Hoje Macau EventosMorreu o actor Kirk Douglas, o incansável trabalhador do cinema [dropcap]K[/dropcap]irk Douglas, que morreu na quarta-feira aos 103 anos, nunca esqueceu as origens e foi um trabalhador incansável que só abandonou o cinema aos 80 anos na sequência de uma apoplexia grave. Issur Danielovitch Demsky nasceu em 9 de Dezembro de 1916, em Amesterdão, uma localidade do estado de Nova Iorque, filho de um casal de emigrantes judeus de origem bielorrussa, Herschel e Bryna Danielovitch. Cresceu num bairro pobre, mas era bom estudante e formou-se em Letras na Universidade de St. Lawrence, em 1934. Concluídos os estudos, mudou-se para Nova Iorque, onde até 1939 estudou na Academia Americana de Arte Dramática. Desempenhou pequenos papéis em obras na Broadway antes de se alistar na Marinha em 1941 para combater na Segunda Guerra Mundial. Dois anos depois foi dispensado do serviço devido aos ferimentos sofridos em combate e voltou a Nova Iorque, onde participou em várias produções teatrais e actuou em emissoras de rádio. A recomendação da atriz Lauren Bacall, com quem estudou teatro em Nova Iorque, abriu as portas de Hollywood e em 1946 participou na meca do cinema, no primeiro filme “O estranho amor de Marta Ives” de Lewis Milestone, em que os protagonistas em Barbara Stanwyck e Van Heflin. Foi o início de uma longa carreira, que se estendeu por seis décadas e mais de 90 filmes, além de produzir uma dezena de películas e dirigir duas longas-metragens, “Scalawag” (1973) e “Cavalgada dos Destemidos” (1975). Douglas trabalhou com vários realizadores, Vincent Minelli, Jacques Tourneur, King Vidor, Otto Preminger, Billy Wilder, Elia Kazan, Howard Hawks e William Wyler, entre outros, mas foi Stanley Kubrick quem mais marcou a carreira do ator com “Horizontes de Glória” (1957) e “Spartacus” (1960). Nesta longa carreira, só conseguiu um Oscar honorário em 1996. Honorários foram também os prémios Cecil B. de Mille, em 1968, o César da Academia Francesa em 1980 e o Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim em 2001. Foi também condecorado com a Ordem das Artes e das Letras, concedida pelo Governo de França em 1979, e com a Medalha Presidencial da Liberdade em 1981 e em 2011 recebeu a Medalha Nacional dos Estados Unidos de Arte e Humanidades. Além do cinema, Kirk Douglas trabalhou nos palcos e na televisão. A última interpretação teatral foi em Março de 2009 na sala com o seu nome em Culver City (Los Angeles, Califórnia) em “Antes que me esqueça”, comédia sobre a vida do actor. Douglas apareceu pela última vez em público há dois anos, na gala dos Globos de Ouro, na companhia da nora Catherine Zeta-Jones, para entregar o prémio para o melhor argumento. Durante algum tempo foi também porta-voz do centro Simon Wiesenthal, especializado em estudos sobre o holocausto judeu. Do primeiro casamento com Diana Dill, em 1943, nasceram dois filhos: o ator Michael Douglas e Joel Andre. Em 1945, voltou a casar-se com Anne Buydens e teve mais dois filhos: Peter e Eric Anthony, que em julho de 2004, foi encontrado morto devido a excesso de álcool e medicamentos.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasA despedida [dropcap]C[/dropcap]hegou dia 9 às salas portuguesas o filme escrito e realizado por Lulu Wang, co-produção CHINA – EUA, que deu um globo de ouro a Awkwafina, nome da actriz e raper Nora Lum, pela sua personagem Billi. Billi é uma mulher de 30 anos estudante de arte em Nova York, filha única, que saiu com 6 anos de Changchun, cidade do norte da China, quando os seus pais emigraram. A personagem, como de resto todo o filme, é construído com material das relações pessoais da realizadora Lulu Wang com a sua família e em particular a sua avó Nai Nai. Não se espere, no entanto, um tom confessional neste filme que cruza, com extraordinária eficácia, o material pessoal e familiar da personagem Billi, com a construção de uma narrativa fílmica ficcional, arquetipal na sua estrutura aristotélica dos três actos. Ao longo da narrativa, diálogos inteligentes e verosímeis, como uma comicidade trabalhada em regime de laboratório, estabelecem a adesão do espectador à estória vivida na tela, onde as teias finas e densas da construção dos afectos dão a conhecer aspectos profundamente significantes do que é a cultura ancestral e milenar da China no mundo familiar na diáspora contemporânea. A linha narrativa principal é simples; Billi e Nai Nai, avó e neta falam todos os dias pelo telemóvel, tem uma relação de amor forte apesar da distância geográfica, Billi vive em Nova Iorque e Nai Nai em Changchun. É diagnosticado um cancro terminal a Nai Nai. Toda a família decide esconder esse diagnóstico de Nai Nai e simultaneamente vão todos visitar a matriarca. Dado o carácter de Billi, a sua incapacidade de esconder os sentimentos, toda a família considera que é melhor ela não ir a esse encontro familiar. Para que o encontro não levante suspeitas a Nai Nai, é decidido pela família uma razão para o encontro, o casamento de um neto, o que vive no Japão e que tem uma namorada há três meses. Billi não acata a decisão de não estar presente no que é entendido como o encontro da derradeira despedida, e voa para a China. A sua chegada é vista com inquietação. Mas Billi decidiu, ainda que questionando, acatar a mentira piedosa que toda família está a viver, considerando que é o melhor para a Nai Nai. Se a morte vai acontecer, afinal porque não poupar a dor da certeza da escassez dos dias? Se esta é linha narrativa principal, o que torna o filme magnifico são as constelações formadas por pequenas camadas que se instalam ao longo do processo narrativo, e nos dão a ver de forma clara, que na China contemporânea o valor dado à família, a importância do relacional, o existir em função do outro, o carinho e até a devoção ao mais velho, ideia de uma prática em função de um axioma em que o interesse social, nas suas diferentes escalas, a família, a comunidade mais próxima, o país, é o princípio orientador e não a atomização, o altar do subjectivo, o indivíduo como lugar cardeal da existência, permanece e é agregador e principal construtor de identidade. Podem ter passaporte dos EUA, ter como objectivo que os filhos estudem nos EUA, mas ainda assim, é nos laços afectivos que se reconhecem mesmo que dos antigos bairros onde os avós viveram nada seja visível. O encontro da família dá-nos a ver a permanência de uma filosofia tão antiga como a própria China, uma visão do mundo assente nos ensinamentos ancestrais do Mestre Confúcio, num registo que alterna sem sobressaltos entre a comédia e o drama, numa realização sóbria, ancorada numa representação de grande verosimilhança com a materialidade dos quotidianos, e uma banda sonora de grande qualidade e serventia à produção da emoção. Em muitos aspectos, especialmente na necessidade do relacional, da pertença, na relevância dada aos afectos, apesar da distância geográfica, da barreira da língua, da religião e dos costumes, parece ser fácil reconhecer uma semelhança com a característica afectuosa e emotiva do povo Português. Talvez por isso a particular relação de mais de 500 anos que entre nós está estabelecida e de que Macau é expoente e bandeira. Como sempre, o cinema é um diálogo que faz notar a aproximação, a anulação da distância, geográfica e afetiva. A Despedida é afinal, nesta notável comédia, o lugar do encontro. Realizador: Lulu Wang Produção: Anita Gou, Daniele Tate Melia, Andrew Miano, Peter Saraf, Marc Turtletaub, Chris Weitz, Jane Xheng Argumento: Lulu Wang Elenco: Shuzhen Zhao, Awkwafina, X Mayo, Hong Lu, Hong Li, Tzi Ma, Diana Lin, Yang Xuejian, Becca Khalil, Han Chen, Yongbo Jiang, Xiang Li, Aoi Mizuhara, Hongli Liu, Shimin Zhang 2019 | EUA | CHINA Comédia, Drama | 100 min.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasJoker [dropcap]O[/dropcap] Acontecimento cinematográfico do ano, ou pelo menos um dos, na minha análise, deu vida a uma biografia desconhecida do icónico vilão da DC comics. Realizado por Tood Phlips, teve estreia em Outubro e ainda permanece em sala. Na lista dos filmes mais vistos neste ano 2019 em Portugal, surge em 2º lugar, logo a seguir ao Rei Leão, o filme da Walt Disney Pictures pensado para toda a família. JOKER, protagonizado por Joaquin Phonix estreou a 3 de Outubro e até 25 de Dezembro teve 18 962 mil sessões com 895 903 mil espectadores, o que faz uma receita bruta em sala de € 4.963.583, 79 euros. O Budget estimado desta co-produção EUA /Canada, segundo dados do IMDb, é de 55, 000, 00 dólares, e as receitas de bilheteira ascendem a mais de 1,062,994, 002 dólares. Arthur Fleck, o personagem vivido por Joaquin Phonix, é um comediante palhaço que é despedido na agência de eventos onde presta serviço a recibos verdes, a cidade é Gotham City, a cidade que há muito conhecemos através desse outro ícone da BD o Batman, o alter-ego, de Bruce Wayne, herdeiro de enorme fortuna que decidiu dedicar a sua vida ao combate do crime. Arthur Fleck tem também um alter ego, o JOKER. A cidade vive o seu quotidiano de indiferença, miséria e crime. Arthur Fleck é espezinhado por um grupo de adolescentes que também lhe destroem o cartaz com publicita um produto comercial, cartaz que vai ter de pagar do seu magro salário de palhaço a horas, mas, mais do os pontapés no corpo, são os pontapés na alma, a solidão que se acumula a cada hora do dia e da noite que passa. E pior, com o passar dos cresce também a percepção da falta de perspectivas para outra realidade mais quente e menos sofrida. Arthur Fleck tem necessidade de cuidados médicos, os serviços de saúde públicos em Gotham City são degradantes como o é sempre a miséria, a sua saúde psíquica é difícil. O riso descontrolado acontece nele, como a sucessão de atchim(s) quando se está constipado, é um riso nervoso, que acaba por se tornar uma idiossincrasia da sua persona. Vive com a mãe numa decadência alimentada ansiolíticos. A mãe sonha com a ajuda do seu velho amor o milionário Bruce Wayne, escreve-lhe sucessivas cartas, sempre sem resposta. Bruce Wayne, é o pai de Arthur Fleck, segundo ela ele é filho desse amor clandestino quando esteve empregada na mansão do milionário. Arthur Fleck veste a sua personagem JOKER, é dessa forma, cara pintada de palhaço, que se movimenta na cidade. Um dia no metro, em defesa de vida, mata um assaltante, a sua identidade não é reconhecida, mas a sua figura, comunicada através das tv e jornais encontra eco na população da cidade. Perante a onda de criminalidade da cidade, é percepcionado como um herói. Tenta aproximar-se do pai, vai à grande mansão, encontra junto do muro fronteira de grandes grades entre a propriedade e a cidade o seu irmão, aquele que, sabe o espectador, anos mais tarde será o herói Batman. É expulso, escorraçado da mansão. A revolta interior cresce de forma paralela as manifestações violentas dos habitantes da cidade contra as injustiças da governação da cidade. Os manifestantes usam pinturas faciais iguais à sua, é um herói desconhecido. É convidado num programa de televisão de grande audiência – como sempre, magnifica interpretação de Robert De Niro. Dispara em direto sobre o apresentador. O filme rodado no Bronx, Harlem, Manhattan, é tudo menos uma comédia leve de fácil digestão. O extraordinário – aparentemente – é a adesão dos públicos a esta narrativa que trabalha o burlesco e o drama da marginalidade social nas grandes cidades da falência do capitalista liberal. JOKER é cinema maior, se arte é sempre um tempo fora do tempo, o imaginário Comics, é necessariamente território fértil. Este é um filme construído no novo regime estético do cinema, assim denominado por Jaques Ranciére, um regime em que o híbrido e o pós-dramático são o território da materialidade narrativa. A narrativa trabalha com o grotesco e o informe, que como sempre, tem de ser reconhecida na materialidade, na realidade filmada, de forma sublime JOKER convoca e coloca-nos perante o fascínio visual que trabalha o grotesco. O grotesco é uma potência do humano sempre presente e que, em tempos de crise, de transição de regime, tende a emergir com toda a sua dimensão do espetacular. Captura dá-nos a ver a ansiedade vivida individualmente e em grandes massas, sempre presente nos momentos de fractura, de crises de sociedade. JOKER é o medo do não ser, a procura da forma para o reconhecimento da cidadania, depois da falência da norma. Freud em 1919 no artigo Das Unheimliche, usualmente traduzido em português por “O Inquietante”, tem uma abordagem psicanalítica na área da estética. A análise parte dos contos Hoffmann “O Homem de Areia” e “Os Elixires do Diabo”. Freud investiga a etimologia da palavra Unheimlich, em diferentes línguas, a qual numa tradução literal é significa desconhecido e, paradoxalmente, encontra por vezes o oposto imediato – conhecido ou familiar. Conclui que atrás de algo atrás de algo incompreensível ou atemorizante está sempre alguma coisa familiar, refere então que existe sempre uma sombra no conhecido, um inominável que foi afastado, reprimido. É esse reprimido que alimenta o arco dramático da personagem JOKER. É esse desconhecido, conhecido, que permite a identificação mesmo que involuntária do espectador com a vida na tela. Estamos na presença do herói relutante, este herói que chegou à tela e à literatura na década de 50, o anti-herói, aquele que é herói, protagonista, não porque por decisão própria enfrenta e supera um empreendimento extraordinário, o que quer dizer que se coloca em ação por vontade própria, mas aquele novo herói dos quotidianos modernos que é levado à ação por razões de contexto, movido pela circunstância em que a realidade o envolve. Estamos também em dois tempos, o tempo do filme, ou melhor o tempo em que o filme se passa, os anos da primeira grande recessão económica, e o tempo dos espectadores, o tempo do “espectador emancipado” como escreve Jacques Rancière, o público do cinema do final da segunda década do século XXI. JOKER é o cinema da Nova Hollywood neste tempo de hipercinema em que a qualificação distintiva entre cinema arte e cinema indústria deixou de fazer sentido enquanto julgamento estético e de modelo de produção. São raros, ainda assim bastantes, os heróis negativos que alcançam sucesso inegável na multidão dos públicos, é ainda comum a ideia de que o filme para ter sucesso comercial tem de trazer bons sonhos, distanciar os públicos da realidade e nessa distância oferecer a pílula da felicidade dourada. Basta falar com quem decide das programações em sala e nas televisões, e até de quem tem responsabilidade nas decisões políticas da cultura, e este axioma é apresentado como verdade em altar. JOKER prova de forma incontornável que os senhores do marketing, muitas das vezes, são vendedores de segunda, convencidos de que possuem ciência social e humana. Lembro esse filme com o magistral ator, o Anthony Hopkins em “Silêncio dos Inocentes” de 1991 – filme que ocupa a 74ª posição na lista dos 100 filmes do American Film Institute. Em todo o caso, JOKER é um caso relevante e de especial interesse, e essa singularidade resulta do eco da personagem indivíduo no colectivo, na comunidade. Esta capacidade de contágio e a figuração da massa urbana em conflito agudo, em batalha nas praças e ruas da cidade Gotham City no ecrã da sala escura, a fazer eco de um tempo agora, um tempo hoje, onde coletes amarelos em Paris, multidões em Barcelona, ou em Hong-Kong, por razões de ordem diversa, confrontam de forma aberta o poder de polícia dos Estados. JOKER é um homem sem pai, um cidadão sem representação da sua cidadania, vive uma dupla orfandade, pessoal e social. Neste nosso tempo de vivências atomizadas, de vidas sem laços sociais comunitários, a orfandade é um trauma que irrompe como vulcão. De alguma forma o trauma da orfandade é subterrâneo ao agitar das bandeiras, seja as da libertação do género da âncoras dos comportamento socialmente bem aceites; mudanças de género, etc, ou bandeiras das vozes minoritárias das etnicidades ao acesso ao exercício do Poder, o facto Édipo, permanece e é central na construção da afectividade humana. A libertação do pai, processo constitutivo do crescimento individual e social do humano, tem sempre uma carga traumática, e marca a relação do afecto com o próprio e com o mundo. Freud afirmou que o que move o mundo é o desejo inconsciente. Se a leitura das manifestações do inconsciente no consciente quase sempre é de difícil acesso, mais fácil é verificar que o desejo consciente, em certos casos mais até do que a necessidade, é instrumental para as dinâmicas da ação. * Cineasta, Jornalista. Doutorando em Estudos Artísticos – Estudos Fílmicos e da Imagem – FL -Universidade de Coimbra Mestre em Estudos Culturais Aplicados em Cinema – Desenvolvimento de Projecto Cinematográfico – ESTC – Instituto Politécnico de Lisboa. Licenciado em Ciências da Comunicação – ISCSP – Universidade de Lisboa
Hoje Macau EventosRealizadores portugueses consideram Macau dispendiosa para filmar [dropcap]M[/dropcap]acau tem muito potencial cinematográfico, mas ao contrário do que acontece com a literatura, não é um polo atraente para o cinema português, e será cada vez menos, com o afastamento dos portugueses e os baixos orçamentos cinematográficos. A solução no futuro poderá passar por coproduções entre Portugal e Macau, onde há “toda uma nova geração de macaenses que estão a fazer filmes em Macau”, disse à agência Lusa o realizador João Rui Guerra da Mata, que viveu naquele território até à revolução de Abril, e que, juntamente com João Pedro Rodrigues, é autor de alguns dos poucos filmes portugueses centrados naquela região. “Quero acreditar que o cinema de Macau tem potencial para se desenvolver, se calhar o mais interessante era que fossem coproduções Portugal-Macau, que ambas as comunidades percebessem que têm uma historia comum e pontos de vista diferentes sobre essa historia comum e que essas coproduções iriam dar uma vida e um olhar até mais saudável sobre o território”, afirmou João Rui Guerra da Mata. A dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata está actualmente a trabalhar em dois projetos cinematográficos de base histórica: um tem a ver com os acontecimentos mais recentes em Hong Kong e as suas repercussões em Macau, o outro prende-se com a história de Macau durante a II Guerra Mundial. Orçamento decisivo De qualquer modo os realizadores apontam aquela que é a razão mais válida para o desinteresse geral dos portugueses pelo cinema em Macau, que é a falta de dinheiro. “Há livros de escritores portugueses de histórias passadas em Macau que dariam filmes extraordinários, mas quase sempre são filmes que precisariam de um ‘budget’ muito elevado. A questão do dinheiro é mesmo fulcral”, considera João Guerra da Mata. A falta de orçamento é também a justificação apontada por Luís Filipe Rocha, que realizou em Macau “Amor e dedinhos de pé”, baseado no romance homónimo do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes, mas em coprodução com Espanha e França. “Não é simples, implica deslocações longas, estadias, viagens, obtenção de licenças, é complicado montar um produção cinematográfica em Macau”, afirmou. Para o cineasta, a história do colonialismo português sempre foi de “distância e trânsito mercantil”, sem haver uma “relação ativa importante cultural”, mas antes “uma forma [de relação] superficial e utilitária ligada ao comércio e ao trânsito marítimo” e também ao facto de “a própria China nunca ter sido um país propício a inter-relações”, defendeu Luís Filipe Rocha.
Andreia Sofia Silva EntrevistaPaulo José Miranda, autor da biografia sobre Manoel de Oliveira: “A sua vida é tudo menos trivial” Poeta e colaborador do HM, Paulo José Miranda aceitou, pela primeira vez, embrenhar-se no género da biografia por ser um apaixonado pelo cinema de Manoel de Oliveira. No livro, contam-se os segredos de uma vida e de uma obra que acompanha quase a história do próprio cinema. Editado pela Contraponto em Portugal, a publicação chega à Livraria Portuguesa na próxima segunda-feira [dropcap]D[/dropcap]isse esperar que esta biografia chame mais a atenção do público português para as obras de Manoel de Oliveira. Os seus filmes foram sempre muito esquecidos pelos portugueses, mas aclamados fora de Portugal? Isso aconteceu desde o primeiro filme, filmado em 1931. Manoel de Oliveira sempre foi muito mais apreciado por estrangeiros do que pelos portugueses. A partir de uma certa altura ele passou a ser muito conhecido, mas esse conhecimento tinha a ver com várias razões que não propriamente as razões de apreciação da sua obra. E depois com os prémios lá fora e as críticas sempre muito boas, mais o facto de trabalhar sempre com bons actores, foi criando uma certa maturidade em Portugal. Mas a verdade é que a maioria das pessoas continuava a não ver os seus filmes e a falar deles de um modo depreciativo sem os ver. São filmes muito teatrais, muito longos. Isso poderá ter afastado o público? Primeiro que tudo trata-se de um cinema na maioria das vezes muito experimental, completamente fora do mainstream, anti-naturalista. É sempre muito difícil, porque as pessoas cada vez mais se interessam pelo cinema como divertimento, vão ao cinema como se aquilo estivesse mesmo a acontecer. Essa é uma das razões principais que afasta o público do cinema de Manoel de Oliveira. Mas também podemos dizer isso em relação à literatura ou à música. Porquê o título “A morte não é prioritária”? Esse título aparece logo quando comecei a trabalhar no livro, em 2017, quando me sentei a ver vários documentários sobre Manoel de Oliveira. No primeiro que vi, de Sérgio Andrade, uma das pessoas que estavam a ser entrevistadas falava da longevidade de Manoel de Oliveira e dizia que, em relação a ele, a morte não era prioritária. Eu achei que aquela frase se coadunava com o Manoel de Oliveira. Aí disse ao meu editor que já tínhamos título e ele achou extraordinário. De qualquer modo, tem muito a ver com ele. Qual foi o primeiro filme que viu que o fez perceber que era fã do cinema de Oliveira? Quando vi o primeiro filme do Manoel de Oliveira era muito jovem, tinha 23 anos, e foi “Os Canibais”, que tinha acabado de sair. Eu já gostava de cinema e, para um jovem de 23 anos, “Os Canibais” era uma obra extremamente nova, revolucionária. Aliás, várias pessoas escreveram na altura que parecia o filme de um jovem que estava a começar e não de um homem com 80 anos. FOTO: Sofia Mota O livro revela alguns segredos? Há várias informações que surgem que nunca tinham vindo a lume, algumas porque as pessoas não sabiam, porque foram reveladas por pessoas particulares, e outras tinham a ver com uma certa formalidade ou um trato que o Manoel de Oliveira tinha tido com Paulo Branco (produtor), por exemplo, para não falar daquilo que os tinha levado a separar. Depois da morte, isso deixa de fazer sentido manter-se, então há coisas que se revelam. A biografia não pretende trazer coisas que ninguém saiba, embora apareçam, mas quer acima de tudo contar a história de um homem que é bastante singular, bem como a sua história de vida e obra. Não é só a obra de Manoel de Oliveira que está neste livro, mas a sua vida, que é tudo menos trivial. A vida de Manoel de Oliveira acompanha a história do cinema português. A história do cinema mundial, quase, porque o cinema tinha 13 anos quando ele nasceu. Ele começa a filmar no cinema mudo e termina a filmar com o digital. Nestes dois anos de intenso trabalho quais foram os maiores desafios com que se deparou? Uma das dificuldades prendia-se com a longevidade dele. O colocar em 500 páginas, que acabaram por ser mais, uma vida tão grande e extensa, fez-me planear o que ia deixar de fora. Não é possível colocar uma vida inteira dentro de um livro. Numa aproximação mais rigorosa teriam de ser seis mil páginas, no mínimo. A técnica que escolhi foi a mesma que os cineastas utilizam em relação aos romances. Pegam num romance de 500 páginas e escrevem um guião para um filme de hora e meia. Eu fiz um guião como se a vida do Manoel de Oliveira fosse um romance, e fazer esse guião sem perder a riqueza do romance foi o maior desafio. Faltava contar a história de vida de um dos maiores cineastas portugueses? Há muitas reflexões à volta de Manoel de Oliveira, muitos textos sobre ele em Portugal e no estrangeiro, sobretudo em países anglo-saxónicos. Mas acho que era importante haver uma biografia e sobretudo uma como a que fiz, em que o confronto da vida com a obra está todo lá. O Luís Manuel Cintra dizia-me que não era possível fazer a biografia dele sem ter um conhecimento profundo e sem ter visto todos os filmes dele. Foi esse o trabalho que fiz e julgo que fazia sentido. Poderá voltar ao género da biografia? A poesia está sempre presente. Não me parece que volte à biografia pois é um trabalho muito exigente e que só se faz por uma grande paixão. Durante a elaboração desta biografia quais foram as fontes consultadas, que entrevistas fez? Manoel de Oliveira deixou quatro filhos, que continuam vivos. Uma das filhas, a Adelaide, que secretariava o pai, disse-me que a família não tinha nada contra a biografia, mas que preferia não participar porque teria sido essa a vontade do pai quando era vivo. Por intermédio de outra pessoa, José Roque de Pinho, falei com Manuel Casimiro (filho de Manoel de Oliveira) que, a partir de 2005, era a pessoa responsável por terminar os filmes caso o pai morresse. Era preciso determinar isso nos contratos. (Manoel de Oliveira morreria dez anos depois, com 106 anos de idade). Foi uma preciosa ajuda nas questões dos anos mais antigos, não me falou da infância e da adolescência do pai, mas falou do pai com 40 ou 50 anos. Falei também com pessoas que trabalharam com Manoel de Oliveira, com muitos actores e algum pessoal da parte técnica.
Andreia Sofia Silva EventosCinema | Tracy Choi coordena projecto de curtas-metragens sobre as duas décadas da RAEM Chama-se “Years of Macau” (Anos de Macau) e é o mais recente projecto da realizadora Tracy Choi para assinalar os 20 anos da transferência de Macau para a China. Um total de dez realizadores do território, onde se inclui António Caetano de Faria, contam a história do desenvolvimento de Macau entre 1999 e 2019, sem esquecer as memórias e sentimentos dos que decidiram por cá ficar [dropcap]O[/dropcap] mais recente projecto da premiada realizadora Tracy Choi pretende contar as várias estórias de Macau dos últimos 20 anos. “Years of Macau” (Anos de Macau) conta com a colaboração de dez realizadores locais, com cada um a abordar um ano após a transferência de soberania. As curtas-metragens, com cerca de dez minutos cada uma, incluem um filme que deverá ser revelado ao público na próxima edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, que acontece em Dezembro. Tracy Choi assegurou ao HM que o projecto ainda está na fase de pós-produção. “O que é especial neste projecto é que todos trabalhamos em conjunto, além de representar as nossas visões enquanto jovens realizadores sobre a forma como vemos Macau nos últimos 20 anos.” A realizadora contou que o projecto “Years of Macau” acontece muito à semelhança da iniciativa “Macau Stories”, que durante anos foi produzida por Albert Chu, hoje ligado à Cinemateca Paixão. “Percebemos que queríamos fazer algo em conjunto e aconteceu a oportunidade de abordarmos os 20 anos da transferência de soberania. Queríamos manter as memórias de como sentimos Macau”, adiantou Tracy Choi. No “Years of Macau”, há três fases distintas do processo de transferência de soberania, sobretudo no que diz respeito aos sentimentos da população. “A primeira fase é de 1999, as pessoas aí tinham uma grande incerteza em relação à transferência de soberania e estavam confusas sobre como as coisas iam correr, quer fossem chinesas ou portuguesas.” Tracy Choi denota também que “devido ao crescimento rápido da economia as pessoas estão a mudar, e os filmes abordam mais essas mudanças nos últimos 20 anos”. No que diz respeito ao ano de 2019, “o realizador usou o humor para mostrar o que se passa actualmente”. “A curta-metragem tem muitas histórias engraçadas e significa que o realizador pensa que a situação agora é um pouco complicada, mas que ainda é possível manter algum humor”, frisou. Europeu de 2000 António Caetano de Faria é um dos realizadores que participa neste projecto com a curta-metragem “Rec”, e que decorre no ano de 2000. “O filme passa-se num restaurante português no dia 20 de Junho de 2000, que foi nada mais nada menos o dia do jogo Portugal-Inglaterra do Euro 2000. Os amigos juntam-se para ver esse jogo e o filme aborda esse momento”, contou o realizador ao HM. “Rec” aborda esta mistura de sentimentos face a um período especial da história da RAEM. “Gostei muito de me ter calhado este ano. Eu não estava cá, mas conheço muitas pessoas que estiveram e ficaram cá. Só vim em 2008 e tentei fazer alguma pesquisa sobre o tema, que é sensível e emocional para muita gente. Tentámos fazer um filme que englobasse todas as comunidades de Macau.” “Havia muitas pessoas que queriam ir embora porque tinham receio do que poderia acontecer, mas outras queriam ficar. Fiz esse paralelismo na história e isso agradou-me, pois pude mostrar o que muitas pessoas sentiram na altura. Pela investigação e pelas pessoas com quem falei reparei que havia essa dualidade de impressões. O meu filme toca nesse ponto e no saudosismo de Portugal, porque tem um jogo de futebol à mistura”, acrescenta António Caetano de Faria. O realizador fala da importância do projecto “Years of Macau”. “Para mim o cinema é gravar e contar histórias do que se passa e se passou. O que a Tracy está a fazer em Macau é muito importante, ao juntar o mundo ocidental e oriental. Trabalho com ela desde 2009, temos caminhado juntos e isso tem-se reflectido nos resultados, e em Dezembro vamos ver isso.” O projecto “Years of Macau” é, para o realizador português, a prova de como a área do cinema está em franca expansão. “Começa a haver um grupo gigante de pessoas interessadas em fazer e investir no cinema em Macau e isso agrada a todos os que trabalham na área, porque têm a oportunidade de fazer o que gostam e de filmar as histórias que querem contar.”
Andreia Sofia Silva EventosCinema | Tracy Choi coordena projecto de curtas-metragens sobre as duas décadas da RAEM Chama-se “Years of Macau” (Anos de Macau) e é o mais recente projecto da realizadora Tracy Choi para assinalar os 20 anos da transferência de Macau para a China. Um total de dez realizadores do território, onde se inclui António Caetano de Faria, contam a história do desenvolvimento de Macau entre 1999 e 2019, sem esquecer as memórias e sentimentos dos que decidiram por cá ficar [dropcap]O[/dropcap] mais recente projecto da premiada realizadora Tracy Choi pretende contar as várias estórias de Macau dos últimos 20 anos. “Years of Macau” (Anos de Macau) conta com a colaboração de dez realizadores locais, com cada um a abordar um ano após a transferência de soberania. As curtas-metragens, com cerca de dez minutos cada uma, incluem um filme que deverá ser revelado ao público na próxima edição do Festival Internacional de Cinema de Macau, que acontece em Dezembro. Tracy Choi assegurou ao HM que o projecto ainda está na fase de pós-produção. “O que é especial neste projecto é que todos trabalhamos em conjunto, além de representar as nossas visões enquanto jovens realizadores sobre a forma como vemos Macau nos últimos 20 anos.” A realizadora contou que o projecto “Years of Macau” acontece muito à semelhança da iniciativa “Macau Stories”, que durante anos foi produzida por Albert Chu, hoje ligado à Cinemateca Paixão. “Percebemos que queríamos fazer algo em conjunto e aconteceu a oportunidade de abordarmos os 20 anos da transferência de soberania. Queríamos manter as memórias de como sentimos Macau”, adiantou Tracy Choi. No “Years of Macau”, há três fases distintas do processo de transferência de soberania, sobretudo no que diz respeito aos sentimentos da população. “A primeira fase é de 1999, as pessoas aí tinham uma grande incerteza em relação à transferência de soberania e estavam confusas sobre como as coisas iam correr, quer fossem chinesas ou portuguesas.” Tracy Choi denota também que “devido ao crescimento rápido da economia as pessoas estão a mudar, e os filmes abordam mais essas mudanças nos últimos 20 anos”. No que diz respeito ao ano de 2019, “o realizador usou o humor para mostrar o que se passa actualmente”. “A curta-metragem tem muitas histórias engraçadas e significa que o realizador pensa que a situação agora é um pouco complicada, mas que ainda é possível manter algum humor”, frisou. Europeu de 2000 António Caetano de Faria é um dos realizadores que participa neste projecto com a curta-metragem “Rec”, e que decorre no ano de 2000. “O filme passa-se num restaurante português no dia 20 de Junho de 2000, que foi nada mais nada menos o dia do jogo Portugal-Inglaterra do Euro 2000. Os amigos juntam-se para ver esse jogo e o filme aborda esse momento”, contou o realizador ao HM. “Rec” aborda esta mistura de sentimentos face a um período especial da história da RAEM. “Gostei muito de me ter calhado este ano. Eu não estava cá, mas conheço muitas pessoas que estiveram e ficaram cá. Só vim em 2008 e tentei fazer alguma pesquisa sobre o tema, que é sensível e emocional para muita gente. Tentámos fazer um filme que englobasse todas as comunidades de Macau.” “Havia muitas pessoas que queriam ir embora porque tinham receio do que poderia acontecer, mas outras queriam ficar. Fiz esse paralelismo na história e isso agradou-me, pois pude mostrar o que muitas pessoas sentiram na altura. Pela investigação e pelas pessoas com quem falei reparei que havia essa dualidade de impressões. O meu filme toca nesse ponto e no saudosismo de Portugal, porque tem um jogo de futebol à mistura”, acrescenta António Caetano de Faria. O realizador fala da importância do projecto “Years of Macau”. “Para mim o cinema é gravar e contar histórias do que se passa e se passou. O que a Tracy está a fazer em Macau é muito importante, ao juntar o mundo ocidental e oriental. Trabalho com ela desde 2009, temos caminhado juntos e isso tem-se reflectido nos resultados, e em Dezembro vamos ver isso.” O projecto “Years of Macau” é, para o realizador português, a prova de como a área do cinema está em franca expansão. “Começa a haver um grupo gigante de pessoas interessadas em fazer e investir no cinema em Macau e isso agrada a todos os que trabalham na área, porque têm a oportunidade de fazer o que gostam e de filmar as histórias que querem contar.”
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasHerdade [dropcap]C[/dropcap]om estreia em 62 salas, este é o filme a que se tecem os mais rasgados elogios por parte de comunicação social e dos actores do sector. É bom o conseguimento de um produtor, o Paulo Branco, e da equipa de comunicação do filme, desta vontade que exprime também a mudança significativa no acolhimento da produção cinematográfica portuguesa, que da indiferença e da crítica assente em pré-conceitos sobre a qualidade das obras, passou a um enaltecer, vendo pérolas cinematográficas nas obras que o cinema português vai conseguindo produzir. E isto é bom, mesmo que nem tudo seja pepita de ouro nos filmes que, por vezes após anos de insistência, vão conseguindo chegar ao grande ecrã. Um dos problemas com que o cinema português se tem confrontado nas últimas décadas, é o do acesso aos públicos, o que é o mesmo de dizer, enorme dificuldade no acesso à exibição e distribuição. Um filme português ter estreia em 70 salas, a par de outras produções recentes que também chegam ao primeiro contacto com os públicos em 50, 60 ecrãs, é um dado novo que indica uma mudança de enaltecer, e até festejar. Nas contas do primeiro fim de semana, de 19 a 22 de Setembro o filme foi visto por 19.424 pessoas, nos 62 ecrãs, o que representa uma receita bruta de 105.372,11€. Herdade, é um excelente filme para, uma vez mais, se colocar a pergunta “O que é o cinema?”, já tantas vezes formulada no seguimento da formulação primeira, por André Bazin, na segunda metade da década de 40 do séc. XX. Curiosamente é também nos anos 50 que se inicia a materialidade cinematográfica deste fresco cinematográfico assinado por Tiago Guedes. A resposta à pergunta é vasta e depende do modelo de abordagem; dispositivo estético, modelos de produção, recepção, linguagem, géneros cinematográficos, cinema mainstream ou cinema indie, cinema-cinemas, são alguns dos possíveis ângulos para a análise e circunscrição da questão. O espaço permitido à escrita de uma crónica de cinema não é o lugar para uma aproximação/resposta à pergunta tantas vezes formulada, mas talvez seja oportuno pensar sobre uma outra pergunta que, por razões várias, anda próxima; o que é escrever sobre filmes?, ou que é hoje, escrever crítica cinematográfica? Todos os filmes se confrontam com a memória cinematográfica, e o filme vive este aparente paradoxo de ser simultaneamente obra única e obra partilhada. Nunca é pouco o que se exige a cada filme. E ainda bem, esta exigência, esta expectativa de revelação, de emoção, racionalidade e maravilhamento perante cada nova obra cinematográfica que pela primeira vez chega ao grande ecrã é uma das condições para diferenciação cinematográfica na imensa produção audiovisual. Ao contrário do que muitos profissionais do marketing afirmam quando decidem antecipar o que os públicos querem, gostam, ou não gostam, um olhar atento mostra que os públicos de cinema, reconhecem e procuram a excelência cinematográfica, a qual raramente dispensa a história e o processo inteligível de a contar. Escrever sobre um filme é, obviamente, escrever sobre a fotografia, o argumento, a montagem, os actores, a produção, a realização, mas talvez que seja sempre o fora de campo, que a própria escrita sobre qualquer objecto cinematográfico já é, aliás, o aspecto mais revelador e de interesse na escrita sobre filmes. Afinal, é eco do filme em nós, o que nos apaixona ou distancia da obra cinematográfica. A primeira cena da Herdade começa com um plano geral no Alentejo, e uma situação narrativa de enorme força. Um sobreiro na paisagem de terra quente onde se adivinha o trigo e a determinação sem reservas nem complacência do confronto fenomenológico entre vida e morte. Alguém, um homem trabalhador da herdade, decidiu pôr fim à vida. O corpo permanece inerte alguns metros acima da terra, enlaçado e pendurado pelo pescoço na corda grossa atada ao ramo vigoroso do sobreiro. Um outro trabalhador prepara-se para descer o corpo, a acção é interrompida por mando do dono da herdade, é dada ordem para ir chamar o filho – João Fernandes (o personagem interpretado por Albano Jerónimo quando adulto – aqui ainda criança). O pai quer que o filho olhe a realidade, diz-lhe que vai aprender uma lição de vida, indica-lhe o olhar para o enforcado. A criança, perante a crueldade da imagem, após um primeiro momento de confronto com a materialidade da morte, afasta-se a correr, refugia-se no isolamento oferecido pela pequena ilha, a ermida de Stº António, uma pequena ruína, no lago da propriedade. O lugar tenente do pai corre para apanhar a criança mas à voz do patrão que lhe dá ordem para o não fazer, imobiliza-se, regressa ao trabalho de descer do ramo do sobreiro o corpo do companheiro enforcado. Estamos perto da década de 50. A sequência seguinte é já com João Fernandes no lugar do pai, é ele agora o dono da grande Herdade, estamos ainda no Estado Novo, a Guerra Colonial exige esforços e alianças. João Fernandes está no picadeiro com o seu puro sangue, o cavalo negro, é-lhe anunciada a visita sem convite de um ministro de Estado. Nesta sequência conhecemos a família, o lugar tenente do patrão, uma personagem magistralmente criada pelo Miguel Borges, que é sem grande discussão merecedora de um prémio de interpretação pela contenção e desenho do personagem. E claro o contexto da época. A importância, ou melhor o poder do senhor do latifúndio, e a forma do exercício do Poder do Estado, as necessárias visibilidades das alianças, os améns às decisões do Presidente do Conselho. O tema é tratado com exagero, é forçada a boçalidade e falta de cortesia por parte de altos funcionários do Estado, com comportamentos onde não há distinção nem as regras básicas da urbanidade. É um exagero mas foi a escolha. Se quando se trata de funcionários da polícia política o tom grosseiro e sem urbanidade é justo e adequado, é desajustado quando em ministro ou seus secretários. Ficamos a conhecer a Herdade, a família, o trabalho e a polícia política. Há um trabalhador ligado ao PCP que é preso, e o patrão vai a Lisboa libertá-lo. Afinal é casado com a filha do general que comanda a polícia política, e isto das relações de parentesco, antes do 25 de Abril como agora, continuam ser passaportes de grande validade nas mais diversas situações sociais. A progressão na narrativa vai tendo lugar na maioria das vezes no tom e de forma adivinhada, e o golpe de Estado do 25 de Abril acontece. Seguem-se os momentos de convulsão social conhecidos, a reforma agrária tentada na forma de ocupação da terra a que com pulso e sem vacilar João Fernandes faz frente, continuando a gerir a Herdade. Paulo Branco, de quem parte a ideia inicial do filme, não por acaso, convidou para montador do filme Roberto Perpignani, que foi quem montou o famoso documentário “Torre Bela”, onde é dado a ver a ocupação revolucionária da herdade com o mesmo nome. Roberto Perpignani, para além de ser uma vedeta dado ter montado filmes do Orson Welles e do Bertolucci, é um conhecedor do que foram os tempos da reforma agrária em Portugal no chamado verão quente da revolução. O tempo vai passando. O filho cresce. Uma nova linha de dramaturgia explorada, e neste grande fresco pelos perto de 60 anos da paisagem social e política deste país, surge uma estória de amor com contornos de Romeu e Julieta no contexto das barreiras da origem social de classe, a que o interdito do sangue vem acrescentar um toque queirosiano dos Maias, por razões de uma espécie de infidelidade consentida a quem é senhor de terras e patrão de gentes. A Democracia está instalada, e se antes o problema da permanência da terra da Herdade passou por fazer frente à mudança de propriedade em razão da vontade e legitimação revolucionária, a que João Fernandes conseguiu fazer oposição vitoriosa, agora o problema vem da banca, e a Herdade vai desaparecendo, em parcelas vendidas aos próprios bancos. Um extenso terreno de cultivo de arroz é entregue. Outros já foram. Se a reforma agrária não conseguiu ocupar a Herdade, consegue-o agora a banca, na realidade neo-liberal da democracia. O homem-tenente do patrão, dádiva irrepreensível do Miguel Borges, pai oficial, do jovem por quem a filha do patrão se apaixona e que é afilhado do patrão, morre num acidente que se adivinha propositado. O filme termina com a queda e morte do cavalo de raça, e o recolhimento à pequena ilha no lago na infância do personagem principal do filme, num tratamento de arco de personagem de grande fôlego e muito bem conseguido. Filme poderoso, que nos transporta nesta viagem pela história recente dos grandes territórios da agricultura em Portugal, com uma versão de série para televisão que terá bom acolhimento dos públicos com todo o merecimento. Escrever sobre cinema é também isto, falar um pouco do filme visto, apelar à vontade de descoberta do filme sabendo que cada espectador tem um filme único à sua espera, e essa é também uma das muitas maravilhas do cinema. Produzido por Paulo Branco, “A Herdade”, tem argumento de Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes, estreou no festival de Veneza e esteve presente no festival de cinema de Toronto. É o candidato de Portugal aos Óscares (EUA) e também aos Goya (Espanha). Diz o realizador, “A Herdade” é “um filme de personagens, de atores, de interpretações fortes, da grandeza das paisagens que os envolvem e das consequências dos segredos que transportam”. https://www.youtube.com/watch?v=NsMH22Lybyo Título original: A Herdade. Realizador: Tiago Guedes. Montador: Roberto Perpignani. Produtor: Paulo Branco. Com: Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, João Pedro Mamede, Diogo Dória, Victória Guerra, Ana Bustorff, entre outros. Portugal, cores, 166 minutos
Hoje Macau China / ÁsiaProtestos de Hong Kong marcam festival de cinema de Taiwan [dropcap]U[/dropcap]m documentário sobre o movimento pró-democracia em Hong Kong abre no dia 6 de Setembro a edição deste ano do Festival Internacional de Cinema e Direitos Humanos de Taiwan. Numa altura em que Hong Kong enfrenta protestos regulares desde Junho, a terceira edição do festival arranca com “Umbrella Diaries: The First Umbrela”, do realizador James Leong, de Singapura, que acompanha a “Revolta dos Guarda-Chuvas” em 2014. Segundo um comunicado do Ministério da Cultura de Taiwan divulgado na segunda-feira, o programa do festival inclui ainda “Last Exit to Kai Tak”, um outro documentário, do britânico Matthew Torne, que segue quatro activistas pró-democracia de Hong Kong. “Hoje Hong Kong, Amanhã Taiwan” e “Movimentos Juvenis Contemporâneos” são aliás dois dos três temas do festival organizado pelo Museu Nacional dos Direitos Humanos de Taiwan, juntamente com “Destino: Igualdade de Género”. A actual crise política é o maior desafio que Hong Kong já enfrentou, disse o director do Museu, Chen Jung-hong, durante a apresentação do festival, que vai decorrer entre 6 e 8 de Setembro na capital Taipé e entre 17 e 25 do mesmo mês na cidade de Kaohsiung. Minas e armadilhas O programa do festival inclui “Deslembro”, um filme da realizadora brasileira Flávia Castro sobre os desaparecidos políticos durante a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985, assim como discussões após as sessões e workshops “para explorar os direitos humanos na perspectiva das vítimas políticas”. A Presidente de Taiwan, Tsai Ing-Wen, recebeu no mês passado cativistas pró-democracia de Hong Kong e referiu que a ilha iria seguir “princípios humanitários” para lidar com eventuais pedidos de asilo dos activistas. Em resposta na semana passada, Ma Xiaoguang, porta-voz do Gabinete para os Assuntos de Taiwan do Governo chinês, exigiu que o governo de Taiwan “pare de minar o Estado de Direito” e de interferir nos assuntos de Hong Kong.
Hoje Macau EventosTaiwan | Pequim proíbe participação chinesa em festival de cinema [dropcap]A[/dropcap] China informou ontem que proibiu actores e filmes chineses de participarem no Prémio Golden Horse, de Taiwan, uma das mais prestigiadas distinções da indústria cinematográfica na Ásia, em mais uma medida para pressionar Taipé. O anúncio, difundido pelo China Film News, um jornal afiliado à agência que regula a indústria no continente chinês, não detalhou os motivos para a suspensão, mas a medida ocorre no momento em que Pequim exerce crescente pressão financeira e diplomática sobre Taiwan. Mesmo sem aquela proibição, seria difícil para os artistas chineses participarem na cerimónia, que decorre no final de Novembro. Pequim proibiu recentemente viagens individuais a Taiwan, alegando o deteriorar das relações com a ilha democraticamente governada. A participação chinesa já estava em dúvida, desde que a cerimónia do ano passado ficou marcada pelo descontentamento chinês com o discurso do produtor de documentários Fu Yue, que apelou ao mundo para reconhecer Taiwan como um país independente, algo que menos de vinte nações fazem actualmente. Os participantes chineses recusaram-se então a subir ao palco e fizeram observações pontuais sobre Taiwan e China serem membros da mesma família. No final, recusaram-se a comparecer no banquete de recepção. Citado pela agência noticiosa Associated Press, o comité organizador disse lamentar a notícia, mas confirmou que o evento continuará como planeado. Os participantes chineses são os grandes vencedores do evento, desde que foram convidados pela primeira vez a participar, em 1996.
Hoje Macau EventosPlataforma 1220 pede participação de cineastas para Festival de Busan [dropcap]A[/dropcap] 1220 – Produção de Filmes pretende levar para o Festival Internacional de Cinema de Busan, na Coreia do Sul, cineastas de Macau para que mostrem o seu trabalho num dos mais importantes festivais de cinema. De acordo com um comunicado, há quatro vagas disponíveis para cineastas independentes e outros profissionais ligados ao marketing, financiamento e distribuição. São também convidados a submeter candidaturas profissionais que tenham participado em produção de curtas-metragens. Os projectos devem ser submetidos em inglês e chinês, sendo também pedida carta de referência caso o candidato esteja empregado numa empresa. Com esta iniciativa, a plataforma 1220 possibilita aos “profissionais de Macau uma oportunidade única de interagir com outros cineastas de todo o mundo”, além de poderem partilhar “as suas experiências em termos de filmagens e procurar por oportunidades de negócio com produtoras estrangeiras”. Apoios do FIC O mesmo comunicado dá conta do optimismo da plataforma 1220 para o Festival Internacional de Cinema de Busan, uma vez que, no passado, “obteve uma resposta positiva no que diz respeito ao recrutamento de trabalhadores locais da área do cinema para aderirem aos mercados estrangeiros”. “A 1220 pretende descobrir mais produções locais de cinema que promovam a competitividade do sector em Macau, para que a indústria do cinema do território siga em frente”, lê-se ainda. A empresa foi uma das beneficiárias do Fundo das Indústrias Culturais no segundo trimestre deste ano, recebendo duas tranches no valor total aproximado de duas milhões de patacas. O valor de 1,780 milhões de patacas diz respeito à “atribuição da primeira prestação de apoio financeiro ao projecto “Plano de Apoio Financeiro Específico da Plataforma de Serviço Integrada de Cinema e Televisão 1220”, enquanto as 54 mil patacas constituem a “última prestação de apoio financeiro ao projecto ‘Plataforma de Serviços de Emissão, Venda Internacional e Pós-Produção Cinematográfica e Acesso a Feira de Exposição Internacional’”.
Hoje Macau EventosFilmes de Leonor Teles e Tiago Guedes em competição no Festival de Veneza [dropcap]O[/dropcap] filme português “Cães que ladram aos pássaros”, de Leonor Teles, vai estar em competição no 76.º Festival de Cinema de Veneza, que decorre de 28 de Agosto a 7 de Setembro em Itália, foi ontem anunciado. O filme integra a secção competitiva Orizzonti, sub-secção de curtas-metragens, de acordo com a produtora Uma Pedra no Sapato num comunicado. O nome de Leonor Teles, de 27 anos, sobressaiu no cinema português em 2016, quando venceu o Urso de Ouro, o prémio máximo do festival de Berlim, com “Balada de um batráquio”. Depois das curtas-metragens “Rhoma Acans” e “Balada de um batráquio”, Leonor Teles assinou em 2018 a primeira longa documental, “Terra Franca”, vencedora de uma dezena de prémios, que acompanha a vida de Albertino Lobo, um pescador de Vila Franca de Xira (onde a realizadora nasceu) ligado desde sempre ao rio Tejo. “A Herdade” na corrida Outro filme português que também está em competição é “A Herdade”, de Tiago Guedes, e que estreia em Portugal a 19 de Setembro. “A Herdade” tem co-produção da Leopardo Filmes e da Alfama Filmes, e conta a “saga de uma família proprietária de um dos maiores latifúndios da Europa, na margem sul do rio Tejo, […] fazendo o retrato da vida histórica, política, social e financeira de Portugal, dos anos 40, atravessando a revolução do 25 de Abril e até aos dias de hoje”. Com argumento de Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes, com a colaboração de Gilles Taurand, o elenco é composto por Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, João Vicente, Ana Bustorff, Beatriz Brás, entre outros. Depois de Veneza, o filme terá a sua estreia norte-americana no Festival Internacional de Cinema de Toronto, cuja 44.ª edição decorre entre 5 e 15 de Setembro.
Raquel Moz EventosCinemateca Paixão | Ciclo de filmes japoneses entre Julho e Agosto “Japanese Summer Breeze” é o título do ciclo de cinema japonês que traz ao território três filmes recentemente estreados, sobre temas quotidianos, questões familiares, assuntos do coração, dores de crescimento e mais alguns ingredientes [dropcap]A[/dropcap] Cinemateca Paixão estreou ontem o primeiro filme do ciclo de cinema nipónico, que dá pelo título de “Japanese Summer Breeze”. Em cartaz vão estar três recentes longas-metragens, de 2018 e 2019. A anunciada brisa estival japonesa arrancou ontem ao final da tarde com o filme “Ramen Teh” (2019), do realizador singapurense Eric Khoo, sobre perdas familiares e a cura da alma através do estômago, com múltiplas sessões até ao dia 6 de Agosto. “Eating Women” (2018), do realizador Jiro Shono, também sobre o poder da culinária e da partilha, estreia amanhã, dia 26 de Julho, e fica até 8 de Agosto. E “And Your Bird Can Sing” (2018), do realizador Sho Miyake, sobre as derivas da juventude, chega à tela no sábado, 27 de Julho, para ficar até 14 de Agosto. Sopas de fitas “Ramen Teh” é uma história sobre a busca da família e as memórias dos sabores de infância. Masato é cozinheiro num restaurante de “ramen” na cidade de Takasaki, no Japão. Após a morte súbita do pai, com quem mantinha uma relação emocionalmente distante, o jovem japonês encontra uma antiga mala cheia de objectos de recordação e um caderno vermelho, que pertenciam à sua mãe, falecida quando o rapaz tinha apenas dez anos. A curiosidade sobre a família materna de Singapura leva Masato a viajar para aquele país, onde conhece uma jovem blogger de gastronomia que o ajuda a investigar as raízes e encontrar um tio materno. Através deste familiar, Masato vai descobrir que a avó ainda está viva, a pessoa certa para lhe explicar o terno, mas atribulado romance entre os pais. A reunião entre avó e neto é também ajudada pelos ingredientes que entram nas receitas de família, em especial na sopa “bak kut teh” singapurense, de que Masato ainda se recorda. Amizades e Amores “Eating Women” (2018), ou “Taberu Onna” no original é uma história sobre oito mulheres que se encontram frequentemente com uma ensaísta e alfarrabista, cuja loja de livros usados funciona na sua própria casa. Como gosta de cozinhar, a anfitriã prepara com frequência pratos especiais para experimentar com as amigas, enquanto conversam à mesa, ou no alpendre à luz da lua, partilhando as suas complicadas vidas. E quem são estas amigas? Mulheres com diferentes idades, carreiras, percursos, expectativas, amantes, companheiros, famílias. Mas que têm em comum a paixão pela boa comida e pelo convívio, como forma de aliviar a tensão das rotinas diárias.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasUma aldeia ocupada pelo cinema. O 23º Avanca Film Festival está a começar [dropcap]T[/dropcap]eve lugar a 16 de Julho, no Cine Teatro de Estarreja a conferência de imprensa que deu a conhecer a 23ª edição do AVANCA FILM FESTIVAL, que acontece de 24 a 28 deste mês. Avanca é uma aldeia onde os milenares costumes do trabalho da terra; lavrar, semear, colher, se misturam com a contemporaneidade do cinema do mundo que aqui chega com regularidade anual há 23 anos, afirmando desta forma o cinema enquanto lugar de encontro e mudança, capaz de promover dinâmicas sociais e culturais nos territórios, anular velhas centralidades e periferias, à velocidade dos filmes projetados nos ecrãs do auditório da igreja paroquial de Avanca, do Cine Teatro de Estarreja e nas salas do Cinema Dolce Vita – Ovar. Organizado pelo Cine-Clube de Avanca, com apoio do Município de Estarreja, do ICA – Ministério da Cultura, o Festival tem na relação com o território local, a freguesia de Avanca com 21,5 km2 e 7.000 habitantes, a 6 km de Estarreja, sede do concelho, uma das suas forças identitárias e diferenciadoras. O festival tem uma abertura inédita, popular e festiva. Inicia-se com banquete recepção aberto aos convidados, imprensa, e organização, a que se segue um percurso nas ruas da aldeia com as centenas de participantes em desfile encabeçado pela banda filarmónica e aplaudido pela população nas janelas, uma procissão cinematográfica, em direção ao auditório da igreja da paróquia onde a cerimónia de abertura tem lugar. Durante aproximadamente uma semana, em Avanca, pensa-se e vive-se o cinema que é feito no mundo. Na edição deste ano estão 84 filmes em competição, produzidos em países dos 5 continentes, dos quais 36 são filmes em estreia mundial. Na apresentação da edição a organização destacou : 1. A primeira competição internacional de cinema VR 360º (Realidade Virtual), num festival de cinema em Portugal 2. O primeiro festival a apoiar a rodagem de novos filmes. Nesta edição arranca pela primeira vez o AVANCA FILM FUND . Trata-se de um fundo financeiro para a produção de cinema no Concelho de Estarreja. 3. O primeiro festival de cinema em Portugal com workshops onde nascem novos filmes (os filmes rodados no festival receberam 57 prémios em festivais de vários países do mundo) 4. O único festival de cinema multigeracional a premiar cineastas com menos de 30 e mais de 60 anos; O único festival de cinema em Portugal com uma regional onde os novos filmes são a expressão de uma dinâmica de produção cinematográfica crescente. O cinema Português tem 7 filmes na competição Internacional, 10 filmes rodados na região, e 32 filmes portugueses nas diversas seções do Festival. Nesta edição, pela segunda vez a FICC – Federação Internacional de Cineclubes incluiu o AVANCA 2019 na lista de festivais de todo o mundo onde é atribuído o Prémio D. Quixote. Um dos pontos fortes do Festival são as Conferências Internacionais Cinema, Arte, Tecnologia, Comunicação que reúne investigadores que apresentam trabalhos sobre cinema na contaminada relação com outras artes, comunicação e tecnologia. Nesta 10ª edição da conferência vão estar investigadores de 16 países, de diversas universidades e centros de investigação, e apresentadas 126 comunicações. Festival de cinema no meio do milho e de vacas leiteiras, com uma identidade que o diferencia resultado não só do lugar onde acontece, a escola secundaria Egas Moniz com as salas de aula transformadas em Oficinas Criativas e workshops, em explosão criativa com equipas a rodar na aldeia e territórios próximos, e os campos de recreio transformados em parque de campismo improvisado. É uma identidade que antecede o festival expressa nas palavras do diretor e fundador do AVANCA FILM FESTIVAL António Costa Valente: “Cremos que um projetor e um ecrã não fazem um festival. Tão pouco uma passadeira vermelha, caras conhecidas, filmes em exibição, uns prémios, notícias e fotos. Cremos que copiar é feio e pouco proveito trará. Cremos, portanto, que os festivais não se podem fazer como se de um carimbo se tratasse. Acreditamos que um festival só vale a pena se tiver carácter, profundidade e for motor para algo novo. Acreditamos que vale a pena juntar o gosto e o desejo a um espaço sedutor, onde os mimos e os beijos possam andar no ar. Afinal, trata-se de cinema. Trata-se de uma indústria à sombra das ilusões, do espreitar realidades que nos furam os olhos, de pensamentos transformistas, trespassantes, impudicos. Se o cinema passa por aqui, então um cine festival terá de lhes dar o braço e ser capaz de lhes falar em silêncio. O AVANCA acredita na voragem inconclusiva das fronteiras e as temáticas passam-lhe ao lado. Por isso, todos os filmes podem passar neste festival, desde que se goste… mesmo que magros, gordos, brancos, pretos, coxos, cegos, todos… AVANCA é um espaço livre de olhos nos 360º da vida e da vida fílmica.” AVANCA é assim um festival de cinema que vive a informalidade e o conhecimento, a experimentação e vontade de novo, num trabalho de construção de novos públicos, assente na centralidade do cinema enquanto dispositivo técnico expressivo capaz de pensar e olhar o mundo que a todo momento se reconstrói com o sonhos e cimento do real. Um festival que procura pensar os filmes e com eles, ou através deles, pensar melhor o mundo. Algumas das obras presentes na seleção oficial AVANCA 2019 “Elvis Walks Home” de Fatmir Koci – Albânia “Eternal Winter”de Attila Szász – Hungria “The Bra”de Veit Helmer – Alemanha “Puppet Master” de Hanna Bergholm – Finlândia “Taniel” de Garo Berberian – Reino Unido “Simon Cries” de Sergio Guataquira Sarmiento – Bélgica “Carnaval sujo” de José Miguel Moreira – Portugal “Elephantbird” de Masoud Soheili – Afeganistão “Aquarela” de Al Danuzio – Brasil “Flutuar”de Artur Serra Araujo – Portugal “Retiro” de Alejandro Sorin, Miguel Dianda e/and Nicolás Ferrando – Argentina “Tweet” de Zhanna Bekmambetova – Rússia “Lola the Living Potato” de Leonid Shmelkov – Rússia “Tangle” de Malihe Ghloamzadeh – Irão “Two Ballons” de Mark C. Smith – EUA “Land” de Alexandra Oliveira – Portugal “A Tua Vez” de Cláudio Jordão, David Rebordão – Portugal “Boca do Inferno” de Luís Porto – Portugal “Magister”de Gustavo dos Santos – Portugal “A cor em Júlio Resende” de Casimiro Alves – Portugal “Ciclo”de Tiago Margaça -Portugal “A menor resistência”de Rafael António Silva Marques – Portugal “(in)UTILIDADES” de Joaquim Pavão – Portugal
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasAgradeçam a Salazar os filmes legendados [dropcap]R[/dropcap]eza a lenda que Salazar terá ido uma vez ao cinema em 1937 a instâncias de António Ferro, entusiasmado com o “seu” “A revolução e Maio”, filme de propaganda tão apessoado como os que se faziam lá fora. Saiu da estreia com uma cefalalgia e quando soube do custo da coisa desabafou uma das suas enigmáticas sentenças: “O cinema é demasiado caro.” A natureza telúrica do ditador desconfiou daquilo como um passatempo lúgubre, turbulento e um tanto deletério, sobretudo depois da II Guerra Mundial, com a prevalência dos filmes americanos que cultivavam por todos os poros o individualismo e a extroversão anímica, o conforto mundano da classe média, a incontinência quer sentimental quer do consumo – todos os avatares do capitalismo. Contra esta invasão reclamava também a tacanha corporação do cinema nacional, incapaz de produzir filmes que não fossem sumamente toscos, sensaborões, eunucos, assim os néscios que se pretendiam populares quanto os enfatuados de cultura. Como é comum aos indigentes e desabonados, com a benesse de uns tostões estatais os cineastas facilmente se deixavam domesticar pelos requisitos da cultura dominante. Fazendo jus à sua famigerada astúcia, de um golpe Salazar matou então 2 coelhos com a Lei 2027 de 1948: protegia o cinema nacional da comparação e da competição e limitava, tanto quanto controlava severamente, a distribuição de filmes estrangeiros, coactando a sua influência. Tudo isto muito bem-posto no Art. 13º: “Para garantir a genuinidade do espectáculo cinematográfico nacional, não é permitida a exibição de filmes de fundo estrangeiros dobrados em língua portuguesa.” Tratou-se de um gesto consequente na política do “orgulhosamente só” que excluía Portugal das boas práticas aplicadas desde o Caia até ao Oder, dobrando os filmes para que um maior número de pessoas a eles pudesse aceder. Como de costume o mercado aberto revelou-se mais pródigo do que o proteccionismo e no mesmo passo em que o cinema português estagnava as filmografias nacionais europeias floresceram “apesar” da dobragem. Uma terceira vitória obteve contudo esta Lei, sabe-se lá se inesperada para a solércia de Salazar. Dá-se em Portugal um fenómeno pitoresco que é o de certas concepções mudarem de cor e de posição política, sem que se altere a substância. De modo que uma imposição restritiva e supressiva, discriminatória e elitista, reaccionária e anti-cosmopolita, acabou por ser perfilhada com alacridade pelas pessoas de bom-gosto e, sobretudo, cultas (bens de que toda a gente se crê possuidora em altíssimo grau). Ou seja a impante classe média urbana mormente a que dizia repugnar o obscurantismo do regime salazarista. Tem-se baseado em duas presunções, qual delas mais absurda, o seu denodado aplauso ao Art.13º. A primeira afirma que a legendagem é muito instrutiva; promove a literacia porque sujeita o espectador à leitura, e facilita a aprendizagem de idiomas porque o expõe à sua audição. Que melhor refutação do que constatar que em 1968, 20 anos depois da aplicação desta lei, o analfabetismo rondava a taxa hedionda de 30% da população? Salazar acertou: os analfabetos, logo mais permeáveis às “más-influências” pura e simplesmente não iam ao cinema. A sua circulação confinava-se a uma franja social urbana “culta” e de “bom-gosto”. Quanto à proficiência linguística portuguesa, não passa de um mito urbano demonstrado em sucessivas estatísticas. A segunda presunção em defesa da legendagem dos filmes é ainda mais capciosa. Por via dela alega-se alcançar uma essência proporcionada em exclusivo pelas inflexões, pela densidade, pela pronúncia, pelos trejeitos das vozes originais dos actores. Não sendo mentira é ilusão, dado converter em autenticidade o que não passa de um hábito. Traga-se aqui à colação um belo texto de Wim Wenders no qual confessa ter chorado quando descobriu que Brigitte Bardot afinal não falava alemão nem tinha uma voz tão sugestiva. A mocidade dos anos 60 lembrar-se-á do “Wilma, abrá portá, Wilma” do genérico final dos “Flinstones” como um dos ícones sonoros do seu tempo; assim mesmo em brasileiro e se escutarem o original é como se coisa perdesse a graça – experimentem… Argumente-se também ser a legenda um borrão visual na imagem que a estraga, e ao exigir que fixemos o olhar no texto, distrai-nos do conteúdo dramático dos enquadramentos. Estamos condenados à legendagem dos filmes, por efeito de um hábito adquirido, assim inamovível e insuperável. Mas o decreto salazarista de 1948 não deixa de contribuir para uma explicação do estado perpetuamente empobrecido do cinema produzido em Portugal.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasFatalismo, fatalidade [dropcap]N[/dropcap]o período apelidado de Belle Époque não havendo guerras que empregassem os exércitos europeus, nem por isso a diplomacia arrefeceu as suas premências como forma de se fazer importante. Simpatias, entendimentos e tratados foram amarrando as nações, mas se o intuito jurado era o apaziguamento, o verdadeiro incentivo para estas alianças acoitava-se nas suspeitas e animosidades que cada país sustinha pelos vizinhos. Impantes de positivismo as secretarias exerciam a sua plenipotência com cálculo e resolução; sentiam-se triunfantes, predestinadas mesmo – “A diplomacia é a guerra por outros meios.”. Moloch, a divindade canaãnita que se cevava de carne humana, despertou então da sua letargia no centro de uma teia de compromissos quando no fim de Junho de 1914 Gravilo Princip, rancoroso e temerário como só o podem ser os patriotas, emboscou numa esquina de Sarajevo o Arquiduque Franz Ferdinand e a sua mulher Sofia. Com dois singelos tiros reduziu-os a cadáver. Uma semana depois a 1.440 kms dali, em Potsdam, o Kaiser Guilherme recebe ao almoço um memorandum e uma carta pessoal do Imperador Habsburgo reclamando vingança pela morte do herdeiro com a extinção da ignóbil Sérvia, a seu ver uma charneca que só dava ameixas, merda de cabra e assassinos. Guilherme quis prorrogar, recomendar-se com o seu Chanceler, mas a rogos do enviado de Viena persuadiu-se na hora a dar “carte blanche” à acção punitiva do Império Austro-Húngaro. Sabe-se hoje que nem a prudência nem a perspicácia eram os primeiros atributos do Guilherme prussiano, ainda menos a clarividência. Mas há-de ter captado quão brusco e desavisado fora o seu beneplácito. Assim que as baterias austro-húngaras começaram a bombardear Belgrado a Rússia, arvorada em madrinha dos povos eslavos, decretou mobilização geral em socorro da Sérvia. O Czar tinha as costas quentes com a Triple Entente, o pacto que chamaria a França e o Reino Unido em sua defesa em caso de agressão. Agora Guilherme percebia que um fio que se puxasse ia tudo atrás. É mortificação do Príncipe, sobretudo dos retraídos e mercuriais como Guilherme, o pressentimento de ser a única pessoa na sala que não está a par de algo que todos sabem. E que as suas ordens são cumpridas e as vontades acatadas por mera deferência. Se o servilismo, tanto melhor quanto acrescentado de bajulação, ao menos deixa à mostra a hipocrisia, a probidade e o dócil conformismo dos que por fidelidade se demitem de objectar, são demónios que atormentam o discernimento do regente. O que mais preocupava a titubeação de Guilherme era que em nome dele a casa de Hohenzollern continuasse primeira entre a aristocracia prussiana, famosamente ríspida e marcial, brutalmente agrária, culturalmente embebida da razão de Kant e do determinismo de Hegel-o-velho-de-Berlim. E os cabeças quadradas exultavam com a hipótese da guerra para glória e escudo da Alemanha. De tal modo que já haviam congeminado o Plano Schlieffen: num prodígio de precisão e disciplina logística primeiro lançar-se-iam 7 ou 8 exércitos contra a França, para numa vitória rápida assegurar a inibição da frente ocidental e depois virava-se tudo contra a Rússia. A magnitude, a agressividade e talvez até o custo do plano impressionaram o Kaiser. Aproximando-se “O Dia” (em que a operação seria desencadeada), tão assustado andava que tresleu um telegrama do embaixador alemão em Londres, segundo o qual, dir-se-ia que por meias palavras, os britânicos garantiam a neutralidade da França. Radiante, Guilherme chamou Helmuth von Moltke, o chefe do Estado Maior – podemos atacar apenas a Leste. Mas Motke retorquiu que tal não era possível: “não se podem alterar em tão pouco tempo os horários dos comboios e estes já estão em marcha.” 14 milhões de almas foram devolvidas ao Criador nos 4 anos de batalhas nas trincheiras da frente Oeste. Contudo os comboios circularam impecavelmente à tabela.
Raquel Moz EventosCinema | 4ª edição do IFFAM conta com parceria de Xangai São muitas as novidades do próximo Festival Internacional de Cinema de Macau, que este ano acontece de 5 a 10 de Dezembro. A colaboração com o Festival de Cinema de Xangai e as presenças do realizador Peter Chan e da actriz Carina Lau são algumas delas [dropcap]A[/dropcap] 4ª edição do Festival Internacional de Cinema de Macau (IFFAM, na sigla inglesa) vai decorrer este ano entre 5 e 10 de Dezembro, no Centro Cultural de Macau, e conta com a parceria do Festival Internacional de Cinema de Xangai (SIFF) e da Academia de Artes e Cinema de Xangai (SFAA), foi anunciado no domingo passado, na cerimónia de assinatura dos acordos de colaboração que decorreu naquela cidade. “Com o objectivo de impulsionar a indústria cinematográfica local”, o IFFAM une este ano esforços com o festival congénere de Xangai, além de “lançar pela primeira vez uma Competição de Curtas-Metragens”, que “terá uma selecção de dez narrativas curtas assinadas por jovens realizadores da região. No primeiro ano desta nova secção, trabalharemos em concreto com escolas de cinema e instituições da China Interior, de Hong Kong e de Macau. Iremos aumentar também o número de prémios na categoria de Novo Cinema Chinês, que passam a incluir galardões para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhores Actor e Actriz”, anunciou o Director Artístico do IFFAM, Mike Goodridge. O produtor e realizador do vizinho território, Peter Chan, foi este ano convidado para presidente do Júri da Competição Internacional do IFFAM. “É um dos cineastas mais talentosos e bem sucedidos da história recente do cinema de Hong Kong. A grande qualidade dos seus filmes pan-asiáticos tem vindo a estimular o desenvolvimento da indústria cinematográfica de toda região em geral. Acredito que ele irá partilhar a sua enorme experiência e sabedoria com os membros do júri e com os realizadores no próximo mês de Dezembro”, acrescentou. Como embaixadora de talentos do IFFAM 2019 foi, igualmente, convidada a veterana actriz de Hong Kong, Carina Lau, conhecida pela sua longa carreira e participação em filmes de realizadores consagrados, como Wong Kar-Wai, que a dirigiu nos filmes “Days Of Being Wild” (1990) e “2046” (2004), a sequela do muito premiado “In The Mood For Love” (2000). A ela juntar-se-ão, também como embaixadores do IFFAM 2019, o realizador e argumentista sul-coreano Kim Yong-Hwa, o actor, produtor e realizador indiano Karan Johar, e o realizador e argumentista chinês Wang Xiaoshuai. Incubadora de realizadores O objectivo de impulsionar o renascimento do cinema local é uma preocupação do IFFAM, que justificou o lançamento do programa de estágios para realizadores de Macau com a prestigiada TorinoFilmLab, permitindo a deslocação de três equipas do território a Turim, em Itália, para participar em dois workshops – Elaboração de Argumentos e Produção Criativa – e a possibilidade de estarem presentes no Festival de Cinema de Turim no próximo mês de Novembro. “A participação de múltiplos realizadores e dos seus projectos em Turim, para interagirem com outros jovens participantes a nível internacional, é uma aposta para alavancar a construção de bases sólidas para uma indústria cinematográfica local. A intenção deste programa é estabelecer o IFFAM como uma plataforma para novos realizadores de cinema asiáticos, com vista a apoiar a indústria, na qualidade de incubadora dos seus primeiros e segundos filmes”, pode ler-se na nota de imprensa da cerimónia de domingo em Xangai. Com o mesmo propósito, as conhecidas realizadoras locais Tracy Choi e Harriet Wong foram convidadas a participar nas actividades do SIFF NEXT, um evento paralelo ao 22º Festival Internacional de Cinema de Xangai que se realiza por estes dias, entre 16 e 24 de Junho.
Hoje Macau EventosAlmodóvar vai receber Leão de Ouro pela Carreira no Festival de Cinema de Veneza [dropcap]O[/dropcap] cineasta espanhol Pedro Almodóvar vai receber o Leão de Ouro pela Carreira no 76.º Festival Internacional de Cinema de Veneza, que vai decorrer de 28 de Agosto a 7 de Setembro. Segundo o comunicado, a decisão foi tomada pela direcção da Bienal de Veneza, presidida por Paolo Baratta, após a proposta do director do festival, Alberto Barbera. Pedro Almodóvar, realizador e argumentista espanhol, admite sentir-se “muito animado e honrado pelo Leão de Ouro” e recorda a sua estreia internacional no Festival de Cinema de Veneza, em 1983, com o filme “Negros Hábitos”, lê-se no comunicado. O cineasta agradece: “Este Leão irá tornar-se no meu animal de estimação, juntamente com os meus dois gatos. Obrigada do fundo do coração por me atribuírem este prémio”, pode ler-se no comunicado. A propósito desta atribuição, Alberto Barbera considera que “Almodóvar não é apenas o maior e mais influente realizador espanhol desde [Luis] Buñuel, mas um cineasta que oferece retratos multifacetados, controversos e provocadores da Espanha pós-franquista.” O director acrescenta que “Almodóvar se destaca, acima de tudo, por pintar retratos femininos incrivelmente originais, graças a uma empatia excepcional que lhe permite representar o seu poder, riqueza emocional e fraquezas inevitáveis com uma autenticidade rara e comovente”. Pedro Almodóvar, que nasceu em Calzada de Calatrava na região autónoma de Castilha-La Mancha e aos 17 anos foi para Madrid estudar cinema, realizou filmes como “Má Educação”, “A Pele Onde eu Vivo”, “Julieta”, “Volver”, entre outros, e algumas das suas produções foram adaptadas para peças de teatro e musicais. Almodóvar voltou a ser premiado nos Óscares com “Fala com Ela”, de 2002, pelo argumento original do filme. O filme “Dor e Glória” saiu este ano e é a última produção de Pedro Almodóvar com os actores António Banderas e Penélope Cruz no elenco principal. Recentemente a Cinemateca Paixão dedicou um dos seus ciclos de cinema ao cineasta espanhol, tendo sido exibidos em Macau filmes como “A Lei do Desejo” ou “Tudo Sobre a Minha Mãe”, entre outros.
Raquel Moz EventosCinema | Violência Doméstica na Casa Garden O VI Ciclo de Cinema CRED-DM é sobre a Violência Doméstica e apresenta um cartaz de 5 filmes durante 5 semanas. Começa na próxima quarta-feira e promete aprofundar a reflexão sobre este crime público, que pode acontecer em qualquer casa [dropcap]A[/dropcap] Violência Doméstica é o tema que inspira o VI Ciclo de Cinema CRED-DM, a partir da próxima semana na Casa Garden, organizado pelo Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau, da Fundação Rui Cunha, em conjunto com a Fundação Oriente. Cinco filmes vão ser exibidos durante cinco semanas, de 19 de Junho a 17 de Julho, todas as quartas-feiras às 19h30. “No mundo de hoje, a violência contra mulheres e crianças é uma das mais difundidas, persistentes e devastadoras violações dos direitos humanos, atravessando todas as gerações, nacionalidades, comunidades e esferas das nossas sociedades de uma forma, maioritariamente, silenciosa e dissimulada”, é o repto lançado pela nota de imprensa. A coordenadora do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau, Filipa Guadalupe, à frente deste projecto de divulgação através do cinema, explica que “entendemos este ano falar sobre a violência doméstica, por ser um crime que, a nível internacional, não tem vindo a diminuir, mas a aumentar. Por afectar qualquer pessoa e segmento da sociedade – não é só entre homens e mulheres, pode ser entre pais e filhos ou qualquer membro da família – é preciso chamar a atenção para ele, para as coacções e ameaças, e depois para todas as consequências físicas, psicológicas, sexuais, que pode provocar nas respectivas vítimas”. Não é um crime circunscrito a uma só classe social, cultura, sexo ou religião, afecta todas. E por estar disseminada pela sociedade em geral como um crime silencioso – “quando se ouve falar dele, já se encontra muitas vezes numa fase irreversível” –, “nunca é demais aproveitarmos todas as oportunidades para falar sobre ele”. Fitas premiadas A selecção dos filmes foi feita pela equipa do CRED-DM, com base na premissa de mostrar bons argumentos sobre o tema em análise, menos conhecidos do público local, mas bem recebidos e premiados pela crítica especializada, oriundos de diversas partes do mundo. “Por ser um crime internacional, à escala mundial, a ideia foi tentar mostrar que o problema existe em todo o lado e é exactamente igual” acrescentou a responsável. O cartaz é composto por “Tyrannosaur”, de Paddy Considine (GB, 2011) exibido a 19 de Junho, “Provoked”, de Jag Mundhra (GB, Índia, 2006) a 26 de Junho, “Precious”, de Lee Daniels (EUA, 2009) a 3 de Julho, “Te Doy Mis Ojos”, de Icíar Bollaín (Espanha, 2003) a 10 de Julho, e “Vidas Partidas”, de Marcos Schechtman (Brasil, 2016) a 17 de Julho. “Tyrannosaur” contra a história de um homem violento, com crises de raiva que o atormentam, que encontra uma chance de redenção através de uma mulher que trabalha numa loja de caridade. Mas há segredos que vão ter consequências devastadoras para ambos. Com as elogiadas interpretações de Peter Mullan e Olivia Colman – a actual detentora do Óscar de Melhor Actriz, pelo filme The Favourite (2018) de Yorgos Lanthimos – , a película venceu um BAFTA, dois British Independent Film Awards, dois prémios no Sundance Film Festival, entre vários outros galardões. “Provoked: A True Story” é baseado na história verídica de uma mulher Punjabi, que se mudou para Londres após o casamento com um homem, inicialmente atencioso, mas que se revela um brutal agressor. Após dez anos de casamento, ela incendeia-o enquanto dorme, vindo a ser acusada de homicídio premeditado. Com os conhecidos actores Aishwarya Rai Bachchan, Naveen Andrews e Miranda Richardson. “Precious” é talvez o filme mais visto de todos, depois de ter sido nomeado para diversas categorias nos Óscares de 2010, onde ganhou duas estatuetas (Melhor Actriz Secundária e Melhor Argumento Adaptado), um Globo de Ouro, um prémio BAFTA e um SAG (Screen Actors Guild Awards). Conta a história de uma adolescente de 16 anos, a Precious, iletrada, com problemas de peso e grávida do segundo filho, concebido pelo seu próprio pai, em repetidas violações, com a anuência da mãe. Com Gabourey Sidibe, Mo’Nique e Paula Patton. “Te Doy Mis Ojos” é um filme trágico, baseado numa história real, que lida com a compreensão da violência como algo mais do que apenas um olho negro. É através da dinâmica do casal, do abuso continuado, do controlo emocional, do exercício do poder, que o filme se desenvolve, focando a dificuldade de quebrar os ciclos e de enfrentar as retaliações. Com Laia Marull, Luis Tosar e Candela Peña, o filme ganhou dezenas de prémios em Espanha e na América Latina, levando para casa sete Goyas em 2004. “Vidas Privadas” é uma história brasileira, passada no seio de uma classe social alta. Graça e Raul apaixonam-se perdidamente, casam-se e tornam-se pais de duas meninas. Até ao dia em que ela avança na carreira e ele fica desempregado, tornando-se mais agressivo e violento. Qual é o momento em que o amor enlouquece e se torna perverso, é uma das perguntas que o realizador tenta responder, num país onde a violência doméstica continua a somar números assustadores. Com as interpretações de Naura Schneider e Domingos Montagner, esta é a película mais recente em cartaz. As sessões de cinema na Casa Garden serão precedidas de um cocktail às 19h00 e, após o visionamento, haverá uma pequena conversa informal sobre o tema. A entrada é gratuita e existe estacionamento no local.
Hoje Macau EventosCinema | Jorge Jácome, vence Grande Prémio do Festival de Hamburgo O filme português “Past Perfect”, de Jorge Jácome, que aborda o sentimento da melancolia, venceu o Grande Prémio do Festival de Curtas Metragens de Hamburgo, na Alemanha. Foi o segundo ano consecutivo que o cineasta ligado a Macau venceu este galardão [dropcap]A[/dropcap] estreia mundial da película aconteceu em Fevereiro no Festival de Berlim, na competição Berlinale Shorts, vencendo agora o prémio principal do Festival de Curtas Metragens de Hamburgo, que decorre na Alemanha até domingo, repetindo a conquista na edição do ano passado, com “Flores”. “Este prémio assume ainda mais importância no ano em que a nova directora do festival, Maike Mia Hoehne, que dirigia anteriormente a competição de curtas metragens do Festival de Berlim, trouxe uma nova visão ao festival”, segundo um comunicado da Portugal Film. O júri desta 35.ª edição do festival foi composto por Pela del Álamo, realizador e director do festival Curtocircuito, Peter Van Hoof, programador do festival de Roterdão, Ana David, programadora do festival IndieLisboa, Jennifer Reeder, realizadora, e Pawel Wieszczecinski, distribuidor da Kinoscope. A curta-metragem de 29 minutos do realizador português Jorge Jácome é representada pela Portugal Film – Agência Internacional de Cinema Português. “Past Perfect” deriva da peça de teatro “Antes”, de Pedro Penim, na qual Jorge Jácome tinha trabalhado a componente visual. O realizador reescreveu o texto original, adaptando-o às suas interrogações pessoais e ao contexto cinematográfico. Fazer um realizador Apesar de ter realizado vários trabalhos durante o tempo em que estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, Jorge Jácome considera-se realizador a partir de “Plutão”, curta-metragem de 2013. Depois dessa fez as curtas “A guest + a host = a Ghost” (2015), “Fieste Forever” (2017) e “Flores” (2017). Jorge Jácome apresenta, então, “Past Perfect” como “um balanço e um ponto de situação” sobre o que faz e para onde quer seguir no cinema, tendo como base essa percepção da origem da melancolia, disse em entrevista recente à agência Lusa. “A melancolia, para mim, é uma coisa muito mais individual e pessoal, por isso é tão difícil de explicar. E este ‘Past Perpect’ está constantemente a dizer que é difícil de explicar, de traduzir, de passar para imagens e para texto o que é este sentimento”, contou. Nascido em Viana do Castelo em 1988, cresceu em Macau, até à transferência administrativa do território para a China em 1999. De regresso a Portugal, estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, sem ter ideias certas de que queria seguir cinema. “O que foi entusiasmante foi que na escola aprendi pela primeira vez a ver cinema e a ver filmes aos quais não tinha acesso. Aprendi mesmo tudo do zero. Não era cinéfilo antes de entrar para a escola”, recordou, em declarações em Fevereiro à Lusa. Depois rumou a França, para uma pós-graduação na Le Fesnoy, na qual aprendeu a desconstruir os ensinamentos anteriores.
Raquel Moz EventosCinema | Curtas portuguesas de animação na Casa Garden Quatro filmes portugueses de animação vão entreter os mais pequenos, este sábado à tarde, no Auditório da Casa Garden. As fitas são para maiores de quatro anos e enquadram-se nas celebrações de “Junho, Mês de Portugal” [dropcap]A[/dropcap] Casa Garden vai exibir a 8 de Junho, sábado à tarde pelas 16h00, uma “Mostra de Cinema para Crianças”, com uma selecção de filmes do New York Portuguese Short Film Festival, organizado pelo Arte Institute e apoiado pela Fundação Oriente. O cartaz apresenta quatro curtas-metragens de animação, numa sessão que terá a duração de uma hora, para maiores de 4 anos de idade. A iniciativa faz parte das comemorações de “Junho, Mês de Portugal” e reúne os filmes portugueses “Quando Os Monstros Se Vão Embora”, de Bernardo Gramaxo (2010) , “O Cágado”, de Pedro Lino (2012), “O Candeeiro e a Ventoinha”, de Filipe Fonseca (2012), e “O Gigante”, de Júlio Vanzeler e Luís da Matta Almeida (2012). A escolha é da responsabilidade do Arte Institute, que organiza o NY Portuguese Short Film Festival, “uma janela para mostrar cinema português a todo o mundo”, que se realiza anualmente em Nova Iorque. A primeira edição aconteceu em 2011, com uma mostra simultânea nas capitais norte-americana e portuguesa. O sucesso do evento permitiu aos organizadores, entretanto, levar extensões da mostra a outras cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Londres, Luanda ou, agora, Macau, divulgando o trabalho dos jovens realizadores nacionais. Pequenas histórias O primeiro filme é sobre monstros. “Madalena é uma rapariga de seis anos, e como qualquer criança na sua idade, adora desenhar, brincar e meter-se em sarilhos, mas acima de tudo, nunca fazer o que os pais dizem. Contudo Madalena tem o que nem todas as crianças têm, a ajuda dos seus monstros, que a acompanham durante todo o dia”. Um dia recebe más notícias do seu melhor amigo monstro, avisando que a irá deixar quando ela crescer, pois os adultos não necessitam da sua presença. “Madalena fica triste e tudo fará para não crescer, assim evitando a perda dos amigos imaginários”, segundo conta a sinopse. O filme “Quando Os Monstros Se Vão Embora” tem 13 minutos e meio e foi realizado por Bernardo Gramaxo em 2010. Participou em inúmeros festivais nacionais, como o Fantasporto 2010, o Fest-in 2011, o ShortCutz ou o Festróia, entre outros, e fez também carreira em festivais internacionais na Índia, Sérvia, Itália, China, Taiwan, Rússia, Reino Unido, Austrália e Cabo Verde, onde conseguiu o Prémio de Melhor Curta Metragem no Festival de Cinema Internacional do arquipélago em 2012. A segunda fita é “O Cágado”, realizada por Pedro Lino em 2012, uma animação portuguesa inspirada num conto de Almada Negreiros, que em 10 minutos conta “a estranha aventura de um homem muito senhor da sua vontade” que, um dia ao passear pela rua, dá de caras com “um estranho ser nunca antes visto: um cágado.” Depois de o examinar em detalhe, o homem corre a casa para contar a descoberta à família, mas não é fácil convencê-la. Para provar a existência física daquele “estranho animal da zoologia, vai até ao outro lado do mundo, num esforço inútil e sem sentido”, é o que se lê na sinopse. Esta fábula contemporânea estreou em Março de 2012 no Animac, em Espanha, e fez parte do programa do IndieLisboa, em Abril. Foi também um dos primeiros trabalhos resultantes da colaboração de Pedro Lino com outro realizador português em Londres, Luis Matta de Almeida, com quem criou o estúdio na capital britânica, Sparkle Animations. E duas curtinhas Ainda mais curta é a terceira película “O Candeeiro e a Ventoinha”, de Filipe Fonseca (2012), uma animação com apenas 3 minutos. É o tempo suficiente para mostrar como “um candeeiro apaixonado faz tudo para estar perto da sua amada, uma bela ventoinha. Num ambiente de ilustração e animação, este pequeno filme romântico leva-nos a um desfecho hilariante”, promete a sinopse da fita, que participou na secção do IndieJúnior do Festival de Cinema Independente de Lisboa (IndieLisboa) em 2013. Em quarto lugar chega o “O Gigante”, de Júlio Vanzeler e Luís da Matta Almeida (2012), que em 7 minutos propõe uma visão do que significa crescer. “Um gigante transporta no coração uma menina”, sendo este órgão “uma janela imensa, através da qual a menina descobre e decifra toda a realidade. Um dia ela terá que partir. Com a sacola cheia de sonhos e de esperança, ela criará um novo mundo sobre o legado que os seus pais lhe transmitiram”, explica a sinopse, lembrando que “os filhos traçam as suas próprias rotas, com erros de interpretação, com desvios de perspectiva, mas que são seus e é com eles que têm de viajar”. A proposta está feita. No sábado a entrada é livre e estão todos convidados.
admin h | Artes, Letras e IdeiasA rosa selvagem «Con cua nằm yên trên thớt Không biết khi nào con dao sẽ rơi.»* “[dropcap]V[/dropcap]iemos ver se estavas intacto”, foi o que disseram, enquanto um deles colocava as mãos nos meus ombros, como se quisesse cravar-me no chão. “Saber como evoluíste. Quem és”. No limiar do milésimo avaliavam a minha robustez, mas também a minha cognição. Quase que não tive tempo para falar, nem sabia o que dizer, o resultado da minha existência não tinha sido para além do satisfatório. Mas eles tomavam-me apenas como um exemplar, não me queriam apontar valor menos comensurável. A ideia nunca terá sido fazer de mim um líder, nem a espinha dorsal de um povo. Deixaram-me estar. Hoje, sei que em situações de apuro, não foram muitas, me deram a mão. Mas ao longo dos anos, não se intrometeram na minha vida e deixaram-me ao deus dará. Se não fosse comigo, se estivesse a falar de outra pessoa, seria fácil colocar este assunto no papel sem indignar o próximo. Sempre que o faço, ouço logo uma série de palavrões para que pare de inventar, porque o que digo não corresponde à verdade. “Lá estás tu!”, é a expressão que usam. Ninguém tem de acreditar. Cada um vive na sua psicosfera, maios ou menos amedrontados pelos seus temores. E daí não se sai. Cada um com o seu mambo. Apesar do limite difuso, considero que é melhor pôr a cabeça fora da toca e ficar sujeito aos temporais, aventurando-nos pela brecha que encontrarmos, ou na graça de uma linha invisível, do que ficar quietinho receosos do desconhecido. Por isso, vou continuar a contá-lo. Saltou o fim primeiro. Não faltarão mais intermissões. Preciso de me socorrer da Internet para reportar o dia certo em que ocorreu. A relevância em saber o dia, a hora ou o mês é menor. A importância de determinada ocorrência tem sempre uma condição redutora quando amarrada à memória. Vale o que vale. Tivesse ocorrido uma catástrofe natural ou um jogo de futebol, teria sido mais notado. Seja como for, não sou capaz de contá-lo de maneira a que faça sentido. Nunca soube. Tinha 18 anos e saía do Cinema Condes, em Lisboa, onde acabara de ver o filme ‘Platoon’ com o meu avô. O último filme que vi com ele. Enaltecido pelos Óscares, tinha estreado há pouco em todo o país. Ele queria ver a História a acontecer, crua e imbecil, o comportamento humano, a voracidade dos americanos, perdidos e sem freio, a reacção vietcongue, a crueldade do campo, das famílias indefesas e de como, no meio de toda aquela iguaria, era retratado o comunismo. Eu quis ir porque gostava do realizador no seu fato de argumentista e porque era o filme mais badalado da altura, um filme duro. Oliver Stone realizava o seu primeiro grande projecto cinematográfico. Duas horas cheias de carnificina e explosões no escuro, era o que nos esperava. Qualquer filme sobre a Guerra do Vietname tinha como termo de comparação ‘The Deer Hunter’ – não sei se ainda tem – que tinha visto anos antes no prolongamento de uma noite de passagem de ano. Em Portugal intitulou-se ‘O Caçador’. Um filme interminável, que nunca termina na nossa cabeça, com as suas frentes, a guerra e a paz, e nada pelo meio. O sangue-frio que preludia a luta desumana com uma caçada ao veado; concluída na paz podre do regresso à vida mundana, deixando o espírito em fervura para sempre. Só há uma vida quando alguém se vê acolhido numa guerra. Esgotam-se, uma coisa na outra. Não há espaço para mais. Quem sobra, fica apenas com o corpo como contento. Um dos caçadores era John Savage, ídolo de miúdo. Entrava também no enredo sobre a guerra civil em El Salvador, filmado por Stone no ano anterior. Savage interpretava aí um fotojornalista destemido que acaba por morrer sob fogo cruzado, agarrado à sua câmara. “You got to get close to get the truth. You got too close you die.” Embora tentassem, no Platoon os actores não eram tão carismáticos como no Caçador; ali era mais a acção, a câmara em cima das personagens, a correr a seu lado, sem complacência, como mais um companheiro de batalha, ou a face do inimigo. A virtude de estar vivo perante o sacrifício de uma luta que não era a deles, em nome de um ideal de pátria, que se escondia debaixo das unhas, sem significado aparente. “We didn’t fight the enemy, we fought ourselves… and the enemy was in us!”, confessava o protagonista destroçado. Não eram os bravos do pelotão, epíteto que se colou ao rótulo da versão portuguesa, eles tentavam apenas safar a pele, levando o corpo como salvação ao regressar a casa. Ou o que restasse dele. A morte crua em todo o alcance da razão. A câmara a transportar os corpos trucidados para dentro dos choppers Huey, que se avantajavam para permanecer incólumes no ar. Tudo isso às escuras no Cinema Condes, que já tinha sido cave para sociedades secretas onde, entre meninas e conspirações contra a pátria, se cozinharam outros vietnames. Sob o olhar vesgo das hordas de cinéfilos locais, o Condes seria tomado pelos americanos mais tarde. Não há nota de que algum helicóptero o tivesse acudido. Se no Caçador, a hipertrofia mental era simbolizada por Robert De Niro como alicerce para uma exacerbada tragédia fílmica; no hiper-realismo caricatural de Oliver Stone, originalmente escrito a pensar em Jim Morrison como o herói, o apogeu e queda revelam-se com a morte de Willem Dafoe, o messias do Vietname, que não teve tempo para ser pregado à cruz. Em ambos, a linha para a realidade é delicada e a tensão é glorificante. Actores que se transformam em máquinas de guerra sem discórdia. O sargento De Niro, o mais bravo da matilha, a usar balas reais na rodagem na famosa cena da roleta russa. Não esquecer a banda sonora, que nos ficou também a circundar as sinetas da emoção. Avô e neto. Cada um para seu lado, em tempos de vida diferentes, em conhecimento díspar. O bíblico Dafoe de braços no ar, num ressalvar dos céus para a Quinta Sinfonia de Mahler, que não o era, mas que tanto fazia, porque a conhecíamos melhor, num pequeno adágio que já tinha surgido no ‘Homem Elefante’, erigido no início dessa mesma década por David Lynch e em mais uns quantos filmes. Eu sei, o Valério Romão, colega de carteira e de apelido, diz sempre que me perco. É verdade. Aqui, os pregos da memória colam-se com cuspo. Samuel Barber, um génio que aos dois anos já dedilhava as teclas de um piano e aos seis era a coqueluche dos saraus familiares, escreveu, aos 26 anos, o adágio mais triste que as cordas podem fustigar. Um tormento. Em Lynch, picotado ao definhar de Joseph Merrick; em Stone, à firmeza de Charlie Sheen de nunca voltar para casa. A obra expressa a coragem do compositor para sair do seu covil, ostentando na arte o verdadeiro sentir. Misantrópico. “No doubt many wonderful souls have shrunk and refused to put their real emotions into art for others to know”. A transcendência confessional do seu talento traduzida em absoluta tristeza por não ousar análoga veracidade no batalhão familiar. Perde-se o corpo fica a alma. Mas não foi o filme que importou nesse dia. Nem o facto de conversar com o meu avô sobre ele. que não sobreviveu à sua traiçoeira guerra, “the smell of napalm in the morning”, meses depois. Foi, sim, o chamamento que se lhe seguiu. A verificação do estatuto. O último check-out, que se prolongou num longa metragem, até ao dia em que escrevo. Já os tinha notado quando fui à casa-de-banho no Condes. Fizeram-me sinal, era inconfundível. Não eram seres com antenas ou luzinhas a brilhar no olhar, nem vinham vestidos de negro, era gente comum. Pessoas banais: arrumadores de carros, vendedores de fruta, rapariguinhas perfumadas de lanterna no escuro do cinema. Passavam despercebidos, mas existiam para recolocar as linhas do espaço; para que o desenho que tinham elaborado, em recorrentes abduções infantis, não sofresse quebras. Seguindo o argumento de que todos fazíamos parte. Viver é sofrer, dizem os veteranos do Vietname. Somos como o caranguejo que aguarda o cair da faca. Sobrevive-se encontrando sentido no sofrimento, uma luta de mentiras e propaganda levada pelos tecnocratas e fazedores de armas. Todos os homens são criados iguais. Acreditamos no mesmo. Vida, liberdade e busca da felicidade. Espírito aberto. Tudo se passou enquanto o meu avô fumava o seu último cigarro. Ficara tudo como estava. “Quem eram aqueles?”, terá pensado sem perguntar, antes de entrarmos num “carro de praça”, como ele chamava aos táxis. Achou que não seria importante. Não lhe disse que os bravos do seu pelotão tinham perdido a guerra. Quem haveria de supor que o desfecho seria esse? A luta é sempre desigual. Não faz sentido. Não é preciso ser maior de idade para chegar a essa conclusão. * «O caranguejo fica quieto na tábua de cortar. Sem saber quando a faca vai cair.» Escrito por um soldado vietcongue desmoralizado, após a sangrenta batalha de Ia Drang, em 1965; lugar onde o Vietname não é Norte nem Sul, mas apenas terreno perdido em mata densa e traiçoeira.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOdisseia nos espaços [dropcap]R[/dropcap]evi ‘2001: Odisseia no Espaço’ há não muito tempo. A contracenar com a proto-lenda dos hominídeos, uma nave dirige-se para a estação espacial que Kubrick imaginou com a forma de uma dupla roda giratória. A banda sonora que acompanha a parte inicial da saga cósmica, a famosa valsa ‘Danúbio Azul’ de Johann Strauss II, suscitou-me profunda arrelia há quatro décadas e, desta vez, a coisa não passou de uma enigmática compaixão. À pulsão inicial (renhida) sucedeu uma quase insípida indiferença. E, no entanto, a fita era a mesma e a música replicava na perfeição a melodia estreada no carnaval de 1867 em Viena. Sou eu que hoje sou um outro. Esta experiência de degustação existencial não é inédita. A música é uma excelente anfitriã para estes saltos no escuro, mas as cidades (ou os microcosmos) que já habitámos também o são. A ‘minha Évora’, a ‘minha Tomar’, a ‘minha Amesterdão’, o ‘meu Campo de Ourique’, para dar só alguns exemplos, são territórios que não existem para mais ninguém. São-me exclusivos e eu não saberia traduzi-los para uma outra pessoa. Trata-se de atmosferas (fóricas) que têm tornado permeável o meu face a face com o planeta (a nossa vida tem a sua ‘Route 66’ que se deixa ramificar por uma ilimitada rede de capilares). Poder-se-ia dizer que estamos sempre em queda gravitacional, tendo como referência diversos centros, a maior parte deles instáveis, imprevisíveis. Mas essa queda vive em estado de perdição nos dois sentidos que a palavra oferece (as palavras são oferendas): seja na acepção de perda, seja na acepção do fascínio. Daí que a degustação de experiências passadas, que parecem domesticadas, não passe de puro funambulismo. Na verdade, caminhamos sempre em cima de uma estreita corda entre terraços de arranha-céus como o de Babel e a vulnerabilidade à vertigem e sobretudo ao desconhecido (com a idade, passa-se a dar ao desconhecimento um deslumbre especial) é ruidosa, no sentido de um sinal que é aleatório. E confirmamos então, se não o havíamos já feito antes por mera euforia, que tudo é intimamente transitório e que a perenidade (ou a eternidade) não passa de uma bela ideia dos humanos. Apenas isso. Nas inúmeras teses sobre o tema (que alimentam a atracção por aquilo que não somos e que desejaríamos ser), há uma teoria dos estóicos que me agrada especialmente. Para essa corrente que habitou o Mediterrâneo durante quase meio milénio, dos idos de Zenão de Chipre a Marco Aurélio ou a Séneca, há dois princípios que constituem o cosmos: um activo, o “logos” ou “fogo inteligente” (a razão que estrutura o mundo), e um outro passivo que corresponde à matéria inerte (terra e água). Os elementos activos (fogo e ar) combinam-se para produzir a “pneuma”, ou força vital, que atravessa e sustém todos os corpos do universo, através de um duplo movimento: para dentro, unificando-os, e para fora, conferindo-lhes as qualidades. A pneuma, ou respiração universal, é, pois, uma espécie de escudo invisível e perene (isto é: que preserva e que se preserva eternamente). Revelada a paixão estóica, devo referir que, para me aperceber de diferenças (o ‘Danúbio Azul’ escolhido por Kubrick é um óptimo exemplo), é preciso que se pise terra firme. Por outro lado, são as diferenças entre tudo o que se desencadeia diante de nós que nos permitem atribuir sentido à vida e ao que nela acontece. Se tudo se propagasse igual a si próprio e fora do tempo – seria assim a eternidade – não haveria sentido, nem necessidade de terra firme para colocar o corpo de pé e nele sentir a imprevista comoção suscitada por ‘2001: Odisseia no Espaço’. A ‘terra firme’ a que metaforicamente me refiro deverá, de alguma maneira, corresponder à “pneuma” dos estóicos. Sem esse escudo, ou sem essa âncora que nos permite focar e objectivar os diversos passos do mundo, gravitaríamos sem consciência fosse do que fosse, tal como um protozoário unicelular cuja utopia maior passaria por poder tornar-se visível a olho nu, num futuro muito, muito longínquo (cumprindo, para novíssimos patamares, a famosa profecia dos “15 minutos de fama” de Andy Warhol).
Hoje Macau EventosGrande Baía | Candidaturas a financiamento na área do cinema até 14 de Junho [dropcap]A[/dropcap] “Feira de Investimento na Produção Cinematográfica da Grande Baía – Guangdong-Hong Kong-Macau 2019” lança a partir de hoje o repto aos membros da indústria cinematográfica do território, interessados em submeter as suas candidaturas a financiamento de projectos, entre 28 de Maio e 14 de Junho. Organizada pelo Instituto Cultural (IC), pela Administração de Cinema da Província de Guangdong, e pela CreateHK, esta feira de investimento está a receber propostas de candidatos locais, com idade igual ou superior a 18 anos, que sejam os realizadores dos projectos que apresentam, contando já com filmes de ficção previamente exibidos ao público, com pelo menos 20 minutos de duração. Um júri composto por profissionais da indústria, convidados pelo IC, seleccionará até oito propostas locais para serem objecto de recomendação e participação, numa fase posterior de selecção global das três regiões, de acordo com critérios de selecção como: criatividade do argumento, viabilidade do projecto experiência, capacidade de execução do candidato e equipa, bem como razoabilidade orçamental. A iniciativa realiza-se no território desde 2014, com o objectivo de estabelecer uma plataforma de qualidade e conveniência para o intercâmbio entre produtores e investidores na área do cinema. Nas edições anteriores participaram 111 projectos e 210 investidores das três regiões. Os formulários podem ser descarregados nas páginas electrónicas do IC e das Indústrias Culturais e Criativas de Macau.