeiro livro internacional foi publicado em Abril deste ano e foi criado por 200 alunos em Goa e 200 alunos em Portugal. O livro foi editado em Português, Konkani (língua oficial de Goa), Hindi (língua nacional indiana) e Inglês. Nos próximos anos, estamos a pensar trabalhar com Moçambique, Brasil, Timor mas também com Macau. Estamos, de momento, à procura de parceiros. Este projecto é uma forma de promover não só a leitura do português mas também das línguas nacionais dos países com quem interagimos porque, como disse Nelson Mandela: “Sem a língua, não se pode falar com as pessoas e entendê-las; não se pode compartilhar as suas esperanças e aspirações, compreender a sua história, apreciar a sua poesia, ou a sua música”.

11 Out 2018

Filme sobre poeta Camilo Pessanha exibido na extensão de Macau do DocLisboa

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Pé San Ié – O Poeta de Macau”, inspirado na vida e obra do poeta Camilo Pessanha, vai ser exibido na extensão de Macau do Festival Internacional de Cinema DocLisboa.
Depois da primeira exibição no DocLisboa, prevista para 19 de outubro, o filme faz a sua estreia asiática a 05 de novembro, na Cinemateca Paixão, na extensão do festival português dedicado ao documentário, que é organizada em Macau pelo Instituto Português do Oriente.

Trata-se de um projeto da realizadora Rosa Coutinho Cabral e da produtora Maria Paula Monteiro, rodado inteiramente em Macau, em 2017, e finalizado este ano.

A mesma dupla é a responsável pelo documentário “Camilo Pessanha – 150 anos”, que será exibido em Macau no auditório Dr. Stanley Ho, sustentado pelo depoimento de investigadores, biógrafos e historiadores, na sua maioria ilustres figuras de Macau.

Segundo a produtora, nesse documentário surgem as várias dimensões do homem e não só do poeta, revelando-o como jurista eminente, republicano, maçom, professor, sinólogo, colecionador, tradutor e falante de chinês, oscilando sempre entre dois eixos: o mundo a Ocidente, onde nasceu, e a Oriente, onde viria a morrer.

9 Out 2018

Não voltarás a Casablanca

[dropcap style≠‘circle’]Q[/dropcap]ue se saiba nenhum dos participantes na conferência de Casablanca de 1943, reunindo Roosevelt, Churchill, De Gaulle e respectivos áulicos, fez menção ao Rick’s Café, onde seria suposto desenfadarem de noite dos imbróglios e subtilezas diplomáticas que os Aliados entre si enredavam de dia. Tê-lo-iam as autoridades encerrado depois de averiguado o assassinato do major Strasser? Terão Rick e Renault cumprido a intenção de incorporarem as forças da França livre em Brazzaville tal como os ouvimos combinar?

Acerca disto resignemo-nos a uma perpétua ignorância. Certo e seguro é, contudo, que Rick e Ilsa nunca mais voltariam encontrar-se depois daquelas noites, em Dezembro de 41, de mortificante espera em Casablanca. Tal certeza tem inabalável base numa evidência. Se por acaso ou deliberação eles houvessem estado posteriormente juntos, fosse para caírem nos braços um do outro, ou para constatarem quão irremediável era a sua divergência, ou mesmo enquanto dois estranhos sem desejo de exumarem o passado; em qualquer das situações alguém teria filmado uma reunião tão querida e suspirada pelos milhões de corações românticos fendidos com o rasgo de virtude que separou Rick de Ilsa. E se não houve filme é indubitável não tenha havido reincidência.

Após um intervalo de 20 anos voltei a ser convidado para casamentos, agora a título de parente dos pais dos noivos. Não arrisco encalhar na periférica “Mesa 19” do filme (que é parvo, mas fere) porque me destinam assento no respeitável quadrante dos tios, daqueles que têm idade para desfrutarem do copo-d’água sem se engasgarem nas dúvidas existenciais próprias de quem sente o futuro a pedir-lhes contas. Em contrapartida é usual os comensais destas mesas tomarem a oportunidade como óptima para mansamente se embriagarem, sem culpa nem ostentação. Assim aproveitam bem o espírito da boda dando largas à melancolia e, nos casos mais melindrosos, ao remorso, interpelando o seu próprio e longínquo matrimónio. Onde estariam àquela hora se em vez do vínculo que os conduziu ali se tivessem decidido por alguma das alternativas em seu tempo preteridas? Nada disto é proferido, claro, porque a ocasião é de alegria e alegria se deve exibir; é só um pathos latente e sigiloso, para não envenenar a festa.

Afastei-me um pouco dos animados grupos que beberricavam sangria de frutos vermelhos (nome da moda de um xarope que rebuça vinho mau ou estraga vinho bom) à procura de um canto onde fumar. Ao lado do cinzeiro estacionava uma senhora encanecida e franzina, que evolava a classe indiscutível das avós insubmissas, das de gin em chávenas de chá, voz grave de timbre arranhado, clube de bridge, pele de muitos verões e cigarros finos de mentol.

Duas ou três larachas de circunstância não eram trocadas quando desferiu à queima-roupa: – Tu és o Zé Navarro? – O artigo definido suscita sempre um certo alarme, que fiz por apaziguar com a ironia de uma frase feita de filme americano:

– Quem pergunta por ele?
– Sou a Quica…

O passado equipara-se à má ficção, redigida por um escritor parcial e volúvel, incapaz de criar um nexo de causa e efeito naquilo que narra. Da Quica não me lembrava de nada a não ser da vivíssima memória que dela retivera: cenas fragmentadas, instantâneos soltos, expressões espontâneas, o contorno de uma silhueta esfumada, um par de cenários fixados pelo que neles aconteceu, roupa de inverno enrodilhada numa cadeira, um hálito.

E estas nebulosas reminiscências de modo nenhum se vinculavam à pessoa diante de mim.

– Reconheci-te pela voz.

Na expressão dela, que há-de ter reflectido o meu pasmo, transpareceu a mais nua e desprevenida sinceridade. Através do estrago que o tempo trabalhara nas feições do outro, ambos tínhamos acabado de aferir a justa medida do nosso descalabro físico desde aqueles impetuosos e desprevenidos dias de prazimento na década de 80.

Trocamos impressões durante um cigarro. Eram díspares e desfasadas as nossas entrecortadas recordações. O embaraço mútuo impediu de partilhar com aquela desconhecida a memória de peripécias e desenvolturas que decerto também ela guardava.

À saída do banquete procurei-a para me despedir, mas não a vi mais.

Ao contrário de Rick e Ilsa, a Quica e eu não fomos poupados ao desencanto com que a passagem do tempo conspurca o passado.

5 Out 2018

Evasão fiscal | Vedeta do cinema chinês multada em 110 milhões de euros

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]estrela do cinema chinês Fan Bingbing, desaparecida há vários meses, foi condenada a pagar o equivalente a mais de 110 milhões de euros por evasão fiscal, anunciaram ontem as autoridades fiscais do país.

De acordo com a agência de notícias Xinhua, a actriz de 36 anos começou a ser investigada pelas autoridades em Junho, depois de ter sido acusada nas redes sociais de evasão fiscal por meio de fraudes contratuais.

Desde então, a actriz mais bem paga da China, segundo a revista Forbes, desapareceu do radar do público e das redes sociais, onde era conhecida pela sua participação activa.

Para evitar uma acção judicial, a actriz, juntamente com as empresas que gere, deverá devolver à administração tributária chinesa um total de 883 milhões de yuans em impostos e multas.

As autoridades tributárias disseram que, durante a investigação, o agente de Fan, de sobrenome Mou, obstruiu o processo ao exortar funcionários a esconderem e a destruírem materiais contabilísticos das empresas.

Manobras de Maio

Os problemas de Fan Bingbing começaram em Maio, quando um ex-apresentador chinês publicou na internet documentos que provavam as alegadas evasões fiscais da actriz.

De acordo com os documentos, a actriz terá recebido oficialmente 10 milhões de yuans por quatro dias de trabalho e 50 milhões de yuans não declarados.

O caso revelou um suposto sistema de “contratos duplos”: um destinado a ser apresentado ao fisco, com um valor baixo, e outro escondido, com o valor real auferido.

As autoridades chinesas estenderam entretanto as investigações a toda a indústria do entretenimento.

Segundo a revista Forbes, Fan Bingbing foi a celebridade chinesa mais bem paga em 2007, com receitas de 300 milhões de yuans.

Fan Bingbing é uma das actrizes de cinema e televisão chinesas mais conhecida, tendo desempenhado o papel de super-heroína no filme de Hollywood “X Men: Dias de um Futuro Esquecido”.

4 Out 2018

Filme “Hotel Império” de Ivo M. Ferreira tem estreia mundial na China

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “Hotel Império”, do realizador português Ivo M. Ferreira, vai ter estreia mundial no Festival de Cinema de Pingyao, que começa no dia 11, na China, revelou a produtora O Som e a Fúria.

“Hotel Império” foi rodado em Macau, onde Ivo M. Ferreira vive há largos anos, e conta a história de uma portuguesa nascida na cidade – interpretada por Margarida Vila-Nova – que, juntamente com outras pessoas, habita um antigo hotel em vias de ser destruído para dar lugar a um edifício moderno.

Em 2016, quando apresentou o projeto do filme no Festival Internacional de Cinema de Macau, Ivo M. Ferreira explicou que a longa-metragem tem como pano de fundo um tema recorrente e muito presente na vida da cidade: a mudança acelerada do espaço, impulsionada pelo desenvolvimento económico.

“O hotel evidentemente que tem uma carga simbólica sobre Macau, vai ser destruído para ser construído um hotel-casino. Tem que ver com (…) a erosão da cidade [que] poderá criar uma identidade, a erosão poderá unir-nos, unir vizinhos que não se falavam. Acho que o filme gravita muito à volta desse ambiente, de que a destruição pode unir para proteger a cidade”, explicou na altura realizador.

Além de Margarida Vila-Nova, o filme conta com a participação de Rhydian Vaughan, um ator taiwanês de ascendência britânica, e vários atores de Macau.

“Hotel Império”, que Ivo M. Ferreira rodou depois de “Cartas da Guerra”, terá estreia mundial na segunda edição do Festival Pingyao Crouching Tiger Hidden Dragon, criado em 2017 pelo realizador chinês Jia Zhangke e pelo programador Marco Muller.

O festival foi batizado com o nome de um filme de Ang Lee, “Crouching Tiger Hidden Dragon” (“O Tigre e o Dragão”), de 2000.

Trailer

3 Out 2018

Cinema | Nova edição do festival Kino inclui clássicos de Fassbinder

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]já no próximo dia 21 de Outubro que arranca na Cinemateca Paixão a nova edição do festival Kino, dedicado ao cinema alemão, e que conta com a parceria do Instituto Goethe de Hong Kong. De acordo com um comunicado da organização, o cartaz inclui um total de 18 filmes e quatro clássicos do realizador Rainer W. Fassbinder.

O Kino “incluirá oito das mais recentes longas metragens alemãs, focadas em temas como a rebelião e a coragem, o amor e a dúvida, o desejo e o despertar, assim como dois filmes suíços, na qualidade de ‘convidados especiais’, que darão prova do poder da imagem contemporânea.”

De acordo com os programadores da Cinemateca Paixão, “muitos destes filmes foram nomeados ou venceram categorias nos Prémios do Cinema Alemão e no Festival Internacional de Cinema de Berlim 2018, incluindo Trânsito, Styx, e Western, que foi nomeado também para o Prémio Un Certain Regard  no Festival de Cinema de Cannes 2017”. A Cinemateca vai também exibir os filmes 303 e Vento Contrário, “ambos com um enfoque feminino”. Quanto a  O Jardim, “passa-se contra o pano de fundo da vida de uma família alemã moderna na década de 1970”.

Em foco

O trabalho de Fassbinder vai estar em destaque com a exibição da mini série “Realizador-em-foco”. Esta foi “especialmente preparada para o público de Macau”, tal como “quatro filmes de diferentes períodos, como O Amor É Mais Frio Que A Morte (1969), a sua primeira longa metragem realizada aos 24 anos, O Comerciante das Quatro Estações (1972), uma obra popular e aclamada pela crítica, O Casamento de Maria Braun (1978), um trágico filme de amor do topo da sua carreira, e o derradeiro filme de Fassbinder: Querelle (1982)”.

O trabalho do realizador será também abordado numa palestra protagonizada por Born Lo, amante de cinema e arquitecto em Hong Kong.

O festival abre com o filme “A Revolução Silenciosa”, que se baseia “num evento real, mostrando como uma ideia podia inadvertidamente causar dramáticas mudanças na vidas dos adolescentes durante o sensível contexto político da Alemanha de Leste na década de 1950”. Este filme mereceu ao realizador Lars Kraume o Prémio de Melhor Realizador Nacional no Festival de Cinema de Munique 2018.

1 Out 2018

Filme “A árvore” de André Gil Mata estreia-se hoje nos cinemas

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme “A Árvore”, do realizador português André Gil Mata, estreia-se hoje nos cinemas portugueses, depois de ter passado por vários festivais, como Berlim e IndieLisboa.

De acordo com a Nitrato Filmes, “A Árvore” terá exibições no Porto, em Lisboa, em Coimbra e, nas semanas seguintes, será mostrado em Amarante, Castelo Branco, Tavira e Guimarães, em alguns casos com a presença do realizador.

“A Árvore”, que foi selecionado para o festival de Berlim, valeu a André Gil Mata o prémio de melhor realização para longa-metragem portuguesa, em abril no IndieLisboa.

Na altura, André Gil Mata afirmou à agência Lusa que o filme foi produzido e rodado na Bósnia-Herzegovina, onde fez o doutoramento.

“A Árvore” segue uma personagem dividida por dois atores (Petar Fradelic e Filip Zivanovic) que vagueia por uma aldeia numa floresta num ambiente de desolação, de guerra e escuridão.

Com planos longos, quase sem diálogos, sublinhando a imagem e o som, “A Árvore” é um filme marcado pela guerra. Pode ser a guerra dos Balcãs, sabendo-se que o filme foi rodado na Bósnia, mas pode ser outro conflito atual, do passado ou de um futuro.

Para André Gil Mata, o filme “joga muito com essa questão de circularidade do tempo e da repetição das coisas e dessa questão de as nossas vidas serem muito mais circulares do que lineares”.

Nascido em 1978 em São João da Madeira, André Gil Mata foi curador no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira e cofundador da produtora Bando à Parte. É autor das curtas-metragens “Num globo de neve” (2017), “O coveiro” (2012) “Casa” (201) e “Arca d’água” (2009) e das longas “How I fell in love with Eva Ras” (2016) e “Cativeiro” (2012).

27 Set 2018

Cultura | Residentes vão menos a museus e a monumentos

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]lém dos museus e dos monumentos, também o cinema registou quebras de afluência de público no segundo trimestre do ano. As salas locais perderam quase oito mil espectadores.
O número de residentes que visitaram museus ou locais considerados património mundial ou local registou uma quebra de 12,8 por cento, durante o segundo trimestre deste ano. Entre Abril e Junho deste ano, cerca de 100,6 mil residentes visitaram este tipo de locais culturais, enquanto há um ano o número tinha sido de 115,4 mil, de acordo com dados publicados, ontem, pela Direcção de Serviços de Estatística e Censos (DSEC).
Segundo os dados revelados, cada residente terá feito, em média, 3,1 visitas a museus ou monumentos. Assim, 69,7 mil residentes visitaram museus e 66,6 mil foram aos locais de património mundial, o que corresponde a uma quebra de 10,2 por cento e 24,2 por cento face ao período homólogo.
A tendência de quebra foi igualmente registada ao nível do cinema. A sétima arte continua a ser a actividade cultural mais popular do território. No entanto, no espaço de uma ano, as salas de cinema perderam 7,9 mil espectadores. No segundo trimestre tinham ido ao cinema 173,4 mil residentes, o número caiu para 165,5 mil este ano.
Uma das principais causas para esta quebra é o cinema local. Este ano foram 30 mil os residentes que assistiram a filmes produzidos em Macau. Uma quebra de 17,2 por cento face a 2017, altura em que 36,2 mil residentes tinham assistido a cinema local. Esta tendência também pode estar relacionada com o filme Sisterhood, da realizadora Tracy Choi, que foi estreou no ano passado e atraiu muitas pessoas às salas.

Biblioteca com tendência positiva
No que diz respeito às bibliotecas, houve um aumento da participação dos residentes em cerca de 1,6 por cento. Entre Abril e Junho deste ano , 131,6 mil pessoas frequentaram os espaços de leitura, enquanto no ano passado o número fixou-se nas 129,5 mil.
Mais uma vez, tal como nos anos anteriores, destaque para uma maior participação da população estudante, que representou a proporção de 76,8 por cento dos residentes que foram à biblioteca. Já os não-estudantes constituíram 25,1 por cento. Este número poderá voltar a sofrer um novo aumento na próxima contagem, uma vez que a Biblioteca Central, a mais popular do território, alargou o horário de funcionamento até à meia noite.
Finalmente, as exposições também tiveram um crescimento, de 3,2 por cento face ao período homólogo, com um total de 36 mil residentes. Cada participante assistiu em média a duas exposições.

19 Set 2018

Filme português interactivo estreia-se em Macau

Macau estreia de 24 de Setembro a 2 de Outubro um projecto de produção de um filme interactivo em que os espectadores são chamados a intervir, em tempo real, na narrativa do filme, tornando-os protagonistas e coautores

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] filme é intitulado “Cadavre Exquis” e faz parte do projecto “Os Caminhos que se Bifurcam”, da autoria do investigador Bruno Mendes da Silva, vice-coordenador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve.

O filme, que conta com um guião e a ‘voz-off’ de Vítor-Reia Batista, vai concorrer a festivais internacionais e será exibido em 2019, em Portugal, em vários espaços expositivos, informou ontem a organização.

A produção do filme, que inclui uma ‘masterclass’ a 26 de Setembro aberta à comunidade também na Universidade de São José, em Macau, é da responsabilidade de Maria Paula Monteiro. Esta é a segunda aposta da produtora em Macau, depois do filme sobre a vida e obra de Camilo Pessanha intitulado de “PeSanlé – O Poeta de Macau”.

“É uma honra ajudar a contribuir para a educação científica em instituições académicas em Macau, que se debruçam sobre a investigação inovadora na área dos estudos artísticos e culturais, o caso da Universidade de S. José”, sublinha o mentor do projecto e também realizador de “Cadavre Exquis”, Bruno Mendes da Silva, citado num comunicado da organização. “Devo dizer que estou muito entusiasmado com a produção deste filme, o primeiro do género em Macau. É um desafio fantástico para alguém que, como eu, já trabalhou nesta cidade”, acrescenta o investigador.

Parceria algarvia

O filme junta 11 parcerias com a Universidade do Algarve, à cabeça das quais estão a Universidade de São José, o Instituto Cultural de Macau e a Creative Macau.

A produtora e fundadora da ART 8 Macau, Maria Paula Monteiro, diz que o objectivo do filme passa por “ampliar o espaço de desenvolvimento” em áreas como arte digital, tecnologia e comunicação associada ao cinema, em Macau, aproveitando o intercâmbio da produção, dos produtores artísticos e do conhecimento científico.

18 Set 2018

Labirinto da saudade

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]o nome do filme documentário/ensaio de Miguel Gonçalves Mendes que teve estreia a 24 de Maio com distribuição da NOS Lusomundo Audiovisuais e fez 1.722 espectadores nas 170 sessões que tiveram lugar nas salas das Amoreiras e El Corte Inglês em Lisboa, Alameda Shop e Arrábida Shopping no Porto, Alma Shopping em Coimbra. O número referido de espectadores corresponde a uma receita bruta de 9.225,16€. Mas dizer isto é quase nada dizer sobre o filme e sobre as condições de produção e visibilidade/exibição do cinema português.

O labirinto da Saudade, é uma adaptação da obra homónima, é um ensaio documental narrado pelo próprio Eduardo Lourenço que percorre os espaços da sua memória e da própria história e identidade portuguesa, em busca da resposta do que é, afinal, isto de se ser português.

É assim que a produtora LONGSHOT apresenta o filme e com esta introdução começa-se a perceber melhor ao que o filme vem e o que trabalha.

Eduardo Lourenço e o filme que é filmado na sua cabeça

Diz Eduardo Lourenço após uma sessão de visionamento em casa de Pilar Del Rio: “Nunca imaginei na minha vida ser actor de mim próprio. Obrigado Miguel. Isto foi uma das grandes surpresas da minha vida, tudo isto. Que não sei bem o que é: uma espécie de ficção – uma ficção encantatória -, diria, para me dar algum relevo antes de me ir embora. É uma espécie de requiem. É uma imagem interessante porque uma das coisas que mais me impressionou na vida foi o primeiro filme que eu vi sobre Dom João, rodeado de musas. Há demasiadas musas neste filme. Tenho a sorte de ter tido bons amigos na vida, como este cineasta.

No princípio, por ser baseado no livro, pensei que não haveria qualquer referência à Annie, a minha mulher. Mas está lá tudo, o que devia estar, o amor e uma ausência sem solução. E com ela estão os meus amigos que partilharam estes pensamentos e foram de uma generosidade talvez excessiva, pra mim, e que me é muito difícil de suportar.

Eu sou eu. Comigo eu entendo-me. Ou vou-me entendendo mais ou menos. Mas não posso, não consigo pensar-me com o olhar dos outros.

Sinto-o como uma coisa excessiva para uma pessoa que não tem uma notoriedade que corresponda a esta espécie de “conto de fadas”. Com alguns pontos infelizmente negativos, pelo meio.

Tudo isto é moderado e modelado pelas intervenções dos diálogos que eu vou tendo com as diversas pessoas que se cruzam no meu percurso. Gente que quis dialogar comigo, que quis perceber o que é que eu andei a dizer por ai de maneiras talvez um pouco crípticas e misteriosas.

O filme é demasiado, demasiado grande para mim, demasiado… quer dizer, toca-me em pontos que são muito sensíveis. Não quero dizer com isto que achei o filme chato. Pelo contrário, a questão é que chato sou eu na realidade. E eu não posso sair deste filme como se não estivesse lá dentro. E isso é obra e consagração de quem fez o filme.

Eu não queria nada imitar o Agostinho da Silva mas tenho algum receio que me transformem numa espécie de segunda versão do Agostinho. E é muito interessante que no filme apareçam essas referências ao Brasil. Que às vezes parecem um tema tabu. Esse diálogo com o Gregório é um dos melhores. Nunca tinha oportunidade de dizer o que me vai realmente na alma sobre o Brasil – essa presença/ ausência. De nós com ele e deles de nós.

Tudo isto foi uma aventura, uma das aventuras, digamos, pouco romanescas como no nosso passado. Sobretudo, dos tempos em que fomos descobridores de mundos. Mas eu não descubro nem descobri coisa nenhuma.

O que eu conheço já está descoberto há muito tempo. Eu limito-me a navegar na navegação dos outros por minha própria conta.

Cada um julgará da minha performance neste filme ou falta dela. No Sentido que poderá ter esta navegação, por conta de um sonho, que é maior do que eu.

Claro que nunca imaginei ser ator de mim próprio. E eu tenho a consciência de que não sou ator de modo nenhum. Como disse nunca imaginei na minha vida ser ator de mim mesmo. Esta é uma aventura que não corresponde às minhas capacidades. Esta aventura de me vestir nela de uma maneira criadora como aquilo que tentei fazer, por minha própria conta, quando escrevi o Labirinto da Saudade. De maneira que esta foi uma nova oportunidade de refletir toda uma mitologia que muitos contestam, e talvez até com razão, e assim foi me oferecida a oportunidade de emendar de novo um certo número de temas ou propósitos.

Enfim, quem me ouve, quem me lê. Sobretudo quem me leu estará em circunstâncias de me corrigir que bem preciso. É um belo filme. Mas eu preferia que fosse outra pessoa a vestir esta coisa que me fica larga. Não houve nada que me tivesse chocado. Uma pessoa mitifica-se como pode. Mas pronto está feito, está feito.”

Miguel Gonçalves Mendes (o realizador do documentário José e Pilar) filma “O Labirinto da Saudade” de Eduardo Lourenço. O filme é uma viagem pelo interior de uma mente brilhante, inquieta, e amante. Um amor continuado pela mulher com quem casou e viveu longos anos em França, um amor continuado pelo capacidade e exercício do pensamento, um amor continuado por um território real e simbólico com uma história já próxima do milenar, — faltam 169 anos, foi em 1179 que o Papa Alexandre III assinou a bula Manifestis Probatum que concede o título de Rei a Afonso Henriques — que se chama Portugal.

Aos 94 anos, o escritor e filósofo Eduardo Lourenço faz eco em nós das perguntas que até hoje nele perduram. Que traumas nos definiram enquanto povo? Quem somos? O que fizemos? Que atrocidades cometemos? Quais os caminhos que podemos seguir?

São estas questões o ponto de partida e o caminho percorrido em “O Labirinto da Saudade”, filme sobre uma “nação condenada desde a sua origem a esgotar-se em sonhos maiores do que ela própria”. Mas atenção, talvez que até hoje, esse seja um património comum à génese de todas as nações, qual a nação que pode existir e não soçobrar se nela não houver lugar para um sonho de si maior mesmo que ela própria, um sonho talvez até mesmo impossível? Pode um País existir sem sonho?

E no caso particular Português, que sonho é esse que nos faz, que nos alimenta e nos distingue?

Narrado e protagonizado pelo próprio Eduardo Lourenço, o documentário percorre os corredores da memória própria e da história de Portugal. Cruza-se com fantasmas e amigos do seu presente – Álvaro Siza Vieira, José Carlos Vasconcelos, Diogo Dória, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge, Ricardo Araújo Pereira e Gregório Duvivier, que assumem o papel de interlocutores e coadjuvantes condutores das reflexões escritas no livro.

O cinema é o dispositivo por excelência do sonho partilhado e, neste filme encantatório, como o referiu Eduardo Lourenço, há um personagem que é um homem hoje com quase um século de existência para quem por razões de carácter – aquilo que lhe é próprio – e de destino – a possibilidade escolhida no conjunto sempre múltiplo das possibilidades que nos contextos foi encontrando – teve como objecto de trabalho e de afecto pensar o território que o viu nascer. Esse território tem nome de nação, chama-se Portugal. Materialidade e Sonho, inteligência e agudeza de espírito, simplicidade e encanto, um sonho que foi e é vida, é o que cada espectador partilha sente e vive quando da visibilidade em grande ecrã na sala escura deste filme que é uma das pequenas/grandes obras cinematográficas de Portugal em 2018. Não perca.

11 Set 2018

Tracy Choi, produtora e realizadora de cinema: “Queremos fazer algo mais comercial”

Por estes dias, o segundo grande projecto cinematográfico de Tracy Choi, depois de “Sisterhood”, está a ser filmado numa velha fábrica vazia na Areia Preta. “Ina” é o novo filme da realizadora que agora desempenha o papel de produtora, em parceria com António Faria. No premiado “Sisterhood”, Tracy Choi abordou a questão da homossexualidade. Neste filme o olhar incide sobre o tráfico humano

[dropcap]C[/dropcap]Como surgiu a possibilidade de trabalhar com António Faria?
Este projecto começou, na verdade, há cinco anos atrás. O “Ina” foi, inicialmente, uma curta-metragem que apresentamos no “Macau Stories 3”, que reúne várias curtas-metragens com histórias sobre Macau. Com este filme queremos fazer algo na área do suspense, mas sobretudo queremos fazer algo mais comercial. Participámos na primeira e segunda edição do “Macau Stories” e, nessa altura, queríamos fazer um filme mais comercial e mais próximo do público, para que fosse mais fácil captar a sua atenção. No “Macau Stories 3” foi a primeira vez que trabalhei com o António Caetano de Faria e durante estes cinco anos trabalhámos juntos muitas vezes. Colaborei com ele na realização de um documentário e ele também me ajudou em vários projectos. Fazer o “Ina” é uma boa oportunidade para nós. Outro realizador que colabora connosco enviou o “Ina” em formato de curta-metragem para várias pessoas da área do cinema, um dos distribuidores americanos viu o trailer, adorou e disse que iria fazer com que o “Ina” fosse distribuído a nível internacional. O único problema que colocou é que não poderia colocar no mercado uma curta-metragem, tinha de ser em formato filme. Então, começámos a pensar se seria possível, depois de cinco anos, voltar à película e se teríamos dinheiro para fazer o projecto. O filme tem 90 minutos, procuramos investidores.

E conseguiram fundos do Governo de Macau?
Sim, pedimos apoio ao Fundo das Indústrias Culturais.

Este é o segundo projecto cinematográfico desde o “Sisterhood”.
Sim. Tenho alguns projectos pessoais em andamento, mas na verdade este é o segundo grande projecto cinematográfico em que estou envolvida. E é também a primeira vez que desempenho funções de produtora, antes trabalhei sempre como realizadora. Estou a aprender novas coisas e a pensar o quão complicado é produzir (risos). É um trabalho bastante diferente, e quando estou a realizar penso que tudo tem de estar perfeito no filme, mas depois, como produtora, penso no dinheiro que temos e na forma como temos de cortar aqui e ali.

FOTO: Sofia Mota

Mesmo com os subsídios do Governo, continua a ser difícil fazer cinema em Macau?
Sim, totalmente. Além do facto dos apoios financeiros não serem suficientes, é difícil encontrar pessoas ou entidades que queiram investir na produção de um filme em Macau. Não há muitas pessoas interessadas em fazer isso, porque constitui sempre um risco muito elevado e claro que o retorno será sempre pouco. Não podemos ver, de facto, que haja lucros. É difícil ter lucros quando não temos uma grande estrela a trabalhar connosco, por exemplo. É a primeira vez que estamos a tentar captar investimento numa produção verdadeiramente local, porque no caso de produções em Hong Kong ou China os investidores têm uma maior confiança ao nível de obtenção de lucros.

Falou-me da aposta no suspense. Que tipo de história podemos esperar em “Ina”?
A história começa com a Ina, a personagem principal, na adolescência, um pouco confusa, porque está a crescer e tem problemas relacionados com drogas. Estamos agora a filmar a segunda parte, que se foca mais na forma como Ina cresce enquanto mulher. O seu pai morre e abordamos temas como as seitas e o tráfico de mulheres. Então, ela tem de decidir que pessoa quer ser.

São temas sensíveis em Macau. Procura, com este filme, criar um debate em torno destas questões?
Sim, a questão do tráfico humano é um pouco sensível, mas pensamos que vale a pena falar sobre o assunto e abordá-lo, porque podemos não ter conhecimento sobre a verdadeira situação do tráfico humano em Macau, mas há ainda muitas coisas a acontecer. Além disso, estamos mesmo a apostar numa película mais comercial para que possa ser vendida no mercado internacional, para chegarmos a um público maior. É por isso que é importante pegar em temas que geram preocupação para que possamos discuti-los.

Com “Sisterhood” abordou vários elementos da cultura local. Com o “Ina” também têm esse objectivo, de mostrar a cultura de Macau e as suas pessoas?
Como queremos fazer um projecto mais comercial, talvez a parte cultural não esteja muito presente na história, ainda que tenhamos filmado 90 por cento das cenas em Macau e feito uma ou duas filmagens na China. De certa forma, mostramos o território, mas mais numa perspectiva de como Macau é actualmente. Não de forma muito realista, diria, mas penso que de certa forma mostra há um pouco da cultura local no filme.

Há planos para a apresentação do filme no mercado chinês?
Ainda estamos a planear essa parte. Para entramos no mercado chinês temos de ter uma espécie de aprovação prévia quanto ao conteúdo do filme. Nós não queremos alterar o conteúdo, e se passarmos nessa análise, tudo bem. Se não passarmos, também não há problema.

Quando estará concluído o filme?
A pós-produção deverá estar concluída este ano e a estreia será este ano ou no próximo. Como estamos a trabalhar com um distribuir norte-americano, ele já começou a vender parte do conteúdo do filme em regime de pré-venda, ainda que estejamos em processo de filmagens. É bom ter esta abertura ao mercado internacional para que o cinema de Macau não fique sempre atrás do que é feito em Hong Kong e na China. Se conseguirmos, de facto, chegar lá fora e obter alguns lucros aí os investidores locais vão ver que também podem obter algum retorno. É bom dizer às pessoas que temos outro caminho a seguir. Também gostaríamos de estar presentes na próxima edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, mas tudo vai depender dos prazos da pós-produção.

6 Set 2018

Joana Vicente é a directora do Festival de Cinema de Toronto

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]produtora Joana Vicente foi ontem anunciada como a nova diretora executiva do Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF, na sigla em inglês). A portuguesa fica assim corresponsável pela organização a par do director artístico Cameron Bailey.

“O comité de selecção ficou profundamente impressionado com o passado de Joana Vicente como produtora, defensora de realizadores independentes e com o seu sucesso em angariação de fundos e parcerias. O seu extenso conhecimento do panorama global cinematográfico em mudança solidificou a decisão”, disse, em comunicado, o conselho de administração do festival.

Joana Vicente era, desde Dezembro de 2009, directora executiva do Independent Filmmaker Project, a mais antiga e maior organização de cineastas independentes nos Estados Unidos, como recorda o comunicado do TIFF. “Sempre olhei para o TIFF como uma proeminente plataforma internacional para o cinema mundial, com um impacto local e global”, afirmou, citada pelo festival, Joana Vicente, antes de acrescentar que a visão artística de Carmon Bailey é “inspiradora”.

A organização do TIFF salienta que Joana Vicente “é uma figura de proa da indústria cinematográfica de Nova Iorque, tendo produzido mais de 40 filmes e fundado três empresas, incluindo a primeira produtora digital dos Estados Unidos e o primeiro estúdio de distribuição e produção em alta definição do país”.

Joana Vicente foi nomeada pela Variety como uma das 60 pessoas mais influentes em Nova Iorque e já recebeu o prémio “Made in New York”, que distingue figuras que tenham contribuído de forma significativa para o crescimento das indústrias de media e entretenimento da cidade.

Joana Vicente nasceu em Macau, estudou Filosofia em Lisboa, foi assistente de Maria de Lurdes Pintassilgo no Parlamento Europeu e trabalhou nas Nações Unidas até se decidir pela produção de cinema nos Estados Unidos em parceria com o marido, o produtor Jason Kliot. Ainda antes de atravessar o Atlântico, Joana Vicente foi assistente de produção de António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco e teve uma breve participação como actriz num filme de Alain Tanner.

Em Nova Iorque, onde vive há quase 30 anos, fundou com Jason Kliot a Open City Films e a HDnet Films, empresas com as quais assinaram cerca de quarenta produções cinematográficas independentes para realizadores como Brian de Palma, Alex Gibney, Steven Soderbergh, Hal Hartley, Todd Solondz e Jim Jarmuch.

Joana Vicente explicava à Lusa, em 2008, que a produção que faz “é bastante criativa”, porque o envolvimento num projecto começa quase sempre no desenvolvimento do guião, a partir de uma ideia ou de um livro. “Eu gosto imenso de produção, mas a parte que me faltava era essa parte criativa. Sobretudo quando trabalho com realizadores que não têm muita experiência dá-me imenso prazer tentar dar-lhe todos os instrumentos possíveis para que consigam realizar da melhor maneira a visão deles”, disse Joana Vicente.

A nomeação do TIFF produz efeitos no dia 1 de Novembro, perto de dois meses depois do festival deste ano, que vai contar com o filme “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, em duas secções.

30 Ago 2018

Cinema | Nicolas Cage no Festival Internacional de Cinema de Macau

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]actor Nicolas Cage foi nomeado “Embaixador de Talentos” da edição deste ano do Festival Internacional de Cinema de Macau. A notícia é avançada pelo canal de rádio da TDM, referindo-se à informação do portal Hollywood Reporter, que citava o director artístico, Mike Goodridge. Nicolas Cage deve marcar presença na cerimónia de abertura do festival, que decorre entre 8 e 14 de Dezembro, e participar numa masterclass. Já em Julho, Aaron Kwok tinha sido nomeado “Embaixador de talentos”.

30 Ago 2018

“O Caderno Negro” seleccionado para Festival de Cinema de Toronto

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] longa-metragem “O Caderno Negro”, uma co-produção luso-francesa realizada por Valeria Sarmiento e produzida por Paulo Branco, vai ser apresentada em estreia mundial na secção de cinema internacional contemporâneo do Festival de Toronto (Canadá).

O filme da realizadora chilena é inspirado na obra “Livro Negro de Padre Dinis”, de Camilo Castelo Branco, com argumento de Carlos Saboga, e foi um dos 48 seleccionados deste ano para a secção “World Contemporary Cinema”, no Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF, na sigla inglesa), que decorre entre 6 e 16 de Setembro.

Em comunicado, o festival afirma que o programa deste ano apresenta filmes “luminosos” de 30 países – com uma forte presença da América Latina e da Europa de Leste – contando histórias de identidade, descrevendo dinâmicas familiares e fazendo declarações políticas ousadas.

“Cada filme do ‘Contemporary World Cinema’ oferece um instantâneo do mundo e mostra a importância de uma produção global atraente”, disse Kerri Craddock, directora de programação do TIFF, acrescentando que “juntos, os filmes expõem a verdade, abrem fronteiras e cativam o público com as suas histórias profundas e fortalecedoras.”

“O Caderno Negro” também irá participar na edição deste ano do Festival San Sebastián, em Espanha, que terá lugar entre 21 e 29 de Setembro, onde concorre ao grande prémio.

Paixão fatal

O filme conta a história de um casal que, em pleno século XVIII, viaja de Roma a Paris, de Lisboa a Londres, e de Parma a Veneza, fazendo do espectador testemunha de “tenebrosas intrigas no Vaticano, a angústia de uma paixão fatal, um funesto duelo, a galanteria na corte de Versalhes, as convulsões da Revolução Francesa e a ascensão do general Bonaparte”, segundo a sinopse do filme.

A coprodução é assinada pela Leopardo Filmes e pela Alfama Films, em associação com a francesa CB Partners e APM Produções.

Em Toronto vai também estar o filme “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que terá a sua estreia norte-americana, ao encerrar o programa da secção “Midnight Madness”.

A organização do TIFF destaca que várias das “impressionantes” 27 estreias mundiais do programa são de veteranos do TIFF, como é o caso de “Belmonte”, do uruguaio Federico Veiroj, “The Other Story”, do israelita Avi Nesher, “Stupid Young Heart”, da realizadora finlandesa nomeada para Óscar Selma Vilhunen, “Quién te Cantará”, do espanhol Carlos Vermut, e “Look at Me”, do realizador Nejib Belkadhi, da Tunísia.

O programa também destaca selecções de filmes que já cativaram audiências em todo o mundo este ano, como “I Do Not Care If We Go Down In History As Barbarians”, do realizador romeno Radu Jude, “Birds of Passage”, pela dupla de realizadores colombianos Cristina Gallego e Ciro Guerra, e ainda “Border”, do iraniano Ali Abbasi.

16 Ago 2018

Cinema | João Salaviza e Renée Nader Messora vencem melhor filme em Lima

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]filme “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, de João Salaviza e Renée Nader Messora, venceu o prémio de melhor obra de ficção do Festival de Cinema de Lima, no Peru, anunciou a organização. O filme, que já havia recebido o prémio especial do júri da secção ‘Un Certain Regard’ no Festival de Cannes, ganhou ainda a distinção por melhor fotografia.

O 22.º Festival de Cinema de Lima contou ainda com a presença de outro português – o produtor Paulo Branco – enquanto homenageado.

A produtora portuguesa Karõ Filmes realçou, em comunicado, que “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos irá ser exibido em dezenas de festivais internacionais nos próximos meses” e tem estreia comercial em Portugal, França e Brasil prevista para o primeiro trimestre do próximo ano.

O filme foi rodado durante nove meses, em 16mm, sem equipa, na aldeia Pedra Branca, no estado de Tocantins, no Brasil. “Não há espíritos ou cobras esta noite e a floresta em redor da aldeia está sossegada. Ihjãc, de 15 anos, tem pesadelos desde que perdeu o pai. É um Krahô indígena do norte do Brasil. Ihjãc caminha pela escuridão, o seu corpo suado move-se com receio. Um cântico distante atravessa as palmeiras. A voz de seu pai chama por ele através da cascata: é hora de organizar o festim funerário para que o espírito possa partir para a aldeia dos mortos. O luto deve cessar”, pode ler-se na sinopse disponibilizada pelo festival de Cannes.

O texto acrescenta: “Negando o seu dever e para poder escapar ao processo crucial de se tornar um xamã, Ihjãc foge para a cidade. Longe do seu povo e da sua cultura, enfrenta a realidade de ser um indígena no Brasil contemporâneo”.

“Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” foi produzido por Ricardo Alves Jr. e Thiago Macêdo Correia, da produtora Entre Filmes, sediada em Minas Gerais, em coprodução com a portuguesa Karõ Filmes e com a Material Bruto, de São Paulo.

14 Ago 2018

Cinema | Filme chinês mais caro de sempre sai dos cinemas após estreia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] produção cinematográfica mais cara de sempre na China, intitulada “Asura”, com um custo de 750 milhões de yuan, foi retirada dos cinemas após uma decepcionante estreia comercial no fim de semana.

O filme épico, baseado na mitologia budista, arrecadou 49 milhões de yuan no fim-de-semana de estreia, nos cinemas chineses, apesar de uma forte campanha publicitária. Os produtores anunciaram a retirada dos cinemas através das redes sociais, mas sem detalhar quais os motivos.

Mais de 2500 pessoas trabalharam na produção de “Asura”, filme produzido na China e cuja pós-produção foi feita ao longo de mais de um ano nos Estados Unidos. Num artigo publicado antes da estreia, Yang Hongtao, presidente do grupo Ningxia Film Group, um dos produtores, considerou o filme “muito imaginativo”. “Queremos que o filme aumente a confiança na nossa própria cultura e capacite os nossos talentos domésticos”, afirmou.

18 Jul 2018

“Pintor e a cidade”, de Manoel de Oliveira – Um amor inequívoco pelo essencial

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos abordar um filme algo esquecido da filmografia de Manoel de Oliveira. Trata-se de um documentário a cores, filmado em 1956. Grande parte daquilo que virá a ser os pilares estéticos na obra de Manoel de Oliveira – a outra encontraremos sete anos mais tarde em O Acto da Primavera – começa em O Pintor e a Cidade. Depois de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira esteve 13 anos sem filmar. Mas durante este tempo, além dos afazeres de empresário, pensava e assistia a cinema, e em 1955 fez um curso de fotografia nos estúdios da Agfa-Gevaert AG – especificamente acerca da aplicação da cor ao cinema –, na cidade alemã de Leverkusen. O Pintor e a Cidade é o primeiro filme depois desse curso. Mas as diferenças entre este filme e o seu primeiro está muito longe de se traçar em cores.

“Fiz O Pintor contra O Douro. Enquanto O Douro é um filme de montagem, O Pintor é um filme de êxtases. Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante. A imagem rápida tem um efeito, mas a imagem quando persiste ganha outra forma. O Pintor e a Cidade é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. (…) É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem.” [Manoel de Oliveira, Cem Anos, Cinemateca, pp. 56-7]

Em O Pintor e a Cidade, Manoel filma a cidade do Porto através do olhar e das aguarelas do pintor António Cruz, considerado como o maior aguarelista dos tempos modernos. Acerca dele, Abel Manta, em entrevista a Manuel Lavrador (in Sol), diz: “é sem contestação o maior aguarelista português dos tempos modernos. Tirou a aguarela da banalidade para a que a tinham arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses. Deu-lhe grandeza, ressonância sinfónica; levou-a até atingir o valor de uma alta expressão sintética e afastou-a da superficialidade habitual.” Também, décadas mais tarde, em 2015, José Emídio, pintor e responsável da Cooperativa Árvore dirá que “António Cruz é o grande aguarelista português do século XX. É um artista de uma mestria extraordinária. Além de pintor talentoso soube tirar partido das neblinas, a luz, o granítico das sombras, as pontes e o rio. Só um homem que viveu intensamente a cidade seria capaz de a mostrar com este olhar sensível.” E é precisamente estas neblinas, esta luz, este granítico das sombras, as pontes e o rio, que Manoel de Oliveira vai filmar através dos quadros do pintor e do seu olhar.

Manoel mostra claramente duas coisas neste filme, que se tornariam fundamentais ao longo da sua obra: 1) não há distinção entre real e ficção no que é captado pela câmara; 2) a câmara é uma janela para o mundo – o que se filma –, e tal como a janela de uma casa, ela não se move e força-nos à atenção daquilo que passa por ela. Várias vezes, em entrevistas, Manoel de Oliveira referiu-se à relação entre ele e a câmara e entre esta e o mundo. Dizia que a máquina de filmar não faz nada, e que o cinema é tudo o que se põe diante da máquina de filmar. Podemos mesmo dizer, de modo Copernicano, que não é a câmara que anda à volta das coisas, mas as coisas que andam à volta da câmara. A câmara está no centro do universo.

Na sua obra, em dois volumes, acerca do cinema, Gilles Deleuze escreve: “Em regra geral, os poderes da Natureza não são enquadrados da mesma maneira que as pessoas ou as coisas, e os indivíduos da mesma maneira que as multidões, e os subelementos da mesma maneira que os termos. Tanto assim é que há no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os postigos, as frestas, os vidros de um carro ou os espelhos são outros tantos quadros no quadro. Os grandes autores têm particulares afinidades com tal ou tal desses quadros segundos, terceiros, etc.” [DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Documenta, Lisboa, 2016, p. 32]

Na verdade, e em relação à primeira afirmação de Deleuze, Manoel de Oliveira é claramente uma excepção. Mais: essa excepção torna-se a sua marca, pelo menos até aos anos 90. A câmara de Manoel de Oliveira enquadra um quadro do mesmo modo que enquadra a Natureza. E não é só em O Pintor e a Cidade – embora seja aqui que começa – mas pode-se ver claramente em toda a tetralogia dos amores falhados – e de modo geral ao longo de toda a sua obra. Especialmente nos três últimos filmes trágicos da tetralogia, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca. Nessa primeira tragédia, o filme inicia-se precisamente com a câmara percorrendo os bastidores de um teatro. E, ao começar-se a cena, na cozinha de uma casa senhorial, a câmara foca uma fotografia pendurada na parede, que representa uma paisagem – muito provavelmente a paisagem exterior da casa –, e vai aproximando-se até que o quadro se torna toda a imagem captada pela câmara. Ficamos perante a evidência de que estamos no mundo da imagem, seja ela captada directamente pela câmara, seja ela captada indirectamente pela câmara. Não se distingue a imagem exterior, da imagem de uma fotografia do exterior, se a câmara de filmar fechar todo o ângulo de filmagem. Quando se começa a escutar o vento, sem que a paisagem se mova, compreende-se que estamos imersos no mundo da representação. Aquele quadro é uma janela, aquela janela é o mundo lá fora. Tudo é o que a câmara capta. Uma vez mais, e agora completamente ao encontro de Manoel de Oliveira, Deluze escreve: “Mas a única consciência cinematográfica não somos nós, cada um dos espectadores, nem o herói, é a câmara, ora humana, ora inumana ou sobre-humana.” [Op. cit., p. 40]

A câmara é a consciência do que se vê. É a consciência daquilo que se mostra. A câmara não distingue entre Arte e Natureza, filma igualmente um quadro exposto numa parede ou uma paisagem. Curiosamente, ou talvez não, Manoel de Oliveira faz precisamente aquilo que André Bazin – um dos co-fundadores dos Cahiers du Cinema – escreve em 1945 acerca dos surrealistas, num pequeno estudo intitulado “A Ontologia da Imagem Fotográfica”: “É que para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da impressão mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o real e o imaginário tende a ser abolida. Toda a imagem deve ser sentida como objecto e todo o objecto como imagem.” [BAZIN, André. O cinema – ensaios, Editora Brasiliense, 1991, p. 25]

E podemos dizer o mesmo para a obra de Manoel de Oliveira: toda a imagem é um objecto e todo o objecto é uma imagem. A câmara transforma tudo em imagem. E não há imagens ontologicamente superiores a outras. Uma imagem é uma imagem é uma imagem é uma imagem. A imagem não é realidade. A imagem é o que a câmara capta. E ela não capta apenas quadros pintados, colocando-os ao mesmo nível da paisagem, ela também capta a nossa atenção ao plano fixo da câmara. E André Bazin, na sua análise ao cinema dos anos 20 aos anos 40, escreve: “(…) eu distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências opostas: os directores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade.” [Op. Cit., p. 69]

E páginas adiante vai anda mais longe, ao encontro do que aqui temos assinalado em Manoel de Oliveira: “É que acabámos de considerar o expressionismo da montagem e da imagem como o essencial da arte cinematográfica. E é principalmente essa noção geralmente admitida que questionavam implicitamente, desde o cinema mudo, realizadores como Erich Von Stroheim, F. M. Murnau ou R. Flaherty. A montagem não desempenha em seus filmes praticamente nenhum papel, a não ser o papel totalmente negativo da eliminação inevitável numa realidade abundante demais. A câmara não pode ver tudo ao mesmo tempo mas, do que escolhe ver, ela se esforça ao menos para não perder nada. O que conta para Flaherty, diante de Nanook caçando a foca, é a relação entre Nanook e o animal, a amplitude real da espera.” [Ibidem] É preciso não confundir esta “amplitude real da espera” com realidade. A “amplitude real da espera” é um acontecimento fenomenológico, não um facto real.

João Botelho, no seu filme O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016), citando o seu mestre, diz: “A força poderosa e única do plano fixo – disse-me ele – tinha-lhe sido revelado pelo Dryer, na Joana D’Arc (1928), e pelo muito amado John Ford, aquele que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos se moviam, para não correr o risco de distrair os espectadores do essencial.” Independentemente das influências que se possam ter, a verdade é que, tal como Miguel de Unamuno escreve em Do Sentimento Trágico da Vida, nós não somos pessimistas porque lemos livros pessimistas, pelo contrário, é porque somos pessimistas que lemos livros pessimistas. Os planos fixos exercem um poder sobre Manoel de Oliveira, porque ele os entende, ele vê neles algo de profundo, algo que faz parte de si mesmo, da sua natureza reflexiva. Em O Pintor e a Cidade, ele descobre o tempo como elemento fundamental no cinema. Tempo, aqui, em sentido de duração. E duração em ligação estreita com atenção. O tempo como tempo necessário à apreensão daquilo que importa, daquilo que é preciso realmente atentar. No fundo, o tempo como a nossa vida a dar-se conta dela em confronto com a arte. Pois é preciso não esquecer que, em Manoel de Oliveira, o cinema é sempre arte e não uma imitação da vida. O filme é um objecto para ser apreciado enquanto tal e não uma coisa que faz parecer ser outra coisa, sem que nos demos conta do objecto filme. Isto tornar-se-á mais claro ainda em O Acto da Primavera.

Quase cinquenta anos depois de filmar O Pintor e a Cidade, numa grande entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura do Brasil, uma jornalista – dos seis jornalistas que se encontravam no estúdio –, pergunta porque razão é que um homem que foi campeão de atletismo, de corrida de carros, que pilotou aviões, passou a fazer filmes que são o contrário disso. Ao que Manoel de Oliveira responde: “No automobilismo o movimento é o de vencer o tempo. No cinema é o de reflectir sobre ele.” O cinema é uma arte, que como toda a arte é reflexiva, que remete para a reflexão acerca da vida e não para a vivência da mesma. Na vida, Manoel de Oliveira anda depressa, na arte anda devagar. Assim, o plano fixo não é apenas uma influência de Dreyer e de Ford, é reflexo de uma hermenêutica de Oliveira acerca da arte do cinema. Há sempre como que um fundo fenomenológico nos planos de Oliveira, um forçar a atenção, quer seja pela repetição, quer seja pela permanência, forçando o espectador a ver, a atentar naquilo que está a ser mostrado, não lhe deixando possibilidade de fuga, não lhe lançando a corda da distracção, que tanto ele acusava o cinema “americano” de fazer. O cinema americano a que aqui nos referimos, tal como também Manoel de Oliveira, era o cinema dos blockbusters. Pois John Ford ou D. W. Grifith, por exemplo, são realizadores americanos e sempre foram considerados como mestres por Oliveira.

De facto, pelo menos a partir de um certo período da história, a arte não visa o entretenimento, e foi sempre assim que Manoel de Oliveira viu o cinema, como arte. Ele nem sequer era contra o cinema de entretenimento, apenas julgava que deveria também haver espaço para o cinema arte. E a arte, para ele, está indissociável do essencial, de mostrar o essencial. Um amor inequívoco pelo essencial. E, literariamente, não podemos deixar de pensar em Cesário Verde e no seu livro acerca da cidade de Lisboa, dos seus poemas que são como telas das paisagens desta cidade.

10 Jul 2018

Vídeo | Present Future Film Festival aberto a candidaturas

O Present Future Film Festival está de volta para apresentar ao público de Macau trabalhos de vídeo e cinema de animação. A 5ª edição do festival, que ocorrerá em Setembro, já mexe e abriu a fase de submissão de candidaturas. Os projectos selecionados serão exibidos em Macau, Taiwan e Japão

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stão abertas as candidaturas para a 5ª edição do festival de vídeo Present Future Film Festival. A iniciativa organizada pelo ICenter visa “facilitar a criação de vídeos e animações”, refere a responsável pelo projecto, Sou Zoe.

Paralelamente, o evento propõe-se a levar as produções de autores locais a outros destinos, garantindo a divulgação além-fronteiras do que se faz em Macau.

Os filmes candidatos vão ser seleccionados por um júri composto por especialistas do território, Taiwan e Japão. Os vencedores , além de garantirem um lugar no programa da edição deste ano do festival, têm a oportunidade de verem os seus trabalhos distribuídos por parceiros do evento que se encontram nas três regiões. “A ideia deste festival é também construir uma plataforma para a troca de vídeos entre as três áreas geográficas e apresentar os mais recentes trabalhos em vídeo e animação que recebemos”, apontou.

Para Sou Zoe “há muitos talentos nesta área, tanto internacionais como locais” que precisam de espaço para mostrarem os seus trabalhos.

As candidaturas estão abertas até ao próximo dia 10 de Agosto e o festival no território tem data apontada para Setembro.

Nesta edição, “além do cinema do ICentre, também vamos expandir as exibições a vários cafés locais, nomeadamente, ao Macau Design Center, ao Che Che e ao Café Voyage”, esclareceu Sou Zoe.

De acordo com a responsável, a ideia é chegar a mais público e promover o interesse por este tipo de produções artísticas.

Caminho andado

Além da promoção dos criadores e públicos locais, o Present Future Film Festival tem como fim encontrar interessados na distribuição dos trabalhos premiados. Mas há objectivos maiores. Se até agora a iniciativa tem estado concentrada em Macau, Taiwan e Japão, no futuro a organização pretende passar por outros destinos. “Esperamos expandir o projecto a outros países e por vários locais do mundo”, afirmou Sou Zoe.

Por outro lado, com a apresentação de trabalhos internacionais, a organização espera que a produção local fique mais rica e que os criadores de Macau se sintam motivados a investir mais nos seus trabalhos.

4 Jul 2018

Fundação Rui Cunha | Novo ciclo de cinema arranca na próxima quarta-feira

A Fundação Rui Cunha volta a acolher o quinto ciclo de cinema, desta vez dedicado ao cibercrime. Películas como “Snowden” ou “The Girl with the Dragon Tattoo” vão passar na Casa Garden a partir da próxima semana. O filme de Oliver Stone sobre o ex-analista da CIA abre a iniciativa

 

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]lhar com outros olhos para um dos crimes que mais tem crescido nos últimos anos é um dos objectivos da Fundação Rui Cunha (FRC) com a criação do quinto ciclo de cinema, que este ano se dedica ao crime informático. O primeiro filme a ser exibido é “Snowden”, de Oliver Stone, e conta a história de Edward Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA que tornou públicos os detalhes de programas de videovigilância norte-americanos e a sua dimensão global. A Casa Garden, sede da Fundação Oriente no território, volta a ser receber este ciclo de cinema.

“Entendemos que é uma forma de falar de Direito nesta altura do ano, em que está imenso calor e ninguém tem paciência para assistir a conferências. É uma outra forma de falar de problemas jurídicos”, explicou Filipa Guadalupe, que adiantou as razões para a escolha do cibercrime enquanto tema.

“É um tema internacional e transversal, mas que tem muito a ver com Macau, até porque está na forja o projecto da lei da cibersegurança e fala-se imenso na questão da protecção de dados. Está tudo relacionado, de alguma maneira, porque o cibercrime é a consequência da violação dos dados pessoais.”

A coordenadora do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau, entidade ligada à FRC, frisou que, nos últimos anos, este tem sido um dos crimes mais comuns e em franca expansão, incluindo no território.

“Infelizmente, tem sido o crime económico que mais tem crescido, muito por força de mais pessoas a nível mundial terem acesso à internet. Por isso é uma forma fácil de praticar crimes. Alguns estão tipificados na lei, como pedofilia ou violação de identidade, mas há outros que não estão assim tão tipificados, ou protegidos em termos jurídicos e para que é preciso chamar a atenção.”

Do clássico ao actual

Por se tratar de um crime relativamente recente, que cresceu ao mesmo ritmo da internet, não há muitos filmes que abordem esta temática. Ainda assim, a FRC decidiu incluir no programa a película “Italian Job”, de 1969. “Tem o Michael Kane e é um filme de culto, um dos primeiros que abordou esta temática.”

“Este ano não temos nenhum filme chinês mas temos um que foi filmado em Hong Kong, que é o ‘Black Heat’. Temos um filme de culto, intitulado ‘The Girl with the Golden Tattoo’, que é sueco, e vamos projectar a versão original nessa língua. Depois temos dois filmes incontornáveis sobre este tema, que é o ‘Snowden’, do Oliver Stone, e o ‘Firewall’”, explicou Filipa Guadalupe.

O quinto ciclo de cinema da FRC traz a novidade de, este ano, apresentar dois filmes com legendas em cantonês, na perspectiva de atrair alguns espectadores chineses. Prevê-se a ocorrência de debates, incluindo sobre as questões práticas da implementação da nova lei da cibersegurança em Macau, mas tudo vai depender daquilo que os convidados quiserem abordar, assegurou Filipa Guadalupe.

“Não nos limitamos a projectar o filme, convidamos sempre uma pessoa, seja jurista ou um fã de cinema, para fazer a apresentação do filme. No final pode existir um pequeno debate sobre o tema que o filme reproduziu”, concluiu.

21 Jun 2018

Artes | Festival de artes da China e PLP começa a 30 de Junho

A edição inaugural do Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa vai decorrer entre 30 de Junho e 13 de Julho. O evento vai contar com um ciclo de cinema dedicado aos realizadores locais de ascendência portuguesa

[dropcap style≠’circle’]”E[/dropcap]ncontro em Macau” é o nome da primeira edição do Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa. A iniciativa, com um orçamento de 28 milhões de patacas, está dividida em cinco secções que incluem exposições, cinemas, serões interculturais, artes performativas e um Fórum cultural. Na área dedicada ao cinema estão incluídos três filmes realizados por cineastas locais: “Imagens, Macau”, “Filmes em Chinês” e “Filmes em Português”.

O filme “350 metros”, de Fernando Eloy, é uma das películas que será exibida durante o festival. Produzido em 2008, o filme retrata o que se passa durante um dia na Rua 5 de Outubro em Macau. “Foi filmado em 24 horas non stop” explicou Fernando Eloy ao HM.

De acordo com o realizador, a ideia de registar o dia daquela rua surgiu por ser um lugar em que a vida se mantem em suspenso, imune ao reboliço do tecido urbano que a circunda. “Apercebi-me de como o tempo parecia não passar ali apesar de toda a convolução em que a cidade já vivia. Nem 7/11 tinha. Era um exemplo de uma forma de vida de Macau onde se sente a ideia de bairro de forma acintosa”, apontou. O título do filme, “350 metros”, é referente ao cumprimento da rua, e foi também o primeiro filme de Eloy.

De autoria de Ivo Ferreira, será exibido “O Estrangeiro”, uma película que retrata a história de um Portugal que já não existe em Macau. “Ina” é o filme de António Caetano de Faria que aborda a questão das drogas.

História no ecrã

Além da secção de cinema dedicada a Macau o festival vai ter também como destaque a exibição da primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, “Aniki-Bóbó”, e o documentário “Douro, Faina Fluvial” de autoria do lendário cineasta portuense.

Do lado do cinema chinês, o destaque vai para o filme mais recente do realizador Xin Yukun, “Wrath of Silence”, com exibição marcada para o primeiro dia do evento.

Além disso, serão apresentados três filmes contemporâneos da China, nove filmes rodados na África do Sul e em países de língua portuguesa, nomeadamente Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné Bissau, e ainda nove filmes em chinês e português, filmados em Macau.

No total vão ser apresentados 24 filmes em 23 sessões na Cinemateca Paixão.

O serão de espectáculos é a rubrica que apresenta as artes performativas produzidas pela China e pelos países de língua portuguesa. Além da performance vinda de Guansu, o serão vai ainda contar com música e dança tradicional de países como a Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste, e performances de artistas do Brasil e de São Tomé e Príncipe.

O serão tem lugar no dia 6 de Julho, no Centro Cultural de Macau.

Os bilhetes para o Festival de Cinema já estão à venda na Cinemateca Paixão com o valor de 60 patacas. Os ingressos para o Serão de Espectáculo está disponível na bilheteira online de Macau e custam 50 patacas.

 

20 Jun 2018

A vida não tem futuro ou “Para além do paraíso” de Jim Jarmusch

[dropcap style=’circle’] E [/dropcap] m Stranger Than Paradise (Para Além do Paraíso), Jim Jarmusch toca-nos uma das mais contemporâneas melodias acerca do não sentido da vida humana. Não há rumo, não há o que fazer, não há senão tempo para nada. Lembremos que o filme é filmado em plena ressaca do punk rock e que Jim Jarmusch, embora não esteja ligado a este estilo de música, esteve desde sempre ligado à música mais alternativa, a começar pelo actor fetiche dos seus primeiros dois filmes, John Lurie, músico de jazz. E neste filme há um blues que serve de leitmotiv ao filme: “I Put A Spell On You” [Lancei-te Um Feitiço], interpretado pelo seu compositor Screamin Jay Hawkins. Mas antes que esta canção comece a iluminar-nos o filme, é o grande lema do punk, o grito dos Sex Pistols, “No Future”, vindo do outro lado do oceano, de Londres, que parece percorrer todo o filme como um fantasma. “There’s no future. No future. No future for you”, cantavam os Sex Pistols na sua canção “God Save The Queen”, em 1977, no disco Never Mind The Bollocks Here’s The Sex Pistols. E agora, aqui no filme, estamos em 1984. Há sete longos anos que já não há futuro. Há sete anos que o tédio parece ter abafado as cidades e os campos e as existências humanas, pelo menos aquelas que têm menos de trinta anos.
O enredo é simples e talvez seja o que menos importa. Há uma prima, jovem, Eva (Eszter Balint), que chega de Budapeste a Nova Iorque, a casa de Willie (John Lurie), de passagem para Cleveland, para a casa de uma tia mais velha. Este primo, um pouco mais velho do que ela vive dos ganhos que consegue em jogos de poker e em apostas nos cavalos, juntamente com o seu amigo Eddie (Richard Edson, primeiro baterista dos Sonic Youth). Depois de poucos dias em Nova Iorque, em que espera que a tia saia do hospital, Eva ruma a Cleveland. Passado um tempo, e depois de um bom ganho no poker – 600 dólares, que os faz pensar que são ricos – Willie convence Eddie a irem até Cleveland visitar Eva, num carro emprestado. Assim fazem.
A película, a preto e branco, bastante granulada – Luís Miguel Oliveira, na folha de sala da apresentação do filme na Cinemateca de Lisboa, escreve “um preto e branco muito composto, muito granuloso e muito áspero, que passou à história como o ‘preto e branco Jarmusch’ – que se tornou uma imagem de Jim Jarmusch e do seu fotógrafo, Tom DiCillo, junto com o enquadramento de lugares exíguos e pobres mostram-nos claramente que estamos num universo de subúrbio da existência. As pessoas são o que vão sendo e não o que podem vir a ser. Tudo é um estado remediado da existência. Sobrevive-se e tenta-se a todo o custo afastar o tédio. A existência humana é a preto e branco, sem grande definição, e sem nenhum sentido, que não seja sentir o menos possível a passagem do tempo. Viaja-se para Cleveland, porque sim, sem nada para fazer, que não seja esperar que o dinheiro não se acabe depressa e que a morte e o sofrimento tardem. Quando chegam a Cleveland, numa paisagem cheia de neve, Eddie diz a Willie: “Sabes, é engraçado. Conheces um lugar novo, mas tudo parece igual.” Tudo parece igual, porque tanto de onde se veio como onde se está continuamos sem sentido. Tanto antes como agora não há sentido. A vida é como uma paisagem tolhida por uma tempestade de nevoeiro. Não se vê nada e mesmo que se visse nada haveria para ver, como na magnífica cena junto ao lago Erie, em que os personagens vão ver o lago e não se vê nada a não ser branco por todo o lado, neve e nevoeiro. O que está por vir não se vê e o que se vê entedia. Tudo entedia. O mundo é uma máquina de criar tédio. Willie responde “Não digas! Sério?” E atira pedras à neve. A frase “No future” corre pelo interior do corpo.
Ninguém se apaixona. Não há amor nem paixão no filme. Não há nem bem nem mal. Ninguém é bom, ninguém é mau. O tema do filme não é ético, é ontológico. Tudo é tédio. Ninguém tem planos, ninguém tem talento. Aposta-se nas corridas para continuar. Não há sequer paixão nas apostas. Nunca se vê os personagens a apostar e vê-se uma única vez a jogar poker. Jogam para continuar e não por paixão ou vício. Jogam como quem vai para a fábrica trabalhar (como aquele que espera pelo autocarro quando eles estão a sair de Nova Iorque). A vida é continuar e não se sabe nem porquê, nem para quê e nem sequer se pergunta. Arrasta-se a existência e atira-se pedras à neve e conduz-se um carro pelas estradas, de uma cidade até outra e até outra. “I Put A Sell On You”, é posto a tocar num pequeno gravador de cassetes por Eva, de vez em quando, como se fosse a própria vida que lhes tivesse lançado um feitiço. “I Put A Spell On You”, com os gritos e os exageros vocais de Screamin Jay Hawkins transforma-se em nós no grito “No Future” dos Sex Pistols. A vida não tem futuro. Essa, a vida que nos foi lançada como um feitiço, cheia de tédio até à medula. “I Put A Spell On You”, diz-nos ela, a vida, o tédio. E os desencontros no final do filme sublinham a impossibilidade de nós mesmos fazermos sentido da vida que levamos. É a vida que nos atira para onde quer, quando quer… Lança-nos um feitiço.

19 Jun 2018

António-Pedro Vasconcelos, realizador: “Um bom filme é uma espécie de Juízo Final”

Com mais de 50 anos de carreira, António-Pedro Vasconcelos lamenta a falta de público para o cinema que se faz em Portugal e a forma como são dados os financiamentos à sétima arte. O cineasta está em Macau para apresentar “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens” no âmbito das comemorações do 10 de Junho

[dropcap]É[/dropcap] filho e neto de juízes e começou por estudar Direito. Como é que aparece o cinema?
Estudei Direito porque a família achava que devia dar continuidade à tradição, mas isso não aconteceu. Primeiro através da banda desenhada e depois através de histórias e de romances, o meu universo sempre foi o da ficção. Sempre me interessaram as histórias. Mais tarde descobri o cinema. Acabei por sentir que tinha de passar para o lado de lá. Tinha de deixar de ser um leitor e um espectador para passar para o outro lado, para transmitir os sentimentos que a realidade me inspiravam, acerca dos meus próprios problemas e daqueles que via à minha volta. O cinema dava-me isso e foi o que me fascinou: o poder ser capaz de transmitir aos outros aquilo que sentia.

O que é para si o cinema?
O cinema foi a grande arte do séc. XX. Sempre achei que sem ficção a vida tornava-se insuportável. A ficção dá-nos a ilusão de um mundo perfeito, mesmo nas tristezas. Costumo dizer que um bom filme é uma espécie de juízo final em que decidimos quem mandamos para o inferno, para o céu e para o purgatório – agora já não há purgatório, mas era um conceito que dava jeito. O cinema tem uma coisa que lhe é particular, aliás o realizador que me marcou toda a vida, François Truffaut, numa entrevista que lhe fiz disse-me isso mesmo: no cinema, e ao contrário da literatura e de outras artes ficcionais, nós não podemos deixar que o público saia da sala com o sentimento de que a vida não vale a pena e de que é injusta. De facto, podemos escrever um mundo de injustiça, de desigualdades, de violência, de guerra até, mas o sentimento que temos de dar às pessoas é de que o facto de transmitirmos o que é mau já significa que temos uma ideia do que é justo. Apesar de ser muito céptico em muitas coisas, de ter a noção de que a natureza humana está longe de ser perfeita, que os homens não são particularmente bons, que são bons e maus, conforme as circunstâncias e conforme tudo aquilo que o Shakespeare disse, acho que cada um de nós tem de ter uma visão crítica e positiva. Não devemos aceitar a injustiça, mesmo que se saiba que nunca haverá um mundo justo, que nunca haverá um mundo solidário e totalmente livre. Temos de nos debater constantemente para corrigir as injustiças quer ao nível daqueles que nos estão perto quer ao nível da sociedade.

Quer dizer: deixar algum tipo de mensagem de esperança?
Não é bem de esperança. Acho que a esperança, como a fé, são coisas em que delegamos a responsabilidade porque não dependem de nós. Aliás, São Paulo dizia que das três virtudes – fé, esperança e amor – o amor era o mais importante. O amor no sentido da fraternidade, da solidariedade, a dádiva desinteressada e da compaixão, isso já depende de nós. Posso ter esperança que a vida me corra bem, posso ter fé que me vai acontecer alguma coisa, mas o que é importante é aquilo que depende de nós. Nós temos de ser melhores, mesmo quando não esperamos retorno. O amor tem de ser incondicional. Estou-me a referir ao sentido lato do termo e não no sentido romântico. O romantismo teve uma coisa terrível que foi confundir na expressão amor. Teve um efeito bastante perverso e negativo. Se há algum tema quase recorrente nos meus filmes, é de facto uma reflexão sobre esta ideia de que o romantismo meteu na palavra amor uma série de coisas que não são necessariamente compatíveis, ou que não coincidem com o amor. O sexo, o desejo, a paixão a conjugal idade são coisas diferentes e que às vezes até entram em conflito. A paixão, por exemplo, é uma coisa turbulenta e que, muitas vezes, conduz a qualquer coisa que pode ser o oposto do amor. Conduz ao ciúme ou ao crime.

FOTO: Sofia Mota

Traz a Macau três filmes: “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens”. Como é que fez esta selecção?
Talvez porque são três filmes que ilustram bem a minha preocupação, sobretudo na segunda fase da minha obra. Os meus três primeiros filmes eram muito confidenciais em que o personagem principal era um pouco o meu alter-ego e reflectia muito as minhas preocupações pessoais em matéria de amor e não só. Nos outros filmes olho mais para fora de mim. São três filmes em que cada um, à sua maneira, fala de três realidades que me preocupam e que traduzem, em três épocas diferentes, as realidades do meu país. A exploração do trabalho infantil que aparece em “Jaime” é um assunto que me choca muito. “Os imortais”, porque fala de uma realidade que o cinema português fala muito pouco. Não é propriamente da guerra mas da ressaca da guerra colonial. “Os gatos também têm vertigens” foi escolhido porque tentou traduzir um sentimento que prevaleceu durante o período da chamada austeridade e da intervenção da Troika. Foi o período talvez mais negro da história da democracia portuguesa em que os portugueses foram castigados, sobretudo a classe média e os jovens. O filme não fala propriamente disso, mas dessa crise através de dois personagens que pertencem a duas gerações extremas, os idosos e os mais jovens, sobretudo aqueles que são marginalizados e que correm o risco de ficar fora da sociedade e enveredar pelo crime. Escolhi estes três filmes porque acho que traduzem bem aquilo que o meu cinema tenta ser: falar das coisas à minha volta.

Estamos no Oriente. Qual é a sua opinião do cinema que se faz aqui?
O cinema japonês foi talvez o cinema mais rico aqui no Oriente, durante muitos anos. Depois houve aqueles filmes do Bruce Lee, mas antes disso houve um grande cinema japonês que descobri nos anos 60 através de três grandes realizadores: Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. Há também uns filmes do Wong Kar-wai que gostei muito, mas não é uma cinematografia que conheça muito bem. Não chega a Portugal e o Wong Kar Wai foi talvez o realizador que mais me impressionou.

Tem sido muito crítico no que respeita ao financiamento do cinema e da ditadura do gosto.
Todo o cinema europeu, a partir dos anos 80, entrou em declínio. Sempre me preocupei em tentar perceber porque é que isso aconteceu e o que se podia fazer para travar este declínio. Em quase todos os países da Europa chegou-se à conclusão de que o Estado tinha de intervir, regulando o mercado, criando incentivos e inclusivamente financiando uma parte da produção. Em Portugal, em 1971, ainda em pleno regime marcelista foi criado um sistema que perdura até hoje no seu paradigma que é de que o Estado deve impor taxas – na altura às salas de cinema que eram quem lucrava com os filmes, mas hoje em dia a toda uma cadeia encarregue da comercialização dos filmes. A ideia que o Marcelo Caetano impôs com esta lei foi a de que as salas de cinema tinham de pagar uma percentagem dos seus negócios para financiar o cinema português, mas como era um regime de ditadura impôs-se que em vez de se criar um regime de obrigações como acontece noutros países, esses 15 por cento sobre os bilhetes fossem para um organismo criado pelo Estado onde um grupo de quatro ou cinco pessoas ía ler os argumentos e decidir que filmes é que eram autorizados. Este paradigma, paradoxalmente, manteve-se em democracia, ou seja, hoje em dia o Estado criou uma série de taxas e de obrigações, mas, na maioria dos casos, o grande suporte financeiro obtido por essas taxas vai para o Instituto de Cinema, que por sua vez escolhe cinco indivíduos que decidem o que é que dez milhões de portugueses devem ver. Isto é uma coisa com que não me conformo há 44 anos porque este instituto depende do Ministério da Cultura que arroga-se o direito de, com o dinheiro dos outros, escolher que filmes é que se devem fazer. Não imagino o Ministério da Cultura a decidir, cada ano, se deve escrever a Lídia Jorge ou o Lobo Antunes, ou quem deve compor música, se é o Jorge Palma ou o Sérgio Godinho. Somos o único país da Europa em que o Estado não investe directamente no cinema. Isto é tudo um completo absurdo que tem favorecido um cinema muito mais autista que o público não reconhece e que não vai ver.

Está a falar do cinema de autor?
É o que eles chamam de cinema de autor. Mas o cinema de autor não é isso. Hoje em dia criou-se esta ideia em Portugal: o cinema de autor é o cinema que não tem público e o que não tem público é o cinema comercial com os preconceitos que lhe estão inerentes. O cinema deve deixar um testemunho através do reconhecimento público, não há que ter medo do público.

Quais são os filmes da sua vida?
Isso é uma longa lista. Alguns grandes autores americanos: John Ford, Capra, Samuel Fuller foram realizadores que me marcaram para a vida. Depois há toda uma escola do cinema europeu nomeadamente a escola neo-realista. O meu autor preferido sempre foi o Rossellini. Em França, o Jean Renoir e mais tarde os autores da Nouvelle Vague. Os primeiros anos do Godard e do Truffaut. Alguns filmes do Polanski, por exemplo. O paradoxo é que hoje só se fala de cinema de autor e desapareceram os autores na Europa. O único que talvez sobrevive é talvez o Nanny Moretti. O próprio Almodovar deixou de ter interesse. Ele fez um retrato de uma época em que a Espanha mudou muito e ficou desfocado da realidade. Mas não vejo grandes autores na Europa, às vezes vejo bons filmes. A partir do momento em que os autores começaram a desprezar o público, deixaram espaço para muitos filmes que não têm alma, deixaram de dar oportunidade ao público para ver bons filmes. Ao contrario de muitos realizadores, há décadas para cá que os realizadores se sentem felizes por não ter público porque acham que a grande arte não é compreendida. Para mim isto é um contra-senso.

Que filmes lhe falta fazer?
Falta-me fazer muitos filmes, sobretudo aqueles que não fiz, mas quanto a isso já não há nada a fazer. Também não vou ter muito mais tempo para os fazer. Vou fazer mais dois ou três. Tenho 79 anos e apesar de me sentir em forma não posso fazer grandes planos para o futuro. Quero fazer um filme que se passa num lar de idosos, outro sobre os filhos de pais separados. Interessa-me a sensação de insegurança em que o mundo vive. Tenho alguns projectos e espero que os tais júris pensem que os meus filmes merecem ser feitos. Preocupa-me sobretudo as novas gerações e gostava que mudassem esta visão do cinema e a intervenção do Estado. Gostava que aparecesse uma geração que tem muitas coisas para dizer e que tenha um olhar diferente do meu. O meu é um olhar, apesar de tudo, marcado pela idade com tudo o que isso tem de bom mas também já moldado. É preciso ouvir as novas gerações que obviamente têm uma visão diferente do mundo.

Está há uns dias em Macau. O que tem a dizer?
É uma cidade estranha. É uma cidade onde floresceram os casinos. Tem um lado de Las Vegas, exuberante e muito artificial e há também marcas da presença portuguesa. É uma cidade de contrastes.

11 Jun 2018